dezembro 08, 2021

"Bewilderment" (2021) de Richard Powers

Uma leitura comovente sobre um mundo humanamente íntimo e abundante em ciência. A história acontece num futuro próximo raiado pelos problemas da atualidade — aquecimento global, pandemia, polarização política e ativismo —, visto a partir dos olhos de uma criança de 9 anos, diagnosticada distintamente em função de cada médico — com autismo, OCD ou ADHD —, que perdeu recentemente a mãe e tem de enfrentar o mundo tendo como único amigo o pai que é astrobiólogo e se dedica à modelação de simulações de possíveis formas de vida em exoplanetas. Um dos melhores livros de 2021.

dezembro 01, 2021

A manipulação de Gottschall

Não posso chamar livro a algo que não passa de um emaranhado de ideias e frases coladas juntas para manipular quem lê "The Story Paradox" (2021). Nem sequer posso dizer que Jonathan Gottschall conte uma história, porque contar uma história implica coesão e unidade discursiva, e aqui temos tudo menos isso. Gottschall agarra em tudo de todo o lado — diversas áreas científicas, tecnológicas e culturais — que possam de algum modo suportar as suas premissas, e monta um castelo de cartas para vender as sua ideias. Só esqueceu que a retórica para funcionar precisa de Ethos, não chega lógica e emoção. É quase doloroso ver Gottschall, alguém que ensina no ensino superior, usar trabalhos de múltiplos colegas, que estão relacionados com questões concretas, que ele cita distorcendo ou convocando os resultados para o que lhe interessa, apenas para oferecer prova de autoridade ao discurso que constrói. A isto chamamos discurso manipulativo, sem qualquer respeito pelos leitores. Se no seu livro anterior, "The Storytelling Animal" (análise VI), já se sentia muito disto, e que na altura considerei como "abordagem absolutista", neste novo livro além de não vir acrescentar nada, a abordagem resvala para a tentativa de inculcar o medo e o pânico esperando com isso atrair as luzes para a venda de mais livro.

novembro 28, 2021

Universo sem sentimento

Perder o marido, ficando viúva com dois filhos, é uma experiência trágica com claros efeitos pós-traumáticos, mas usando a abordagem que a autora tanto gosta, a estatística, não é uma experiência nada incomum, nem agora, nem em toda a história da nossa espécie. Por outro lado, ser-se uma cientista de topo, premiada com uma bolsa MacArthur, a chamada "Bolsa dos Génios" no domínio da busca de inteligência fora da Terra, ou surgindo na capa da New York Times Magazine, com o título: "A Mulher Que Pode Encontrar-nos Outra Terra", é algo muito pouco comum, reservado a um número muito restrito de pessoas. Neste sentido, juntar as duas coisas poderia ter funcionado, poderia ter sido um memoir distinto. O problema acontece quando de frente batem e chocam espetacularmente a emocionalidade e as relações humanas de uma família com a racionalidade e abstração do mundo das ciências exatas. Ou seja, Sara Seager é uma cientista brilhante e com certeza teria sido muito interessante ouvi-la falar do seu trabalho e das complexidades da sua ciência, mas ouvi-la expor enormes incongruências de ser esposa e mãe, não tendo sequer noção destas é doloroso. Se no final nos diz que descobriu, apenas quase aos 50, que  era autista, a verdade é que não usou o livro, em parte alguma, para apresentar qualquer visão crítica das peculiaridades do seu comportamento. O seu discurso auto-centrado manteve-se igual, Seager é exatamente a mesma pessoa no final e no início do livro, nada mudou, e nesse sentido pergunta-se qual o interesse de um livro que não tem nada para dizer. Deixo alguns excerto de suporte a esta minha crítica:

novembro 27, 2021

"Encruzilhadas" (2021)

"Encruzilhadas" de Jonathan Franzen surge seis anos após o seu último romance, e só por isso torna-se imediatamente digno da nossa atenção e interesse. Tenho muita dificuldade em seguir autores — literatura ou cinema — que lançam obras novas todos os anos, não por não conseguir acompanhar, mas porque não acredito que alguém tenha algo de novo, com substância, para dizer todos os anos. O real requer contemplação, indagação, questionamento e maturação. Escrever por escrever, produzir texto, pode servir para distrair os leitores, mas dificilmente oferece mais do que isso. Nesse campo concreto, "Encruzilhadas" não desilude, e mostra Franzen ao seu melhor nível.

novembro 22, 2021

Divertindo-nos até à Morte

"Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business" é um livro de 1985, considerado um clássico dos estudos dos média, tendo servido para elevar Neil Postman ao nível de McLuhan, ambos visionários e profetas dos média. Por esse lado, tendo a concordar, a abordagem é próxima, ainda que Postman seja mais organizado e regrado, ambos tendem para uma escrita que tem mais de épico e menos de académico. Mas se a capacidade de criar boas metáforas é importante, porque ajuda à compreensão do complexo por um maior número de pessoas, não é condição suficiente de análise e criação de conhecimento. Por isso, não admira que os legados maiores de ambos sejam os títulos dos seus livros.

novembro 20, 2021

Flores para Algernon

"Flowers for Algernon" é um clássico consagrado da FC, escrito por Daniel Keyes em 1966, a partir de um conto seu escrito em 1959. As questões centrais são excelentes: tanto no domínio da medicina — cirurgias de otimização das funções cognitivas — para as quais ainda não temos respostas; como no domínio dos seus efeitos no campo psicologia social — o impacto do QI na relação dos indivíduos com a sociedade. Mas se as questões científicas são trabalhadas a um nível elevado, a narrativa fica bastante aquém, diga-se que seguindo a tradição de muita FC dos anos 1950. Por exemplo, apesar de entrarem vários outros personagens, nomeadamente pais e irmã, todos parecem estar ali meramente como adereços no suporte ao protagonista, tornando tudo menos real e menos humano. De qualquer forma, é um livro pequeno, que se lê muito rapidamente e que nos provoca a reflexão.

novembro 14, 2021

Céu e Inferno, por Bart D. Ehrman

A leitura de “Heaven and Hell: A History of the Afterlife” (2020) fez-me perceber que o Céu e o Inferno não é fábula, ou histórias, é jogo, mecânicas básicas de recompensa e punição. Como tal, percebi que o fundamento da discussão do além-vida prende-se menos com uma significação e mais com uma quantificação. Ao longo dos séculos, a definição do além-vida foi pouco além da proposta de uma linearidade com dois polos, o alto e o baixo, em que quanto mais alto melhor. É irrelevante o significado, uma vez que o ponto atingido é para todo o sempre, tornando-se assim apenas importante a quantidade de sofrimento ou contentamento obtida.

novembro 13, 2021

Teatro filmado romeno

"O Segredo da Felicidade" (2018), de Vlad Zamfirescu, é teatro filmado no seu melhor, ao nível de "Carnage" de Polanski ou "Who's Afraid of Virginia Woolf?" de Mike Nichols, não tanto na cinematografia, mas no guião que é soberbo. Dois amigos e a esposa de um deles, com a esposa do outro fora do quadro por se encontrar em casa a dormir. Todos convocados para discutir uma hipótese de swing após a traição de um dos pares. Começa tudo de forma muito leve, quase irrelevante, e vai crescendo, cada vez prendendo mais a nossa atenção até às distintas revelações que deixam de impactar os envolvidos para abalar tudo aquilo que pensávamos já ter compreendido. No final, ficamos ali a olhar para aquele magnífico balcão-pátio de um grande prédio de luxo, a pensar nos tais segredos da felicidade.


novembro 12, 2021

200 anos de Dostoiévski

Ontem foi o dia do aniversário dos 200 anos de Fiódor Dostoiévski que nasceu a 11 novembro de 1821, e por isso queria ler algo dele que ainda não tivesse lido, mas algo curto. Acabei por encontrar o que queria no Goodreads através da Sara, que partilhou a leitura de um conto que desconhecia, este "O Sonho de um Homem Ridículo" (1877). Li as primeiras páginas e senti-me atirado para “Memórias do Subterrâneo” (1864) sentindo uma imediata vontade de ler todas aquelas palavras, como se o autor ainda estive entre nós. E no entanto, todo o conto acaba discutindo isso mesmo, o estar no meio de nós, como e porquê, questionando quem determina até quando. 

Desenho de Joseph Charlemagne, ao qual adicionei o nome e datas.