maio 16, 2021

A doce canção que embala as crenças sociais

Quem quer que pegue em “Canção doce”, de Leïla Slimani, fica logo na primeira página a saber que está perante uma história de crime, um dos mais hediondos — o assassínio de crianças —, e, no entanto, não parece ser esse crime que Slimani quer aqui tratar, apesar de passar todo o tempo ao seu redor. É verdade que ficamos ainda a saber que o perpetrador é uma ama, podíamos dizer “a ama”, tal a convenção se afirmou e foi explorada ad nauseum pela literatura e cinema. Mas sabemos também que “Canção Doce” foi premiado com o Prémio Goncourt em 2016, o mais importante da literatura francesa, chocando de frente com a ideia de cliché e implicando a necessidade de uma intenção autoral. Assim, se no final da primeira página estamos presos pela artimanha do enredo — saber porque a ama fez o que fez e como —, não deixamos de nos inquietar com o subtexto — o que há aqui de novo?

maio 14, 2021

Meio Sol Amarelo (2006)

Conheci Chimamanda Ngozi Adichie através da sua TED talk “O Perigo da História Única” que me deslumbrou pela oratória e assertividade. Desde então tive sempre curiosidade de a ler, mas só agora o fiz tendo começado com este que é o seu segundo livro “Meio sol amarelo”. Não me desiludiu, embora esperasse mais, mas é uma belíssima obra, e uma grande homenagem à história da Nigéria, nomeadamente para quem acredita que nós somos feitos das histórias que contamos. 

maio 09, 2021

A Tirania de Ter de Ser o "Melhor"

Apesar de repetitivo, "The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good?" (2020) de Michael Sandel foi o livro mais transformador que li nos últimos anos, por tocar em aspetos fundamentais da atualidade que explicam as intrincadas relações humanas da nossa sociedade neste início de século. 

Deixo múltiplos pontos que o livro suscitou, com argumentação de Sandel, algumas conclusões e  discussões desses. Começo com o ponto principal:

1. A dignidade do nosso trabalho não é medida pelo ordenado que recebemos. 

maio 03, 2021

A Caverna dos Sonhos Esquecidos

"Cave of Forgotten Dreams" (2010) é um documentário de Werner Herzog sobre a Caverna Chauvet, no sul de França, que contém algumas das mais antigas imagens criadas por humanos (435), há cerca de 32.000 anos. O tom da voz de Herzog é bom e funciona bem na criação da experiência, já os seus comentários e as questões que coloca aos entrevistados deixam muito a desejar. Apesar disso, o documentário é poderosíssimo por nos dar a ver algo que está vedado ao público, mas mais do que isso, por nos aproximar imenso de algo que foi criado há milhares e milhares de gerações e se parece tanto com aquilo que continuamos a criar hoje. É quase espiritual...

abril 30, 2021

Le Guin e o Conservadorismo dos sistemas Anarco-comunistas

“Os Despojados” (1974), de Ursula K. Le Guin, é uma obra de excelência e obrigatória por ser capaz de gerar uma simulação narrativa de um universo no qual funcionam em simultâneo três modelos de organização social — capitalista, comunista e anarquista — não defendendo nenhum dos modelos, apresentando as suas componentes boas, mas evidenciando também os problemas de fundo de cada um. No final do livro sabemos algo, nenhum sistema é perfeito, nenhum sistema responde às ânsias de cada ser individual. Em todos, é necessário fazer cedências a propósito do que acreditamos Ser para podermos Sobreviver.

Imagem da edição de luxo ilustrada da Folio, de 2019, criada por David Lupton

abril 28, 2021

A tinta invisível que suporta as histórias

Invisible Ink: A Practical Guide to Building Stories That Resonate” (2010) é um livro prático, como diz o próprio subtítulo, por isso não se espere aqui grande estrutura, nem aprofundamento de conceitos, menos ainda densidade ou explicações detalhadas. Apesar disso, este trabalho de Brian McDonald acaba sendo bastante recompensador para quem decidir dedicar-lhe um par de horas, já que em tão poucas páginas de texto condensa um conjunto de ideias fundamentais para escrita de histórias para qualquer suporte. O autor está centrado no cinema, e utiliza imensos casos práticos, com particular destaque para Steven Spielberg, mas o que nos conta e explana é aplicável a qualquer meio narrativo. Nas linhas que se seguem deixo uma síntese do que me parece ser o mais relevante do livro.

abril 24, 2021

"As Faces Esquecidas de Palmira" (2021)

Estreia hoje no canal Arte o documentário "As Faces Esquecidas de Palmira" que pode ser visto no site do canal de forma gratuita até ao dia 22 junho. Arranjem 80 minutos para ver porque vale todos os minutos. Possui audio em francês e alemão, e legendas em inglês e italiano. O documentário foi produzido pelo Arte mas dirigido por um realizador sírio, Meyar Al-Roumi (1973), oferecendo-nos um acesso ao coração da cidade, o que foi, as lendas à sua volta e o que representa hoje. O filme leva-nos numa viagem no tempo até à época áurea da cidade oásis que funcionou como centro de ligação entre a Ásia, África e Europa, nos primeiros 300 anos d.C. Não sobrou muito, mas o documentário dá conta de um excelente trabalho de arqueologia levado a cabo pela dinamarquesa Rubina Raja que conseguiu até à data reunir mais de 3500 peças provenientes de Palmira e que se encontram espalhadas por todo o globo.

Novelas de Ferrante, Roth e Mann

Trago 3 pequenos livros — "Tonio Kroger" (118p), "Um Estranho Amor" (176p), "Indignação" (176p) —, 3 novelas aparentemente desconexas, mas que fui lendo e colocando na pilha de lidos sem me dar ao trabalho de parar para refletir e escrever. Tendo resolvido colmatar essa falta, percebi que faria sentido juntar a conversa sobre os 3 num texto único, desafiando-me a mim próprio em busca de relações. Desde logo, podem estabelecer-se entre "Tonio Kroger" e "Um Estranho Amor", já que ambas são novelas debutantes dos autores. No caso de "Indignação", sendo o oposto, porque é a 29ª obra de Roth, o seu conteúdo trata um "coming of age", aproximando-o de "Tonio Kroger".

abril 18, 2021

Escritores falando sobre si

Cheguei a "The Way of the Writer: Reflections on the Art and Craft of Storytelling" (2016) de Charles Johnson (1948) por via de várias resenhas que o identificavam como um dos livros mais interessantes sobre a produção criativa, nomeadamente por toda paixão e abordagem filosófica ao mundo da arte e da escrita. Contudo, pouco depois de iniciar a leitura surgiram as primeiras suspeitas de estar perante alguém que, apesar de ter feito algumas coisas relevantes na sua vida, longe de alcançar um reconhecimento internacional, demonstrava uma enorme falta de humildade. A meio do livro, não conseguia deixar de pensar noutro livro que segue exatamente a mesma fórmula — memórias-instrutivas-na-forma-de-romance-inspiracional —, escrito por um autor de fama mundial, com um volume de produção ímpar, ainda que nem tudo de qualidade inquestionável, mas oferecendo-se em toda a sua simplicidade, como se não tivesse publicado mais do que um livro que poucos leram, falo de "On Writing: A Memoir of the Craft" (2000) de Stephen King (1947). Isto diria quase tudo o que haveria para dizer sobre o livro, e em sua vez recomendaria a leitura duas ou três vezes do livro de King, mesmo que, como eu, não o considerem um dos vossos escritores preferidos. Mas, existe uma outra coisa que me incomodou tanto ou mais na leitura, e como tal não consigo deixar de o referir, assim como também existem um conjunto de notas muitíssimo interessantes.