O melhor de “Eliza” é sem dúvida o enquadramento da história que conta, centrada nos problemas da Inteligência Artificial e da quebra da privacidade, apresenta um novo ângulo da discussão, o potencial da IA como suporte à saúde mental, partindo da premissa: e se todos pudéssemos ter acesso a sessões de psicoterapia com IA? É um tema que poderíamos ver no mundo de “Black Mirror”, além de bastante atual, não apenas pela recente grande evolução da IA, mas por todos os desenvolvimentos tecnológicos que vêm sendo introduzidos na área da saúde. “Eliza” parte desta aparente atualidade, mas vai além, lança ideias para um futuro próximo e questiona-nos sobre um dos maiores flagelos das sociedades desenvolvidas: a doença mental.
Sendo um jogo interativo, as dúvidas emanadas do uso da tecnologia, a diferença entre humano e tecnologia no suporte aos humanos acaba surgindo como centro das nossas escolhas, do mundo em que acreditamos ou desejamos acreditar. Será uma máquina mais eficaz na leitura dos problemas que assolam as nossas mentes, os nossos Eu? Será a máquina mais objetiva e concreta, capaz de desafiar as nossas constantes dúvidas e incertezas? Poderemos confiar nas propostas de uma máquina imparcial?
“Eliza” apresenta várias propostas inovadoras, desde logo a ideia do Proxy. As consultas de psicoterapia não funcionam apenas numa relação humano-máquina, mas são mediadas por um outro humano que serve apenas de veículo à IA. Neste sentido destaca, desde logo, a necessidade do outro, a necessidade de sentir o conselho emanado por um igual, e não uma mera máquina que não poderá nunca sentir a dor do humano. Um outro ponto imensamente interessante acaba surgindo a partir das lutas empresariais e detém-se sobre a questão do sofrimento e da sua necessidade para a nossa felicidade. Filosoficamente falando, poderemos ser felizes se nunca nos sentirmos infelizes, se deixarmos de sentir a dor?
Enquanto videojogo é ficção interativa suportada por uma boa camada de ilustração gráfica, sem movimento nem animação, ou seja, uma “visual novel” ou história visual interativa. Como tudo se move ao redor da história e dos diálogos, a elevação da experiência assenta no texto e nas nossas decisões, relevando para segundo plano a componente audiovisual. Em termos de narração interativa, podemos dizer que temos um bom trabalho, embora sinta que o seu forte é mesmo o enquadramento da história, ficando as nossas decisões demasiado presas ao mero progresso narrativo.
Interessante foi perceber no final dos créditos que o jogo surgiu como fruto de uma residência artística interdisciplinar de Matthew Seiji Burns em Inglaterra, tendo eu depois percebido que Burns é também o co-criador do belíssimo "The Writer Will Do Something" (2015).
dezembro 20, 2019
A distância de "Marriage Story"
“Marriage Story” (2019) é o último grande vencedor de audiências da Netflix, um filme com duas estrelas que aparenta retratar uma realidade próxima de todos nós. No entanto, a realidade apresentada não tem qualquer relação connosco, apenas é aparentemente próxima pela força da presença dos mundos de Hollywood e da Broadway no imaginário cultural ocidental. Bastaria pensar em quantos casais da classe média poderiam pagar a um advogado mil euros à hora. Claro que o facto de apresentar um casal, aparentemente bem-sucedido, cria aquela imagem do conto de fadas: “afinal também acontece com eles”. O problema é que não é disso que se trata, a história está centrada no mundo pessoal de Noah Baumbach, o realizador de “Marriage Story”, e na sua relação falhada com Jennifer Jason Leigh, reconhecida atriz de Hollywood. Existindo bons momentos, o filme acaba frisando um conjunto de problemas, não apenas pelo privilégio mas também pela diferença de pesos morais.
1 — Se o filme queria oferecer uma representação dos problemas gerais que decorrem do divórcio, tal não é possível a partir da relação oferecida. Para a generalidade da classe média rever-se em duas estrelas, não os atores, mas as suas profissões — um encenador da Broadway e a outra atriz e realizadora de Hollywood — é no mínimo distante. Ainda que os seus universos sejam clichés reconhecíveis, as suas realidades são imensamente distintas, não apenas financeiramente, mas em termos de privilégio e reconhecimento societal. O casal representado não pertence a um nicho, pertence a uma elite bem distinta.
2 — Se o filme queria dar conta do divórcio como algo emanado igualmente do homem e da mulher, falha redondamente, muito provavelmente por ser escrito por Noam e não pela Jennifer. Repare-se como tudo aquilo que o homem fez e faz é justificado, explicado e apresentado como atos inescapáveis ou altruístas. Tudo aquilo que a mulher faz surge do mero capricho individual. O homem é aquele que pensa nos outros, de quem todos dependem, a mulher é a autocentrada que não se preocupa com mais ninguém além do seu Eu.
3 — Todas as diferenças entre o homem e a mulher são intensamente exponenciadas pelo espaço e suas culturas, ou seja, o estrelato de Hollywood e a alta-cultura de NY. Hollywood a terra dos ricos, dos exageros, da superficialidade, da banalidade, do total desprezo pelo outro. Do outro lado, o teatro nova-iorquino, centrado no drama das vivências das pessoas comuns, com poucos meios, trabalhando-se por amor à profissão, em que importa mais o grupo do que o indivíduo.
4 — Para finalizar, se se queria dar conta do divórcio, porquê mais uma vez recuperar a imagem do filho criança, único, puro e angelical. Chegando ao final, a conclusão é que tudo teria sido fácil se ele não existisse. E seria? Se sim, então na verdade não havia uma história para contar.
Claro que existem boas sequências e as performances de Johansson e Driver são excepcionais. Mas se quiserem aceder ao tumulto interior do fim de uma relação aconselho antes, apesar de aparentemente distante por se passar no Irão, o filme "A Separation" (2011) de Asghar Farhadi.
1 — Se o filme queria oferecer uma representação dos problemas gerais que decorrem do divórcio, tal não é possível a partir da relação oferecida. Para a generalidade da classe média rever-se em duas estrelas, não os atores, mas as suas profissões — um encenador da Broadway e a outra atriz e realizadora de Hollywood — é no mínimo distante. Ainda que os seus universos sejam clichés reconhecíveis, as suas realidades são imensamente distintas, não apenas financeiramente, mas em termos de privilégio e reconhecimento societal. O casal representado não pertence a um nicho, pertence a uma elite bem distinta.
2 — Se o filme queria dar conta do divórcio como algo emanado igualmente do homem e da mulher, falha redondamente, muito provavelmente por ser escrito por Noam e não pela Jennifer. Repare-se como tudo aquilo que o homem fez e faz é justificado, explicado e apresentado como atos inescapáveis ou altruístas. Tudo aquilo que a mulher faz surge do mero capricho individual. O homem é aquele que pensa nos outros, de quem todos dependem, a mulher é a autocentrada que não se preocupa com mais ninguém além do seu Eu.
3 — Todas as diferenças entre o homem e a mulher são intensamente exponenciadas pelo espaço e suas culturas, ou seja, o estrelato de Hollywood e a alta-cultura de NY. Hollywood a terra dos ricos, dos exageros, da superficialidade, da banalidade, do total desprezo pelo outro. Do outro lado, o teatro nova-iorquino, centrado no drama das vivências das pessoas comuns, com poucos meios, trabalhando-se por amor à profissão, em que importa mais o grupo do que o indivíduo.
4 — Para finalizar, se se queria dar conta do divórcio, porquê mais uma vez recuperar a imagem do filho criança, único, puro e angelical. Chegando ao final, a conclusão é que tudo teria sido fácil se ele não existisse. E seria? Se sim, então na verdade não havia uma história para contar.
Claro que existem boas sequências e as performances de Johansson e Driver são excepcionais. Mas se quiserem aceder ao tumulto interior do fim de uma relação aconselho antes, apesar de aparentemente distante por se passar no Irão, o filme "A Separation" (2011) de Asghar Farhadi.
dezembro 19, 2019
Hollywood sendo Hollywood
Tinha bastante interesse em ver estes dois filmes, ambos com boas equipas, ambos com excelentes receções da crítica e do público e no entanto ambos grandes desilusões. Tarantino não me surpreendeu, já passaram 10 anos sobre o seu último bom filme. No caso de "Ad Astra" apanhou-me um pouco de surpresa, porque tinha lido e sentido tratar-se de uma obra mais cerebral, quando afinal, tudo não passava de mais um "Space Cowboys".
Hollywood bem tenta dar ares de ter algo para dizer, mas não consegue deixar de ser Hollywood. "Ad Astra" é o caso mais recente e perfeito disto mesmo. Existe ali uma jornada conradiana? Podemos dizer que sim, mas isso nunca chegaria para satisfazer a gula dos seus produtores. Era preciso espetáculo, era preciso tensão, nem que tudo isso parecesse mero caramelo jogado na superfície. Porquê uma relação pai-filho numa situação que envolve toda a espécie humana, o seu passado e futuro, não se consegue mesmo sair do básico em Hollywood. Do mesmo modo, porquê a introdução da cena dos macacos assassinos ou dos piratas da lua? Para assanhar, contrastar e produzir tensão na plateia? Reparem como toda a estrutura e clichês narrativos se cola a tantos outros blockbusters, sendo um dos mais diretos "The Day After Tomorrow" (2004). O melhor que li entretanto sobre o filme foi mesmo o texto de Kermode no Guardian.
Já Tarantino nunca tentou dizer nada propriamente com grande alcance, por isso não esperava nada de muito particular do seu mais recente filme. Contudo, fazer um filme sobre Hollywood em que aquilo que nos dá a ver são as vidas banais de estrelas decadentes, colando sobre isso, à força, os subtextos das tragédias de Bruce Lee e Roman Polansky, não é apenas de mau gosto, é mesmo de falta de ideias, refletindo no fundo o legado Tarantino. Ser um grande escritor de diálogos não chega para contar grandes histórias, ou pelo menos para ter ideias ou chegar a premissas relevantes. E o pior é que até no campo da composição visual onde Tarantino se foi destacando existe pouco lugar para ideias originais (ver vídeo abaixo). No fundo, Tarantino é apenas um expoente do espetáculo que define a cultura de Hollywood. Aumentem a tensão, baralhem e voltem a dar mais do mesmo e o público sentir-se-á entretido.
"Ad Astra" (2019) e "Once Upon a Time in Hollywood" (2019)
Hollywood bem tenta dar ares de ter algo para dizer, mas não consegue deixar de ser Hollywood. "Ad Astra" é o caso mais recente e perfeito disto mesmo. Existe ali uma jornada conradiana? Podemos dizer que sim, mas isso nunca chegaria para satisfazer a gula dos seus produtores. Era preciso espetáculo, era preciso tensão, nem que tudo isso parecesse mero caramelo jogado na superfície. Porquê uma relação pai-filho numa situação que envolve toda a espécie humana, o seu passado e futuro, não se consegue mesmo sair do básico em Hollywood. Do mesmo modo, porquê a introdução da cena dos macacos assassinos ou dos piratas da lua? Para assanhar, contrastar e produzir tensão na plateia? Reparem como toda a estrutura e clichês narrativos se cola a tantos outros blockbusters, sendo um dos mais diretos "The Day After Tomorrow" (2004). O melhor que li entretanto sobre o filme foi mesmo o texto de Kermode no Guardian.
Já Tarantino nunca tentou dizer nada propriamente com grande alcance, por isso não esperava nada de muito particular do seu mais recente filme. Contudo, fazer um filme sobre Hollywood em que aquilo que nos dá a ver são as vidas banais de estrelas decadentes, colando sobre isso, à força, os subtextos das tragédias de Bruce Lee e Roman Polansky, não é apenas de mau gosto, é mesmo de falta de ideias, refletindo no fundo o legado Tarantino. Ser um grande escritor de diálogos não chega para contar grandes histórias, ou pelo menos para ter ideias ou chegar a premissas relevantes. E o pior é que até no campo da composição visual onde Tarantino se foi destacando existe pouco lugar para ideias originais (ver vídeo abaixo). No fundo, Tarantino é apenas um expoente do espetáculo que define a cultura de Hollywood. Aumentem a tensão, baralhem e voltem a dar mais do mesmo e o público sentir-se-á entretido.
"How Quentin Tarantino Steals From Other Movies" (2019)
dezembro 18, 2019
"Época de Migração para Norte" (1966)
O maior impacto da leitura desta obra é a lucidez do autor, a luz imaculada que joga sobre diferentes eventos e conceitos para criar acesso a um mundo destilado, perfeitamente transparente. Temos o choque entre civilizações — letrada e iletrada — entre continentes — África e Europa —, mas aquilo que conduz a escrita de Tayeb Salih não são as diferenças, antes as semelhanças entre humanos, pertençam estes ao lugar que pertencerem, tenham eles evoluído e civilizado-se, nunca deixam de ser humanos, presos a padrões culturais e costumes.
A escrita é belíssima.
"Sim, há camponeses, assim como há de tudo o resto», respondi eu. «Há, entre eles, operários, médicos, camponeses, professores — precisamente como nós.» E preferi não mencionar o que me ocorreu, nesse momento: precisamente como nós, nascem e morrem, transportando consigo sonhos, do berço à sepultura. E, destes, alguns são os que se realizam, gorando-se outros. Temem o desconhecido, buscam o amor e procuram a serenidade junto da mulher e dos filhos. Alguns são fortes, outros são miseráveis; a vida concedeu a alguns mais do que mereciam, consignando outros à privação. No entanto, as diferenças dissiparam-se e a maioria dos fracos deixou de sê-lo." (p.15)É um livro apenas possível graças ao percurso de vida de Salih que teve oportunidade de sair do Sudão para estudar e trabalhar em Inglaterra e França, numa época de pós-colonialismo que o obrigaria a refletir sobre os contrastes entre o seu país de origem e os países colonizadores. Contudo Salih não se deixa seduzir pelos contrastes, o que seria o mais evidente e expectável, no fundo simples, acaba por se deter no aprofundamento das proximidades e semelhanças, sem esquecer as distâncias, o que acaba a garantir a enorme riqueza do seu texto. Ou seja, não se trata de um mero texto que aponta o dedo aos europeus ou aos africanos, antes coloca em choque de um lado e do outro as incoerências e fá-lo de um modo tão direto e límpido, como se nos permitisse ver a realidade pelos olhos de alguém completamente externo e sem partido. Como se Salih nos conduzisse através da representação do humano, nas suas diferentes fações, mostrando o bom e o mau, não como bom e mau, mas como essência do que é ser-se humano em cada lugar.
A escrita é belíssima.
dezembro 16, 2019
"Neo Cab" (2019)
"Neo Cab" é o jogo narrativo de 2019. O tema assenta num cyberpunk não muito distante, quase relacionável com os dias de hoje, no que toca a uso de redes sociais, Uber e IA, o que acaba por funcionar muito bem em termos de dramatização das ansiedades sociais atuais: o desemprego pela automatização, as diferenças humano-máquina, a vigilância e a perda de privacidade, o isolamento e o distanciamento da natureza. Em termos formais, temos uma narrativa multilinear com múltiplas escolhas, mais centradas no diálogo, mas com implicações no desenrolar dos eventos. O melhor de tudo acaba sendo a escrita, ou seja, a capacidade de introduzir os temas complexos no meio das discussões e de nos fazer pensar sobre eles.
O jogo usa jogabilidade da gestão de corridas de táxi/uber para nos envolver no universo. Temos várias noites de trabalho, estamos numa cidade nova, e temos de fazer 3 circuitos diários, cuidando das estrelas que nos atribuem, recarregar a energia do carro escolhendo os locais mais em conta, assim como arranjar hotel todas as noites para descansar. No meio de tudo isto a narrativa desenrola-se pela conversação que encetamos com todos aqueles que vamos apanhando na cidade. A progressão, tanto no jogo como na narrativa, está imensamente cuidada, garantido grandes níveis de engajamento. Não raras as noites, queremos continuar, porque queremos saber mais, queremos ajudar, queremos descobrir, queremos avançar.
A imersão é ainda conseguida pela interface muito assente em grandes planos das faces, mesmo que estas nem sempre se concertem com o que está a ser dito, aproximam-se. Mas garantem uma proximidade com alguém ali na nossa frente, sem que, contudo, isso tenha implicado um grande investimento da equipa, em termos de recursos gráficos e de produção (é um jogo indie, e custa menos de 20 euros). Sem dúvida que o que leva o jogo às costas é a história e a sua escrita, tanto a componente linear, como as nossas escolhas.
No campo das escolhas, o mais importante de uma narrativa interativa, houve o cuidado de trabalhar as mesmas em duas frentes — racional e emocional. Não podemos sempre escolher o que queremos, existem condicionantes emocionais que por vezes nos impedem de reagir. Podemos de algum modo sentir a nossa liberdade recortada, por outro lado, é desta forma que conseguem garantir personalidade à Lina, a nossa condutora Uber. Ela não é uma mera extensão de nós, tem vontade própria, tem ansiedades e desejos, e nós enquanto jogamos não estamos meramente a controlar um universo interativo por meio dela, mas estamos a aprender sobre ela e com ela. No fundo, é assim que os autores conseguem gerar empatia entre nós e a Lina, e ao mesmo tempo produzir a enorme sensação de engajamento que sentimos com o jogo. Estamos, na esfera narrativa, mais do que um jogo, isto é uma história, e o que “Neo Cab” faz é construir um acesso privilegiado que o recetor usa não apenas para sorver a história, mas por meio dela experienciar uma realidade distinta da sua, o que é conseguido através da reflexão e consequente tomada de decisões dentro do mundo-história.
dezembro 07, 2019
A criatividade fruto das ciências e humanidades
Edward O. Wilson é um célebre biólogo americano com uma extensíssima carreira. Académico em Harvarde de 1956 a 1996, continua ainda hoje a desenvolver trabalho, estudos e a escrever livros, depois de ter feito 90 anos em junho deste ano. Apesar da sua área ser as ciências naturais, Wilson é reconhecido pela sua enorme multidisciplinaridade, tendo defendido métodos para aproximar e conduzir à convergência, as ciências e humanidades, no seu livro “Consilience: The Unity of Knowledge” (1998). Este “The Origins of Creativity” (2017) é apenas um dos 16 livros que Wilson escreveu já neste século, depois de se ter reformado de Harvard.
Contextualizado o autor, perceber-se-á melhor a razão do interesse deste livro e simultaneamente a decepção. “The Origins of Creativity” não é, nem de perto, um livro sobre criatividade. É mais a soma de um conjunto de textos soltos, arrolados por interesses próximos e publicados no formato de livro. Deste modo, ao longo do livro encontramos ideias de grande relevância e impacto, contudo por não existir um trabalho cuidado de edição das ideias, estas acabam por nunca ser devidamente aprofundadas, e nalguns casos, algumas das questões levantadas nunca chegam sequer a ser respondidas. Por outro lado, o livro apresenta uma linguagem bastante acessível e Wilson é inexcedível em fornecer exemplos das mais variadas áreas, demonstrando a sua enorme erudição.
O foco do livro está todo na evolução do Homo Sapiens, dirigido à questão que já tinha tentado responder em "Consilience": como é que podemos juntar as ciências e humanidades? Para Wilson é evidente que não existe criatividade sem ambos os lados, contudo os perfis mais criativos tendem a conviver melhor com a mescla e fusão de ambos os lados, o que não acontece quando se está demasiado colado a um dos perfis apenas. Wilson diz ter uma proposta para juntar esses lados ou perfis, mas nunca chega a concretizá-la. Existem partes no livro em que parece aproximar-se da proposta de Denis Dutton, de juntar as neurociências e psicologias cognitiva e social nos seus contornos evolucionistas ao interpretativismo das humanidades, algo com que concordo plenamente. Noutras partes, questiona a “obsessão” das humanidades pelo humano (!) frisando que estas deveriam ir além, tal como usar as tecnologias para ver o mundo a partir de outras perspetivas, como por exemplo as capacidades sensoriais de outras espécies (ex. navegação sonora dos morcegos). Wilson chega mesmo a evocar a Realidade Virtual para ajudar nesta senda, mas depois não concretiza, e a proposta é, para quem trabalha no domínio da RV, fruto de mero deslumbramento tecnológico. No último capítulo, “O Terceiro Iluminismo”, Wilson volta a perder-se, lançando supostas grandes questões filosóficas da união entre a ciência e humanidade, que não vão além das mesmas já colocadas por todos aqueles que antes ousaram questionar-se a si mesmos.
No meio de todos estes problemas, surge a superficialidade por meio muitos buracos e pontas soltas, existem contudo vários traços da genialidade de Wilson que aproveito para aqui registar e divulgar. Deixo os excertos em inglês, porque não tenho a versão digital do livro português:
A narração como instantâneo (p.50)
“Postmodern narrations and for that matter all fiction worth its mettle, does what science cannot: it provides an exact snapshot of a segment of culture in a particular place and time. The productions are like photographs that preserve for all time not just the people as they actually seemed, looked, or even truly were, including their dress and posture and facial expressions, but also the surroundings most important to them—their homes, their pets, their transportation, their trails and streets."
(..)
“Fine novels and antique photographs are pixels of history. Put together, they create an image of existence as people actually lived it, day by day, hour by hour, and in the case of literature, the emotions they felt. Finally, they trace some of the seemingly endless consequences that followed. ”
O poder da ciência e a míngua nas humanidades (p.81)
“Our most celebrated heroes are not poets or scientists; few Americans can name even a dozen of either living among us. Our heroes instead are billionaires, start-up innovators, nationally ranked entertainers, and champion athletes.”
(..)
“Science and technology have been supported massively by taxes from the American people for what is generally considered the public good. (..) The humanities, in contrast, are supported primarily by educational institutions (..) In the competition between science and the humanities for funds provided by the American people, the humanities rank consistently lower than science.”
(..)
“Americans are often reminded that research and development in basic science are good for the nation. That is obviously true. But it is equally true for the humanities, all across their domain from philosophy and jurisprudence to literature and history. They preserve our values. They turn us into patriots and not just cooperating citizens. They make clear why we abide by law built upon moral precepts and do not depend on inspired leadership by autocratic rulers. They remind us that in ancient times science itself was a dependent child of the humanities. It was called “natural philosophy.”
Why then are the humanities kept on starvation rations?
Partly because so much of our available resources are appropriated by organized religions.”
A importância das humanidades (p.177)
“The critic Helen Vendler broadens the key question as well as can be phrased: «If there did not exist, floating over us, all the symbolic representations that art and music, religion, philosophy, and history, have invented, and afterward all the interpretations and explanations of them that scholarly activity have passed on, what sort of people would we be?»
Neither the question nor the answer is rhetorical. ”
Contextualizado o autor, perceber-se-á melhor a razão do interesse deste livro e simultaneamente a decepção. “The Origins of Creativity” não é, nem de perto, um livro sobre criatividade. É mais a soma de um conjunto de textos soltos, arrolados por interesses próximos e publicados no formato de livro. Deste modo, ao longo do livro encontramos ideias de grande relevância e impacto, contudo por não existir um trabalho cuidado de edição das ideias, estas acabam por nunca ser devidamente aprofundadas, e nalguns casos, algumas das questões levantadas nunca chegam sequer a ser respondidas. Por outro lado, o livro apresenta uma linguagem bastante acessível e Wilson é inexcedível em fornecer exemplos das mais variadas áreas, demonstrando a sua enorme erudição.
O foco do livro está todo na evolução do Homo Sapiens, dirigido à questão que já tinha tentado responder em "Consilience": como é que podemos juntar as ciências e humanidades? Para Wilson é evidente que não existe criatividade sem ambos os lados, contudo os perfis mais criativos tendem a conviver melhor com a mescla e fusão de ambos os lados, o que não acontece quando se está demasiado colado a um dos perfis apenas. Wilson diz ter uma proposta para juntar esses lados ou perfis, mas nunca chega a concretizá-la. Existem partes no livro em que parece aproximar-se da proposta de Denis Dutton, de juntar as neurociências e psicologias cognitiva e social nos seus contornos evolucionistas ao interpretativismo das humanidades, algo com que concordo plenamente. Noutras partes, questiona a “obsessão” das humanidades pelo humano (!) frisando que estas deveriam ir além, tal como usar as tecnologias para ver o mundo a partir de outras perspetivas, como por exemplo as capacidades sensoriais de outras espécies (ex. navegação sonora dos morcegos). Wilson chega mesmo a evocar a Realidade Virtual para ajudar nesta senda, mas depois não concretiza, e a proposta é, para quem trabalha no domínio da RV, fruto de mero deslumbramento tecnológico. No último capítulo, “O Terceiro Iluminismo”, Wilson volta a perder-se, lançando supostas grandes questões filosóficas da união entre a ciência e humanidade, que não vão além das mesmas já colocadas por todos aqueles que antes ousaram questionar-se a si mesmos.
No meio de todos estes problemas, surge a superficialidade por meio muitos buracos e pontas soltas, existem contudo vários traços da genialidade de Wilson que aproveito para aqui registar e divulgar. Deixo os excertos em inglês, porque não tenho a versão digital do livro português:
A narração como instantâneo (p.50)
“Postmodern narrations and for that matter all fiction worth its mettle, does what science cannot: it provides an exact snapshot of a segment of culture in a particular place and time. The productions are like photographs that preserve for all time not just the people as they actually seemed, looked, or even truly were, including their dress and posture and facial expressions, but also the surroundings most important to them—their homes, their pets, their transportation, their trails and streets."
(..)
“Fine novels and antique photographs are pixels of history. Put together, they create an image of existence as people actually lived it, day by day, hour by hour, and in the case of literature, the emotions they felt. Finally, they trace some of the seemingly endless consequences that followed. ”
O poder da ciência e a míngua nas humanidades (p.81)
“Our most celebrated heroes are not poets or scientists; few Americans can name even a dozen of either living among us. Our heroes instead are billionaires, start-up innovators, nationally ranked entertainers, and champion athletes.”
(..)
“Science and technology have been supported massively by taxes from the American people for what is generally considered the public good. (..) The humanities, in contrast, are supported primarily by educational institutions (..) In the competition between science and the humanities for funds provided by the American people, the humanities rank consistently lower than science.”
(..)
“Americans are often reminded that research and development in basic science are good for the nation. That is obviously true. But it is equally true for the humanities, all across their domain from philosophy and jurisprudence to literature and history. They preserve our values. They turn us into patriots and not just cooperating citizens. They make clear why we abide by law built upon moral precepts and do not depend on inspired leadership by autocratic rulers. They remind us that in ancient times science itself was a dependent child of the humanities. It was called “natural philosophy.”
Why then are the humanities kept on starvation rations?
Partly because so much of our available resources are appropriated by organized religions.”
A importância das humanidades (p.177)
“The critic Helen Vendler broadens the key question as well as can be phrased: «If there did not exist, floating over us, all the symbolic representations that art and music, religion, philosophy, and history, have invented, and afterward all the interpretations and explanations of them that scholarly activity have passed on, what sort of people would we be?»
Neither the question nor the answer is rhetorical. ”
dezembro 04, 2019
Entrevista com Neil Druckmann (The Art of Video Game Storytelling)
Mais um vídeo sobre o desenvolvimento de "The Last of Us" (2013) focado na narrativa, contando com uma excelente entrevista com Neil Druckmann, o co-diretor e principal responsável pelo argumento. Em pouco mais de 20 minutos Druckmann explica algumas das semelhanças entre a escrita para cinema e videojogos, destacando modos de representação, exposição e construção de arcos narrativos de personagens. Algumas coisas são já bem conhecidas, outras como a construção do argumento e o modo como ele é usado na encenação do jogo estão excelentes. Claro que ao longo da entrevista Druckmann vai sempre revelando pequenos detalhes sobre o design da narrativa que não só deliciam quem quer que tenha jogado, como dão conta do modo como tudo o que está no jogo foi pensado ao ínfimo detalhe.
"The Last of Us" continua sendo um dos melhores jogos de sempre do meio, apesar dos 6 anos passados, continua perfeitamente jogável e tão poderoso, em termos expressivos, como quando saiu.
"The Last of Us" continua sendo um dos melhores jogos de sempre do meio, apesar dos 6 anos passados, continua perfeitamente jogável e tão poderoso, em termos expressivos, como quando saiu.
O peso da existência
É um livro estranho. Não por ser exótico ou extemporâneo, mas por trabalhar um tema doloroso — a deficiência congénita — de forma muito direta, a partir de um olhar vulgar, que faz com que a leitura se torne numa experiência estranha, misto de dor, espanto e surpresa. Em parte, deve à abordagem pela comédia negra que nos oferece todo um universo em constante transição entre realidade e fantasia. O relato é depois agravado por uma escrita desconsertada que não percebo se por razão da tradução ou originária do texto base japonês. “Uma Questão Pessoal” foi publicado por Kenzaburo Oe em 1964, exatamente 30 anos antes de receber o Nobel.
O protagonista, Bird de quase 30 anos, descobre que o seu filho, acabado de nascer, apresenta uma hérnia cerebral, o que representa baixas expectativas de sobrevivência sem uma operação que pode ditar o resto da vida num estado vegetal. A reação é visceral, mas colada às banalidades da vida quotidiana. Bird não se fecha na introspeção para puxar do seu existencialismo, não produz qualquer grito mudo ou pensa em qualquer haraquíri, antes desata em busca de interação com a realidade, repescando antigos colegas, não para deles sorver ânimo, mas para poder por meio da interação com eles fugir do problema.
O texto que ao terminar-se deixa um trago agridoce, pode, se assim o desejarmos, levar-nos a questionar os fundamentos da moral civilizacional. Se por um lado compreendemos a reação negativa do protagonista ao que o espera, não deixa de nos impactar a sua recusa do seu próprio filho, algo que Oe não deixa por mão alheia já que oferece todo um contorno algo negativo do protagonista. Temos muito álcool e sexo à mistura com muita indolência e displicência. Não que Oe pinte um diabo, a linha é mantida sempre coerente, com a honestidade e frontalidade do protagonista a garantir elevação, e por isso mesmo provocando em certos momentos alguma admiração. Li algures, sobre uma potencial proximidade entre este Bird de Oe e Meursault de Camus que aceito, embora e à distância sinta Meursault como alguém mais coerente e elaborado, talvez por neste caso termos uma abordagem cómica que nos impede de compreender o alcance concreto dos pensamentos do personagem, se são sentidos ou meramente sarcásticos.
O protagonista, Bird de quase 30 anos, descobre que o seu filho, acabado de nascer, apresenta uma hérnia cerebral, o que representa baixas expectativas de sobrevivência sem uma operação que pode ditar o resto da vida num estado vegetal. A reação é visceral, mas colada às banalidades da vida quotidiana. Bird não se fecha na introspeção para puxar do seu existencialismo, não produz qualquer grito mudo ou pensa em qualquer haraquíri, antes desata em busca de interação com a realidade, repescando antigos colegas, não para deles sorver ânimo, mas para poder por meio da interação com eles fugir do problema.
O texto que ao terminar-se deixa um trago agridoce, pode, se assim o desejarmos, levar-nos a questionar os fundamentos da moral civilizacional. Se por um lado compreendemos a reação negativa do protagonista ao que o espera, não deixa de nos impactar a sua recusa do seu próprio filho, algo que Oe não deixa por mão alheia já que oferece todo um contorno algo negativo do protagonista. Temos muito álcool e sexo à mistura com muita indolência e displicência. Não que Oe pinte um diabo, a linha é mantida sempre coerente, com a honestidade e frontalidade do protagonista a garantir elevação, e por isso mesmo provocando em certos momentos alguma admiração. Li algures, sobre uma potencial proximidade entre este Bird de Oe e Meursault de Camus que aceito, embora e à distância sinta Meursault como alguém mais coerente e elaborado, talvez por neste caso termos uma abordagem cómica que nos impede de compreender o alcance concreto dos pensamentos do personagem, se são sentidos ou meramente sarcásticos.
Nota: A edição lida foi publicada na coleção da revista Sábado, mas existe em Portugal outra edição, pela Livros do Brasil, com outro título: "Não matem o bebé".
novembro 30, 2019
O ridículo da casta britânica
O caso raro da série de televisão que além de conseguir ser melhor que o filme é também melhor do que o livro. “Brideshead Revisited” (1945) tornou-se uma referência clássica e popular da literatura com a série homónima criada pela BBC em 1981, a mesma que nos deu a conhecer Jeremy Irons. A série recorre ao cenário apresentado no livro, mas injeta nele a vida e o mundo que faltava. Os cenários bucólicos e a música de sentimento intensamente nostálgico de Geoffrey Burgon criam um mundo idílico, que de certa forma Waugh parece querer apresentar no livro, mas sem sucesso. Pode-se dizer que o texto no inglês original é bastante mais poético do que a tradução portuguesa, e que a forma serviria esse ideal, mas se senti que Italo Svevo não era Proust, Waugh está ainda mais distante desse virtuosismo para nos poder oferecer esse mundo meramente pela forma.
Quando entramos na história, no livro, os personagens surgem todos como patéticos, sem sequer cómicos chegarem a ser. São de um vazio ostracizante, desde o narrador supostamente distinto da família aristocrática que tanto admira, a todos os personagens dessa família que vivem no mundo das nuvens, sem qualquer sentido de responsabilidade, tendo como único orientador social a religião, ainda que de forma completamente ligeira. A série acaba por resolver muito melhor a questão porque a dupla protagonista, Charles e Sebastian, sendo representada por Jeremy Irons e Anthony Andrews, ganha uma densidade bastante impressiva. Irons segue a estrutura do personagem criado por Waugh mas impregna-o de forma, linguagem corporal, que nos permite aproximar do mesmo, compreende-lo, aceitá-lo e até com ele empatizar, enquanto no livro os personagens nunca vão além de caricaturas, de vazios pomposos, absolutos de arrogância.
Quase todas as resenhas falam da questão religiosa como cerne evocativo da profundidade do romance, talvez porque a religião seja a única parte em que se sente o escritor a ser verdadeiramente jocoso. Ainda assim, é um tema que surge menos de meia-dúzia de vezes, e sempre com pouca ou nenhuma profundidade. Acredito que existe quem queira ali ver muito mais, mas parece-me estarmos no reino da mera ultra-interpretação. Aliás, quando terminei o livro as únicas palavras que me vieram à cabeça foi: superficialidade da profundidade.
Do mesmo modo o tema da homossexualidade me parece mais uma enfatização interpretativa de algo que não está no texto. Aqueles personagens vivem numa realidade distante dos problemas dos comuns mortais, olhar para as suas superficialidades e veleidades como traços de homossexualidade serve apenas para menosprezar essa homossexualidade. Quantos de nós tivemos amigos homens a sério na faculdade, com quem partilharíamos este mundo e o outro, sem que isso apresentasse o menor traço de sexualidade. Tal como a religião, vejo aqui identificações forçadas por parte dos recetores. Isto acontece, simplesmente porque os personagens, as suas intenções e fundações, são apresentados de forma minimal, deixando muito espaço à imaginação do leitor. Por outro lado, a série sim enfatiza essa proximidade, com trejeitos e abordagens corporais que obrigam a essas leituras.
Claro que fico a questionar-me o quanto tudo neste livro nada me diz por retratar uma realidade tão distante e tão pouco apreciada. Os protagonistas frequentam Oxford, não porque querem aprender, mas apenas porque frequentar um colégio como Eton faz parte do seu status, é o lugar para onde a elite inglesa vai. Isso diga-se não mudou desde que o livro foi escrito, o atual primeiro-ministro de Inglaterra é um ex-aluno do Eton, como foram 20 anteriores primeiro-ministros e isso diz muito do tipo de mentalidade e mundo que estamos aqui a falar. O Der Spiegel, a propósito de Boris Johnson, fez todo um artigo definindo o tipo de pessoas — "pseudo-adultos" — que saem desta escola, que produz "um sistema no qual a elite permanece entre si e deixa de ver os problemas dos outros", criando pessoas que "valorizam mais o poder do que a compaixão" diz o The Guardian.
Quando entramos na história, no livro, os personagens surgem todos como patéticos, sem sequer cómicos chegarem a ser. São de um vazio ostracizante, desde o narrador supostamente distinto da família aristocrática que tanto admira, a todos os personagens dessa família que vivem no mundo das nuvens, sem qualquer sentido de responsabilidade, tendo como único orientador social a religião, ainda que de forma completamente ligeira. A série acaba por resolver muito melhor a questão porque a dupla protagonista, Charles e Sebastian, sendo representada por Jeremy Irons e Anthony Andrews, ganha uma densidade bastante impressiva. Irons segue a estrutura do personagem criado por Waugh mas impregna-o de forma, linguagem corporal, que nos permite aproximar do mesmo, compreende-lo, aceitá-lo e até com ele empatizar, enquanto no livro os personagens nunca vão além de caricaturas, de vazios pomposos, absolutos de arrogância.
Jeremy Irons e Anthony Andrews como Charles e Sebastian na série homónima da BBC, 1981
Do mesmo modo o tema da homossexualidade me parece mais uma enfatização interpretativa de algo que não está no texto. Aqueles personagens vivem numa realidade distante dos problemas dos comuns mortais, olhar para as suas superficialidades e veleidades como traços de homossexualidade serve apenas para menosprezar essa homossexualidade. Quantos de nós tivemos amigos homens a sério na faculdade, com quem partilharíamos este mundo e o outro, sem que isso apresentasse o menor traço de sexualidade. Tal como a religião, vejo aqui identificações forçadas por parte dos recetores. Isto acontece, simplesmente porque os personagens, as suas intenções e fundações, são apresentados de forma minimal, deixando muito espaço à imaginação do leitor. Por outro lado, a série sim enfatiza essa proximidade, com trejeitos e abordagens corporais que obrigam a essas leituras.
Na imagem a "casa" em que vivia a família protagonista, tal como representada na série, com a música encantatória de Geoffrey Burgon
Claro que fico a questionar-me o quanto tudo neste livro nada me diz por retratar uma realidade tão distante e tão pouco apreciada. Os protagonistas frequentam Oxford, não porque querem aprender, mas apenas porque frequentar um colégio como Eton faz parte do seu status, é o lugar para onde a elite inglesa vai. Isso diga-se não mudou desde que o livro foi escrito, o atual primeiro-ministro de Inglaterra é um ex-aluno do Eton, como foram 20 anteriores primeiro-ministros e isso diz muito do tipo de mentalidade e mundo que estamos aqui a falar. O Der Spiegel, a propósito de Boris Johnson, fez todo um artigo definindo o tipo de pessoas — "pseudo-adultos" — que saem desta escola, que produz "um sistema no qual a elite permanece entre si e deixa de ver os problemas dos outros", criando pessoas que "valorizam mais o poder do que a compaixão" diz o The Guardian.
Subscrever:
Mensagens (Atom)