A edição que li foi da coleção Mil Folhas do Público que utiliza a tradução de Virgínia Motta realizada para a Livros do Brasil
Provavelmente aquilo que de menos gostei foi da tradução, parece-me estar longe do nível de eloquência do original, sofrendo ainda mais pela tentativa, sem sentido, da Livros do Brasil de produzir um português que satisfaça Portugal e Brasil, redundando numa mescla que não é uma coisa nem outra. O livro perde muito, e espero que um dia ganhe uma tradução feita com maior proximidade ao original e ao português de Portugal. O original em inglês não é propriamente fácil de seguir para não-nativos nomeadamente ao nível dos diálogos que aproximam a escrita da fala.
Quanto à estrutura, pode-se dizer que é bastante linear, um arco completo com bastante progressão na ação o que torna a leitura, em partes, bastante acessível e prazerosa. Por outro lado, não gostei de um artifício criado por Steinbeck, que assentou em intercalar os capítulos da história com capítulos mais abstratos e filosóficos sobre o estado das coisas, e a condição humana. Fez-me lembrar os videojogos que precisam de intercalar a interação com pequenos clipes de filme para que se perceba o que a história está a tentar contar. Acaba funcionando como um rótulo de menoridade ao leitor, que supostamente seria incapaz de compreender todo o alcance do que está a ser relatado à família Joad no seio da História americana da depressão económica. Como se Steinbeck tivesse necessidade de reforçar a sua visão política do que descreve, para lhe permitir chegar a questões que quer abordar mas que não encontrou forma por via da história. Não fosse a história tão impressiva, e consideraria o livro, por esta razão, um falhanço.
Já na parte do conteúdo, das ideias que Steinbeck procura defender, existe algum excesso de zelo em defesa do realismo socialista, como tábua de salvação para todos males desencadeados pelo vil metal. Sim, tanto em 1929 como em 2008, as massas da população foram vítimas da falta de escrúpulos de quem lidou com os dinheiros de todos, de quem olhava apenas aos modelos económicos e esquecia que por debaixo desses existiam seres humanos reais. Isso trouxe tudo o que de pior existe no ser-humano — o racismo, a xenofobia, o desprezo pelo outro — a total desconsideração pelos valores humanos. Por outro lado, não podemos pensar como sendo algo fácil, lidar com milhões de deslocados, nem nessa altura, nem hoje, nem nunca. Continuo a defender que devemos receber todas as pessoas que precisam de se deslocar, mas não podemos esquecer que essas vão estar imensamente vulneráveis, e que mesmo um Estado rico podendo ajudar bastante, não pode de forma alguma chegar a todos, e que no meio de tudo isso haverá muito aproveitamento por parte de quem já estava nos lugares antes. Isso faz parte da sobrevivência humana, claramente que devemos vergar esses instintos pela lei, mas será mero paliativo, precisamos de agir sobre o que antecede, ou seja, em formas de evitar essas deslocações massivas. O que era preciso nessa altura, era ter criado as condições para as pessoas permanecerem nos seus terrenos e nas suas casas, lugar em que elas se sentiam bem, pois nenhum outro lugar por mais acolhedor que fosse poderia oferecer as alegrias do lugar em que aquela família tinha crescido e unido o seu sentir.
Sei bem que é fácil em teoria, e que em lugares como a Síria da atualidade isto se tornou uma impossibilidade. Mas por culpa de quem? Nossa. Europeus, americanos, russos, árabes, todos se acharam no direito de intervir num país que era soberano, e todos contribuíram para a sua total destruição. Hoje mandar os sírios de volta não adianta, eles já não têm lugar para onde voltar. Mas os EUA não sofreram pressões do exterior, o governo americano devia ter agido nas expropriações, na destruição de valor por via das quebras em bolsa. Ao permitir que a sociedade seguisse o seu rumo, sem qualquer regulação, criou um problema muito maior com os milhões de pessoas a mover-se massivamente.
Uma outra questão que surge aqui bastante evidente, na assunção de uma realidade idilicamente socialista, é o problema da falta de qualificação da mão-de-obra. Nessa altura já vivíamos num pós-Revolução Industrial, uma revolução que veio exigir das pessoas muito mais, não bastava força bruta, porque essa já pertencia às máquinas. Do mesmo modo hoje já não basta saber ler, escrever e contar. Não digo isto por acaso, mas porque vai existindo um discurso perigoso emanado de certas alas da sociedade que olham para a escola como algo pouco relevante, e que se acentuou recentemente com a internet, porque o conhecimento é de todos e todos lhe podem aceder, esquecendo que o mundo complexo em que vivemos não pode ser servido por meras pesquisas na internet. O progresso que vamos vivendo não exigiu, não exige, nem exigirá menos escola, mas mais, muito mais competências e capacidades finas que só estarão ao alcance de muito estudo e treino diários no tempo.
E no caso relatado na obra de Steinbeck, sabemos que o estado americano teve as suas culpas em não apostar numa rede pública de educação que assegurasse a elevação das capacidades da sua população, mas sabemos bem como certas franjas, nomeadamente no interior dos EUA olham para a escola pública, acusando-a de braço ideológico do governo, optando por escolarizar em casa, e até em alguns casos sequer escolarizar, como tem vindo a público em vários relatos recentes (ver "Educated: A Memoir" (2018) de Tara Westover ou "The Glass Castle" (2005) de Jeannette Walls).
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