maio 08, 2022

O Massacre de Nanquim

Não tivesse Iris Chang cometido suicídio em 2004, provavelmente não teria lido o seu livro “The Rape of Nanking” (1997). Chang foi fortemente atacada pelo Japão na forma da sua desacreditação, mas não parece ter sido esse o único motivo do seu fim. Quando morreu estava a trabalhar o tema da “Marcha da Morte de Bataan”, mais um crime de guerra japonês pouco conhecido. A leitura de “The Rape of Nanking” foi uma das minhas mais violentas experiências de leitura de sempre, por duas vezes senti o vómito subir-me à garganta. No final do livro, percebe-se que muitos dos que sobreviveram àquele inferno pereceram precocemente pouco depois. Isto fez-me sentir que talvez a nossa capacidade cognitivo-emocional não esteja preparada para tamanha dissonância. Levar uma vida normal de empatia humana enquanto se convive interiormente com horrores deste calibre.

Estátua de Iris Chang no Memorial das Vítimas. Nanquim, China

maio 01, 2022

Como Compreendemos o que Lemos

Daniel T. Willingham é um professor e investigador da psicologia que se dedica ao estudo dos aspetos cognitivos da aprendizagem, de quem recomendo vivamente a leitura do anterior "Why Don't Students Like School?: A Cognitive Scientist Answers Questions About How the Mind Works and What It Means for the Classroom" (2009). Neste livro, "The Reading Mind: A Cognitive Approach to Understanding How the Mind Reads" (2017), aprofunda exclusivamente o processo de leitura enquanto processo cognitivo para nos dar a compreender como lemos, desde o momento em que interpretamos as letras até ao momento em que criamos sentido de um texto que lemos. 

"Stop for a moment and wonder: what's happening in your brain right now—as you read this paragraph? How much do you know about the innumerable and amazing connections that your mind is making as you, in a flash, make sense of this request? Why does it matter?"

abril 30, 2022

O humano Aristóteles

A partir de um apurado levantamento histórico Annabel Lyon especula sobre os três anos em que Aristóteles foi professor de Alexandre o Grande. Aristóteles tinha cerca de 40 anos e Alexandre 13. Mas não se espere um mundo perfeitamente delineado e amigável. Lyon construiu um texto minimalista, oferecendo muito poucas referências, raramente enquadrando os episódios supostamente mais conhecidos das vidas de ambos, ao mesmo tempo que constrói as cenas num modo abstrato, situa-as ligeiramente no espaço e tempo, mas apenas por forma a lançar o leitor numa mais profusa especulação sobre o que e como terá acontecido. Esta abordagem torna o texto em si distante e pouco envolvente, já que procura estimular o efeito dramático no leitor que para o efeito tem de recorrer à História. Por outro lado, Lyon apresenta um mundo de comportamentos com dois mil anos, distantes, mas também feitos de carne, de desejos e ódios, o que não raras vezes nos faz bater de frente com imaginários de uma suposta elevação da Grécia Antiga.

abril 24, 2022

O último abraço

"Mama's Last Hug" (2018) é uma defesa, apoiada por décadas de ciência empírica, da existência efectiva de emoções nos animais não-humanos. Contudo, como livro, não vai além de uma conversa ligeira sobre o assunto, serve mais quem apenas quiser introduzir-se ao tema. O título do livro surgiu a De Wall pela visita realizada pelo professor Jan van Hooff à chimpanzé Mama, quando esta estava às portas da morte, originando um reencontro intensamente emocional, um momento mágico e profundamente humano entre seres de duas espécies.


"Jan van Hooff visits chimpanzee Mama" (YouTube)

abril 16, 2022

"The Mauritanian" (2021)

"The Mauritanian" (2021) de Kevin Macdonald, conta-nos a história de Mohamedou Ould Slahi que foi torturado e detido sem qualquer acusação em Guantánamo durante 14 anos. A história segue o livro "Guantánamo Diary" (2015) escrito pelo próprio Mohamedou Ould Slahi, e conta com a excelente performance de Tahar Rahim e ainda Jodie Foster.

O filme é uma chapada brutal na administração americana e na sua atitude sobranceira de polícia da democracia no mundo que constantemente demanda o "olha para o que eu digo e não para o que eu faço". Considerando o que foi feito, não só para com os prisioneiros, mas para com os próprios cidadãos americanos que tentaram por cobro à situação, podemos ver muitas semelhanças com aquilo que a Rússia está a fazer neste momento. Como se a guerra fosse sinónimo de carta branca, e as convenções que se assinam servissem apenas quando nos dão jeito.

O trabalho de Kevin Macdonald é sério, contido em termos emocionais. Existe um claro esforço no tratamento do caso para garantir a sua exposição que mesmo quando recorre a algumas sequências mais fortes e a cinematografia e montagem agressivas, nunca se deixa toldar por uma ideia de revanchismo ou acusação gratuita às autoridades, chegando mesmo a servir-se do anti-climax para passar as ideias da forma mais depurada possível.

No final, as imagens do verdadeiro Mohamedou Ould Slahi ajudam a compreender melhor quem ele é, e as particularidades da sua personalidade que tão bem Tahar Rahim emula no filme.

abril 15, 2022

Dinamarca na 2ª GG

"The Shadow in My Eye" (2021) de Ole Bornedal é um filme dinamarquês sobre a segunda guerra mundial que dá conta de mais um episódio pouco conhecido desta guerra. Da Dinamarca também, tinha visto "Land of Mine" (2015) de Martin Zandvliet, no qual se dá conta de uma costa oeste da Dinamarca pejada de minas. Para as retirar, foram trazidos milhares de soldados adolescentes alemães, que foram treinados e tratados de forma sub-humana, tendo metade sucumbido nas praias da Dinamarca.

"The Shadow in My Eye" (2021) e "Land of Mine" (2015)

Agora Bornedal traz-nos uma missão da Força Aérea Real Britânica, a 21 de Março de 1945, em que era suposto bombardear o quartel-general da Gestapo em Copenhaga, contudo a incursão acabou por se deturpar num acidente que conduziu ao bombardeamento de uma escola, matando mais de 120 pessoas, entre quais 86 eram crianças.

Zandvliet apresentava uma direção soberba, com um conjunto de atores quase desconhecidos a corresponder de forma intensa, passando agora a impressão de que Bornedal adocica um pouco o mundo representado. Ou talvez o facto de se tratarem de crianças completamente inocentes motive a criação de uma experiência menos crua e mais onírica. Por outro lado, o facto de ter visto o filme com Guerra da Ucrânia em pano fundo acabou por gerar em mim uma muito maior visceralidade.

Desconhecia ambos os episódios, baseados em factos reais, o que demonstra o quanto continuamos a desconhecer sobre muito do que aconteceu pela Europa fora ao longo dos 5 anos de guerra. E por isso mesmo, devemos obrigar-nos a refletir sobre tudo que está em jogo na Ucrânia, nomeadamente sobre tudo o que temos de fazer para que seja impossível uma nova guerra voltar a alastrar por todo o continente.

Subtextos de um Príncipe

Os livros de Iris Murdoch não se podem ler apenas enquanto histórias, a sua faceta filosófica está sempre presente no subtexto requerendo que nos debrucemos sobre as motivações do tema, buscando chegar ao que terá conduzido o pensar no engendrar do mundo ficcional e das ações dos personagens. No caso de “O Príncipe Negro” (1973), temos à superfície uma tragédia, um escritor de 58 anos divorciado que se apaixona pela filha de 20 anos de um casal que é constituído pelos seus dois melhores amigos de sempre, e acaba a desencadear reações trágicas e irreversíveis. Se a intriga mantém o nosso envolvimento até ao final e com boa intensidade emocional, aí chegados parece tudo saber apenas a “mais uma tragédia de amores”. Mas se refletirmos no sentido ético da filosofia de Murdoch (Duringer, 2022), podemos ver mais, podemos ver como todo o texto é um labor de dissecação do comportamento humano, numa tentativa de oferecer à compreensão aquilo que o nosso preconceito tende a impedir-nos de abarcar, sem recorrer a embelezamento nem persuasão. O personagem é apresentado na sua plenitude, com toda a carga negativa, reforçando mesmo a nosso recusa, contudo essa apresentação obriga-nos a repensar, a procurar compreender.

abril 10, 2022

"Shuggie Bain" de Douglas Stuart

Demorou 10 anos a escrever, e isso é mais do que evidente no labor da escrita, não apenas na sua beleza mas no intrincado detalhe com que vai descrevendo cena atrás de cena, representando não apenas o espaço e a ação, mas dando conta do sentir dos vários pontos de vista dos seus personagens. Existe uma sensação de completude, como se cada cena fosse um exercício estudado por Douglas Stuart, trabalhado como se de pequenas jóias se tratassem. Mas não é mera expressão o que aqui temos, nem poderia ser. Ninguém conseguiria chegar a tanto detalhe se não tivesse realmente vivido muito do que ali se conta. Por isso, quando pegamos na história de vida de Douglas Stuart e percebemos o decalque, não é apenas o horror do que nos foi contado que nos toca, o tremor acontece ao perceber que foi possível atravessar tudo aquilo e mesmo assim chegar ao topo do mundo da escrita, acrescentando ainda que levou mais 12 anos a publicar, tenso sido recusado 44 vezes pelas editoras. Se o livro termina como uma dor brutal, o reconhecimento da carreira do seu autor oferece-nos a admiração plena e uma esperança de esplendor máximo.

Sinopse: 1981, Glasgow. A outrora próspera cidade mineira sufoca sob o jugo férreo das políticas de Margaret Thatcher, lançando milhares de famílias para a miséria. A epidemia do álcool e das drogas aproveita para capturar os mais vulneráveis.

GoodReads

abril 09, 2022

Direitos da Revolução Francesa

 A Revolução Francesa (RF) é um dos eventos mais marcantes da História da Europa, em grande parte responsável pelo desenho societal que ainda hoje vigora no continente. Por isso, e porque tenho vindo a ler cada vez mais ficção histórica, foi com alguma pena que percebi que os livros passados na RF não são tantos como se esperaria. Ainda assim, tendo encontrado uma obra escrita pela notável Hilary Mantel — "A Place of Greater Safety" (1992) — fez-me acreditar que o assunto estava resolvido. Mas não estava. Pouco depois de o começar, sentindo a falta de contexto, acabei por ir atrás de suporte, acabando a ler simultaneamente "A Revolução Francesa 1789-1799" (1992) de Michel Vovelle, "Citizens: A Chronicle of the French Revolution" (1989) de Simon Schama, e ainda o mais recente, "A New World Begins: The History of the French Revolution" (2019) de Jeremy D. Popkin.