fevereiro 27, 2019

Multimedia não é apenas uma questão de múltiplos media

O livro de Cranny-Francis, apesar de se intitular Multimedia, é mais um tratado sobre multimodalidade do ponto de vista da semiótica cultural, trabalhando a criação de sentido por cada um dos modos — texto, som e vídeo. É claramente um trabalho no campo da comunicação, mas que não consegue chegar ao design de comunicação apesar de apresentar intenções de tal. Existem demasiadas falhas e problemas, como veremos a seguir. A autora opta por dividir a multimodalidade em cinco categorias — "writing, visuals, sound, movement, space" — e dedica quase todo o livro a dissertar sobre a construção de textos e contextos em cada uma dessas.


Apesar da discussão por vezes rica, sente-se falta de concretização, tanto na definição de um quadro ou modelo de trabalho geral para a multimedia, como na relação entre teoria e prática. Cranny-Francis dedica a maior parte do livro a falar sobre cada um dos modos em particular, aprofundando as particularidades culturais, muito agarrada a teorizações da realidade, pouco suportadas em objetos e exemplos efetivos. Dos 7 capítulos, 5 são dedicados a uma  desconstrução em profundidade de cada modo, com um sexto dedicado ao corpo e ao virtual, e apenas o último — "Synasthesia" — dedicado à inter-relação entre os modos. Cranny-Francis limita-se assim a dissertar sobre os modos individualmente, praticamente esquecendo a integração dos mesmos. Isso é visível desde logo nas categorias de criação de sentido definidas por ela — "writing, visuals, sound, movement, space" —, não existe nada sobre o modo como os vários meios funcionam quando integrados, nem tão pouco sobre a interatividade proporcionada pelas novas tecnologias do digital, e sobre as possibilidades de colaboração e participação na criação de sentidos. Fazem falta livros que se detenham sobre a criação de sentido na multimedia, mas falar desta sem falar da essência do que distingue a multimédia de outros media multimodais, como por exemplo o cinema ou a televisão é um ato falhado.

Por outro lado, a argumentação nas categorias menos clássicas, como o "movimento" e o "espaço", deixam muito a desejar. Cranny-Francis passa completamente ao lado da animação e do motion design, tecendo críticas à falta de movimento na web, como se a web fosse o único suporte da multimédia, e como se a linguagem da animação não estivesse presente na generalidade das interfaces e dos conteúdos que se produzem. Já na questão do espaço, sem entrar por questões de 3D e acesso em tempo-real ao mesmo, não passa de um refinamento das questões visuais. Em parte, podemos dizer que Cranny-Francis limita o seu discurso ao seguir o trabalho de Gunther Kress e Theo Van Leeuwen, especialistas em semiótica e linguística, com trabalho relevante no campo do texto, que nos últimos anos procuraram traduzir esse trabalho para o campo multimodal, mas que diga-se com muito pouco sucesso, desde logo porque deixam de fora toda a panóplia de trabalho desenvolvido nos últimos 60 anos pelos estudos fílmicos e nos últimos 30 anos pelos estudos da multimédia.

No último capítulo, onde supostamente deveria aparecer algum quadro de trabalho para a multimedia, que pudesse como diz Cranny-Francis "servir os designers multimedia", o que temos é uma discussão sobre a necessidade de uma nova semiótica, que nasce a partir do conceito de remediação que já vem de Bolter. Cranny-Francis limita-se depois a apresentar uma espécie de "matrizes de influência" que nada dizem, limitando-se a repetir algumas ideias sobre identidade e públicos que já conhecemos de outros media. Para agravar tudo isto, essas matrizes são apresentadas sem elencar qualquer método seguido ou estudo realizado, nem dados que suportem o seu desenho.

Posto tudo isto, não admira que só agora me tivesse dado conta da existência deste livro, tendo este sido publicado já em 2005. Apesar de publicado pela SAGE, as citações e referências são residuais. E 2005, apesar de estarmos no mundo da tecnologia, não serve de desculpa, pois se requisitei o livro na biblioteca, foi porque estou a trabalhar definições da área, para as quais tenho estado a consultar múltiplos textos bem anteriores.

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