setembro 10, 2020

O problema das redes sociais

Saiu ontem o documentário "O Dilema das Redes Sociais" (2020), na Netflix, que procura dar conta de vários dos problemas que têm sido atribuídos às redes sociais: viciação, invasão de privacidade, propaganda, manipulação, fragmentação de identidade, etc. O protagonista do filme é Tristan Harris que começou por ser responsável pelo design ético da Google, tendo-se demitido para criar a fundação Center for Humane Technology. O filme é relevante, aconselhável a todos os que usam as redes sociais, dos adolescentes aos mais velhos, mas com algum espírito crítico para evitar entrar em estado de alarme.

Para quem trabalha na área nada é dito aqui de novo, mas o que é dito é importante que chegue a todos, e não apenas a quem trabalha no domínio. As pessoas que falam fizeram todas parte destas empresas — Facebook, Google, Twitter, Instagram, Snapchat,... — mas nem tudo o que dizem é tal como nos querem dar a entender, existe algum excesso, alguma falta de enquadramento principalmente de teoria dos media e análise histórica da psicologia humana. Mas no cômputo geral, o filme funciona bem no acendimento de algumas campainhas, podendo ser relevante para uma grande faixa da sociedade que passou a usar estas ferramentas sem compreender como funcionam, sem qualquer noção do que está por detrás daquelas imagens, menus e comentários que a toda a hora solicitam a nossa atenção. 

O discurso alarmista tende ao exageramento das capacidades e potencial, mas aceito-o como discurso que procura gerar uma preocupação societal. Sem essa preocupação dificilmente poderemos levar os políticos a tomar as decisões que são necessárias. Não se compreende como andamos há uma década a pedir regulamentação para estas ferramentas, e tudo continua na mesma. Na Europa criou-se o RGPD, lançaram-se algumas multas, mas pouco mais foi feito. Se temos todo um conjunto de estruturas que regulam os media tradicionais, da rádio à televisão, porque é que ainda não criámos regulação para estas redes sociais? Simplesmente porque não há pressão. 

Repare-se no que aconteceu com a Uber, a pressão dos taxistas tem obrigado os políticos a agir. No caso das redes sociais, a pressão surge apenas pelo lado de algumas das pessoas que trabalham na área, e depois quando se fala de roubo de dados ou do muito dinheiro gerado pelas companhias. Por outro lado, sabemos que não é algo simples ou fácil. A regulação das redes sociais, ao contrário dos media tradicionais, tende a chocar com as liberdades e garantias individuais, que é no fundo o mesmo problema da Uber, por isso é tão complicado legislar. Mas se pensarmos no modo como funcionam os regulamentos dos media tradicionais, esses também chocam com os mesmos direitos, a diferença é que a proibição atua de modo indireto e por isso parece menos intrusivo.

A questão dos sistemas informáticos e os algoritmos desenhados para o engajamento é em si menos relevante, porque não difere daquilo que fazemos quando criamos qualquer obra de arte, quando criamos uma peça musical, filme, livro ou uma peça de teatro, ou um espetáculo de televisão, circo ou ilusionismo. Recorrem-se às técnicas mais eficazes na captação da atenção. Claro que ter pessoas a passar dias inteiros fixados nos sistemas não é bom para qualquer pessoa, menos ainda crianças ou adolescentes, mas aí cabe aos pais atuar. Como tenho defendido no caso dos videojogos, as rede sociais devem seguir o mesmo regime, não proibir mas regrar o tempo. Um adolescente tem de ter tempo para ler, ver cinema, correr, brincar, ouvir música, pintar, etc. etc. não pode estar todo o dia no café virtual do Instagram ou na discoteca virtual do Tik Tok. Por isso o que mais desperta a minha preocupação é a relação com o discurso social, a construção de comunidade sócio-política sobre a qual as redes sociais intervêm cada vez mais.

No passado recente o discurso comunitário era construído quase em exclusivo pelos media e os políticos. As redes sociais vieram dar voz, não a todas as pessoas, mas a todas as ideias, e é aí que surge aquele que considero ser o principal problema. Quando empresas estão dispostas a promover qualquer ideia em função de ganhos financeiros. Onde fica a chamada responsabilidade social das empresas? Como é que podemos aceitar que estas empresas promovam textos e vídeos que debitam informação falsa, errada, que busca manipular a percepção de realidade de outras pessoas? O problema não são os algoritmos, os seus truques de engajamento. Porque esses são bons para mim quando procuro informação relevante, como quando quero comprar um livro e os sistemas me apresentam os livros próximos. Agora quando tenho o Facebook a apresentar-me mais e mais informação sobre a Terra Plana apenas porque vi uma qualquer imagem relacionada, não faz sentido. 

Repare-se que o problema não é alguém publicar um texto dizendo que a Terra é plana, mas é o facto das redes sociais, para ganharem dinheiro, aumentarem a distribuição desse texto. Isto está errado, porque quando os algoritmos apresentam esse conteúdo não o fazem porque foi pedido conscientemente por alguém, mas antes porque a empresa quer apresentá-lo para manter a pessoa agarrada ao sistema, por forma a conseguir enviar-lhe mais e mais publicidade. Ou seja, não se trata de proibir ou censurar, mas trata-se de impedir a manipulação empresarial de informação que se sabe ser falsa e nefasta para a sociedade que queremos.

Todos nós experienciamos o poder do algoritmo quando publicamos duas coisas distintas e verificamos que uma tem o dobro de likes da outra. Sabemos que não é por nossa vontade, mas também não é por acaso, é antes porque o algoritmo do Facebook considera um conteúdo melhor do que outro e por isso apresenta-o a muitas mais pessoas, aumentando a sua visibilidade e inevitavelmente o número de likes. Agora não podemos aceitar que o algoritmo considere mais uma notícia falsa, que por ser chocante tem enorme potencial de captar atenção, e a apresente a mais pessoas do que uma notícia verdadeira que é menos chocante. Mas isto só vai mudar quando for regulado, é de uma ingenuidade tremenda andar a fazer pressão sobre as redes sociais para que elas se auto-regulem quando elas são empresas cotadas em bolsa.

A mensagem no final do documentário é, do meu ponto de vista, para ser levada à letra. Desliguem as notificações. Sempre que comprarem um novo telemóvel ou computador, comecem por desativar todas as notificações de todas as Apps, mantenham apenas as das chamadas e SMS. Se não o fizerem, abrem a porta a que o vosso tempo seja regulado pelo telemóvel e não por vocês.

setembro 09, 2020

A publicação de "Engagement Design" (2020)

O meu mais recente livro, "Engagement Design: Designing for Interaction Motivations", foi publicado a meio de março 2020, exatamente aquando do início da quarentena provocada pela pandemia COVID-19. Tinha intenção de dar conta da publicação do mesmo no blog e nas redes sociais, mas com a quarentena e todos os impactos da mesma acabou por ser algo sempre protelado. Aproveitando agora o início do novo ano letivo fiz um pequeno texto sobre a publicação do livro, focado na génese e motivação por detrás da sua escrita, assim como na inovação da proposta que apresenta.

Este livro começou a ser germinado no ano 2014/2015, como obra de introdução ao design de interação, com um forte enquadramento no domínio da Interação Humano-Computador (IHC), na altura com o intuito de publicar o mesmo na editora portuguesa FCA, onde tinha publicado o "Videojogos em Portugal: História, tecnologia e arte" (2013). Contudo, pouco depois de anunciar que ia escrever o livro dei por mim dentro de uma espiral de acumulação de material sobre a área, não conseguindo parar de colecionar obras, textos, capítulos, modelos, projetos... Quanto mais informação acumulava mais me questionava sobre a relevância de escrever um livro introdutório que iria ser igual a tantos outros, mesmo que sendo em português, língua em que existiam parcos recursos.

Foi apenas quando resolvi escrever o primeiro capítulo que me dei conta da minha insatisfação com a área, em particular na aplicação das metodologias do design de interação ao design de jogos e em geral ao design de media interativos. Tinha ocorrido uma mudança grande no discurso da IHC, com o foco a mudar da Usabilidade para a Experiência, mas quanto mais lia sobre a experiência e o tão em voga UX, mais me desolava. Na verdade, parecia-me que pouco tinha efetivamente mudado. A experiência era algo tão vago e ambíguo que parecia servir apenas de moldura, mantendo-se em uso muitas das mesmas metodologias que eram utilizadas nos estudos da usabilidade.

Foi então que me dei conta da necessidade de concretizar o conceito de Experiência, e ao fazê-lo acabei chegando ao conceito de Engajamento. O que importava a quem discutia a Experiência era que essa fosse significativa para os utilizadores, mas o significado em si não podia ser medido, sequer antecipado, já que cada indivíduo tem um mundo de experiências prévias que contaminam sempre qualquer nova experiência. Por isso era preciso trabalhar algo mais formal que fosse generalizável, e o engajamento permitia isso mesmo. Ao trabalhar o design para o engajamento podíamos aperfeiçoar a experiência sem depender dos elementos subjetivos, porque estávamos a adequar a forma estética, funcional e de criação de significado a um conjunto de generalizações humanas. 

Para chegar a generalizações relevantes no modelo tive de trabalhar perfis e esses acabariam por ser desenhados em função da personalidade, de modo que os traços de personalidade humana acabariam por traçar a base daquilo que viria a definir no livro como "streams of engagement" (fluxos de engajamento). Ou seja, usamos a personalidade para generalizar o design da interação, a partir do que podemos, nas fases subsequentes, aprofundar em função da resposta dos utilizadores particulares de cada universo cultural, e em função do tema concreto do artefacto a desenvolver. Para ter uma noção rápida do que o livro pretende e como pode ser utilizado, podem ler o texto “Applying the Engagement Design Model” que fiz para acompanhar a saída do livro.

Com o capítulo escrito, que acabaria por ser o segundo do livro, enviei a proposta para a Springer, em inglês, e o retorno acabou sendo imensamente positivo, o que me motivou a avançar com os restantes capítulos e a criação do modelo final proposto no livro. Ou seja, o livro que tinha começado como estudo introdutório a uma disciplina, acabaria por tornar-se num livro de investigação sobre um tema e apresentação de um novo modelo de design não apenas teórico mas aplicável. Quando terminei o livro, enviei o mesmo ao Jeffrey Bardzell que fez o favor de escrever o prefácio que acabaria por surgir depois no livro.

Claro que tudo isto é passado, o meu interesse é agora procurar aplicar e melhorar o modelo proposto nos projetos a desenvolver no DigiMedia, e que possa servir a comunidade científica na busca por uma melhor compreensão do próprio design de interação e de experiência. Com o feedback que for recebendo, continuar a trabalhar para otimizar o modelo, nomeadamente nos diferentes domínios do design de interação em que possa vir a ser aplicado.

setembro 03, 2020

Tragam os Corpos (Thomas Cromwell, volume 2)

A saga continua com grande desenvoltura, a descrição e o enredo funcionam em torrente tornando a leitura deste segundo livro muito mais rápida. Ajuda também o facto de Mantel ter aligeirado o labirintismo da escrita, é tudo bastante mais claro, ou então já aprendemos a respirar nas suas malhas. Por outro lado, fiquei um pouco desgostoso com a primeira parte na qual Mantel parece querer corrigir algum exagero do primeiro tomo no que toca a pessoa de Thomas More, e acaba por apontar o dedo a Cromwell. Passa mesmo a ideia que Mantel parece querer rever o que disse, talvez por ter sofrido duras críticas dos historiadores, não sei, mas sei que o seu Cromwell perde brilho, torna-se menos visionário e mais vingativo, afastando-me dele a ponto de a meio do livro dizer para mim que já não leria o terceiro. Contudo a segunda parte funciona num crescendo tão grande, imparável em direção à apoteose final, fazendo esquecer tudo o que de menos bom tinha encontrado.
"O Livro Negro" é a tradução portuguesa de "Bring Up the Bodies"

Contribui talvez para esta minha percepção mais crítica de Cromwell e benevolência com More, o facto de entre os dois livros ter revisto o filme "A Man for All Seasons" (1966) no qual Cromwell é muito mal tratado, e More é elevado a patamar de santo. Mas tudo isso se apaga porque este segundo tomo já não pertence a More mas a Boleyn. É ela quem sobe ao cadafalso, e assim percebemos, pela lógica, quem subirá ao cadafalso no final do terceiro volume.
Tower of London, local central da ação desta saga, para onde eram enviados os nobres para aguardar julgamento

Este livro tem as suas nuances, momentos altos, tal como por exemplo a discussão política sobre o que deve ou não deve fazer o Estado:

“It was too much for the Commons to digest, that rich men might have some duty to the poor; that if you get fat, as gentlemen of England do, on the wool trade, you have some responsibility to the men turned off the land, the labourers without labour, the sowers without a field. England needs roads, forts, harbours, bridges. Men need work. It’s a shame to see them begging their bread, when honest labour could keep the realm secure. Can we not put them together, the hands and the task? But Parliament cannot see how it is the state’s job to create work. Are not these matters in God’s hands, and is not poverty and dereliction part of his eternal order? To everything there is a season: a time to starve and a time to thieve. If rain falls for six months solid and rots the grain in the fields, there must be providence in it; for God knows his trade. It is an outrage to the rich and enterprising, to suggest that they should pay an income tax, only to put bread in the mouths of the workshy. And if Secretary Cromwell argues that famine provokes criminality: well, are there not hangmen enough?”

Mas talvez o ponto mais alto seja mesmo a descrição que Cromwell faz do modo como se gere a comunicação com um Rei, no caso particular com Henry VIII é genial. Claro que o génio aqui é Mantel, a forma como ela planeia e preenche e todas as frentes, e imagina o xadrez político em redor do Rei:

“As a child, a young man, praised for the sweetness of his nature and his golden looks, Henry grew up believing that all the world was his friend and everybody wanted him to be happy. So any pain, any delay, frustration or stroke of ill-luck seems to him an anomaly, an outrage. Any activity he finds wearying or displeasant, he will try honestly to turn into an amusement, and if he cannot find some thread of pleasure he will avoid it; this to him seems reasonable and natural. He has councillors employed to fry their brains on his behalf, and if he is out of temper it is probably their fault; they shouldn’t block him or provoke him. He doesn’t want people who say, ‘No, but…’ He wants people who say, ‘Yes, and…’ He doesn’t like men who are pessimistic and sceptical, who turn down their mouths and cost out his brilliant projects with a scribble in the margin of their papers. So do the sums in your head where no one can see them. Do not expect consistency from him. Henry prides himself on understanding his councillors, their secret opinions and desires, but he is resolved that none of his councillors shall understand him. He is suspicious of any plan that doesn’t originate with himself, or seem to. You can argue with him but you must be careful how and when. You are better to give way on every possible point until the vital point, and to pose yourself as one in need of guidance and instruction, rather than to maintain a fixed opinion from the start and let him think you believe you know better than he does. Be sinuous in argument and allow him escapes: don’t corner him, don’t back him against the wall. Remember that his mood depends on other people, so consider who has been with him since you were with him last. Remember he wants more than to be advised of his power, he wants to be told he is right. He is never in error. It is only that other people commit errors on his behalf or deceive him with false information. Henry wants to be told that he is behaving well, in the sight of God and man. ‘Cromwell,’ he says, ‘you know what we should try? Cromwell, would it not reflect well on my honour if I…? Cromwell, would it not confound my enemies if…?’ And all these are the ideas you put to him last week. Never mind. You don’t want the credit. You just want action.”

Enquanto lia estes livros fui também pensando o quão errado estamos quando pensamos que ser Rei, ou nobre, significa poder fazer tudo o que se quer. Ter acesso a tudo como mais ninguém. Ser nobre implica um tal espartilho de responsabilidades sociais que não deixa espaço para mais nada. Qualquer passo ao lado pode ditar a perda dessa nobreza, e o fim do aparente sonho cor-de-rosa. Ao longo destes dois livros percebemos como Henry VIII queria apenas um filho varão, mas toda a sua vontade, dinheiro e súbditos não eram suficientes para lhe dar o que mais queria. Percebemos também que Boleyn foi mais do que um capricho, foi uma necessidade imposta pelo espartilho das obrigações de ser-se Rei. Aliás, isto mesmo parece ter sido o que esteve na base da recente saída de Harry da monarquia britânica, pois se lá continuasse teria de obedecer a um conjunto tão apertado de protocolos que dificilmente se poderia considerar como uma pessoa livre.

Anne Boleyn in the Tower (1835) de Édouard Cibot

Mantel é brilhante na escrita, mas são os rasgos psicológicos que nos agarram que nos fazem sentir aquele mundo-história e nos permitem não só viajar no tempo mas aprender com as vidas de pessoas que à partida nada teriam que ver connosco. São homens e mulheres, não são deuses, carregados de fragilidades, receosos do dia de amanhã como qualquer outro mortal que foi posto neste mundo para todos os dias lutar pela sua preservação e sobrevivência.

Nota final para a tradução. A tradução do primeiro livro — Maria Beatriz Sequeira — está primorosa, a do segundo livro — Miguel Freitas da Costa — está boa, não posso dizer que seja inferior, mas senti-a diferente, não sei o quanto terá que ver com as próprias alterações introduzidas por Mantel no seu discurso. Mas se puxo este assunto é porque me desgostou a tradução do título. Se no primeiro se manteve um titulo inglês, ainda que sendo um nome, quem é que os autorizou a mudar o nome da obra criada por Mantel? Se em inglês se intitula "Bring Up the Bodies" e a frase aparece traduzida quase no final do livro como "Tragam os Corpos", porque é que o livro em português vai assumir o título de um capítulo muito anterior — O Livro Negro. Este título diz respeito a um conjunto de códigos de conduta real que ainda que imensamente relevantes, e relacionados com as tais questões de protocolo, mas distintas daquilo que é o objeto de destaque escolhido pela autora, e que está mais focado na apoteose por ela criada? Não se compreende, não deixando de irritar esta vontade de se procurar sobrepor ao autor.

Anne Boleyn, a única desta saga a ser deacapitada com espada, uma suposta clemência do Rei (autor desconhecido)

agosto 27, 2020

Vamos morrer sem os poder ler

A artista escocesa, Katie Paterson, criou, em 2014, o projeto Future Library com o apoio da cidade de Oslo, Noruega. Um projeto criado enquanto obra de arte pública e que consiste numa ideia revolucionária e altamente instigadora que vai decorrer ao longo dos próximos 100 anos, entre 2014 e 2114. A obra pretende colecionar trabalhos originais, nunca publicados, de escritores internacionais, um por ano, e preservá-los fechados até 2114. Para o efeito foi plantada uma floresta com mil árvores que serão usadas daqui a 100 anos para imprimir todos os 100 livros, e todos os anos é escolhido um autor de renome para escrever um novo livro para a biblioteca.

Os autores são selecionados pela artista, a quem é dado um ano para criar o texto, que pode ter o tamanho que quiserem, e entregá-la à biblioteca. Assim em 2014 Margaret Atwood iniciou o processo, tendo entregue o seu livro em 2015. A antologia completa começou já a ser vendida, para já num lote reduzido de mil certificados, no valor de cerca de 1000 euros. 

2014 – Margaret Atwood, Scribbler Moon

2015 – David Mitchell, From Me Flows What You Call Time

2016 – Sjón, As My Brow Brushes On The Tunics...

2017 – Elif Shafak, The Last Taboo

2018 – Han Kang, Dear Son, My Beloved

2019 – Karl Ove Knausgård, ainda não entregue devido ao COVID_19

2020 - Ocean Vuong, selecionado este ano

Deixo uma breve perspectiva sobre a ideia para o projeto que nos pode fazer refletir sobre tantas e tantas ideias: sobre os livros; as árvores que vão ser usadas; nós que não estaremos cá e que nunca os poderemos ler; e aqueles que lerão aquilo que nunca ninguém pôde antes ler...

“It is less egotistical than regular publishing too. So much of publishing is about seeing your name in the world, but this is the opposite, putting the future ghost of you forward. You and I will have to die in order for us to get these texts. That is a heady thing to write towards, so I will sit with it a while.”

“If you look at any literary epoch, who gets carried forward in time is a mystery, still. Melville sold about 1,000 copies of Moby-Dick and now he is the totem of American fiction. This is an antidote, to say regardless what happens in market trends, we have a record of what humans have found valuable, the voices we were interested in, for better or worse." Ocean Vuong, entrevista ao Guardian, 19.8.2020 

Deixo um vídeo, de 2014, no qual a artista explica mais promenorizadamente o que pretende com a sua obra: 

agosto 23, 2020

Thomas Cromwell, volume 1

“Wolf Hall” (2009) de Hillary Mantel, à semelhança de “Guerra e Paz” (1868) de Leo Tolstói, apresenta-se como ficção histórica, no sentido em que oferece primazia à criação de um mundo-história ficcional construído sobre alicerces de factos reais. O cenário escolhido por Mantel é o do reinado de Henry VIII, que ficou conhecido, além do divórcio com Catarina e o casamento, à revelia do Papa, com Anne Boleyn, por impor a Reforma Protestante em Inglaterra, terminando com a subjugação da coroa britânica a Roma, no século XVI. Iniciada na Alemanha por Lutero, a Reforma encontraria em Inglaterra dois rivais: Thomas More contra, Thomas Cromwell a favor. Mantel resolveu ir contra à corrente e criar o mundo de “Wolf Hall” a partir dos olhos da pessoa mais mal-amada, Thomas Cromwell, produzindo uma obra de grande relevo estético e interesse histórico. Este livro é apenas o primeiro volume de uma trilogia, mas podemos ver nele, desde já, uma forma de escrita única assim como uma representação bastante audaz da pessoa de Thomas Cromwell.

Thomas More e Thomas Cromwell, ambos pintados por Hans Holbein, o primeiro em 1527, o segundo em 1533

A Forma Escrita

Começando pela escrita, esta é não-linear, seguindo Joyce, Woolf ou Faulkner, mas não é fluxo de consciência, é algo que podemos aproximar mais de Lobo Antunes, no sentido em que o desenvolvimento narrativo se faz por cenas, aparentemente desligadas, que vão ganhando forma apenas à medida que vamos avançando e interligando as mesmas, como peças de puzzle, permitindo-nos reconstruir, mentalmente, e compreender o que nos está a ser apresentado. 

Seria suficiente para elevar o patamar de exigência à leitura, mas Mantel introduz ainda variações no verbo da narração e no ponto de vista. Uma narrativa é uma história que aconteceu, é passado, mais ainda quando falamos de há 500 anos atrás, no entanto Mantel narra tudo no tempo presente. Não diz “ele fazia” ou “atravessaram o rio”, mas antes diz “ele faz” ou “estão a atravessar”. A isto junta o facto de na grande maioria das vezes em que se quer referir a Thomas Cromwell, que serve o nosso ponto de vista na terceira-pessoa, se lhe referir apenas como “Ele”, o que com múltiplos personagens em cena baralha qualquer leitor, a não ser que tenha em mente que o “Ele” é sempre, em 95% das vezes, Thomas Cromwell.

Diria assim que mais do que a não-linearidade, é a ação sempre no presente e a menção ao protagonista, quase encriptada, como “ele”, que tornam a leitura laboriosa. Mas por outro lado, é também essa forma verbal e a constante referência a “ele” que criam uma forma de contar única que confere ao texto um maior poder imersivo. Por um lado, o presente cola-nos ao momento da leitura, e prende a nossa atenção perante algo que está a acontecer ali e agora, enquanto o “ele”, cria a sensação de estar sempre presente, ao pé de nós. 

Claro que para o aumento de imersão, ou de engajamento, contribui a dificuldade da leitura e isso é algo que a própria não-linearidade procura fazer. Os vários estudos que têm sido realizados dão conta de maior memorização e atenção das pessoas ao que é dito quando o texto é mais difícil de ler ou de compreender. A razão prende-se com a necessidade de despender mais energia na descodificação o que acaba por tornar o momento mais envolvente e ao mesmo tempo mais fácil de registar na memória.

O Olhar de Thomas Cromwell

É inevitável começar por ligar a profissão de Cromwell com a inicial de Mantel, ambos advogados, uma profissão ligada à litigação, ao lidar com as palavras e os múltiplos sentidos dados pelas pessoas, algo que fica bem presente no seguinte excerto:

“When you are writing laws you are testing words to find their utmost power. Like spells, they have to make things happen in the real world, and like spells, they only work if people believe in them.”

Mas mais importante do que isso é o facto de Thomas Cromwell ter nascido como um pobre e desconhecido, e desde essa condição ter chegado, sozinho, ao cargo mais poderoso do país. Um verdadeiro “self-made man”, um hino à meritocracia. Cromwell aprendeu muito, enquanto jovem, percorrendo metade da Europa. Tornou-se advogado, contabilista, poliglota e era dono de uma memória invejável, como se resume a determinada altura:

“It is said he knows by heart the entire New Testament in Latin, and so as a servant of the cardinal is apt – ready with a text if abbots flounder. His speech is low and rapid, his manner assured; he is at home in courtroom or waterfront, bishop's palace or inn yard. He can draft a contract, train a falcon, draw a map, stop a street fight, furnish a house and fix a jury. He will quote you a nice point in the old authors, from Plato to Plautus and back again. He knows new poetry, and can say it in Italian. He works all hours, first up and last to bed.”

Cromwell foi um polimata, um renascentista, alguém extremamente dotado com múltiplas competências, só assim se explica que tenha conseguido elevar-se numa hierarquia na qual o sangue tudo determinava. Se não tinhas brasão de família, não existias, simplesmente era impossível ser-se considerado para o que quer que fosse. No entanto Cromwell conseguiu tornar-se no homem mais temido de toda a Inglaterra. A sua capacidade para persuadir os outros a fazerem o que pretendia era infindável, e não se fazia de meras palavras, mas de um conjunto de estratégias de comunicação, verbais e não verbais, assim como de silêncios, ações e inações. Cromwell era aquele que tudo observava, compreendia, calculava e exprimia. A sua visão do mundo era como a de um jogador de xadrez, sempre em jogo.  

“One of the things I’m really exploring is the universal question of what’s luck? What’s fate? Does anybody make their own luck? How far can you write your own story? And he’s someone whose whole career ought not to be possible. But at some point in early middle age, he just grabs the pen and starts writing it.” [Mantel em entrevista ao The Guardian, 22.2.2020]

Este modo de estar é o que explica a forma de escrita adotada por Hillary Mantel. A não-linearidade e o tempo presente, não são meras decorações estéticas, a forma reflete a personalidade de Cromwell, alguém que era quase impossível de descodificar, alguém que estava sempre presente quando era preciso, alguém que nunca era o centro, mas era sempre “ele” que estava lá para o que fosse necessário. A memória e o conhecimento imensamente detalhado de todos e tudo, tornou-o numa peça central, primeiro para o cardeal Wolsey, e depois para o rei Henry VIII, era ele quem lhes valia, sendo muito mais do que um braço direito. Como disse Mantel em entrevista:

"I am interested in the fact that in this era, kingship is coming into its full glory, in England and elsewhere; kings are insisting on their godlike status, their divine appointment. But who really has the power? Increasingly, it’s not the man with the sceptre, it’s the man with the money bags.” [Mantel em entrevista à Historical Novel Society]

Por outro lado, a personalidade e a ação de Cromwell, tal como trabalhada por Mantel, abre todo um novo mundo de perspectivas, mostrando uma Inglaterra a caminho do humanismo, veja-se mais este excerto da entrevista:

 “When we look at what connects that age with this, I am interested in Cromwell’s radicalism; in the tentative beginnings of the notion that the state might take a hand in creating employment, that the economic casualties of the system deserved practical help; that poverty has human causes and is preventable, rather than being a fate ordained by God. I am disturbed to think that we might be going backward in this regard, back to stigma and fatalism and complacency.” [Mantel em entrevista à Historical Novel Society]

A Rivalidade entre More e Cromwell

Se não bastasse o trabalho realizado por Mantel sobre Cromwell, o outro ponto historicamente inovador relaciona-se com a apresentação de Thomas More que é quem nos serve o climax deste primeiro volume. More é relembrado como o contrário de Cromwell, também advogado, mas um grande académico, respeitado por toda a universidade Europeia, autor de "Utopia" (1516). Dono de uma dignidade irrevogável, morreu como Sir, tendo sido canonizado em 1935, sendo hoje referenciado como Santo. Para o público em geral, o filme de 1966 "A Man for All Seasons" dá conta da importância da sua pessoa. 

Contudo, o interessante da abordagem de Mantel é quase virar a leitura de ambos os Thomas, ao contrário. Mantel dá conta de atos terríveis cometidos por More, de verdadeira inquisição, com a defesa e aplicação de tortura e fogueiras de hereges para todos os que decidissem abraçar a Reforma Protestante. No fundo, a grande questão desta obra está longe de ser o divórcio e a concubina, mas é antes a Igreja, Inglaterra e o humanismo. A humanização da vida pública que deixa para trás os misticismos religiosos. Repare-se como Mantel dá conta das acusações a Cromwell de que ele teria destruído os grandes mosteiros e conventos ingleses:

"‘If you ask me about the monks, I speak from experience, not prejudice, and though I have no doubt that some foundations are well governed, my experience has been of waste and corruption. May I suggest to Your Majesty that, if you wish to see a parade of the seven deadly sins, you do not organise a masque at court but call without notice at a monastery? I have seen monks who live like great lords, on the offerings of poor people who would rather buy a blessing than buy bread, and that is not Christian conduct. Nor do I take the monasteries to be the repositories of learning some believe they are. Was Grocyn a monk, or Colet, or Linacre, or any of our great scholars? They were university men. The monks take in children and use them as servants, they don't even teach them dog Latin. I don't grudge them some bodily comforts. It cannot always be Lent. What I cannot stomach is hypocrisy, fraud, idleness – their worn-out relics, their threadbare worship, and their lack of invention. When did anything good last come from a monastery? They do not invent, they only repeat, and what they repeat is corrupt. For hundreds of years the monks have held the pen, and what they have written is what we take to be our history, but I do not believe it really is. I believe they have suppressed the history they don't like, and written one that is favourable to Rome.’"

A questão que move Cromwell não é teológica, saber se Deus existe ou não, se o Papa está investido de poderes divinos ou não. Cromwell não foi um académico, era advogado e contabilista. Mais, ele era um self-made man, alguém vindo do nada, ciente do que esse nada representava. O que o movia era conseguir obter mais e melhor, mas não apenas para si. Cromwell ajuda imensas pessoas, financeiramente e de muitas outras formas. Cromwell traz para casa crianças que perderam os pais, ou que se encontram abandonadas, mulheres perdidas, dá-lhes um teto, não para as explorar, mas para as fazer florescer, como diz a certa altura:

 “You learn nothing about men by snubbing them and crushing their pride. You must ask them what it is they can do in this world, that they alone can do.”

Cromwell fez isto porque apreendeu o mundo que habitava como ninguém, compreendeu que o mundo era muito mais do que aquilo que a Igreja queria vender, ou que a cor do sangue corrente nas veias era igual para todos. Cromwell elevou-se ao compreender que aquilo que fazia mexer o mundo era algo muito mais direto e efetivo do que o sangue ou a espiritualidade, como faz neste excerto: 

“‘They are my tenants, it is their duty to fight.’
But my lord, they need supply, they need provision, they need arms, they need walls and forts in good repair. If you cannot ensure these things you are worse than useless. The king will take your title away, and your land, and your castles, and give them to someone who will do the job you cannot.’
‘He will not. He respects all ancient titles. All ancient rights.’
‘Then let's say I will. Let's say I will rip your life apart. Me and my banker friends.
How can he explain that to him?’
'The world is not run from where he thinks. Not from his border fortresses, not even from Whitehall. The world is run from Antwerp, from Florence, from places he has never imagined; from Lisbon, from where the ships with sails of silk drift west and are burned up in the sun. Not from castle walls, but from counting houses, not by the call of the bugle but by the click of the abacus, not by the grate and click of the mechanism of the gun but by the scrape of the pen on the page of the promissory note that pays for the gun and the gunsmith and the powder and shot.'”


Claro que toda esta visão magnânima de Cromwell faz levantar muitas dúvidas, e alguns estudiosos referem mesmo que comporta falsidade. Numa entrevista ao The Guardian, John Guy, um dos mais reputados historiadores da época dos Tudor, ataca Mantel, aceitando as suas qualidades como escritora mas desprezando a visão histórica por si apresentada. Para John Guy, Mantel deixou-se levar por relatos sem credibilidade, de pessoas que tinham interesses e não diziam a verdade, mas apenas o que lhes interessava. Por outro lado, se ouvirmos outros académicos, como Diarmaid MacCulloch, vamos perceber o quão certa Mantel pode estar. Na verdade, Mantel não é historiadora, nem se assume enquanto tal, mas se existe algo que este seu livro demonstra é o modo como a monarquia e o Estado funcionavam, a política sem si, o quanto era decidido por jogadas assentes na mentira, bluff e suborno, e o quanto tudo isso faz parecer tudo uma grande ilusão, com o sentido da verdade a esfumanr-se.


Sendo a leitura laboriosa, deixo algumas ligações que ajudarão a preparar a mesma:

The World of Wolf Hall, A reading guide to Hilary Mantel’s Wolf Hall and Bring Up the Bodies,  2020

A Man for All Seasons, 1966, de Fred Zinnemann (trailer)

The Other Boleyn Girl, livro de Philippa Gregory 2001 ou filme 2008 com Natalie Portman e Scarlett Johansson (trailer).

. Thomas CromwellThomas More e Henry VIII

. Reforma protestante

. A BBC fez uma série (2015) a partir do livro, pode valer a pena ver no final.


Nota: texto usado no original, em inglês, por facilidade de transcrição. Lido na versão portuguesa, da Editora Civilização.

agosto 15, 2020

Minha Ántonia (1918)

Foi o meu segundo livro de Willa Cather (tinha lido "A Casa do Professor") e foi mais uma excelente leitura. A autora possui uma forma particular de dar a ver, sentimos ao lê-la como se estivéssemos diante de uma tela em movimento, em que tudo acontece num tempo específico próprio da ficção contada, delimitada pelo que a autora quer dizer e mostrar. Nem sempre a emoção segue o brilho da poética escrita, mas isso é assim porque Cather claramente restringe a emocionalidade. Facilmente poderia dramatizar e elevar o sentido de tragédia, mas não o faz por opção, procurando manter assim a sua tela delimitada e oferecendo-nos um recorte muito particular de uma época e lugar.

Este trabalho de Cather juntamente com "Butcher's Crossing" de John Williams levaram-me a conhecer um Oeste americano muito diferente daquele que tinha aprendido a amar em criança vendo filmes intermináveis de cowboys. São duas janelas muito distintas sobre um mesmo território e conjunto de pessoas, mas que se complementam na perfeição.

Planícies do Nebraska, para onde migraram muitos europeus da Escandinávia e da Rússia

Deixo um excerto brilhante:

"Anos mais tarde, quando os dias de pastagem a céu aberto tinham terminado e a erva vermelha fora sistematicamente lavrada até quase ter desaparecido da pradaria; quando todos os terrenos se encontravam vedados e as estradas deixaram de ser completamente desorganizadas e passaram a seguir os limites estabelecidos entre os terrenos, a campa do Sr. Shimerd continuava lá, rodeada por uma vedação de arame já meio frouxa e com uma cruz de madeira pintada de branco. Tal como o meu avô previra, a Sra. Shimerd nunca chegara a ver as estradas passarem por cima da cabeça dele. A estrada que vinha do norte curvava ligeiramente nesse lugar a este e a estrada que vinha do oeste desviava-se um pouco para sul; pelo que a campa, com a sua vegetação vermelha alta que nunca era cortada, mais parecia uma pequena ilha; e no lusco-fusco, sob uma Lua Nova ou um céu estrelado, as estradas de terra costumavam parecer pequenos rios cinzentos fluindo ao largo da mesma. Aquele lugar comovia-me e era o meu sítio favorito em toda a região. Encantava-me a superstição obscura, a intenção expiatória que colocara a sepultura nesse lugar; e acima de tudo adorava o espírito que não pudera cumprir a sentença — o erro da definição dos limites dos terrenos, a clemência das brandas estradas de terra ao longo das quais as carroças com destino a casa ribombavam depois do pôr do sol. Estou certo de que nunca um condutor cansado passara pela cruz de madeira sem dizer uma prece por quem ali dorme."

Willa Cather (1918) “Minha Antonia” P.85


agosto 14, 2020

"Berlin", a banda desenhada enquanto literatura

 "Berlin" (2018) trata o surgimento do nazismo na Alemanha dos anos 1920 e parece ter sido criado por forma a espelhar o momento que vivemos de pós-crise financeira 2008 com as consequentes polarizações políticas do tipo BREXIT a chegarem aos EUA, América do Sul e Ásia. Contudo, quando Jason Lutes começou a produzir esta novela gráfica, vivia em Seattle e corria o ano de 1996, vivia-se a primeira grande euforia financeira das Tecnologias de Informação, que viria a ditar o estouro das chamadas dot.com em 2001. Essa primeira onda tecnológica trouxe, desde logo, à tona enormes desigualdades sociais o que acabaria por interessar Lutes em tudo aquilo que tinha acontecido em Berlim:

"I was living in Seattle, where the World Trade Organisation protests had happened, and there was already strong friction between the internet millionaires and the less fortunate. I was relating my experience in the moment to [what was going on in] my imagined Berlin, so I didn’t only think of the subject in a bubble to be looked at from a distance. All the same, I could never have predicted what would eventually come out of all of that.The Guardian, 30.9.2018

Tendo em conta os 20 anos investidos por um criador na produção de uma obra, só muito dificilmente ela poderia ser de todo irrelevante. Quando alguém investe uma parte significativa da sua vida na criação concreta de algo, na prossecução de um sonho com princípio, meio e fim, é importante que paremos e tentemos ouvir, neste caso ler e ver. Se mais nada aqui houvesse, que não é o caso, toda a experiência criativa de anos e anos acumulada e sintetizada numa obra acabada serviria o nosso deslumbre e admiração na tentativa de tentar compreender porquê. Tem de ser algo muito intenso, minimamente relevante, para garantir a atenção de alguém ao longo de tantos anos. Mas se depois essa obra é publicada por uma grande editora e é recebida com rasgados elogios pela crítica, então nada fica a faltar, apenas a nossa própria experiência da mesma.

Começo por dizer que "Berlin" é mais novela do que novela gráfica, no sentido em que usa uma estrutura narrativa muito mais comum na literatura do que na banda desenhada. Falo em concreto do entrelaçamento de vários enredos, com cerca de 40 personagens envolvidas, ligados pelo espaço de uma cidade, mas essencialmente pelos interesses familiares e sociais das personagens. Apesar das 560 páginas, são muitas personagens, e nem sempre é fácil distinguir quem é quem, o que obriga a uma atenção redobrada, também menos comum nas novelas gráficas. Uma das razões para este efeito é a escolha pelo preto-e-branco que torna mais difícil diversificar e estereotipar os personagens para facilitar a compreensão do leitor. Contudo, acredito que o desejo de Lutes era este mesmo, tal como acontece nos romances mais elaborados, de levar o leitor a sentir todos aqueles personagens como amalgama emocional e social que forma a cidade, e não como meras entidades discretas. 

Posso dizer que conhecia minimamente o surgimento de Hitler, mas só agora me dei conta que conhecia muito mais sobre o pós-1933, ano em que foi eleito, sendo esse o ano em que termina esta narrativa. Ou seja, Lutes não se focou na explicação do modo como Hitler conduziu o seu império do mal, mas antes no modo como a cidade de Berlin, a Alemanha, permitiu a chegada de alguém como Hitler ao governo. Nesse sentido, aprende-se muito a ler "Berlin", nomeadamente sobre a interação com a Revolução Russa de 1917, e a tentativa de estabelecer na Alemanha um sistema idêntico. Ou seja, não foi apenas um problema do Crash das Bolsas e da grande Depressão de 1929, a política alemã estava ao rubro e a crise financeira veio apenas dar o empurrão final. Impressionou-me ainda descobrir que Goebbels, o maior arauto de Propaganda de sempre, esteve presente desde o início, e que sem ele Hitler muito dificilmente teria chegado ao poder.

Em termos de experiência, a leitura começa lenta, muito pela densidade mas também por algum desconhecimento nosso do contexto, mas vai ganhando tração e suga-nos para dentro no final. Depois de terminar o livro, ainda dou por mim a regressar àqueles espaços, a ouvir aqueles personagens. Acredito que Lutes poderia ter trabalhado melhor a expressão dramática de alguns personagens que apesar de densos ficam por vezes um pouco distantes. Mas a componente gráfica é excecional, contribuindo imenso para construção do imaginário da cidade e das vidas daquelas pessoas. Claro que ajuda o facto de estarmos a ler uma obra destas em 2020, em plena crise política internacional, e ver tantos paralelos com a realidade que vivemos, como diz Lutes “It’s a horrible kind of good fortune”.

agosto 13, 2020

Seleção natural e felicidade

 “The Social Leap” (2018) é um livro de divulgação científica sobre psicologia evolucionária, escrito por William von Hippel, professor da Universidade de Queensland, Australia, reconhecido especialista da área. Enquanto livro de divulgação serve de introdução à área, trazendo pouco de novo a quem estuda ou segue o domínio. Talvez a parte mais interessante, ou com alguma novidade, introduzida pelo trabalho do próprio Von Hippel, seja o último terço do livro dedicado à discussão da psicologia evolucionária que suporta o sentimento humano de felicidade.

A psicologia evolucionária é uma abordagem teórica ao campo da psicologia que procura identificar e explicar os fenómenos psicológicos — da emoção e cognição — a partir de uma perspetiva darwinista, ou seja, sustentada em processos de seleção natural e sexual. Confesso-me como um profundo seguidor da abordagem pelo modo como tende a oferecer maior suporte científico à teorização em psicologia, seguindo em particular os trabalhos de investigadores como John Bowlby, Paul Ekman, Simon Baron-Cohen, Steven Pinker, Paul Bloom, Michael Tomasello ou Denis Dutton. Contudo, não deixo de ter um olhar crítico perante a abordagem, uma vez que as metodologias de demonstração das teorias são limitadas, não se podendo falar em evidência empírica na maior parte das teorizações. Por outro lado, a triangulação entre biologia, antropologia e psicologia, nomeadamente por via dos recentes desenvolvimentos das neurociências têm vindo a dar suporte a muito do que se debate na área.

Exposto o domínio e os seus problemas, o trabalho aqui apresentado por Von Hippel não está livre destes. Tanto que a maior parte dos meus conflitos com esta leitura se deveram às leituras feitas por Von Hippel a partir dos dados que temos. Ou seja, muito da psicologia evolucionária assenta numa recolha de evidências laterais e construção de uma interpretação das evidências com base na evolução, como tal, é fácil cair em interpretações que podem não ser as mais corretas, desde logo porque reducionistas. Ou seja, tendo um conjunto de dados empíricos sobre uma determinada atividade e reações humanas, a forma como interpreto as mesmas dependo do enquadramento teórico de que parto, e aqui o desconhecimento de determinados quadros teóricos pode ditar leituras menos relevantes.


Alguns Problemas 

Foi isto mesmo que aconteceu no capítulo dedicado à Inovação, intitulado “Homo Innovatio”. O autor usa um conjunto de dados e parte para a leitura que lhe parece mais correcta, mas que do meu ponto de vista é redutora da leitura daquilo que é a inovação humana.

“When innovation researchers ask representative samples of people whether they have modified any products at home or created anything new from scratch (such as tools, toys, sporting equipment, cars, or household equipment), about 5 percent report that they have done so in the last three years.* The percentage of innovators varies a bit by country, but never cracks 10 percent. For such an innovative species, one in ten or twenty seems awfully low. Yet, when I reflect on my own life, I can’t recall ever inventing anything. I have a few inventive friends, but I’d be surprised if 5 percent of them have ever invented anything either, let alone in the last three years.”

Não podemos contabilizar como inovação apenas criação físicas, apesar de ser isso que o regime de Patentes privilegia. Um ser humano que escreve um livro, uma canção ou pinta uma tela está num processo de inovação, não de consumo. O seu modo de abordar o mundo é expressivo, atuando para alterar a realidade que o rodeia, e isso é aquilo que importa do ponto de vista cognitivo. Não aquilo que podemos ou não considerar como patentes.

“Yet, across all these generations of travelers, no one thought to put wheels on suitcases until 1970, and they didn’t catch on until the modern version of a wheeled suitcase with a retractable handle appeared in 1987.* This failure to attach wheels to suitcases was all the more remarkable given that once people lugged their nonwheeled suitcases to the airport, they then paid cold, hard cash to a porter who plunked their nonwheeled suitcases on his cart and easily wheeled a whole family’s worth of baggage the last fifty yards to the ticket counter”

Depois, usa este exemplo das rodas nas malas que é muito fraco, já que não está a falar de inovação, mas de sucesso de uma inovação, que são duas coisas completamente diferentes. Existem registos de colocação de rodas em malas anteriores a 1970, mas estes são os registos que temos. Dos que não temos, devem existir muitos mais, já que é assim que funciona a criatividade e inovação, nada se constrói do zero, num momento divino de inspiração, mas tudo funciona como aglomerado de ideias que se vão elevando até chegar ao produto de sucesso.

Outro ponto fraco do livro é o modo como trabalha o género — os homens gostam de coisas, as mulheres de pessoas, os homens gostam de sistemas, as mulheres de relações. Vindo de alguém que trabalha Psicologia Social, é mau escrever isto em 2018. Mesmo frisando várias vezes que não é o modo correto de ler os géneros, mas que o faz porque dá jeito!!!! Facilita? Não, não facilita, porque se ajuda a passar a sua mensagem, acaba a contribuir para a manutenção dos estereótipos que marcam milhões de pessoas que não se reveem em nada disto.

É profundamente ridículo tentar catalogar gostos, preferências, desejos, sentires por género nos dias de hoje. Repare-se que não estou aqui a defender qualquer leitura feminista, porque desse lado também se cometem muitos destes erros. Quando as feministas qualificam todos os homens com rótulos de mansplaining, manspreading ou manterrupting estão a fazer o mesmo, a catalogar humanos em função de um mero sexo, quando esse sexo nada diz sobre a sua psicologia. Tudo isto acontece por causa de uma simples curva de Bell, na qual podemos identificar que 50%+1 de homens tende a fazer A, ou 50%+1 de mulheres, tende a fazer B. No meio de tudo isto, ficam os 49% de homens e de mulheres que nada têm que ver com a questão, e acaba sendo rotulados de anormais.


O contributo de Von Hippel: Seleção Natural e Felicidade

“this capacity to travel in time mentally and make complex plans for the future has given us an enormous selective advantage. Unfortunately, that advantage comes at a cost, given that the time we spend living in the future distracts us from the present. As a consequence, “people often fail to appreciate the pleasures (or demands) of the moment because they pay so little attention to the here and now.”

“Most meditation practices teach people to live in the moment. This is a laudable goal, but it’s incredibly difficult to achieve because it’s at odds with an evolved skill that has served us so well over the last million-plus years. We have a great deal of difficulty shutting down thoughts of the future unless the demands or pleasures of the moment are so substantial that they drag us back to the here and now. (..) My dogs, in contrast, show no signs of this inner struggle. They live in the moment because they are incapable of casting their minds forward. Every treat I give them is devoured with gusto, regardless of whether it means we just finished dinner or are off to the vet.”

Pergunta: Why Aren’t We Always Happy?

“As hard as it is to believe, lottery winners are usually no happier than they were before they won, and a fair few of them are a lot less happy. Not the day after they win—that’s a pretty good day—but by a year or two later, most people have adapted to their new normal, and their happiness has returned to where it was before they drew the winning ticket."

“The sad truth is that all of us have dreams, but even when our dreams come true, we rarely end up happier than we were before. New successes bring new challenges. The German folk saying Vorfreude ist die schönste Freude (“Anticipated joy is the greatest joy”) is much more accurate than Disney’s “happily ever after.”

 “Why did evolution play this dirty trick on us, giving us dreams of achievements that will provide lifelong happiness but then failing to deliver the emotional goods when we achieve our goals?"

A resposta de Von Hippel

"evolution doesn’t care if we’re happy, so long as we’re reproductively successful. Happiness is a tool that evolution uses to incentivize us to do what is in our genes’ best interest. If we were capable of experiencing lasting happiness, evolution would lose one of its best tools.”

 “Really happy people are rarely high achievers because they simply don’t need to be. As Ted Turner put it, “You’ll hardly ever find a super-achiever anywhere who isn’t motivated at least partially by a sense of insecurity (…) the earnings of the very happy folks on the far right look a lot like those of the unhappy ones. Some joy is clearly good for success in life, but too much happiness is a financial disaster. This is why evolution designed us to be reasonably happy, with occasional moments of giddiness that soon fade as we return to our individual baseline level of happiness. Numerous self-help professionals would have us believe that attaining maximal or permanent happiness should be our goal, but an evolutionary perspective clarifies that such a goal is neither achievable nor desirable.”


Estudos encontrados ao longo do livro

Motherhood and Protection

“Mothers were incapable of detecting which poo came from which baby, but they found the smell of the other babies’ poo more disgusting than that of their own baby. Even though mothers were unable to identify their baby’s poo, at an unconscious level their behavioral immune system pushed them away from the feces with a higher level of unfamiliar pathogens.”

“Experiments such as these point to the exquisite sensitivity of the behavioral immune system, and our evolved capacity to avoid germs that are most likely to make us sick. We see additional evidence for these processes in the geographic distribution of languages, religions, and ethnocentrism. As we move from the poles to the equator, the number of languages and religions per region increases, and people become more xenophobic. These effects may seem to be unrelated, but all three processes serve to keep groups apart. When you don’t speak the same language, when you don’t share a religion, and when you tend to dislike members of other groups, you’re much less likely to intermingle with them.”

Grandmothers and Menopause

“How did evolution create grandmothers? By preventing women from producing more children of their own while they still had plenty of life in them, evolution gave them the opportunity to focus on their grandchildren rather than their children.* This is why human females evolved menopause.”

Dopamine and Status

“With regard to status, research on monkeys demonstrates that when they rise to the top of the status hierarchy, there is an increase in the dopamine (evolution’s pleasure drug) sensitivity in their brains. As a result of this increased dopamine sensitivity, monkeys at the top of the heap no longer enjoy cocaine (a drug that hijacks the dopamine system). When offered cocaine versus salt water, these top monkeys show no preference between them. In contrast, monkeys at the bottom of the status hierarchy have low dopamine sensitivity and become avid coke users. Data such as these confirm the common wisdom that high status makes us happy and low status makes us sad.”

“With regard to money, once people get out of poverty, the relationship between wealth and happiness is not as strong as you might think. Much more important, if all of society rises in wealth at the same time, increases in wealth beyond poverty provide no increase in happiness.”

Real income (controlling for inflation) and life satisfaction in the United States, between 1947 and 2002

“These data suggest that my home cinema, granite countertops, and convertible don’t actually make me any happier unless I have them and you don’t. In other words, I want these things only to put myself above others. Moreover, whether I know it or not, the reason I want to rise to the top of the heap is because that gives me a better chance of getting the partner I really want. The TV, countertops, and car are just trivialities, but because I don’t know this, I spend my time coveting them, working to acquire them, and eventually becoming the disinterested owner of them.”

Risks and Skate

“we hired a beautiful research assistant and headed off to skateboard parks. In the first stage of the experiment, a male researcher approached a skateboarder and asked if he could film him making ten attempts at a trick that he was working on but hadn’t yet mastered. In the second stage of the experiment, the same skateboarder was either approached by the male experimenter or by the attractive female we had hired, who asked to film the same ten tricks. After the skateboarders completed their second round of tricks, we took a saliva sample to measure their testosterone. Just as we expected, testosterone went up in the presence of the female experimenter, and the higher the testosterone levels, the more risks the skateboarders took. As a consequence of their greater risk taking, they crashed more often but they successfully landed more tricks as well.”

“What can we infer about happiness from this conflict between survival and reproduction? The first lesson is that risk taking and other foolish things that young men do are not “pathologies,” signs of their disconnection from the modern world, or other labels often provided by social commentators. Rather, they are evolved strategies that made perfect sense for our ancestors and probably continue to make reproductive sense today.”

“The second lesson is that trying to prevent our sons, brothers, or friends from taking unnecessary risks is a bit like pissing into the wind. Removing the opportunity for young men to engage in competition and risk taking is a bad idea, and likely to lead to unpleasant blowback. Young men feel millions of years of evolutionary pressure, emanating from their testicles, pushing them toward risk and competition. For this reason, the best bet is not to eliminate risk entirely, but to replace truly dangerous risk and conflict with more benign opportunities for thrill seeking and competition. Sports in which you can’t get hurt at all are unlikely to fulfill such goals, but sports in which you won’t get hurt too badly are a great substitute.”

Happiness and Learning

“Our long period of development is consumed almost entirely by learning the means of survival used by our group -- As a consequence, evolution has ensured that learning is tightly linked to our motivational system; humans all over the world love to learn.”

“The motivational importance of curiosity is widely understood, but there are two important forms of learning (and therefore two important sources of life satisfaction) that people often fail to recognize: play and storytelling”

Happiness, Personality, and Development

As I suggest earlier in this chapter, there is more than one way to be a successful human, and hence more than one route to happiness.”

“Pitfalls of a Modern World”

“Universal adoration and fame are some of the most common dreams of people all over the world, but you need only reflect on the turbulent lives and repeated divorces of celebrities to realize how much happier you are being unknown.”


O livro está editado em Portugal. pela Vogais, como "O Salto Social. A nova ciência evolutiva sobre quem somos, de onde vimos e o que nos faz felizes".

agosto 09, 2020

O rídiculo do niilismo de Sabrina

Não me surpreende que “Sabrina” tenha sido nomeado para o Man Booker de 2018 uma vez que o seu tom se aproxima de uma corrente artística muito prezada pelas elites das artes, a mesma que nos anos 1990 colocou o cinema independente americano — Jim Jarmusch, Todd Solondz ou Hal Hartley — no topo das preferências de culto, que tende a reger-se pela mestria do minimalismo. Contudo parece-me existir aqui uma diferença particular face ao movimento indie americano, é que esse movia-se por uma particularidade nuclear, o enredo niilista. Ora “Sabrina” é o seu contrário, sim a narrativa é minimal, ajudado em muito pela forma gráfica desprovida de expressividade, sem respostas a oferecer, mas o foco do enredo é bombástico, tocando num assunto do foro profundamente político. Não temos apenas raptos e assassínios, temos teorias da conspiração, fake news, discurso de ódio, militares, governos, famílias disfuncionais, etc. etc.
Dito isto, o tema considero-o extremamente relevante, porque altamente atual. Contudo o modo como foi trabalhado, a narrativa produzida, considero-a fraca, para não dizer de mau-gosto. A indiferença é um traço interessante do ponto de vista minimal, mas usado em assuntos que requerem da sociedade uma reação totalmente contrária, de alerta e prontidão, parece-me um tiro completamente ao lado. Obviamente que a arte não tem de ser nenhum manual escolar de literacia dos média, contudo era suposto que a arte funcionasse como alerta, e não que contribuísse para o adormecimento da sociedade face a temas desta relevância. No final de “Sabrina” é inevitável sentir a impotência da sociedade para fazer face aos problemas representados, parecendo advogar-se a mera anuência do mundo apenas porque assim parece ter de ser. O problema é que não estamos a falar de questões existenciais individuais, estamos a falar do foro social, das regras que regulam a convivência em sociedade. Deste modo, parece-me que o autor, e quem o segue, se esqueceu que o processo de civilização é por natureza anti-niilista, sem o que simplesmente não existiria.

Por isso não basta mestria técnica, que é visível no controlo e restrição irrepreensíveis operados pelo autor sobre um tema por natureza tão gritante, mas é preciso um pouco mais para criar uma obra de excelência.