junho 17, 2017

Para sempre Marie Curie

Pelo título nunca o teria lido, e por isso me apego mais ainda a Montero que pára sempre que se refere aos ‘sempres’ e ’nuncas’, porque são marcas de não retorno, de perda. Porque se nunca o tivesse lido teria 'para sempre' perdido a oportunidade de descobrir a beleza do interior de Marie Curie, assim como a beleza da escrita de Montero, ainda que há muito tivesse interesse no seu trabalho. “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” é um livro singular porque feito da mescla de géneros — romance, autobiografia e biografia —, um 3 em 1 que recorre ao melhor de cada género para nos cativar, informar e emocionar.


Montero perdeu o marido em 2009, depois de 21 anos juntos. Passados 3 anos chega-lhe às mãos um pequeno diário de Marie Curie que viria a ser a centelha deste livro que hoje podemos ler. O diário de Curie são pouco mais de oito cartas, uma vintena de páginas, escritas ao longo de um ano exato, de Abril 1906 a Abril 1907, ao marido Pierre Curie morto a 19 de Abril de 1906. Este mesmo diário pode ser lido na íntegra no final do livro, onde surge como anexo. Montero resolve então utilizar o diário de Curie para expressar as suas ideias sobre a emoção e a razão. Ao longo das pouco mais de 150 páginas Montero conta-nos quem foi Marie, de onde veio, como lutou e como sentiu a perda de Pierre. Para tal Montero vai socorrer-se de várias fontes além do diário, sendo duas principais: o livro da filha Eve Curie sobre a mãe, e a sua própria história de perda do marido, três anos antes.

Marie Curie foi a primeira mulher a receber um Nobel (Física em 1903), e a única a receber dois nobeis (segundo em Química em 1911). A sua filha, Irene Curie, iria suceder-lhe em 1935 (Química).

A partir destes ingredientes Montero constrói um livro sobre a dor e a morte, mas simultaneamente sobre a força e a razão de se estar vivo. Uma parte do texto parece jornalismo de investigação à volta da vida de Marie, escrita como uma boa história, com direito a suspense e mistério. Outra parte é relato interior dos sentires de Montero que se abre, fazendo-nos sentir que aos 60 anos e com mais de duas dezenas de obras publicadas já não tem de provar nada a ninguém muito menos ter medo de se libertar e desvelar totalmente. O diário de Curie não foi escrito para ser publicado, mas Montero escreve para ser lida, por isso não se esperem jorros de sentimentos. Aliás Montero refere que nunca tinha gostado de ler os teceres sobre a morte de alguém querido, dando o exemplo de "Tears in Heaven" de Eric Clapton ou "Paula" de Isabel Allende, porque diz ela: “Para mim era como se estivessem, de alguma forma, a traficar com dores que deviam ter sido conservadas puras.”

Monteiro viria a reconhecer que o idealismo não nos leva longe, e que na verdade todos nós o fazemos, cada um à sua maneira, e é aqui que nos vai dizer algo que muito me emocionou a propósito da arte, evocando Pessoa:
“Na origem da criatividade está o sofrimento, o próprio e o alheio (..) ‘A arte é uma ferida feita de luz’, dizia Georges Braque. Não só quem escreve ou pinta ou compõe música mas também os que leem e veem quadros e ouvem um concerto. Precisamos todos de beleza para que a vida nos seja suportável. Fernando Pessoa expressou-o muito bem: 'A literatura, como a arte em geral, é a demonstração de que a vida não basta.'”
Esta passagem é tão bem conseguida porque dá conta de uma forma tão singela daquilo que  este livro representa. Mas se não bastasse, ainda antes mesmo de entrar na discussão de Curie, e quando explicava porque escreveu este livro, Montero em mais um breve conjunto de linhas dá conta da arte da escrita, do que está por detrás do processo de escrever um romance, e posso dizer que é a descrição mais perfeita que já li:
"Para conseguir escrever um romance, para aguentar o tempo longuíssimo e aborrecido que esse trabalho implica, mês após mês, anos após ano, a história tem de manter bolhas de luz na nossa cabeça. Cenas que são ilhas de emoção candente. E é pelo desejo de chegar a uma dessas cenas que, não sabemos porquê, nos deixam tiritar, que atravessamos talvez meses de soberano e insuportável aborrecimento ao teclado. De modo que a paisagem que avistamos ao começar uma obra de ficção é como um longo colar de escuridão iluminado de quando em quando por uma grande pérola iridescente. E avançamos com esforço pelo fio de sombras, de uma conta para a outra, atraídos como traças pelo brilho, até chegarmos à cena final que, para mim, é a última dessas ilhas de luz, uma explosão radiosa."
Este é o processo da escrita de Montero, mas é também a analogia que serve a Montero para nos dar a conhecer Curie. Não quero entrar no detalhe porque julgo este livro obrigatório, porque é obrigatório conhecer a história desta enorme senhora, da sua força interior gigantesca, não apenas dotada de razão científica mas claramente imbuída de uma força emocional muito grande capaz de lhe conferir doses de auto-motivação quase infinitas.

"Na vida, nada é para ser temido, tudo é para ser compreendido." Marie Curie

Mas se a criação artística e a ciência não forem os vossos pratos favoritos, ainda assim considero este livro obrigatório para todas as mulheres, para todos os homens feministas, e para todos os que ainda não compreenderam a razão do feminismo. “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” é um grito lancinante sobre a posição da mulher, sobre as mudanças ocorridas na sociedade ao longo do século XX, e claro sobre a importância de Curie em todo esse processo. Não é mero romancear de papéis, de lutas entre sexos, é um olhar acutilante produzido a partir de uma mente habituada a desconstruir a sociedade em que vivemos através da carteira de jornalista, e por isso é um relato tão próximo e real e ao mesmo tempo, belo.

Para quem, como eu, sentiu uma ponta de tristeza pela resignação e enterrar de sonhos da Saga Napolitana de Elena Ferrante, posso dizer que não poderia ter lido melhor antídoto para essa tristeza. Marie Curie arrebata qualquer coração, que Força da Natureza. Obrigado Rosa Montero.


"Querido Pierre, a quem não voltarei a ver aqui, quero falar-te no silêncio deste laboratório, onde não imaginava ter de viver sem ti."
Marie Curie, 30 de abril de 1906

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