abril 16, 2022

"The Mauritanian" (2021)

"The Mauritanian" (2021) de Kevin Macdonald, conta-nos a história de Mohamedou Ould Slahi que foi torturado e detido sem qualquer acusação em Guantánamo durante 14 anos. A história segue o livro "Guantánamo Diary" (2015) escrito pelo próprio Mohamedou Ould Slahi, e conta com a excelente performance de Tahar Rahim e ainda Jodie Foster.

O filme é uma chapada brutal na administração americana e na sua atitude sobranceira de polícia da democracia no mundo que constantemente demanda o "olha para o que eu digo e não para o que eu faço". Considerando o que foi feito, não só para com os prisioneiros, mas para com os próprios cidadãos americanos que tentaram por cobro à situação, podemos ver muitas semelhanças com aquilo que a Rússia está a fazer neste momento. Como se a guerra fosse sinónimo de carta branca, e as convenções que se assinam servissem apenas quando nos dão jeito.

O trabalho de Kevin Macdonald é sério, contido em termos emocionais. Existe um claro esforço no tratamento do caso para garantir a sua exposição que mesmo quando recorre a algumas sequências mais fortes e a cinematografia e montagem agressivas, nunca se deixa toldar por uma ideia de revanchismo ou acusação gratuita às autoridades, chegando mesmo a servir-se do anti-climax para passar as ideias da forma mais depurada possível.

No final, as imagens do verdadeiro Mohamedou Ould Slahi ajudam a compreender melhor quem ele é, e as particularidades da sua personalidade que tão bem Tahar Rahim emula no filme.

abril 15, 2022

Dinamarca na 2ª GG

"The Shadow in My Eye" (2021) de Ole Bornedal é um filme dinamarquês sobre a segunda guerra mundial que dá conta de mais um episódio pouco conhecido desta guerra. Da Dinamarca também, tinha visto "Land of Mine" (2015) de Martin Zandvliet, no qual se dá conta de uma costa oeste da Dinamarca pejada de minas. Para as retirar, foram trazidos milhares de soldados adolescentes alemães, que foram treinados e tratados de forma sub-humana, tendo metade sucumbido nas praias da Dinamarca.

"The Shadow in My Eye" (2021) e "Land of Mine" (2015)

Agora Bornedal traz-nos uma missão da Força Aérea Real Britânica, a 21 de Março de 1945, em que era suposto bombardear o quartel-general da Gestapo em Copenhaga, contudo a incursão acabou por se deturpar num acidente que conduziu ao bombardeamento de uma escola, matando mais de 120 pessoas, entre quais 86 eram crianças.

Zandvliet apresentava uma direção soberba, com um conjunto de atores quase desconhecidos a corresponder de forma intensa, passando agora a impressão de que Bornedal adocica um pouco o mundo representado. Ou talvez o facto de se tratarem de crianças completamente inocentes motive a criação de uma experiência menos crua e mais onírica. Por outro lado, o facto de ter visto o filme com Guerra da Ucrânia em pano fundo acabou por gerar em mim uma muito maior visceralidade.

Desconhecia ambos os episódios, baseados em factos reais, o que demonstra o quanto continuamos a desconhecer sobre muito do que aconteceu pela Europa fora ao longo dos 5 anos de guerra. E por isso mesmo, devemos obrigar-nos a refletir sobre tudo que está em jogo na Ucrânia, nomeadamente sobre tudo o que temos de fazer para que seja impossível uma nova guerra voltar a alastrar por todo o continente.

Subtextos de um Príncipe

Os livros de Iris Murdoch não se podem ler apenas enquanto histórias, a sua faceta filosófica está sempre presente no subtexto requerendo que nos debrucemos sobre as motivações do tema, buscando chegar ao que terá conduzido o pensar no engendrar do mundo ficcional e das ações dos personagens. No caso de “O Príncipe Negro” (1973), temos à superfície uma tragédia, um escritor de 58 anos divorciado que se apaixona pela filha de 20 anos de um casal que é constituído pelos seus dois melhores amigos de sempre, e acaba a desencadear reações trágicas e irreversíveis. Se a intriga mantém o nosso envolvimento até ao final e com boa intensidade emocional, aí chegados parece tudo saber apenas a “mais uma tragédia de amores”. Mas se refletirmos no sentido ético da filosofia de Murdoch (Duringer, 2022), podemos ver mais, podemos ver como todo o texto é um labor de dissecação do comportamento humano, numa tentativa de oferecer à compreensão aquilo que o nosso preconceito tende a impedir-nos de abarcar, sem recorrer a embelezamento nem persuasão. O personagem é apresentado na sua plenitude, com toda a carga negativa, reforçando mesmo a nosso recusa, contudo essa apresentação obriga-nos a repensar, a procurar compreender.

abril 10, 2022

"Shuggie Bain" de Douglas Stuart

Demorou 10 anos a escrever, e isso é mais do que evidente no labor da escrita, não apenas na sua beleza mas no intrincado detalhe com que vai descrevendo cena atrás de cena, representando não apenas o espaço e a ação, mas dando conta do sentir dos vários pontos de vista dos seus personagens. Existe uma sensação de completude, como se cada cena fosse um exercício estudado por Douglas Stuart, trabalhado como se de pequenas jóias se tratassem. Mas não é mera expressão o que aqui temos, nem poderia ser. Ninguém conseguiria chegar a tanto detalhe se não tivesse realmente vivido muito do que ali se conta. Por isso, quando pegamos na história de vida de Douglas Stuart e percebemos o decalque, não é apenas o horror do que nos foi contado que nos toca, o tremor acontece ao perceber que foi possível atravessar tudo aquilo e mesmo assim chegar ao topo do mundo da escrita, acrescentando ainda que levou mais 12 anos a publicar, tenso sido recusado 44 vezes pelas editoras. Se o livro termina como uma dor brutal, o reconhecimento da carreira do seu autor oferece-nos a admiração plena e uma esperança de esplendor máximo.

Sinopse: 1981, Glasgow. A outrora próspera cidade mineira sufoca sob o jugo férreo das políticas de Margaret Thatcher, lançando milhares de famílias para a miséria. A epidemia do álcool e das drogas aproveita para capturar os mais vulneráveis.

GoodReads

abril 09, 2022

Direitos da Revolução Francesa

 A Revolução Francesa (RF) é um dos eventos mais marcantes da História da Europa, em grande parte responsável pelo desenho societal que ainda hoje vigora no continente. Por isso, e porque tenho vindo a ler cada vez mais ficção histórica, foi com alguma pena que percebi que os livros passados na RF não são tantos como se esperaria. Ainda assim, tendo encontrado uma obra escrita pela notável Hilary Mantel — "A Place of Greater Safety" (1992) — fez-me acreditar que o assunto estava resolvido. Mas não estava. Pouco depois de o começar, sentindo a falta de contexto, acabei por ir atrás de suporte, acabando a ler simultaneamente "A Revolução Francesa 1789-1799" (1992) de Michel Vovelle, "Citizens: A Chronicle of the French Revolution" (1989) de Simon Schama, e ainda o mais recente, "A New World Begins: The History of the French Revolution" (2019) de Jeremy D. Popkin. 

abril 02, 2022

Da Mesopotâmia ao Helenismo

Apesar do título, “Babilónia”, o livro de 2010, foca-se verdadeiramente no subtítulo, a “Mesopotamia and the Birth of Civilization”. Paul Kriwaczek inicia o historiar com o império Sumério, passa ao Acádio, chegando ao Assírio e por fim Babilónia. A ideia do foco em Babilónia terá que ver com a representação do fim dos grandes impérios da Mesopotâmia que deram origem não apenas a uma das primeiras grandes civilizações, mas mais importante do que isso, porque deram origem à civilização em que ainda hoje vivemos. Kriwaczek, fala numa espécie de primeira metade da História, até ao final de Babilónia (1894-332 a.C.), e uma segunda metade, aquela que agora vivemos. E por estarmos a aproximar-nos, em número de anos, no sentido oposto, da extensão dessa primeira metade, vislumbra a tragédia, apontando o momento atual como de declínio já aceite e interiorizado por nós.

março 27, 2022

Expectativas e placebo

Começo a análise do novo livro de David Robson, "The Expectation Effect" (2022), citando a frase com que terminei a análise do seu anterior livro, "Intelligence Trap" (2019): "é um livro de divulgação científica, de leitura rápida e fluída, que apesar de alguns problemas abre caminhos para muitas abordagens distintas e permite rapidamente ficar a conhecer o que está em jogo na área, a partir do que qualquer um pode então iniciar o aprofundamento das questões."

março 26, 2022

Desenho de Personagens, segundo McKee

"Character: The Art of Role and Cast Design for Page, Stage, and Screen" (2021) é o mais recente livro de Robert McKee e o quarto livro que leio dele. Tinha demasiadas expectativas sobre o mesmo já que o tema da criação e desenho de personagens é bastante complexo. Ao contrário da discussão geral sobre o desenho de histórias ou criação de mundos, a criação de personagens assenta muito na particularização, na criação de personas completas que almejam à realidade do que somos. Nesse sentido, por mais fórmulas que se construam, a sua definição fica inteiramente dependente da capacidade de observação e expressão de quem cria. E essa é, talvez, a grande razão pela qual este livro fica bastante aquém daquilo que McKee nos habituou. McKee constrói um modelo de análise e trabalho com um conjunto alargado de categorias, que vão dos simples modelos — redondas/lisas — a grandes discussões filosóficas sobre o que significa estar vivo, numa ânsia por conseguir chegar ao âmago da definição da figura que denominamos personagem, mas fica a meio do caminho. Se por um lado nos oferece imenso sobre os fundamentos do que contribui para o desenho de uma personagem, por outro, sinto que chegados ao final não nos deu muito mais do que aquilo que já tínhamos no seu livro principal, "Story" de 1997

fevereiro 26, 2022

Composição em anel na arte narrativa

"Three Rings: A Tale of Exile, Narrative, and Fate" (2020) é um trabalho académico experimental que mistura memórias, crítica, clássicos e teoria narrativa. Conhecia Daniel Mendelsohn de um anterior trabalho de memórias criado a partir da estrutura de Homero, "Uma Odisseia. Um pai, um filho e uma epopeia" (2017) do qual gostei particularmente. Neste seu mais recente trabalho criou uma espécie de sucessor, realizando um trabalho maior de auto-crítica e análise do que foram as suas obras anteriores de memórias, e essa ideia de sucessão fica desde logo patente pelo trabalho de análise que dedica a "Les Aventures de Télémaque" (1699) em que François Fénelon tentou escrever uma continuação da "Odisseia".