março 06, 2019

Romance ou ensaio?

"Jerusalém" (2004), de Gonçalo M. Tavares, situa-se num espaço de ação restrito, delimitado por um círculo de personagens que se organizam numa estrutura detetivesca, baseada na formula de mistério (que oferece informação a conta-gotas, para nos agarrar pela ânsia por respostas a quem?, quando?, como? e porquê?), e fá-lo imensamente bem, já que se sente dificuldade em pousar o livro depois de o começar. A particularidade da obra decorre do modo como sobre esta narração tipo é injectado um conjunto de conceitos complexos — o mal, a racionalidade, a loucura e a religião — que nunca chegam propriamente a ser detalhados. O autor opta por trabalhar as ideias de modo simbólico por forma a alargar o seu significado, mas também para poder fugir ao registo de ensaio e manter-se na circunscrição do romance.


Assim, temos um livro com capacidade para chegar a um público alargado, já que a leitura é facilitada pela enorme capacidade de retenção da nossa atenção, embora muito desse público chegue ao final sem saber muito bem o que fazer com todas as respostas que entretanto o autor lhes parece oferecer. Primeiro porque as respostas são-no apenas no que à trama diz respeito, já o simbólico é deixado completamente em aberto, criando um conflito no leitor,  entre o recorte perfeito da trama e a indefinição do seu significado. Para quem ouse ler nesse simbolismo, encontrará as suas próprias respostas aos problemas enunciados, e é isso que o autor espera, quem não o ousar ficará à porta do livro.

Como em todo o artefacto simbólico, as leituras que se fazem do significado da obra dependem mais da experiência e mundo do leitor do que daquilo que o autor coloca no artefacto. As pistas espalhadas ao longo das 250 páginas levantam em nós associações de ideias, fazem-nos trabalhar para a compreensão do que estamos a ler. Cada personagem é uma peça do puzzle de Tavares, mas este nunca a coloca no seu lugar, cria-as e fá-las dançar na nossa frente, instiga-nos a colocá-las no tabuleiro por nós imaginado. Todas as peças estão interligadas, o que nos diz que fazem todas parte de um mesmo quadro, mas aquilo que as liga são meras ações de causa-efeito, o que importa é o que cada um representa nesse quadro — o médico visionário e o médico carrasco, a mulher louca e o amante louco, o filho que não é filho e o assassino. Todos são meros humanos, dotados de imperfeição, comportando significado, ainda que simbólico, sobre o modo como o mal acontece, de onde surge e como se sustenta.
“Eis a fórmula: falta algo ao homem normal, ao homem saudável, e ele — como qualquer criança – procura encontrar o que lhe falta, principalmente porque esta sensação confunde-se com a sensação de roubo: alguém ou algo me levou uma parte — parte, continuemos a chamar-lhe assim, espiritual — então o homem normal, o homem saudável, vai à procura do ladrão e do objecto roubado, mas neste caso ele não percebe aquilo que lhe foi roubado, não conhece a forma e o conteúdo da substância que agora faz falta. Descobrir o que fora roubado a nível espiritual, era, para Theodor, um objectivo indispensável. O homem saudável quer encontrar Deus, diz Theodor Busbeck de modo mais directo." in "Jerusalém", Gonçalo M. Tavares
No final, percebemos que é uma obra talhada em busca da perfeição, que tudo está como está, da primeira à última página, com um objetivo concreto. Nada é dito ao acaso, tudo é perfeitamente racionalizado, ainda que tudo pareça nascido da loucura (repare-se no discurso exacerbado pela repetição), e só esta dicotomia granjearia nota máxima. Mas na verdade o artefacto falha em elevar-se acima da aparência de perfeição, pela falta de robustez nos conceitos que defende, já que não são suficientemente aprofundados. Fica tudo demasiado à superfície, com as leituras a surgir completamente divergentes. É um livro de 250 páginas, mas com mais espaços em branco do que de texto, de modo que na verdade não chega a passar das 100 páginas. Os livros não se medem em número de palavras, mas os temas também não são todos iguais, e tratar assuntos desta complexidade em tão breves resenhas de ideias, serve apenas no abrir de portas. Como o livro faz parte uma série — "O Reino", composto de 4 livros incluindo este — é provável que a leitura da série completa dê acesso a algo que só este livro não consegue dar. Vi entretanto que os 4 livros que compõem a série O Reino — "Um Homem: Klaus Klump", "A Máquina de Joseph Walser", "Jerusalém", "Aprender a Rezar na Era da Técnica" — foram editados, em 2017, num único livro (800 pp.), o que deverá fazer pleno sentido.

março 05, 2019

A literatura como paliativo

"When Breath Becomes Air" é um livro de memórias de Paul Kalanithi, a quem com 36 anos, no final de uma residência médica de 6 anos como neurocirurgião e prestes a conseguir o seu diploma, foi diagnosticado um cancro nível IV (inoperável) nos pulmões (sem nunca ter fumado). Ao longo das parcas 220 páginas (morreu antes de o poder terminar), que se lêem de uma vez, somos conduzidos pelo relato das opções e decisões tomadas ao longo de uma vida que permitiram a Paul Kalanithi chegar ao final da sua formação médica e escrever um livro pleno de expressividade. O seu livro tem servido de inspiração um pouco por todo o mundo — de Bill Gates a Andrew Solomon ou Atul Gawande —, tendo o Departamento de Medicina da Universidade de Stanford, onde se formou, criado mesmo, um ano depois da sua morte, o Prémio Kalanithi Writing para obras sobre pacientes em fim de vida ou cuidados paliativos.


Da minha intensa experiência de leitura, comparei-a com o relato da "The Last Lecture" de Randy Pausch (1960 - 2008), professor e investigador — de Entretenimento Digital na Carnegie Mellon — morto de cancro no pâncreas. Se Pausch me tinha tocado imenso, foi muito provavelmente catalisado por ser uma pessoa no meu campo científico, alguém que admirava, seguia e lia o seu trabalho de forma regular, contudo desta vez o embate parecia-me ser maior. No entanto, se tenho estudado imenso o que se vai fazendo no campo das neurociências, nem por isso tenho qualquer familiaridade com a neurocirugia. Por outro lado, este relato de Kalanithi fez-me recordar ainda um outro, não de fim de vida, ainda que também de memórias mas de alguém no ativo, "Sinto Muito" de Nuno Lobo Antunes, sobre a ala neuropedriátrica e os efeitos dos tratamentos oncológicos em tenras idades.

A edição portuguesa foi editada pela Saída de Emergência sob o título "Antes de Eu Partir"

Pensei assim que a intensidade da experiência se devia ao fator cérebro, aliás como diz a certa altura Paul Kalanithi, "a medicina relacionada com o cérebro comporta algo de esotérico que nos atrai e terrifica". Mas agora que escrevo estas linhas percebo que não foi só pela área de trabalho, foi claramente pelo modo como Kalanithi se expôs, e acima de tudo conseguiu exteriorizar e plasmar na escrita a sua percepção do mundo. Ora a isto não é alheio à formação de Kalanithi, que antes de estudar medicina fez licenciatura e mestrado em Literatura Inglesa, ao que se seguiu um mestrado em Biologia Humana ainda em Stanford, e depois um outro mestrado em História da Ciência e Medicina na Universidade de Cambridge. Foi apenas no final dos estudos em Cambridge que Kalanithi decidiu que queria ser médico, e para isso teve de voltar ao início, fazer provas e conseguir entrar em Medicina em Yale. Até esta altura Kalanithi acalentava a ideia de poder vir a tornar-se escritor.

Aliás, o autor fala do momento em que desistiu da literatura para abraçar a medicina, como um momento de viragem, em que bateu na parede pelo lado das letras. A sua ânsia era compreender o ser humano, e vinha acreditando que lá poderia chegar pela literatura, mas entretanto percebeu que em vez de se aproximar se estava a distanciar cada vez mais da vida efetiva. Por isso decidiu enveredar por um caminho que lhe permitisse "tocar na carne", assistir à vida de modo empírico. Por sua vez, já no final, quando decide escrever este livro, é exatamente por sentir o contrário. Por sentir, que a única forma de chegar ao que sentia dentro de si era por via da escrita, não tinha outra forma de conseguir compreender o que sentia. Talvez por isso mesmo o livro seja tão intenso, porque ele é uma busca pessoal por respostas para uma vida, tentativa de explicação de um momento, ainda que possa depois ter ficado como legado.

Nada disto é novo, a literatura, tal como as restantes artes servem-nos há milénios na compreensão do humano. Se a ciência nos ajuda a compreender os processos e os como, só a arte nos consegue explicar os porquê. Damásio dizia em 2017: "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare"; e enquanto muitos se admiram com estas palavras, o belíssimo livro de Jonah Lehrer, "Proust era um Neurocientista", data já de 2007. Mas esta discussão não tem qualquer sentido de novidade, já que ela esteve presente desde o início da nossa civilização, com Platão a divergir de Aristóteles na importância que se deve conferir as artes.

Para fechar. Este foi um dos últimos 'memoirs' que li, um género que antigamente desconhecia por o associar à mera biografia, mas que aprendi a amar por via da banda desenhada. Existe algo de muito particular nestes livros, não apenas em fim de vida, mas no simples facto de se apresentarem em primeira pessoa, mais ainda quando as pessoas possuem as ferramentas adequadas para a escrita. As descrições, quando conseguidas, do pensar interior são autêntica telepatia, como disse o próprio Stephen King no seu memoir. E nesse sentido, julgo que estas obras acabam funcionando como o píncaro do objetivo e razão porque inventámos a linguagem e a escrita.

março 04, 2019

Listas de Leonardo da Vinci

Leonardo adorava fazer listas de coisas que tinha para fazer, assim como de coisas que desejava aprender. Nestas podemos encontrar de tudo, demonstrando a sua mais importante competência: uma infinita curiosidade.

. "Get the master of arithmetic to show you how to square a triangle…"
. "Ask Benedetto Protinari by what means they walk on ice in Flanders…"
. "Get a master of hydraulics to tell you how to repair a lock, canal and mill in the Lombard manner…"
. "Describe the tongue of the woodpecker” [1]
. "Get the measurement of the sun promised me by Maestro Giovanni Francese, the Frenchman."
Sobre a língua do pica-pau, deixo a imagem do Earth Touch e o texto de Isaacson, escrito como Coda do livro "Leonardo da Vinci" (2017), sobre o qual ainda aqui farei uma resenha alongada

[1] Describe the tongue of the woodpecker
"The tongue of a woodpecker can extend more than three times the length of its bill. When not in use, it retracts into the skull and its cartilage-like structure continues past the jaw to wrap around the bird’s head and then curve down to its nostril. In addition to digging out grubs from a tree, the long tongue protects the woodpecker’s brain. When the bird smashes its beak repeatedly into tree bark, the force exerted on its head is ten times what would kill a human. But its bizarre tongue and supporting structure act as a cushion, shielding the brain from shock.
There is no reason you actually need to know any of this. It is information that has no real utility for your life, just as it had none for Leonardo. But I thought maybe, after reading this book, that you, like Leonardo, who one day put “Describe the tongue of the woodpecker” on one of his eclectic and oddly inspiring to-do lists, would want to know. Just out of curiosity. Pure curiosity.”

Excerto do livro “Leonardo da Vinci” (2017) de Walter Isaacson. 

Homossexualidade vs. Vaticano

Poder e interesses múltiplos. É o que existe por detrás da publicação simultânea, mundial e em papel de um livro com mais de 600 páginas, "No Armário do Vaticano" de Frédéric Martel. Todas as edições lançadas a 21 fevereiro 2019. Impressionante.



Já está no meu GoodReads, vamos ver quando o conseguirei encaixar nas leituras.

março 02, 2019

Os problemas da Gente Independente

Laxness criou uma obra carregada de atmosfera, muito graças ao modo como trabalhou o realismo, por meio de uma mescla entre o género épico que bebe na mitologia islandesa e o realismo social, criando uma espécie particular de realismo mágico. A escrita é boa, e a densidade das personagens estimulante, contudo estas acabam sofrendo pelos problemas emanados da história.

"Gente Independente" (1934/1935) Haldór Laxness

A escrita de Laxness é em vários momentos muito conseguida, capaz de nos embalar e levar pela narrativa adentro. Os personagens vão sendo lapidados à medida que a narrativa progride, sempre com mais e mais camadas psicológicas que nos permitem perscrutar vontades e sentimentos. A relação do épico com o romance realista tanto é capaz de nos fazer planar através do belo do universo representado, como de nos indispor pelo grafismo das descrições de violência e sordidez. No campo da estrutura, sente-se alguma falta de coerência, provavelmente pelo facto do livro não ser uma obra integral, mas antes a união de quatro partes escritas por Laxness em tempos e lugares diferentes, como atesta o fim de cada livro. Ainda assim, existe uma diferença bastante desfasada entre os dois primeiros livros, em que se relatam as vivências de Bjardur com cada uma das suas mulheres, e os segundos quase inteiramente dedicados a discussões sobre organização política e económica.

Mas é a história que complica o resultado desta leitura, no modo como Laxness apresenta o mundo que vê e diz conhecer. Se o livro como um todo acaba dando a volta e parecer querer justificar-se, o massacre a que somos submetidos por via da personagem principal é deveras angustiante, e em minha opinião, totalmente injustificado. Não tenho nada contra livros sobre pessoas fracas ou más, desde que exista um objetivo, desde que exista algo por debaixo de toda essa maldade. De outro modo, acabamos a questionar-nos sobre a razão de se dedicar um livro a dissertar sobre alguém que não tem nada para nos ensinar, nem sequer momentos de prazer para oferecer, levando-nos a pensar se o autor crê naquilo que descreve ou se pelo menos percebe o enviesamento daquilo que nos apresenta.


*** SPOILERS ***

A razão pela qual questiono a história tem que ver com Bjardur, o personagem principal, o idealista e grande lutador pela independência, que é representando como um irascível individualista, um autêntico sociopata, para quem a família — filhos e mulheres — contam nada. Ao longo de mais de 500 páginas somos brindados com uma personagem anti-humana que contra tudo e todos, morram ou vivam, se mantém imutável, fiel aos seus princípios, completamente obstinado. É apenas nas últimas 20 páginas, depois de ter ficado sem nada, de toda a sociedade o ter descartado, que resolve dar o braço a torcer e fazer uma volta de 180º. Vejamos:


Bjartur
1. Deixa a primeira mulher sozinha numa casota isolada num lugar ermo, e vai dias inteiros com amigos para montanha. Quando esta lhe diz que tem medo, e pede para deixar ao menos o cão, diz-lhe que nem pensar, que se aguente.

2. Repete, e deixa-a uma segunda vez, mas agora com ela grávida, para ir atrás de uma ovelha. Não existindo ninguém com ela, esta morre sozinha durante o parto.

3. Impede os filhos, e a segunda mulher de terem uma vaca, que estes queriam por causa do alimento do leite. A comunidade oferece uma contra a sua vontade, mas quando esta engravida, mata o vitelo da vaca sem piedade.

4. Depois mata a vaca, apesar da segunda mulher lhe dizer que seria como a matar a ela. A sua segunda mulher acaba também por morrer do stress.

5. Envolve-se numa situação de abuso sexual da própria filha (que não é filha de sangue) que a sua consciência interrompe.

6. Um filho desaparece, passados vários meses Bjartur encontra o cadáver, toca-lhe com um pau, manda-lhe uma luva, e deixa-o ficar a apodrecer ao ar, não contando nada aos irmãos nem a avó.

7. Despacha o filho mais novo para os EUA, de um dia para o outro.

8. Volta a deixar a família sozinha, e manda um suposto professor bebedolas tomar conta dos miúdos, que acaba a engravidar a sua filha.

9. Quando descobre que a filha está grávida, ela que pela limitação da educação recebida quase nem percebeu o que lhe aconteceu, deserda-a, manda-a embora de casa.

10. Nas repetidas vezes em que o segundo filho lhe diz para visitarem a filha, trata o filho abaixo de cão.

11. Na fase final arranja uma governanta, e quando esta se começa a envolver emocionalmente e disposta a ajudar a família, manda-a embora sem qualquer razão.

12. Obriga a mulher e filhos a trabalhar 16 horas por dia.
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Ou seja, independente aqui, só Bjartur, toda a sua família era tratada como escrava, todos às suas ordens. É uma autêntica aberração, nada disto se pode justificar com base na ideia de se ser independente. Os ideais, políticos ou outros, não se sobrepõem à empatia humana, apesar do individualismo tender para tal. Mas Bjartur não é apresentado como individualista, antes como anarquista e com graves problemas do foro mental, não muito longe daqueles sociopatas do interior dos EUA que impedem as famílias de irem à escola, ou não têm televisão nem telefone para não serem importunados pelo governo.

Quanto ao Nobel, não o compreendo, mas também só li este seu livro, e a tradução, apesar de direta dos islandês, deixa-me com a impressão de não ser tão rica em vocabulário como será no original.

fevereiro 27, 2019

Multimedia não é apenas uma questão de múltiplos media

O livro de Cranny-Francis, apesar de se intitular Multimedia, é mais um tratado sobre multimodalidade do ponto de vista da semiótica cultural, trabalhando a criação de sentido por cada um dos modos — texto, som e vídeo. É claramente um trabalho no campo da comunicação, mas que não consegue chegar ao design de comunicação apesar de apresentar intenções de tal. Existem demasiadas falhas e problemas, como veremos a seguir. A autora opta por dividir a multimodalidade em cinco categorias — "writing, visuals, sound, movement, space" — e dedica quase todo o livro a dissertar sobre a construção de textos e contextos em cada uma dessas.


Apesar da discussão por vezes rica, sente-se falta de concretização, tanto na definição de um quadro ou modelo de trabalho geral para a multimedia, como na relação entre teoria e prática. Cranny-Francis dedica a maior parte do livro a falar sobre cada um dos modos em particular, aprofundando as particularidades culturais, muito agarrada a teorizações da realidade, pouco suportadas em objetos e exemplos efetivos. Dos 7 capítulos, 5 são dedicados a uma  desconstrução em profundidade de cada modo, com um sexto dedicado ao corpo e ao virtual, e apenas o último — "Synasthesia" — dedicado à inter-relação entre os modos. Cranny-Francis limita-se assim a dissertar sobre os modos individualmente, praticamente esquecendo a integração dos mesmos. Isso é visível desde logo nas categorias de criação de sentido definidas por ela — "writing, visuals, sound, movement, space" —, não existe nada sobre o modo como os vários meios funcionam quando integrados, nem tão pouco sobre a interatividade proporcionada pelas novas tecnologias do digital, e sobre as possibilidades de colaboração e participação na criação de sentidos. Fazem falta livros que se detenham sobre a criação de sentido na multimedia, mas falar desta sem falar da essência do que distingue a multimédia de outros media multimodais, como por exemplo o cinema ou a televisão é um ato falhado.

Por outro lado, a argumentação nas categorias menos clássicas, como o "movimento" e o "espaço", deixam muito a desejar. Cranny-Francis passa completamente ao lado da animação e do motion design, tecendo críticas à falta de movimento na web, como se a web fosse o único suporte da multimédia, e como se a linguagem da animação não estivesse presente na generalidade das interfaces e dos conteúdos que se produzem. Já na questão do espaço, sem entrar por questões de 3D e acesso em tempo-real ao mesmo, não passa de um refinamento das questões visuais. Em parte, podemos dizer que Cranny-Francis limita o seu discurso ao seguir o trabalho de Gunther Kress e Theo Van Leeuwen, especialistas em semiótica e linguística, com trabalho relevante no campo do texto, que nos últimos anos procuraram traduzir esse trabalho para o campo multimodal, mas que diga-se com muito pouco sucesso, desde logo porque deixam de fora toda a panóplia de trabalho desenvolvido nos últimos 60 anos pelos estudos fílmicos e nos últimos 30 anos pelos estudos da multimédia.

No último capítulo, onde supostamente deveria aparecer algum quadro de trabalho para a multimedia, que pudesse como diz Cranny-Francis "servir os designers multimedia", o que temos é uma discussão sobre a necessidade de uma nova semiótica, que nasce a partir do conceito de remediação que já vem de Bolter. Cranny-Francis limita-se depois a apresentar uma espécie de "matrizes de influência" que nada dizem, limitando-se a repetir algumas ideias sobre identidade e públicos que já conhecemos de outros media. Para agravar tudo isto, essas matrizes são apresentadas sem elencar qualquer método seguido ou estudo realizado, nem dados que suportem o seu desenho.

Posto tudo isto, não admira que só agora me tivesse dado conta da existência deste livro, tendo este sido publicado já em 2005. Apesar de publicado pela SAGE, as citações e referências são residuais. E 2005, apesar de estarmos no mundo da tecnologia, não serve de desculpa, pois se requisitei o livro na biblioteca, foi porque estou a trabalhar definições da área, para as quais tenho estado a consultar múltiplos textos bem anteriores.

fevereiro 23, 2019

Pensamentos de Pascal

O livro "Pensamentos", de Blaise Pascal, nunca existiu enquanto tal, à semelhança do "Livro do Desassossego" foi compilado por quem encontrou milhares de notas soltas depois da sua morte. Diferentemente do livro de Pessoa, e provavelmente por ter sido descoberto noutro tempo, a sua primeira versão, e mais amplamente reproduzida, opta por apresentar apenas uma parte dos documentos deixados por Pascal. Catalogado como edição Port-Royal (1670), apresenta-se como um livro de capítulos completos,  reescrito por familiares e organizadores, todos em defesa dos elementos da religião cristã - Deus, Jesus, Igreja, o Céu e o Inferno. Só em 1897 é publicada a edição de Brunschvicg, a qual apresenta, de forma numerada, todos os textos de Pascal, cerca de 900. Mais tarde, em 1935, descobre-se que a primeira parte destes textos tinha já sido ordenada por Pascal para a escrita de um livro, já a segunda parte eram textos pensados para um livro que estava a escrever quando morreu, "Apologia da Religião Cristã". Exposta a forma, temos dois livros, ou dois grandes temas num mesmo livro, memórias autobiográficas e o questionamento de si, e na segunda parte, uma defesa acérrima da religião cristã.

Blaise Pascal (1623 — 1662)

Sobre a primeira parte, senti um Pascal reflexivo, em busca de respostas, com muitas dúvidas e vontade aprofundar o que lhe ia na alma. Contudo na segunda parte é como se Pascal desistisse dessa senda, abraçasse a religião cristã, e deixasse simplesmente de pensar, para seguir apenas e só o que a religião tinha para lhe oferecer. Se a primeira parte consegue ser instigante, a segunda é desoladora, principalmente se tivermos em conta que Pascal foi uma das mentes mais brilhantes que já passou por este planeta. Contudo, como venho verificando no estudo de vários destes homens do renascimento, apesar de terem tocado em muitas áreas, dificilmente as dominaram, o que deita um pouco por terra o mito dos polímatas renascentistas. Pascal foi um grande matemático, mas nem por isso um grande filósofo, e os ataques caricatos que faz a Montaigne são disso a maior prova.

Em certos momentos quase consigo compreender o desespero de Pascal, pegando no infinito que a matemática nos oferece para tentar explicar o infinito que só Deus poderia criar. Ou seja, a nossa incapacidade para compreender e abarcar a matemática em toda a sua extensão reduz-nos a algo insignificante. Mas é por isso que não devemos submeter o nosso pensamento a uma ciência única. A matemática é uma das mais importantes ciências alguma vez criadas pelo ser-humano, mas não pode responder a todos os nossos dilemas. Por outro lado, não posso deixar de condenar veemente a atitude discriminatória e autoritária de Pascal ao longo de toda a segunda parte, procurando impor as ideias da religião cristã como as únicas capazes, ao que sem pejo junta o medo como figura persuasora. Deixo como resposta a Pascal, um excerto de Bertrand Russell:
"Devemo-nos manter de pé com os nossos próprios meios e olhar francamente para o mundo — ver os seus aspectos bons, seus aspectos maus, suas belezas e suas fealdades; olhar para o mundo tal qual ele é, sem pavor. Conquistar o mundo pela inteligência e não nos deixarmos subjugar como escravos do terror. Todo o conceito de Deus é tirado do velho despotismo oriental. É uma concepção absolutamente indigna de homens livres. Quando sei de pessoas que se curvam nas igrejas confessando-se miseráveis pecadoras, e tudo o mais, tenho isso como desprezível, incompatível com o respeito que devemos a nós próprios. Devemos, ao contrário, olhar o mundo francamente e no seu rosto. Devemos melhorar este mundo e, se ele não é tão bom quanto desejávamos, que ele seja melhor do que o construído no passado pelos outros. Um mundo à nossa medida exige saber, bondade e coragem; não exige uma intensa nostalgia do passado, nem o acorrentar da livre inteligência aos entraves impostos pelas fórmulas que os antigos ignorantes inventaram. O que uma perspectiva do futuro desligada do terror exige é uma visão clara das realidades. O que exige a esperança no futuro não é o refluxo constante a um passado morto, que, estamos certos, será em muito ultrapassado pelo futuro que a nossa inteligência é capaz de criar."
Bertrand Russell, (1927). Por que não sou cristão. Retirado de Critica na Rede. Podem ainda ouvir as respostas de Russel já na velhice, em vídeo.
Sabendo que "Pensamentos" versaria tanto, e desta forma desenfreada, sobre a defesa da religião cristã, não o teria lido. No entanto o que me fez chegar a esta obra foi o seu surgimento em várias listas de grandes obras de não-ficção. Quase no final encontrei um texto de TS Elliot defendendo todo o pensamento e filosofia de Pascal, surpreendido fui depois descobrir que Elliot era ele próprio um acérrimo defensor da doutrina cristã, o que responde às razões porque o livro surge amiúde em algumas listas. Deixo, ainda assim, alguns excertos da primeira parte que me tocaram de algum modo, com a referência ao número da edição de Brunschvicg:
"Quando penso na pequena duração da minha vida. Absorvida na eternidade anterior, no pequeno espaço que ocupa, fundido na imensidade dos espaços que ignora, aterro-me e me assombro de ver-me aqui e não alhures, pois não há razão alguma para que esteja aqui e não alhures, agora e não em outro qualquer momento. Quem me colocou nessas condições? Por onde e obra e necessidade de quem me foram designados esse lugar e esse momento? A lembrança de hospede de um dia que passa." (B.67)
"Por que são limitados meus conhecimentos, minha estatura, a duração de minha vida a cem anos e não a mil? Que motivos levaram a natureza a fazer-me assim, a escolher esse número em lugar de outro qualquer, desde que na infinidade dos números não há razões para tal preferência, nem nada que seja preferível a nada?" (B.49)
"A vida humana é apenas uma ilusão perpétua; o que fazemos é enganar-nos e iludir-nos mutuamente. Ninguém fala de nós na nossa presença como na nossa ausência. A união que existe entre os homens é fundada sobre este mútuo embuste; e poucas amizades subsistiriam se cada um soubesse o que o seu amigo diz dele quando não está presente, ainda que ele fale então sinceramente e sem paixão. O homem é apenas disfarce, engano e hipocrisia em si mesmo e para com os outros." (B.100)
“Imagine-se um certo número de homens presos e todos condenados à morte, sendo todos os dias uns degolados à vista de outros, os que ficam vêem a sua própria condição na dos seus semelhantes, e, olhando-se uns aos outros com dor e sem esperança, esperam a sua vez. É a imagem da condição dos homens.” (B.199)
“Tédio. — Nada é mais insuportável para o homem do que estar em pleno repouso, sem paixões, sem afazeres, sem divertimento, sem aplicação. Ele sente então todo o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua dependência, a sua impotência, o seu vazio. Imediatamente nascerão do fundo da sua alma o tédio, o negrume, a tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero.” (B.131)
“O único bem dos homens consiste, pois, em divertir o pensamento de sua condição, ou por uma ocupação que dele os desvie, ou por alguma paixão agradável e nova que os ocupe, ou pelo jogo, a caça, algum espetáculo atraente e finalmente por aquilo a que se chama divertimento.
Daí vem que o jogo e o entretenimento com mulheres, a guerra, os grandes empregos sejam tão procurados. Não é que neles haja realmente felicidade, nem que imaginemos que a verdadeira beatitude consista em se ter o dinheiro que se pode ganhar no jogo, ou na lebre que se persegue; não se quereria nada disso se fosse dado de mão beijada. [...] Razão pela qual se gosta mais da caçada do que da presa.
Daí resulta que os homens gostem tanto do barulho e do reboliço; daí resulta que a
prisão seja um suplício tão horrível; daí resulta que o prazer da solidão seja uma coisa incompreensível E, finalmente, que o maior motivo de felicidade da condição dos reis consista em procurar diverti-los sem cessar e proporcionar-lhes todas as variedades de prazeres. ” (B.139)
"O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. Daí que é preciso nos elevarmos, e não do espaço e da duração, que não podemos preencher. Trabalhemos, pois, para bem pensar; eis o princípio da moral. (B.347)
"Não é no espaço que devo buscar minha dignidade, mas na ordenação de meu pensamento. Não terei mais, possuindo terras; pelo espaço, o universo me abarca e traga como um ponto; pelo pensamento, eu o abarco". (B.348)

fevereiro 18, 2019

Diferentes modos de lidar com a tragédia

"Sorte" (1999) de Alice Sebold é um livro feito com base num dos grandes conflitos da humanidade, o estupro, que apesar de nos conduzir até ao interior de quem o sentiu na pele, não se deixa afundar no drama e tragédia, próprios da temática, assumindo uma postura confiante, de quem no meio da agrura e sofrimento nunca se deixa cair, não porque assim tem de ser, mas mais por algo que o livro acaba por revelar ao longo das suas páginas, a personalidade da pessoa, a força interior ou o modo particular como Alice vive a sua própria realidade.

Alice Sebold

“Sorte” é um livro de memórias, escrito como romance, e por vezes a personalidade franca e frontal da autora faz parecer tudo demasiado simples, fácil. A tragédia está lá, com os seus momentos altos de explosão e os baixos de negrura, mas o livro é sobre Sebold, e não sobre uma violação, ou pelo menos assim nos faz sentir Alice. Mas talvez também por isso não admire quem não se tenha conseguido ligar com o sofrimento da escritora, já que ele não é pronunciado, não é dominante. A isto não será com certeza alheio o facto de os seus pais terem pensado, e terem-no dito à própria Alice, que de entre as duas filhas, preferiam que lhe tivesse acontecido a ela, a menos introspectiva, mais alegre, divertida e cabeça no ar... Talvez tivessem razão, sendo no entanto preciso ser-se bastante alienado para se dizer tal a uma filha, mas muito do que fazem os seus pais é no mínimo estranho, ou pelo menos assim parece pelo modo como Alice olha para eles...
"Desde então pensei sempre que nos dicionários deviam dizer a verdade sobre a palavra violação. Não é apenas uma relação sexual forçada; violação significa invadir e destruir tudo." (p.178)
Não admira uma certa leveza que se sente ao chegar ao final da leitura apesar do que está em questão, e principalmente do brilhante primeiro capítulo focado no assunto e que funciona autenticamente como um estar dentro da cabeça de Alice durante todo o seu processo de revisitar a violação, como se víssemos através das janelas dos seus olhos as nauseabundas ações do violador. Mas isto também nos diz algo sobre a escrita, mais focada na ação e exterior, ainda que vista do ponto de vista da Alice. Porque ela não fala do que sente, fala mas não se detém, vai contando e descrevendo cada passo, um atrás do outro, seguindo um processo algo mecânico de contar histórias que agarra o leitor, por meio do “e a seguir” que faz virar páginas atrás de páginas. Porque por mais trágico que tudo tenha sido, Sebold não definha, não quebra, nem se deixa arrastar, não é assim que sente o mundo, ao contrário da sua família.

Sinopse: "No túnel onde fui violada, um túnel que outrora fora a entrada subterrânea de um anfiteatro, um lugar de onde os actores irrompiam para cima e para a frente, situado por debaixo dos assentos da multidão, uma rapariga fora assassinada e desmembrada. A polícia contou-me essa história. Comparada com ela, disseram, eu tinha tido muita sorte."

Aliás, não tendo lido o seu segundo livro, “Visto do Céu” (2006), vi o filme homónimo (2009), e li algumas resenhas do livro, parece-me que este tratamento que dá a sensação de ser feito apenas à superfície do sentir é uma marca sua. Quando olhamos para a violação ou rapto de menores, só conseguimos ver as trevas e a podridão do humano, Sebold consegue ainda assim encontrar luz, encontrar algo de positivo a que se agarrar. Ficamos com a sensação de que Sebold não vai ao fundo dos problemas, e poderíamos até pensar que é porque nunca os sentiu, mas como se vê por estas memórias, a questão está longe de ser falta de autenticidade ou de sentir, é antes uma forma de estar. Aliás, agora que escrevo estas linhas, penso que talvez o título do livro e o parágrafo que abre a sinopse não tenham sido usados de modo irónico como sempre pensei, mas talvez reflitam exatamente o caminho que Sebold decidiu trilhar dentro de si.

Elementos da Surpresa (2018)

"Elements of Surprise: Our Mental Limits and the Satisfactions of Plot", (2018) de Vera Tobin, é um livro académico sobre desenho de narrativa, que apesar de apresentar uma escrita por vezes leve e fluída, e um tema acessível, mais ainda pelos exemplos utilizados — "The Sixth Sense", "The Murder of Roger Ackroyd", "Great Expectations", "Emma", ou "Citizen Kane" —, não deixa de apresentar algumas componentes mais crípticas, com jargão próprio, que para quem não trabalha na área o pode tornar menos apetecível. Ainda assim, a sua essência é acessível a quem quer que sinta curiosidade pela temática e queira realizar algum esforço para entrar no discurso académico. Enquanto obra académica apresenta defensores e detratores [1,2], desde logo do campo da literatura que continuam a não ver com bons olhos a entrada da psicologia cognitiva no seu reino obscuro de pura especulação interpretativa. O que não deixa de ser ridículo, se olharmos para os estudos fílmicos onde a psicologia já entrou nos anos 1980, sendo talvez por isso mesmo que Tobin usa imensos exemplos cinematográficos lado a lado com exemplos literários, sem qualquer coibição e diga-se de forma imensamente refrescante para quem trabalha na área, cansado de divisões artificiais no campo da narrativa.


“Elementos de Surpresa” trabalha como o próprio título refere: a emoção de Surpresa. É algo novo, já que temos tido trabalhos sobre quase todas as outras emoções básicas —Medo, Alegria, Tristeza, Nojo e Raiva —, tendo a surpresa sido deixada de fora, não que surpreenda, dada a sua complexidade em termos de valência. Ou seja, a surpresa tanto pode ter peso negativo como positivo, por isso funciona mais como quadro emocional e menos como catalogador de situações. Isto para se trabalhar com histórias e narrativas não é propriamente o ideal, já que aquilo que é mais relevante é o modo como as emoções contribuem para a significação do conteúdo. Tobin, foca-se na forma por excelência, ou seja, como é que o design da narrativa, e a gestão de informação, operam a surpresa junto dos recetores. Ainda que não se possa dizer, que de uma forma geral, seja completamente novo, podemos juntar aqui obras que têm trabalhado o Suspense, que não são muitas e a Curiosidade, que em muitos momentos do livro me fizeram pensar que eram tópicos a que a autora deveria ter dado um pouco mais de atenção.

Mas a abordagem de Tobin acaba seguindo muito de perto os meus interesses de investigação e as abordagens que tenho tentado seguir, que é de utilizar todo o conhecimento produzido pelas Ciências Cognitivas, nomeadamente no campo do “behavioural economic” com autores como Kahneman, Tverski, Thaler, Ariely, Levitt, entre outros, e assim tentar desconstruir, desmontar, o design das narrativas, nomeadamente os padrões e modelos como nos agarram, envolvem, imergem e transportam para for a de nós mesmos. Por isso, não posso dizer que tenha sido surpreendido pelos resultados obtidos pela autora e que nos apresenta, contudo servem não só para reforçar a abordagem que alguns de nós temos vindo a defender, contribuindo para o avanço do nosso conhecimento sobre a psicologia e design da narrativa.

O principal conceito utilizado por Tobin é o “curse of knowledge” (maldição do conhecimento), um dos muitos vieses cognitivos, que ela define como: “the more information we have about something and the more experience we have with it, the harder it is to step outside that experience to appreciate the full implications of not having that privileged information”. No fundo, é o problema que surge sempre que temos que explicar a alguém alguma coisa, para o qual é necessário um determinado contexto, detendo nós o contexto e a outra pessoa não. Acontece todos os dias em sala de aula, mas acontece sobre as coisas mais simples, quando por exemplo queremos explicar algo que acontece num filme a alguém, mas a pessoa não percebe sem lhe explicarmos todo o enquadramento do filme primeiro. O que este viés nos diz é que normalmente não nos apercebemos dessa diferença de possessão de informação, ou se nos damos conta, não percebemos a diferença que ela comporta para a compreensão do que se está a dizer. Ou pondo-nos a nós no lugar da vítima, quando tentamos compreender porque um filósofo disse o que disse há 2, 3 ou 20 séculos, sem o devido contexto podemos simplesmente não compreender o que está em causa nas palavras escritas nesse outro tempo.

Tobin usa este modelo de criação de sentido, para tentar explicar o modo como a narrativa consegue gerar surpresa nos seus recetores, definindo a surpresa da seguinte forma: “one in which information revealed late in the narrative reveals a new, transformative interpretation of what has gone before.” Claro que Tobin está interessada em surpresa elaboradas, ou como ela diz “well made”, e não no simples ato de surpreender, que como ela também diz "pode facilmente ser feito, basta por exemplo, matar um personagem sem pré-aviso", como tanto gosta de fazer George RR Martin. No fundo ela está focada nos chamados “twists” narrativos, tais como o célebre final de “The Sixth Sense”, ao que acrescento aqui um, entretanto esquecido, “The Crying Game”.

"The Sixth Sense" (1999)

"The Crying Game" (1992)

O livro apesar de constituído de múltiplos capítulos, tem toda a sua essência concentrada no capítulo “Poetics of Surprise”, é aqui que nos apresenta os 5 modelos de produção de surpresa — Frame shift, Managed reveal, Finessing misinformation, Burying information, Emotional involvement — a que chegou com o estudo e levantamento que realizou, e é no fundo aquilo que importa reter deste livro e do excelente trabalho da autora. Vejamos então cada um destes, para cada um destes aponto uma dimensão da produção narrativa mais facilmente reconhecível entre parêntesis.


— Frame Shift  (gag)
Este modelo assenta nos conceitos cognitivos — de frame, schema e contexto — que determinam os modelos mentais que utilizamos para compreender a realidade. Estes servem para enquadrar uma informação nova que nos chega, que nos ajuda a rapidamente assimilar a mesma, mas cria um conjunto de expectativas sobre o que se deve suceder a essa nova informação, mas que entram em choque sempre que essas expectativas não acontecem. Assim, gera-se um enquadramento na cabeça do recetor, conduz-se o mesmo numa direção de sentido, e no final faz-se uma curva de 90º. Aqui parece-me que teria sido relevante também Tobin dar conta do facto de ser o modelo mais utilizado pelos humoristas, no fundo a base daquilo que chamamos “gag” (piada que nos engasga pela surpresa). Deixo um exemplo:
 “Um oficial iraquiano chama os oito sósias do Saddam e diz: Tenho boas e más notícias. A boa notícia é que Saddam está vivo. Todos os sósias comemoram. A má notícia é que ele perdeu um braço.”
— Managed Reveal (fechamento)
Neste modelo a surpresa dá-se por meio de uma revelação de informação cuidada, estruturada, em jeito de explicação do que aconteceu, oferecendo uma nova perspetiva sobre o que aconteceu, que cose todas as pontas soltas e faz com que tudo ganha um sentido novo e coerente. Isto funciona muito bem porque lidamos muito mal com dados incompletos, temos de por qualquer meio fechar tudo aquilo que se abre, e por isso estas revelações que nos surpreendem são ainda mais prazerosas porque nos aliviam do stress da incompreensão.
Para além do fechamento, que já vem da Gestalt, e que serve perfeitamente à narrativa, existe ainda um conjunto de estudos que têm demonstrado o quão ávidos de explicações somos, e como o mero ato explicativo por si é suficiente para nos seduzir. A autor dá um exemplo, estudado, que tem demonstrado resultados, e que acontece quando uma pessoa quer passar a frente numa fila, bastando para o efeito oferecer uma explicação mesmo que esta seja vazia: “May I use the Xerox machine, because I have to make copies?

— Finessing misinformation (ilusionismo)
Este modelo serve imensamente bem ao cinema porque as suas origens estão umbilicalmente ligadas ao mundo do ilusionismo desde o grande Méliès. Assim, este modelo assenta na ideia de construção de ações de dissimulação. Aproxima-se do “frame shift”, embora aqui não se objetiva a desviar o foco explicativo, mas antes o foco de atenção, esperando que o recetor não se dê conta do que está verdadeiramente acontecer, e assim possamos no final apresentar a informação como novidade ou algo desconhecido. Tobin usa o viés do “anchoring”, próximo do “priming”, em que certa informação apresentada primeiro, condiciona aquilo que tendemos a pensar no momento seguinte, induzidos pelo que vimos ou ouvimos antes.
O modo base deste modelo assenta no desenho dos personagens, que vão debitando linhas que nos levam atrás dos mesmos, que nos convencem de ser algo, mas que no final se revelam ser outra coisa completamente. Aqui podemos enquadrar o personagem de Bruce Willis em Sexto Sentido.

— Burying information (cavalo de Tróia)
Este padrão assenta na introdução de informação de forma encapotada, aproximando-se do ilusionismo, embora aqui não se procure fazer divergir a atenção, mas apenas só que o recetor não se aperceba dessa mesma informação. Tobin usa um conjunto de preceitos criados por colegas anteriormente, Emmott e Alexander [3] e que listo aqui também:

         Técnicas para esconder informação
"1. Mention the item as little as possible.2. Use linguistic structures which have been shown empirically to reduce prominence (e.g. embed a mention of the item within a subordinate clause).
3.  Under-specify the item, describing it in a way that is sufficiently imprecise that it draws little attention to it or detracts from features of the item that are relevant to the plot.
4.  Place the item next to an item that is more prominent, so that the focus is on the more prominent item. Hence, when fore- grounding is used it may have an automatic effect of down- playing nearby items, like a spotlight that makes items around the light less noticeable.
5.  Make the item apparently unimportant in the narrative world (even though it is actually significant).
6.  Make it difficult for the reader to make inferences by splitting up information needed to make the inferences.
7.  Place information in positions where a reader is distracted or not yet interested.
8.  Stress one specific aspect of the item so that another aspect (which will eventually be important for the solution) becomes less prominent.

— Emotional involvement (engajamento)
Aqui Tobin entra diretamente no domino que mais tenho trabalhado do engajamento humano com artefactos, e que tem múltiplos nomes, dependendendo da área científica por onde nos aproximamos. Desde o “narrative transportation”, à “presença” , passando pelo “flow” de Csikszentmihalyi (no meu livro "Emoções Interactivas" fiz uma tabela de conceitos similares com cerca de 15 conceitos [4]).  Assim Tobin, usa estes modos de inteira absorção por parte das obras como potenciais modos de geração de surpresa, pelo simples facto de que quando inteiramente absorvidos na experiência, muitos dos detalhes do que vai acontecendo nos passam ao lado, não nos damos conta, e por isso a obra vai manipulando o nosso pensar por via do nosso sentir.  Como ela diz “the more engaging and vivid the story events are, in fact, the less vigilant readers are about policing source information.”


Ficam assim as cinco principais estratégias para desenvolver surpresa numa narrativa, seja em que meio for. São estratégias pensadas por meio da psicologia cognitiva, mas que descrevem aquilo que o guionista faz, na maior parte do tempo sem saber que o está a fazer. Técnicas passadas pela experiência, que se socorrem de vieses cognitivos que todos, enquanto leitores, espectadores, e jogadores sofremos. O facto de terem sido aprimorados, ao longo de séculos de produção de narrativa, faz com que se tenham tornado tão naturais, no sentido em que não nos conseguimos aperceber da persuasão e manipulação de que somos alvo. A força destes vieses, e por isso destas técnicas, é tão grande que mesmo sabendo da sua existência, como acontece no final da leitura deste texto ou do livro da Tobin, continuamos a deixar-nos surpreender à medida que as vamos encontrando, como acontece com a maior partes dos vieses cognitivos.


REFERÊNCIAS
[1] Robert Appelbaum (2018) Joseph North, Literary Criticism (..) Vera Tobin, Elements of Surprise (..), Studia Neophilologica, DOI: 10.1080/00393274.2018.1550624
[2] Thomas Manuel, 2018, Do Writers Care for What Psychology Has to Say About the Curse of Knowledge?, in The Wire
[3] Emmott, C., Alexander, M., (2014). Foregrounding, burying, and plot construction. In The Cambridge Handbook of Stylistics, edited by Peter Stockwell and Sara Whiteley, 329–343. Cambridge: Cambridge University Press.
[4] Nelson Zagalo, (2009), Emoções Interactivas, do Cinema para os Videojogos, CECS/UM, Gracio Editor, Coimbra, Portugal, p.400, ISBN: 978-989-96375-1-1. Ver páginas 203-205.

fevereiro 16, 2019

Paradoxo e Refúgio dos Super-heróis

O universo dos super-heróis, criado em revistas de banda desenhada durante os anos 1930 nos EUA, foi uma das mais brilhantes criações da imaginação e criatividade humanas do século XX, não apenas pelos mundos paralelos e alternativos criados, mas essencialmente por tudo o que representaram para uma sociedade em pantanas, primeiro com uma enorme Depressão Económica (1929), e depois com uma Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Para quem tiver interesse em compreender melhor o nascimento deste mundo de ideias, aconselho vivamente a leitura de “As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay” (2000) de Michael Chabon. No entanto, ao longo dos últimos 100 anos, por várias vezes este universo de super-heróis quase desapareceu devido à ausência de interesse do público. Hoje vivemos uma nova vaga de ouro, talvez a mais intensa de sempre, nomeadamente pela força dos meios audiovisuais comparativamente ao meio da BD. E é sobre esta vaga que quero deixar algumas ideias, nomeadamente sobre o facto de não ter sido o universo de super-heróis a progredir na sua complexidade — tanto em criatividade como em valor social — mas antes parece ter sido a a própria sociedade a regredir, a voltar ao estado inicial que proporcionou o nascimento destes mesmos universos.

Nova Série "Titans" (2019) da Netflix

Para muitos milhões, como para mim, os universos de super-heróis acompanharam-nos na nossa adolescência, um tempo de formação complexo pelos choques e convulsões internas e seus impactos na relação social com o mundo que nos rodeia, nomeadamente família e escola. Contudo, todos nós que por lá passámos, atingimos um momento em que estes universos perderam o seu encantamento, e que sem saber porquê acabámos por nos desligar, desinteressar e esquecer.

Os originais de 1930

As revistas de BD da Marvel Brasil lançadas em Portugal nos anos 1980

Crescemos, os nossos interesses amadureceram, começaram a exigir maior complexidade na análise do real e do social. Os universos de super-heróis já não respondiam às particularidades do sentir e da compreensão de uma vida em mutação, esses universos não cresciam, eram estanques e imutáveis. O Homem-Aranha, o Capitão América, o Super-Homem, etc. tinham sempre a mesma idade, e se alguma vez numa história, um escritor, explorava a possibilidade de morrerem, logo a seguir se exploravam possibilidades de ressuscitarem, porque o filão não podia ser decepado. Percebíamos assim que aqueles com quem nos desejávamos identificar tinham deixado de ser personagens, eram apenas marcas publicitárias, tinham desistido de qualquer relação com o ser humano.

Ou seja, se à medida que crescemos, aprendemos pela experiência dura da realidade, aquilo que a filosofia insiste em querer ensinar-nos, que no mundo, assim como nas nossas vidas e nos nossos Eu, nada se mantém sempre igual, tudo está continuamente em transformação, tudo é devir. No mundo dos super-heróis, sendo tudo já de si fantástico e irreal, é-o também na sua relação com a vida e o seu sentido, e por isso incompatível com modelos mentais de seres-humanos interessados no crescimento de si.
“Tudo é impermanente”
Mandamento budista, tido como principal regulador de toda a sua filosofia (VI a.c.)
“Nada é permanente, exceto a mudança (..)
É impossível entrar duas vezes no mesmo rio (..)"
 
Heraclito, ~500 a.c.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”

Camões, ~1500
“On closer inspection (..) The hardest stone (..) is in reality a complex vibration of quantum fields, a momentary interaction of forces, a process that for a brief moment manages to keep its shape, to hold itself in equilibrium before disintegrating again into dust.”
Rovelli, 2017
Assim sendo, como explicar todo este sucesso renovado, e duradouro, pelos super-heróis no cinema? Analisando o último século destes conteúdos na BD, os seus altos e baixos podem ligar-se a crises de valores e económicas, assim como ao surgimento e desvanecimento de cada geração. No caso atual, tendo em conta a duração do fenómeno, o primeiro filme de super-heróis com sucesso desta vaga foi "X-Men", realizado em 2000, não sendo propriamente fácil identificar um marcador único, até porque o tempo não permite que nos refugiemos nas mudanças de geração como explicação. Fazendo um rápido exercício, podemos dizer que a viragem do milénio teve um enorme impacto cultural, enfatizando valores humanos, identitários e de espécie nos mais vários produtos que foram produzidos entre 1998 e 2003. Por outro lado, em 2001 dá-se não apenas o ataque às Torres Gémeas, mas ocorre também o estouro da bolha financeira Dot.Com. Estes dois eventos que se deveriam começar a desvanecer no final da década, são rapidamente ultrapassados em 2007/2008 com o eclodir de uma Crise Económica de efeitos mundiais, que iria para além da Depressão de 1929, a responsável pela primeira Época Dourada dos super-heróis.


No fundo, a época dourada de super-heróis que atravessamos no meio audiovisual, e que nos oferece infinitos mundos de fantasia, realidades alternativas em que a estabilidade é a constante, onde o impacto e o choque nunca alteram as condições de vida de cada um dos intervenientes, servem de bunkers mentais, refúgios projetados, a uma sociedade que vive na eminência do constante desmoronamento das suas realidades exteriores. O entretenimento, tal como Pascal o definiu, é assim a base que serve ao homem para se afastar do Pensamento de Si.