Não posso dizer que desgostei —do livro "The Creative Spark: How Imagination Made Humans Exceptional" (2017) — mas no final senti que nada acrescentou, que tudo não passou de um mero relembrar com um redirecionar interpretativo da História. Fuentes faz um levantamento do evolução humana, e apresenta a Criatividade como o elo que tudo fez girar, sem o qual nunca teríamos chegado à espécie dominante que hoje somos. Como premissa é interessante, o problema é que todo o levantamento feito centra-se apenas no elencar dos eventos ocorridos, sem qualquer relação direta ou particular com a criatividade, ou melhor com todo o manancial de teorias e história sobre a Criatividade. No fundo Fuentes limita-se a apresentar a evolução das capacidades cognitivas como fruto dessa suposta criatividade, tendo eu de lhe dar razão, não é algo propriamente novo, podendo ser se este tivesse apresentado variáveis, factores ou qualificativos próprios dessa tal criatividade ao longo da evolução, distintos das meras componentes de inteligência.
Julgo que o maior problema do livro assenta na quantidade de tempo investida a contar histórias sobre a evolução que estamos todos cansados de ler, e eu nem sequer sou especialista em evolucionismo. De certo modo, sofre do problema dos livros académicos que precisam de apresentar todo o lastro de onde partem, tecendo considerações, mas regendo-se especialmente por apresentar e descrever, o que para um livro de divulgação não funciona. Como se não bastasse, a concretização do livro acaba sendo parca, o recontar da evolução do ponto de vista da criatividade pouco ou nada acrescenta ao que hoje sabemos sobre a Criatividade, tendo-se perdido uma premissa que parecia ter bastante para dar.
outubro 13, 2019
outubro 12, 2019
Como Ler um Livro
How to Read a Book: The Classic Guide to Intelligent Reading é um livro de 1940, pertence a um mundo no qual não existia internet e em que a partilha deste tipo de informação funcionava melhor no formato de livro. O conteúdo do livro acaba tratando muito daquilo que ensinamos aos nossos alunos de mestrado e doutoramento, algo que hoje fazemos melhor por via de aulas e artigos curtos. Ou seja, ensina a ler profissionalmente e não por prazer, deste modo a generalidade do que aqui é dito destina-se à leitura de não-ficção, e apenas a Literatura no caso de quem a trabalha de modo analítico, e não por mero prazer. Assim, resenho aqui o livro no sentido de divulgar e servir aqueles que usam os livros e seus conteúdos com caráter académico e/ou profissional.
Mortimer Adler foi um professor universitário de filosofia e passou grande parte da sua vida a discutir a relevância do ensino e educação na formação da sociedade, por isso não admira este trabalho didático, no ensino do manejamento do livro, já que ele contribui para a elevação da literacia das comunidades, ao mesmo tempo que baixa algumas barreiras que alguns jovens encontram quando entram nos corredores da Academia. A ideia de que para se fazer uma tese é necessário ler de fio a pavio 200, 300 ou mais livros, no espaço de um a dois anos, assusta qualquer um e pode antecipadamente criar resistências internas que tarde ou cedo predisporão à desistência. Por isso, este livro continua sendo relevante, não que seja obrigatório. Não faltam na internet dezenas e dezenas de artigos explicando muito do que Adler aqui explica, de forma sintetizada, diagramática e bastante mais direta. Ainda assim a proposta é bem estruturada, e para quem sinta a perplexidade com as necessárias leituras, pode ser um excelente ponto de partida. Com o bónus de ir além, já que no caso em que os livros são fundamentais e se sugere seguir para uma leitura aprofundada — analítica e sinóptica —, Adler propõe um conjunto de ferramentas de análise que se podem tornar muito relevantes para quem trabalha a produção de conhecimento escrito.
O método de Adler e Van Doren divide a Leitura em quatro fases — Elementar, Inspetiva, Analítica e Sinóptica —sendo a primeira a mais simples e rápida, e a última a mais complexa e elaborada.
1 – Leitura Elementar
Corresponde à leitura normal de qualquer livro — análise da capa, sinopse e sumário nas badanas ou contracapa, passar os olhos por algumas páginas, lendo um ou outro parágrafo, e depois início no capítulo 1, seguindo até ao final. Esta abordagem é aquela que seguimos com os livros tradicionais de histórias, mas não é o método aconselhável ao estudo académico, esse deve saltar o passo 1 e iniciar-se pelo passo 2.
2 – Leitura Inspetiva
Adler e Van Doren sugerem um trabalho em seis passos:
3 – Leitura Analítica
Nesta fase, entramos na discussão com o livro, e é uma fase que demorará tanto quanto exigir a complexidade do livro na relação com o grau de conhecimento detido pelo leitor. Ou seja, pode demorar bastante mais do que a simples leitura do primeiro ao último capítulo. O objetivo não é ler para conhecer, mas sim trabalhar o conteúdo do livro para o dominar. Por isso, não é o tipo de leitura que se faça com qualquer livro, mas apenas com aqueles que vão ao centro do tema, problema ou abordagem que são relevantes para nós.
Já temos uma noção do que o autor pretende tratar e do modo geral como escreveu sobre o assunto, mas agora vamos concretizar esses elementos para depois os poder questionar:
3.1. Qual é o Problema?
O principal depois de uma análise inspetiva passa pela classificação do livro, o que requer definir, o mais concretamente possível, que problema ou questão está a tentar ser respondida. Isto é o cerne para compreender a razão de tudo aquilo que o livro é, e permite-nos sustentar todas as ideias do livro, porque elas se ligam a esse foco, esse objeto.
3.2. Como é trabalhado e respondido?
Depois interessa então aprofundar. Compreender como é que o autor abordou o problema, e que soluções propõe para o mesmo. Aqui temos de elencar as proposições, e tentar compreender o sistema de ideias desenhado pelo autor para suportar o que pretende dizer. É complexo porque implica uma entrada dentro do modo de pensar do autor, uma espécie de engenharia reversa do que levou à escrita do livro.
3.3. É sustentado, lógico e completo?
Neste ponto, entramos então na análise crítica. Olhando ao problema e soluções propostas, estas fazem sentido? estão sustentadas em argumentos? ou existem dados empíricos que corroborem o que é dito? A análise crítica não pode ser vazia, ou seja, se discordamos é porque temos argumentos para o fazer, e não apenas porque “nos parece”. Para o efeito precisamos não apenas de apontar os problemas do autor, as suas falta de informação, ou racionalizações sem sentido, e dar conta do que falta. Isto é um trabalho moroso, mas ele é que nos vai permitir chegar à total compreensão do livro.
3.4. O que é o livro?
Aqui chegamos ao momento final, ao momento em que podemos emitir a nossa opinião pessoal, sobre o que é o livro, sobre o que pretende apresentar, como o faz, mas sobretudo lançar a nossa perspetiva sobre o conteúdo do que é discutido, concordando ou discordando do autor.
Este ponto seria o último, mas Adler e Van Doren propõe um último, que minha opinião já não tem que ver com a leitura de um livro em particular, mas com o estudo de um assunto, tema ou problema.
4 – Leitura Sinóptica
Aqui, o objetivo dos autores vai para além do livro concreto que se está a ler, e pretende criar lastro para que o leitor possa ter uma noção mais concreta do problema discutido pelo livro, do conhecimento existente em seu redor, no fundo realizar aquilo que na academia hoje em dia definimos como: revisão de literatura. Na verdade, não é possível realizar o último ponto da leitura analítica sem fazer este trabalho. Mas como é que isto se faz? A ideia principal a reter, assenta nas referências dos livros ou textos. Ou seja, precisamos de procurar sobre o tema, e à medida que formos lendo sobre ele, verificar quais são os autores que se repetem, ir atrás desses, até que consigamos ter uma noção do leque de autores principais que trabalhou o tema, e as ideias principais defendidas.
Claro que nos dias de hoje muito deste trabalho está feito na Wikipedia, mas o que é aí apresentado não deve ser visto como trabalho fechado, antes pelo contrário. Para quem trabalha profissionalmente o conhecimento, a Wikipedia é apenas um acelerador da definição do grupo de pessoas que devemos pesquisar. Ou seja, por meio da entrada na Wikipedia, podemos aceder logo a um conjunto de nomes, que podemos então começar a estudar, aprofundar, e assim chegar a construir a nossa visão sobre o problema. Repare-se que a Wikipedia não apresenta opiniões, limita-se a listar factos, e aquilo que se espera de alguém que faz um estudo, é que domine os factos a ponto de poder emitir uma opinião sustentada.
A razão pela qual a opinião pessoal, sustentada, continua a ser relevante para além do que vem na Wikipedia, é que ela é provida de experiência e conhecimento do mundo que cada um de nós, seres humanos complexos e distintos, detemos em conjunto com as leituras que tivermos decidido realizar, o que conduz a perspetivas particulares que garantem uma constante diferenciação no estudo de problemas que podem ser os mesmos, mas consequentemente conduz a soluções próprias que podem ser inovadoras. A solução inovadora é no fundo o objetivo último da leitura, chegar a ter uma perspectiva crítica a ponto de conseguir produzir uma solução própria, nova.
Mortimer Adler foi um professor universitário de filosofia e passou grande parte da sua vida a discutir a relevância do ensino e educação na formação da sociedade, por isso não admira este trabalho didático, no ensino do manejamento do livro, já que ele contribui para a elevação da literacia das comunidades, ao mesmo tempo que baixa algumas barreiras que alguns jovens encontram quando entram nos corredores da Academia. A ideia de que para se fazer uma tese é necessário ler de fio a pavio 200, 300 ou mais livros, no espaço de um a dois anos, assusta qualquer um e pode antecipadamente criar resistências internas que tarde ou cedo predisporão à desistência. Por isso, este livro continua sendo relevante, não que seja obrigatório. Não faltam na internet dezenas e dezenas de artigos explicando muito do que Adler aqui explica, de forma sintetizada, diagramática e bastante mais direta. Ainda assim a proposta é bem estruturada, e para quem sinta a perplexidade com as necessárias leituras, pode ser um excelente ponto de partida. Com o bónus de ir além, já que no caso em que os livros são fundamentais e se sugere seguir para uma leitura aprofundada — analítica e sinóptica —, Adler propõe um conjunto de ferramentas de análise que se podem tornar muito relevantes para quem trabalha a produção de conhecimento escrito.
O método de Adler e Van Doren divide a Leitura em quatro fases — Elementar, Inspetiva, Analítica e Sinóptica —sendo a primeira a mais simples e rápida, e a última a mais complexa e elaborada.
1 – Leitura Elementar
Corresponde à leitura normal de qualquer livro — análise da capa, sinopse e sumário nas badanas ou contracapa, passar os olhos por algumas páginas, lendo um ou outro parágrafo, e depois início no capítulo 1, seguindo até ao final. Esta abordagem é aquela que seguimos com os livros tradicionais de histórias, mas não é o método aconselhável ao estudo académico, esse deve saltar o passo 1 e iniciar-se pelo passo 2.
2 – Leitura Inspetiva
Adler e Van Doren sugerem um trabalho em seis passos:
- Leia o Título e o Prefácio,
- Estude o Índice,
- Analise o Índex de palavras,
- Leia a Sinopse
- Veja os Capítulos Principais
- Folheie o livro, lendo partes que saltam à vista
3 – Leitura Analítica
Nesta fase, entramos na discussão com o livro, e é uma fase que demorará tanto quanto exigir a complexidade do livro na relação com o grau de conhecimento detido pelo leitor. Ou seja, pode demorar bastante mais do que a simples leitura do primeiro ao último capítulo. O objetivo não é ler para conhecer, mas sim trabalhar o conteúdo do livro para o dominar. Por isso, não é o tipo de leitura que se faça com qualquer livro, mas apenas com aqueles que vão ao centro do tema, problema ou abordagem que são relevantes para nós.
Já temos uma noção do que o autor pretende tratar e do modo geral como escreveu sobre o assunto, mas agora vamos concretizar esses elementos para depois os poder questionar:
3.1. Qual é o Problema?
O principal depois de uma análise inspetiva passa pela classificação do livro, o que requer definir, o mais concretamente possível, que problema ou questão está a tentar ser respondida. Isto é o cerne para compreender a razão de tudo aquilo que o livro é, e permite-nos sustentar todas as ideias do livro, porque elas se ligam a esse foco, esse objeto.
3.2. Como é trabalhado e respondido?
Depois interessa então aprofundar. Compreender como é que o autor abordou o problema, e que soluções propõe para o mesmo. Aqui temos de elencar as proposições, e tentar compreender o sistema de ideias desenhado pelo autor para suportar o que pretende dizer. É complexo porque implica uma entrada dentro do modo de pensar do autor, uma espécie de engenharia reversa do que levou à escrita do livro.
3.3. É sustentado, lógico e completo?
Neste ponto, entramos então na análise crítica. Olhando ao problema e soluções propostas, estas fazem sentido? estão sustentadas em argumentos? ou existem dados empíricos que corroborem o que é dito? A análise crítica não pode ser vazia, ou seja, se discordamos é porque temos argumentos para o fazer, e não apenas porque “nos parece”. Para o efeito precisamos não apenas de apontar os problemas do autor, as suas falta de informação, ou racionalizações sem sentido, e dar conta do que falta. Isto é um trabalho moroso, mas ele é que nos vai permitir chegar à total compreensão do livro.
3.4. O que é o livro?
Aqui chegamos ao momento final, ao momento em que podemos emitir a nossa opinião pessoal, sobre o que é o livro, sobre o que pretende apresentar, como o faz, mas sobretudo lançar a nossa perspetiva sobre o conteúdo do que é discutido, concordando ou discordando do autor.
Este ponto seria o último, mas Adler e Van Doren propõe um último, que minha opinião já não tem que ver com a leitura de um livro em particular, mas com o estudo de um assunto, tema ou problema.
4 – Leitura Sinóptica
Aqui, o objetivo dos autores vai para além do livro concreto que se está a ler, e pretende criar lastro para que o leitor possa ter uma noção mais concreta do problema discutido pelo livro, do conhecimento existente em seu redor, no fundo realizar aquilo que na academia hoje em dia definimos como: revisão de literatura. Na verdade, não é possível realizar o último ponto da leitura analítica sem fazer este trabalho. Mas como é que isto se faz? A ideia principal a reter, assenta nas referências dos livros ou textos. Ou seja, precisamos de procurar sobre o tema, e à medida que formos lendo sobre ele, verificar quais são os autores que se repetem, ir atrás desses, até que consigamos ter uma noção do leque de autores principais que trabalhou o tema, e as ideias principais defendidas.
Claro que nos dias de hoje muito deste trabalho está feito na Wikipedia, mas o que é aí apresentado não deve ser visto como trabalho fechado, antes pelo contrário. Para quem trabalha profissionalmente o conhecimento, a Wikipedia é apenas um acelerador da definição do grupo de pessoas que devemos pesquisar. Ou seja, por meio da entrada na Wikipedia, podemos aceder logo a um conjunto de nomes, que podemos então começar a estudar, aprofundar, e assim chegar a construir a nossa visão sobre o problema. Repare-se que a Wikipedia não apresenta opiniões, limita-se a listar factos, e aquilo que se espera de alguém que faz um estudo, é que domine os factos a ponto de poder emitir uma opinião sustentada.
A razão pela qual a opinião pessoal, sustentada, continua a ser relevante para além do que vem na Wikipedia, é que ela é provida de experiência e conhecimento do mundo que cada um de nós, seres humanos complexos e distintos, detemos em conjunto com as leituras que tivermos decidido realizar, o que conduz a perspetivas particulares que garantem uma constante diferenciação no estudo de problemas que podem ser os mesmos, mas consequentemente conduz a soluções próprias que podem ser inovadoras. A solução inovadora é no fundo o objetivo último da leitura, chegar a ter uma perspectiva crítica a ponto de conseguir produzir uma solução própria, nova.
outubro 11, 2019
A Ilusão do Powerpoint e a Oralidade vs. Escrita
O Powerpoint tem servido de saco de boxe a todos e mais alguns, são inúmeros os comentários e discursos contra o seu uso, uns por causa da componente estética, outros porque serve apenas de cábula à apresentação, outros porque é uma distração, etc. Ao longo dos últimos 15 anos tenho ouvido todo o tipo de justificativos para boicotar a ferramenta. Em todos os casos levantei-me sempre contra tais boicotes, tenho defendido e continuo a defender o seu uso, no entanto a leitura dos justificativos dados por Jeff Bezos fizeram-me refletir, não propriamente no seu uso, mas antes no seu consumo. Ou seja, o problema não me parece estar nos slides, nem nos oradores que os usam (se os souberem utilizar) mas na audiência, nos seus consumidores.
Num e-mail enviado aos colegas da administração de topo, em 2004, Jeff Bezos pedia o fim do uso do Powerpoint nas reuniões com os seguintes argumentos:
Claro que um texto narrativo é superior, mas quantos de vocês já assistiram a sessões de textos lidos? Lidos não por dramaturgos ou atores, mas por simples pessoas? Ninguém aguenta (eu já aguentei muitas) de leitura monocórdica de textos. Os textos escritos como narrativas não servem a oralidade porque enrijecem a linguagem não-verbal do orador, porque quando são escritas são-no para se valerem per se, sem orador — servem antes como dizia Stephen King “a telepatia entre escritor e leitor” —, e por isso mesmo convidam à castração da performance retórica, o objetivo de um texto narrativo é colocar o leitor dentro da ação, já um texto oral é uma partilha, o orador é um guia da ação, não se abstém da sua presença, é a sua função principal levar pela mão a audiência a sentir e a ver, tal Virgilio conduzindo Dante pelos estágios do Inferno.
Claro que podemos comunicar sem Powerpoint. Os comediantes fazem-no todos os dias, e não precisam de Powerpoint. Mas um comunicador ou professor não tem de ser um comediante, não pode ser um comediante, cabem-lhe outras responsabilidades além da produção de um momento de partilha de ideias pela oralidade. O Professor tem matéria nova para digerir todos os dias, e tem de encontrar as melhores formas pedagógicas de as levar até à sua audiência, não apenas pela oralidade, mas essencialmente através da produção de exercícios e atividades. E ao aluno não cabe apenas realizar os exercícios, cabe também estar presente no momento da partilha, e aceitar a mão oferecida pelo professor que o guia. Por outro lado, o Powerpoint é útil na expansão de recursos de suporte à performance do orador, nomeadamente porque pode dar a ver aquilo que é apenas texto ou verbo, tornar palpável ao espectador o que é simbólico (palavras e texto) ou seja abstrato.
Assim o verdadeiro problema do Powerpoint não é, de todo, a sua fragilidade comunicativa, mas é antes a ilusão que cria no espectador de que ele pode estar a ouvir e a ver a comunicação. Não só porque o multicanal da comunicação cria a sensação de que o multitasking (ver e-mail, responder, redes, etc.) é possível, mas mais gravoso ainda porque o facto de ser um objeto digital, pode ser facilmente registado e copiado, sem qualquer esforço. Ou seja, os alunos baseiam as suas memórias do momento na ideia de que depois vão ter acesso aos slides, e por isso nem sequer precisam de tirar notas, algo impensável quando os quadros eram escritos a giz, e apagados para todo o sempre no final da aula. Ora quando depois chegam a casa e vão ler os slides, verificam que neles está uma mera síntese de palavras-chave e pistas para ideias, mas que para quem não esteve concentrado na performance da história e não realizou a “visita guiada às ideias” pelo professor, nada dizem.
Diga-se que, e no caso das aulas em particular, muito disto podia ser colmatado ainda, se os alunos lessem os textos, a bibliografia recomendada, mas como isso é ainda mais trabalhoso do que estar atento nas aulas, acabam por limitar o seu estudo aos slides, e isso reflete-se de forma inevitável nas notas finais.
Num e-mail enviado aos colegas da administração de topo, em 2004, Jeff Bezos pedia o fim do uso do Powerpoint nas reuniões com os seguintes argumentos:
“Subject: Re: No PowerPoint presentations from now on at S-teamMais tarde em entrevista a Charlie Rose diria ainda:
A little more to help with the question “why.”
Well-structured, narrative text is what we’re after rather than just text. If someone builds a list of bullet points in Word, that would be just as bad as PowerPoint.
The reason writing a good six-page storied memo is harder than “writing” a 20 page PowerPoint is because narrative structure forces better thought and better understanding of what’s more important than what, and how things are related.”
“The traditional corporate meeting starts with a presentation. Somebody gets up with a PowerPoint display, some type of slide show. In our view you get very little information, you get bullet points. This is easy for the presenter, but difficult for the audience. And so instead, our meetings are structured around six-page narratives. When you have to write your ideas out in complete sentences, complete paragraphs, and tell a complete story, it forces a deeper clarity.”Não podia estar mais de acordo no que toca as forças de um texto narrativo versus slides de pontos e palavras-chave. Contudo nesta equação Bezos esquece, ou melhor, elimina da cena totalmente, o orador. Não se pode comparar um texto narrativo e um powerpoint, a comparação, a fazer-se teria de ser feita entre um texto e um orador, podendo depois o orador ser subdividido em: com suporte e sem suporte de powerpoint. Mas foi ao tentar compreender Bezos, que compreendi o verdadeiro problema do Powerpoint, ou melhor, dos consumidores de Powerpoint. Para quem, como eu participa há décadas em reuniões com e sem powerpoint e também dá aulas há décadas com Powerpoints, fez-se luz. Analise-se o seguinte cenário:
9h00, reunião/aula, chegam todos, 12 pessoas (ou 60 alunos), o orador/professor já está com o Powerpoint ligado, os colegas/alunos sentam-se, puxam dos portáteis, colocam-nos à sua frente, ligados à rede, o telemóvel ao lado e um café ou copo de água. O orador/professor inicia, lança a discussão e atrás de si vai projetando palavras, frases, imagens e tabelas que ilustram o que vai dizendo. Passados 5 minutos, metade dos espetadores está a ler os e-mails que chegaram durante o fim do dia anterior e noite, um quarto a verificar as notícias do dia, e o restante quarto a verificar as redes sociais. De vez em quando levantam as cabeças e ouvem uma expressão, uma piada ou um exemplo mais estranho, fixam algumas palavras do Powerpoint, mas rapidamente voltam aos seus afazeres matinais. No final da reunião (aula), as tarefas e trabalhos são divididos ou pedidos. O Powerpoint é enviado para todos ou colocado no sistema de eLearning online, e cabe a cada um lançar mãos ao trabalho. Chegados aos gabinetes ou a casa, vão ler e reler o Powerpoint, e dizem que não serve para nada, que a reunião/aula foi uma perda de tempo.Ora o que aconteceu não foi um problema de Powerpoint, mas antes um total desrespeito para com o colega/professor que preparou a palestra e aula, que desenvolveu os slides para acompanhar os 30 a 50 minutos de performance no contar de história oral. Por outro lado, os slides não foram desenhados para serem lidos como história. Os slides servem apenas de suporte, ilustração e reforço de uma performance oral. Quando se pega neles sem orador, é como se pegássemos numa lista de supermercado, são mero descritivo, sem narrativização, sem contexto, sem exemplos, nem metáforas.
Não é este o bom uso que refiro. Entre isto e ler um texto não há diferença. Preferível enviar o texto por e-mail e cancelar a reunião.
Claro que um texto narrativo é superior, mas quantos de vocês já assistiram a sessões de textos lidos? Lidos não por dramaturgos ou atores, mas por simples pessoas? Ninguém aguenta (eu já aguentei muitas) de leitura monocórdica de textos. Os textos escritos como narrativas não servem a oralidade porque enrijecem a linguagem não-verbal do orador, porque quando são escritas são-no para se valerem per se, sem orador — servem antes como dizia Stephen King “a telepatia entre escritor e leitor” —, e por isso mesmo convidam à castração da performance retórica, o objetivo de um texto narrativo é colocar o leitor dentro da ação, já um texto oral é uma partilha, o orador é um guia da ação, não se abstém da sua presença, é a sua função principal levar pela mão a audiência a sentir e a ver, tal Virgilio conduzindo Dante pelos estágios do Inferno.
Gravura de Gustave Dore, "Virgilio e Dante", in "Divina Comédia" de Dante
Claro que podemos comunicar sem Powerpoint. Os comediantes fazem-no todos os dias, e não precisam de Powerpoint. Mas um comunicador ou professor não tem de ser um comediante, não pode ser um comediante, cabem-lhe outras responsabilidades além da produção de um momento de partilha de ideias pela oralidade. O Professor tem matéria nova para digerir todos os dias, e tem de encontrar as melhores formas pedagógicas de as levar até à sua audiência, não apenas pela oralidade, mas essencialmente através da produção de exercícios e atividades. E ao aluno não cabe apenas realizar os exercícios, cabe também estar presente no momento da partilha, e aceitar a mão oferecida pelo professor que o guia. Por outro lado, o Powerpoint é útil na expansão de recursos de suporte à performance do orador, nomeadamente porque pode dar a ver aquilo que é apenas texto ou verbo, tornar palpável ao espectador o que é simbólico (palavras e texto) ou seja abstrato.
Veja-se a diferença entre uma interface de comandos de texto MS-Dos e uma interface gráfica Windows. A maior facilidade que o utilizador tem no uso conceptual dos conceitos. Não estamos a falar de diferença entre texto narrativo e imagens narrativas, isso é outra discussão.
Diga-se que, e no caso das aulas em particular, muito disto podia ser colmatado ainda, se os alunos lessem os textos, a bibliografia recomendada, mas como isso é ainda mais trabalhoso do que estar atento nas aulas, acabam por limitar o seu estudo aos slides, e isso reflete-se de forma inevitável nas notas finais.
Prémio José Saramago 2019
E como não tivemos apenas o Nobel esta semana, fica uma discussão sobre o recente Prémio José Saramago. Eu fui um dos que defenderam, aqui, o prémio Leya atribuído ao Afonso Reis Cabral em 2014 pelo livro "O Meu Irmão". Contudo este prémio pelo livro "Pão de Açúcar" é totalmente desprovido de senso. O que me ocorreu quando o prémio foi atribuído, foi que não haveriam melhores concorrentes neste ano. Mas se assim fosse, mais valia fechar a nação e deixar a produção escrita aos outros.
O livro não é mau, mas não vai além de exercício de escrita. Não me incomodam as potenciais falhas de análise do processo judicial, mas como livro é parco em reflexão, ou melhor, essa está totalmente ausente, dando pouco mais do que um conjunto de artigos de jornal. Na verdade, isso não nos deve espantar, 29 anos não oferece propriamente um lastro de experiência grande, ainda mais para quem se dedique a analisar uma realidade que está nas antípodas da vivida por si.
Escrever um texto de jornal, no seu tom semi-imparcial e distanciado, quase qualquer um pode fazer. Escrever um livro, colocar-se no centro da ação, ver de dentro e em todas as direções, e a partir da mente interior dos envolvidos, requer muito mais do que investigação sobre o que terá acontecido. É preciso experiência, vida vivida e sentida nos lugares e com as pessoas, para se chegar aos interstícios dramáticos. É disso que se faz a grande literatura. É por isso que essa tende a falar das realidades dos seus autores, e não daquelas que eles gostariam de ter vivido.
Outras perspetivas: Diogo Vaz Pinto, Eduardo Pitta, e Maria do Rosário Pedreira
Atualização:
Nem por acaso, fizeram-me chegar a informação de que o prémio passará a ser atribuído apenas a maiores de 40 anos, talvez por que tentar atribuir prémios de relevo abaixo desta idade é complicado.
O livro não é mau, mas não vai além de exercício de escrita. Não me incomodam as potenciais falhas de análise do processo judicial, mas como livro é parco em reflexão, ou melhor, essa está totalmente ausente, dando pouco mais do que um conjunto de artigos de jornal. Na verdade, isso não nos deve espantar, 29 anos não oferece propriamente um lastro de experiência grande, ainda mais para quem se dedique a analisar uma realidade que está nas antípodas da vivida por si.
Escrever um texto de jornal, no seu tom semi-imparcial e distanciado, quase qualquer um pode fazer. Escrever um livro, colocar-se no centro da ação, ver de dentro e em todas as direções, e a partir da mente interior dos envolvidos, requer muito mais do que investigação sobre o que terá acontecido. É preciso experiência, vida vivida e sentida nos lugares e com as pessoas, para se chegar aos interstícios dramáticos. É disso que se faz a grande literatura. É por isso que essa tende a falar das realidades dos seus autores, e não daquelas que eles gostariam de ter vivido.
Outras perspetivas: Diogo Vaz Pinto, Eduardo Pitta, e Maria do Rosário Pedreira
Atualização:
Nem por acaso, fizeram-me chegar a informação de que o prémio passará a ser atribuído apenas a maiores de 40 anos, talvez por que tentar atribuir prémios de relevo abaixo desta idade é complicado.
outubro 07, 2019
The Sportswriter (1986)
Cheguei a este livro por meio da pesquisa de livros sobre crises existenciais da meia-idade, tendo-o visto referido em várias listas acabei procurando mais sobre o autor e sobre a obra, percebi que se tratava de mais uma saga sobre o everyman americano, à lá Rabbit de Updike ou Zuckerman de Roth, tendo Frank Bascombe, o protagonista, já tido direito a 4 volumes — “The Sportswriter” (1986), “Independence Day” (1995), “The Lay of the Land” (2006), “Let Me Be Frank With You” (2014) — pelas mãos de Richard Ford. Apesar de irem saindo de 10 em 10 anos como os Rabbit de Updike, Bascombe começa neste primeiro volume já com 38 anos, divorciado, 2 filhos, e um terceiro acabado de morrer antes de chegar à adolescência, ou seja, com todas as condições para se lançar nos questionamentos dos porquês e para quês de tudo o que pensamos, desejamos, conseguimos ou fazemos.
Ford escreve muito bem, constrói frases que transportam ideias e sentimento capazes de nos envolver e manter fixados em cada momento do que vai relatando. Por vezes excede-se, perde-se, mas quase sempre mantém um nível elevado de técnica e controlo do texto produzindo fluidez e interesse. O tema ajuda a este tipo de escrita, já que apesar de existir enredo, o que está em causa é o interior de Bascombe, o modo como este vê o mundo, como se dá e recebe esse mesmo mundo. Do mesmo modo ajuda aos devaneios que nem sempre nos agarram, e se perdem na falta de foco ou objeto. Contudo, a experiência geral é bastante boa, pela elevação criada, mas também por vários momentos de indagação que funcionam como apaziguadores a quem está também em modo de crise e questionamento da travessia.
O mundo de Bascombe são os subúrbios da América, tão insistentemente palco de muito e muito cinema, tanto que quase parecem fazer parte da nossa realidade europeia. Neles tudo parece perfeito, criado para tornar todos felizes, com todas as condições que as sociedades industrializadas e ricas conseguem oferecer. Ainda assim, nada disso parece ser suficiente para apaziguar a sede humana de respostas, mesmo quando não se conseguem formular as perguntas. Luta-se todos os dias para ter mais, para chegar a ter tanto como os demais, e quando se lá chega, coloca-se tudo em questão, porquê e para quê. Era só isto?
Comecei por ler o livro na versão original, a meio percebi que ia sair uma tradução pela Porto Editora, o que me fez descobrir a existência de uma tradução antiga pela Teorema. Por estar a atravessar uma das partes menos boas, resolvi tentar a versão portuguesa para ver se fluía melhor. Depois de perceber que a Porto Editora tinha optado por colocar os diálogos com travessão, alterando drasticamente a apresentação do texto corrido com os diálogos entre aspas, optei por comprar a da Teorema. Reparei ainda que o português da tradução de 1992 era mais próximo do inglês de 1986, do que a tradução deste ano da Porto Editora. Tudo isto voltou a fazer-me pensar nas novas traduções portuguesas dos Clássicos, serão os mesmos livros, essas traduções atualizadas que vamos lendo?
Ford escreve muito bem, constrói frases que transportam ideias e sentimento capazes de nos envolver e manter fixados em cada momento do que vai relatando. Por vezes excede-se, perde-se, mas quase sempre mantém um nível elevado de técnica e controlo do texto produzindo fluidez e interesse. O tema ajuda a este tipo de escrita, já que apesar de existir enredo, o que está em causa é o interior de Bascombe, o modo como este vê o mundo, como se dá e recebe esse mesmo mundo. Do mesmo modo ajuda aos devaneios que nem sempre nos agarram, e se perdem na falta de foco ou objeto. Contudo, a experiência geral é bastante boa, pela elevação criada, mas também por vários momentos de indagação que funcionam como apaziguadores a quem está também em modo de crise e questionamento da travessia.
O mundo de Bascombe são os subúrbios da América, tão insistentemente palco de muito e muito cinema, tanto que quase parecem fazer parte da nossa realidade europeia. Neles tudo parece perfeito, criado para tornar todos felizes, com todas as condições que as sociedades industrializadas e ricas conseguem oferecer. Ainda assim, nada disso parece ser suficiente para apaziguar a sede humana de respostas, mesmo quando não se conseguem formular as perguntas. Luta-se todos os dias para ter mais, para chegar a ter tanto como os demais, e quando se lá chega, coloca-se tudo em questão, porquê e para quê. Era só isto?
Subúrbios americanos
Cartoon de Liana Finck, na The New Yorker
Comecei por ler o livro na versão original, a meio percebi que ia sair uma tradução pela Porto Editora, o que me fez descobrir a existência de uma tradução antiga pela Teorema. Por estar a atravessar uma das partes menos boas, resolvi tentar a versão portuguesa para ver se fluía melhor. Depois de perceber que a Porto Editora tinha optado por colocar os diálogos com travessão, alterando drasticamente a apresentação do texto corrido com os diálogos entre aspas, optei por comprar a da Teorema. Reparei ainda que o português da tradução de 1992 era mais próximo do inglês de 1986, do que a tradução deste ano da Porto Editora. Tudo isto voltou a fazer-me pensar nas novas traduções portuguesas dos Clássicos, serão os mesmos livros, essas traduções atualizadas que vamos lendo?
Por fim, o título não tem, ou tem muito pouco, que ver com o conteúdo do livro, como se percebe do que escrevi.
setembro 29, 2019
Diálogo: A Arte da Ação Verbal
Robert McKee é uma das maiores autoridades do guionismo de Hollywood, sendo o seu livro “Story: Substance, Structure, Style and the Principles of Screenwriting” (1997) considerado uma espécie de bíblia para quem escreve para o meio audiovisual. “Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen” (2016) é assim além da sua primeira publicação em 20 anos, um verdadeiro sucessor de “Story”, capaz de aprofundar toda a componente da escrita de diálogo. Entretanto McKee passou todos estes anos envolvido nos seus famosos workshops, aquilo que confessa mais gostar de fazer porque segundo ele: “Life is absurd. But there is one meaningful thing, one inarguable thing, and that is that there is suffering. Fine writing helps alleviate that suffering – and anything that puts meaning and beauty into the world in the form of story, helps people to live with more peace and purpose and balance, is deeply worthwhile.”
É interessante ver como as reações ao livro se dividem entre acusações de academismo e falta dele. McKee é um brilhante analista de histórias, nos mais variados meios, o que faz com que não raras vezes se exceda e entre em processos de sistematização de ideias, conceitos e argumentos que não são muito úteis a quem escreve. Contudo, para académicos como eu, são autênticas pepitas, porque provêm de um olhar único, que funciona como um microscópio de aumento das teias narrativas e sociais plasmadas nas obras. O facto de McKee ser mais artesão que académico, dá-lhe um acesso à arte do fazer absolutamente invejável. Neste segundo livro McKee dedica-se a desconstruir a arte do diálogo nas suas mais variadas estruturas, sistemas e lógicas, usando exemplos amplos e variados para expor as suas teorizações, que vão desde o teatro à televisão, passando pelo cinema. Os casos apresentados, e desmontados, são brilhantemente dissecados, como se despisse os filmes de toda a sua envolvência plástica e nos apresentasse os nós da narrativa completamente nus, dando conta daquilo que considera mais importante no diálogo — o subtexto — ou “the double dimension of dialogue—the outer aspect of what is said versus the inner truth of what is thought and felt.” .
Simultaneamente McKee não deixa de tecer comentários e justificativas sobre o efeito plástico do medium, nomeadamente sobre as diferenças nas capacidades de cada um dos media, o que torna o livro imensamente relevante para todos aqueles que trabalham o âmbito do transmedia.
O trabalho de McKee acaba sendo bastante académico, ainda que metodologicamente siga uma via pouco comum, já que como revela, o método seguido é o de apresentar ideias às suas audiências de criadores, com quem vai depurando e filtrando até que condigam com um sentir da maior parte dos criativos. Na verdade, e tendo em conta tratar-se de arte, o método é profundamente académico, e se serve quem procura fórmulas, ou modelos, para chegar ao maior número de pessoas, acaba afastando aqueles que andam à procura de autenticidade ou da subversão do status quo.
O livro apresenta-se em 4 partes, sendo a primeira de domínio mais académico, no qual é exposto toda a sua teorização sobre a arte do diálogo, e diga-se, a parte que mais me interessou. Depois temos três partes dedicadas a conselhos sobre problemas nos diálogos, sobre o tratamento do diálogo em função dos personagens, e por fim a desconstrução de várias cenas no seu design de diálogo. Vou deixar aqui uma síntese da primeira parte, e aconselho vivamente a leitura de uma entrevista para a Creative Screenwriting na qual ele dá conta de algumas das ideias aqui discutidas:
1 – DEFINIÇÃO do DIÁLOGO, por McKee
Este ponto começa por ser desde logo inovador, não porque McKee olha para todos os media narrativos, mas porque McKee resolve estender totalmente a relevância do Diálogo, e ao fazê-lo eu não podia estar mais de acordo, uma vez que segue completamente o sentido da Pragmática da Comunicação.
O Dialogo e o Medium
Ainda na definição, McKee dedica uma boa parte à discussão do efeito do media no uso do tipo de diálogo,
2 – AS 3 FUNÇÕES DO DIÁLOGO
“Dialogue, dramatized and narratized, performs three essential functions: exposition, characterization, action.”
2.1. Exposition
“The second function of dialogue is the creation and expression of a distinctive characterization for each character in the cast. Human nature can be usefully divided into two grand aspects: appearance (who the person seems to be) versus reality (who the person actually is).”
Deste modo o desenvolvimento de personagens obriga-nos a criar duas facetas: o verdadeiro personagem, e a sua caracterização. A primeira diz respeito aos momentos de tensão e escolha, momentos no qual percebemos que tipo de pessoa é, os valores que se levantam e falam por si, a sua dignidade ou ausência dela. Já para a caracterização McKee apresenta três parâmetros:
“Dialogue’s third essential function is to equip characters with the means for action. Stories contain three kinds of action: mental, physical, and verbal. (..) Mental Action: Words and images compose thoughts, but a thought does not become a mental action until it causes change within a character. (..)Physical Action: Physical action comes in two fundamental kinds: gestures and tasks. (..)Verbal Action: As novelist Elizabeth Bowen put it, “Dialogue is what characters do to each other.” (..) Therefore, before writing a line, ask these questions: What does my character want out of this situation? At this precise moment, what action would he take in an effort to reach that desire? What exact words would he use to carry out that action?”
3 – EXPRESSIVIDADE
O terceiro ponto do método de McKee apresenta-se na desconstrução da expressividade, que McKee faz em três frentes diferentes: conteúdo, forma e técnica.
3.1 Conteúdo
The Said: “The surface level of things said supports the more or less solid meanings that words, spoken or written, directly express with both denotations and connotations.
The Unsaid: “A second sphere, the unsaid, revolves within a character. From this inner space the self gazes out at the world. As thoughts and feelings form at this level, the self deliberately withholds them.”
The Unsayable: “Deepest yet, concealed beneath the unsaid, the sphere of the unsayable roils with subconscious drives and needs that incite a character’s choices and actions.”
Isto permite McKee chegar à essência do que tem para dizer e definer:
Text and Subtext
3.2 Technique
É interessante ver como as reações ao livro se dividem entre acusações de academismo e falta dele. McKee é um brilhante analista de histórias, nos mais variados meios, o que faz com que não raras vezes se exceda e entre em processos de sistematização de ideias, conceitos e argumentos que não são muito úteis a quem escreve. Contudo, para académicos como eu, são autênticas pepitas, porque provêm de um olhar único, que funciona como um microscópio de aumento das teias narrativas e sociais plasmadas nas obras. O facto de McKee ser mais artesão que académico, dá-lhe um acesso à arte do fazer absolutamente invejável. Neste segundo livro McKee dedica-se a desconstruir a arte do diálogo nas suas mais variadas estruturas, sistemas e lógicas, usando exemplos amplos e variados para expor as suas teorizações, que vão desde o teatro à televisão, passando pelo cinema. Os casos apresentados, e desmontados, são brilhantemente dissecados, como se despisse os filmes de toda a sua envolvência plástica e nos apresentasse os nós da narrativa completamente nus, dando conta daquilo que considera mais importante no diálogo — o subtexto — ou “the double dimension of dialogue—the outer aspect of what is said versus the inner truth of what is thought and felt.” .
Simultaneamente McKee não deixa de tecer comentários e justificativas sobre o efeito plástico do medium, nomeadamente sobre as diferenças nas capacidades de cada um dos media, o que torna o livro imensamente relevante para todos aqueles que trabalham o âmbito do transmedia.
O trabalho de McKee acaba sendo bastante académico, ainda que metodologicamente siga uma via pouco comum, já que como revela, o método seguido é o de apresentar ideias às suas audiências de criadores, com quem vai depurando e filtrando até que condigam com um sentir da maior parte dos criativos. Na verdade, e tendo em conta tratar-se de arte, o método é profundamente académico, e se serve quem procura fórmulas, ou modelos, para chegar ao maior número de pessoas, acaba afastando aqueles que andam à procura de autenticidade ou da subversão do status quo.
O livro apresenta-se em 4 partes, sendo a primeira de domínio mais académico, no qual é exposto toda a sua teorização sobre a arte do diálogo, e diga-se, a parte que mais me interessou. Depois temos três partes dedicadas a conselhos sobre problemas nos diálogos, sobre o tratamento do diálogo em função dos personagens, e por fim a desconstrução de várias cenas no seu design de diálogo. Vou deixar aqui uma síntese da primeira parte, e aconselho vivamente a leitura de uma entrevista para a Creative Screenwriting na qual ele dá conta de algumas das ideias aqui discutidas:
1 – DEFINIÇÃO do DIÁLOGO, por McKee
Este ponto começa por ser desde logo inovador, não porque McKee olha para todos os media narrativos, mas porque McKee resolve estender totalmente a relevância do Diálogo, e ao fazê-lo eu não podia estar mais de acordo, uma vez que segue completamente o sentido da Pragmática da Comunicação.
“Tradition defines dialogue as talk between characters. I believe, however, that an all-encompassing, in-depth study of dialogue begins by stepping back to the widest possible view of storytelling. From that angle, the first thing I notice is that character talk runs along three distinctly different tracks: said to others, said to oneself, and said to the reader or audience.”Para explanar melhor esta definição, McKee apresenta uma diferença entre Dramatização e Narrativização de diálogo, entre o diálogo realizado dentro da cena (dramatizado) e aquele exterior à cena — o monologo ou a fala para o leitor/espectador — (narrativizado). Para se compreender esta distinção, McKee faz o que sabe melhor fazer, pega num pequeno diálogo, e dá-o a ler nas 3 formas: "said to oneself", "said to others", "said to the reader". Deixo apenas primeiros parágrafos do exercício.
“I place these three modes of talk under the term “dialogue” for two reasons: First, no matter when, where, and to whom a character speaks, the writer must personalize the role with a unique, character-specific voice worded in the text. Second, whether mental or vocal, whether thought inside the mind or said out into the world, all speech is an outward execution of an inner action. All talk responds to a need, engages a purpose, and performs an action. No matter how seemingly vague and airy a speech may be, no character ever talks to anyone, even to himself, for no reason, to do nothing. Therefore, beneath every line of character talk, the writer must create a desire, intent, and action. That action then becomes the verbal tactic we call dialogue.”
“To say something is to do something, and for that reason, I have expanded my redefinition of dialogue to name any and all words said by a character to herself, to others, or to the reader/audience as an action taken to satisfy a need or desire. In all three cases, when a character speaks, she acts verbally as opposed to physically”
1) “Dreams run like streams.” Hoary proverbial wisdom, I know you well. And in reality most of what one dreams is not worth a second thought—loose fragments of experience, often the silliest and most indifferent fragments of those things consciousness has judged unworthy of preservation but which, even so, go on living a shadow life of their own in the attics and box-rooms of the mind. But there are other dreams.”
2) “Dreams run like streams.” A proverb I know you’ve heard. Don’t believe it. Most of what we dream isn’t worth a second thought. These fragments of experience are the silly, indifferent things our consciousness judges unworthy. Even so, in the attic of your mind they go on living a shadow life. That’s unhealthy. But some dreams are useful. ”
3) “Glas and Markel sit in a café. As dusk turns to night, they sip after-dinner brandies.
GLAS: Do you know the proverb “Dreams run like streams”?
MARKEL: Yes, my grandmother always said that, but in reality, most dreams are just fragments of the day, not worth keeping.
GLAS: Worthless as they are, they live shadow lives in the attic of the mind.
MARKEL: In your mind, Doctor, not mine.
GLAS: But don’t you think dreams give us insights?”
O Dialogo e o Medium
Ainda na definição, McKee dedica uma boa parte à discussão do efeito do media no uso do tipo de diálogo,
“All dialogue, dramatized and narratized, performs in the grand symphony of story, but from stage to screen to page, its instruments and arrangements vary considerably. For that reason, a writer’s choice of medium greatly influences the composition of dialogue—its quantities and qualities. The theatre, for example, is primarily an auditory medium. It prompts audience members to listen more intently than they watch. As a result, the stage favors voice over image” [assim, cabe ao som transportar a maior parte do diálogo, ou informação, 80/20]. Cinema reverses that. Film is primarily a visual medium. It prompts the audience to watch more intently than it listens. For that reason, screenplays favor image over voice. [Cabe a imagem a maior parte do diálogo: 80/20]. The aesthetics of television float between the theatre and cinema. Teleplays tend to balance voice and image, inviting us to look and listen more or less equally. [Imagem/som: 50/50]. Prose is a mental medium. Whereas stories performed onstage and onscreen strike the audience’s ears and eyes directly, literature takes an indirect path through the reader’s mind.” [Por isso não existe regra, tanto pode ser dramatizado como narrativizado.]
2 – AS 3 FUNÇÕES DO DIÁLOGO
“Dialogue, dramatized and narratized, performs three essential functions: exposition, characterization, action.”
2.1. Exposition
“Is a term of art that names the fictional facts of setting, history, and character that readers and audiences need to absorb at some point so they can follow the story and involve themselves in its outcome. A writer can embed exposition in the telling in only one of two ways: description or dialogue.”A exposição é ainda responsável por vários parâmetros da construção narrativa, vitais para a construção de cenas que garantam o total envolvimento do espectador/leitor: “pacing and timing”; “showing versus telling”; “narrative drive”; “exposition as ammunition”; “revelations”; “direct telling”; “forced exposition”. Destes todos, deixo uma das mais relevantes para compreender o que está a acontecer no processo de contar uma história:
“Onstage and onscreen, directors and their designers interpret the writer’s descriptions into every expressive element that isn’t dialogue: settings, costumes, lighting, props, sound effects, and the like. Comic book artists and graphic novelists illustrate their stories as they tell them. Prose authors compose literary descriptions that project word-images into the reader’s imagination.”
“Narrative drive is a side effect of the mind’s engagement with story. Change and revelations incite the story-goer to wonder, “What’s going to happen next? What’s going to happen after that? How will this turn out?” As pieces of exposition slip out of dialogue and into the background awareness of the reader or audience member, her curiosity reaches ahead with both hands to grab fistfuls of the future to pull her through the telling. She learns what she needs to know when she needs to know it, but she’s never consciously aware of being told anything, because what she learns compels her to look ahead.”2.2. Characterization
“The second function of dialogue is the creation and expression of a distinctive characterization for each character in the cast. Human nature can be usefully divided into two grand aspects: appearance (who the person seems to be) versus reality (who the person actually is).”
Deste modo o desenvolvimento de personagens obriga-nos a criar duas facetas: o verdadeiro personagem, e a sua caracterização. A primeira diz respeito aos momentos de tensão e escolha, momentos no qual percebemos que tipo de pessoa é, os valores que se levantam e falam por si, a sua dignidade ou ausência dela. Já para a caracterização McKee apresenta três parâmetros:
“1) To intrigue. The reader/audience knows that a character’s appearance is not her reality, that her characterization is a persona, a mask of personality suspended between the world and the true character behind it (..) Having hooked the reader/audience’s curiosity, the story becomes a series of surprising revelations that answer these questions.”
“2) To convince. A well-imagined, well-designed characterization assembles capacities (mental, physical) and behaviors (emotional, verbal) that encourage the reader/audience to believe in a fictional character as if she were factual.”
“3) To individualize. A well-imagined, well-researched characterization creates a unique combination of biology, upbringing, physicality, mentality, emotionality, education, experience, attitudes, values, tastes, and every possible nuance of cultural influence that has given the character her individuality (..) And the most important trait of all: talk. She speaks like no one we have ever met before.”2.3. Action
“Dialogue’s third essential function is to equip characters with the means for action. Stories contain three kinds of action: mental, physical, and verbal. (..) Mental Action: Words and images compose thoughts, but a thought does not become a mental action until it causes change within a character. (..)Physical Action: Physical action comes in two fundamental kinds: gestures and tasks. (..)Verbal Action: As novelist Elizabeth Bowen put it, “Dialogue is what characters do to each other.” (..) Therefore, before writing a line, ask these questions: What does my character want out of this situation? At this precise moment, what action would he take in an effort to reach that desire? What exact words would he use to carry out that action?”
3 – EXPRESSIVIDADE
O terceiro ponto do método de McKee apresenta-se na desconstrução da expressividade, que McKee faz em três frentes diferentes: conteúdo, forma e técnica.
3.1 Conteúdo
“As you compose dialogue, I think it’s useful to imagine character design as three concentric spheres, one inside the other—a self within a self within a self. This three-tiered complex fills dialogue with content of thought and feeling while shaping expression in gesture and word. The innermost sphere churns with the unsayable; the middle sphere restrains the unsaid; the outer sphere releases the said.”Aqui entramos pelos reinos da interpretação narrativa adentro, com McKee a levar consigo todas as ferramentas da pragmática e semiótica para ajudar no suporte à construção por via da desconstrução e interpretação que cada leitor faz do que vai enfrentando e construindo mentalmente.
The Said: “The surface level of things said supports the more or less solid meanings that words, spoken or written, directly express with both denotations and connotations.
The Unsaid: “A second sphere, the unsaid, revolves within a character. From this inner space the self gazes out at the world. As thoughts and feelings form at this level, the self deliberately withholds them.”
The Unsayable: “Deepest yet, concealed beneath the unsaid, the sphere of the unsayable roils with subconscious drives and needs that incite a character’s choices and actions.”
Isto permite McKee chegar à essência do que tem para dizer e definer:
Text and Subtext
“Text means the surface of a work of art and its execution in its medium: paint on canvas, chords from a piano, steps by a dancer. In the art of story, text names the words on the page of a novel, or the outer life of character behavior in performance—what the reader imagines, what an audience sees and hears. In the creation of dialogue, text becomes the said, the words the characters actually speak.3.2 Forma
Subtext names the inner substance of a work of art—the meanings and feelings that flow below the surface. In life, people “speak” to each other, as it were, from beneath their words. A silent language flows below conscious awareness. In story, subtextual levels enclose the hidden life of characters’ thoughts and feelings, desires and actions, both conscious and subconscious—the unsaid and unsayable.”
“The qualities and quantities of dialogue vary with the levels of conflict used in the storytelling (..) Conflict disrupts our lives from any one of four levels: the physical (time, space, and everything in it), the social (institutions and the individuals in them), the personal (relationships of intimacy—friends, family, lovers), and the private (conscious and subconscious thoughts and feelings). The difference between a complicated story and a complex story, between a story with minimum dialogue versus maximum dialogue, hinges on the layers of conflict the writer chooses to dramatize.”
3.2 Technique
“Figurative devices range from metaphor, simile, synecdoche, and metonymy to alliteration, assonance, oxymoron, personification, and beyond. In fact, the list of all linguistic tropes and ploys numbers in the hundreds. These turns of phrase not only enrich what’s said, but also send connotations of meaning resonating into the subtexts of the unsaid and unsayable as well.”Neste ponto McKee aprofunda questões de paralinguagem, de design de informação — suspense, cumulativo, balanceado — economia (dizer o máximo com o mínimo), pausa e a necessidade do silencio
O livro continua com todo um trabalho de desconstrução e depuração de técnicas — com cenas de "The Sopranos", "The Great Gatsby", "Lost in Translation" ou ainda "O Museu da Inocência" de Pamuk—, através do que McKee partilha uma imensidade de conhecimento sobre a arte do diálogo mas também sobre a arte da narrativa e sua relevância para o ser humano. Para muitos o livro soará formulaico, para mim soa metódico, imensamente sistematizado algo que não é comum nas artes. Diria que McKee, ao usar esta abordagem também já no "Story" foi um dos grandes percursores daquilo que hoje qualificamos como Narrative Design.
Fica uma nota final, a versão audiobook é narrada pelo próprio McKee, o que adiciona toda uma outra camada de interesse à leitura via audio.
setembro 22, 2019
Gratuito, Gratuito mas só em Parte, Premium
Durante anos foi-se vendendo a ilusão do Software Livre como se fosse a coisa mais óbvia e natural, partindo da ingenuidade redutora — se não custa a copiar, não se deve vender — como se o software uma vez criado não precisasse de contínua Manutenção, ao que se acrescentam necessariamente custos ainda mais elevados de Inovação. A manutenção é inevitável porque o software funciona num ambiente altamente dinâmico, seja o sistema operativo ou a internet, e é preciso continuamente adaptar o mesmo. A inovação, porque o modo de fazer hoje, está sempre limitado ao mundo que conhecemos hoje, com o passar do tempo aprendemos a fazer de formas diferentes, e o software ou reflete isso ou torna-se irrelevante. Mas a verdade está cada vez mais à vista.
Esta semana iniciámos mais um Laboratório com os alunos, no qual este têm de criar um Blog e mantê-lo ativo durante 14 semanas, e de repente tenho vários alunos a chamar-me porque o Wordpress não é gratuito!!! Incrédulo, lá estive a explorar, e acabei percebendo que o continuava sendo, mas a forma de criar um novo blog gratuito tinha deixado de ser o principal modo presente na interface. Ou seja, depois de iniciar o processo, o Wordpress volta a trazer o utilizador ao ecrã inicial em que se mostram os planos de pagamento, ficando no topo um pequeno botão com um texto nada claro, e por baixo botões enormes, um com a menção "Pessoal" e que sendo o primeiro parece inevitável, e um segundo que surge destacado e com a menção "Popular", o que com certeza acaba a induzir muitos em erro e a pagar. A sensação foi estranha, durante mais de uma década a ouvir os meus colegas dizerem-me que não usavam Blogger, como eu continuo a utilizar, porque o Wordpress é que era verdadeiro software livre.
Mas surpreso não fiquei. Para a organização da Videojogos 2019, estou a utilizar a plataforma gratuita EasyChair. Quando criei a conta este ano, senti a linguagem e algumas chamadas de atenção estranhas, claramente no sentido de exercer controlo sobre a nossa ação. Pouco depois percebi que existiam duas versões, uma gratuita e uma paga, com claras diferenças, mas sem grande impacto para uma conferência pequena como a nossa, mas se esta fosse um pouco maior já se tornaria quase inutilizável sem pagamento. Mesmo no nosso caso, não raras vezes dou por mim a pedir informação ou a querer fazer coisas que a plataforma me diz estarem apenas acessíveis a quem paga o Premium.
Como disse acima, isto é normal porque para este software existir têm de existir dezenas ou centenas de profissionais por detrás a mantê-lo e a inová-lo. Mas o que não é normal é durante décadas se ter propagandeado e alardeado a importância do Software Livre, do Open Source, da Informação que quer ser Livre, da severa crítica online contra os Jornais que fechavam os conteúdos, das editoras que exigiam dinheiro pela música e filmes, etc. etc. Aqui dentro também se inclui os jornais académicos ditos "free", que de grátis não têm nada, pois vivem à custa do esforço de cada um dos editores que deixa de fazer o trabalho para que lhe pagam para editar esses jornais (não defendendo com isto os modelos gananciosos das grandes editoras).
O que vamos vendo hoje é quase todo o jornalismo a fechar-se e a exigir pagamento, assim como muitos dos produtos que eram Free a tornarem-se Freemium ou Free to Play, usando da manipulação e persuasão para levar os utilizadores a comprar e a pagar, por vezes de formas bastante abusivas como vem acontecendo nalguns videojogos com as chamadas Loot Boxes. As alternativas existem apenas quando existe outro alguém que pague, como acontece com a Google que faz tanto dinheiro em publicidade que pode disponibilizar um dos serviços mais caros de toda a internet o YouTube. Ou então instituições que se suportam em verbas oferecidas pela comunidade como a Wikipedia. Ou ainda em conjuntos de instituições que se juntam para suportar as aplicações, como acontece com Universidades, Institutos, ou Empresas. No fundo, o grátis nunca existiu, nunca ninguém teve direito a almoços grátis.
Contudo, parece-me que estamos finalmente a chegar a um ponto em que a internet e o virtual assumiram a mesma importância do objeto físico, porque as pessoas necessitam dela e dos seus objetos, já não podem fazer as suas vidas sem estes, e por isso pagar tornou-se menos penoso. Se aquilo que faço requer aquele produto, e ele me traz benefício, aceito mais facilmente pagar. Mas talvez mais importante seja o facto destes objetos virtuais — ferramenta, informação ou jogo — terem deixado de ser meros substitutos ou complementos de objetos físicos que já temos ou podemos ter nas nossas mãos, como acontecia anteriormente com o jornal, os CDs, os filmes, etc. etc.
Esta semana iniciámos mais um Laboratório com os alunos, no qual este têm de criar um Blog e mantê-lo ativo durante 14 semanas, e de repente tenho vários alunos a chamar-me porque o Wordpress não é gratuito!!! Incrédulo, lá estive a explorar, e acabei percebendo que o continuava sendo, mas a forma de criar um novo blog gratuito tinha deixado de ser o principal modo presente na interface. Ou seja, depois de iniciar o processo, o Wordpress volta a trazer o utilizador ao ecrã inicial em que se mostram os planos de pagamento, ficando no topo um pequeno botão com um texto nada claro, e por baixo botões enormes, um com a menção "Pessoal" e que sendo o primeiro parece inevitável, e um segundo que surge destacado e com a menção "Popular", o que com certeza acaba a induzir muitos em erro e a pagar. A sensação foi estranha, durante mais de uma década a ouvir os meus colegas dizerem-me que não usavam Blogger, como eu continuo a utilizar, porque o Wordpress é que era verdadeiro software livre.
Mas surpreso não fiquei. Para a organização da Videojogos 2019, estou a utilizar a plataforma gratuita EasyChair. Quando criei a conta este ano, senti a linguagem e algumas chamadas de atenção estranhas, claramente no sentido de exercer controlo sobre a nossa ação. Pouco depois percebi que existiam duas versões, uma gratuita e uma paga, com claras diferenças, mas sem grande impacto para uma conferência pequena como a nossa, mas se esta fosse um pouco maior já se tornaria quase inutilizável sem pagamento. Mesmo no nosso caso, não raras vezes dou por mim a pedir informação ou a querer fazer coisas que a plataforma me diz estarem apenas acessíveis a quem paga o Premium.
Como disse acima, isto é normal porque para este software existir têm de existir dezenas ou centenas de profissionais por detrás a mantê-lo e a inová-lo. Mas o que não é normal é durante décadas se ter propagandeado e alardeado a importância do Software Livre, do Open Source, da Informação que quer ser Livre, da severa crítica online contra os Jornais que fechavam os conteúdos, das editoras que exigiam dinheiro pela música e filmes, etc. etc. Aqui dentro também se inclui os jornais académicos ditos "free", que de grátis não têm nada, pois vivem à custa do esforço de cada um dos editores que deixa de fazer o trabalho para que lhe pagam para editar esses jornais (não defendendo com isto os modelos gananciosos das grandes editoras).
O que vamos vendo hoje é quase todo o jornalismo a fechar-se e a exigir pagamento, assim como muitos dos produtos que eram Free a tornarem-se Freemium ou Free to Play, usando da manipulação e persuasão para levar os utilizadores a comprar e a pagar, por vezes de formas bastante abusivas como vem acontecendo nalguns videojogos com as chamadas Loot Boxes. As alternativas existem apenas quando existe outro alguém que pague, como acontece com a Google que faz tanto dinheiro em publicidade que pode disponibilizar um dos serviços mais caros de toda a internet o YouTube. Ou então instituições que se suportam em verbas oferecidas pela comunidade como a Wikipedia. Ou ainda em conjuntos de instituições que se juntam para suportar as aplicações, como acontece com Universidades, Institutos, ou Empresas. No fundo, o grátis nunca existiu, nunca ninguém teve direito a almoços grátis.
Contudo, parece-me que estamos finalmente a chegar a um ponto em que a internet e o virtual assumiram a mesma importância do objeto físico, porque as pessoas necessitam dela e dos seus objetos, já não podem fazer as suas vidas sem estes, e por isso pagar tornou-se menos penoso. Se aquilo que faço requer aquele produto, e ele me traz benefício, aceito mais facilmente pagar. Mas talvez mais importante seja o facto destes objetos virtuais — ferramenta, informação ou jogo — terem deixado de ser meros substitutos ou complementos de objetos físicos que já temos ou podemos ter nas nossas mãos, como acontecia anteriormente com o jornal, os CDs, os filmes, etc. etc.
A melhor cultura do século XXI
O jornal The Guardian fez ao longo das últimas semanas um balanço destas primeiras duas décadas do século XXI em termos da cultura criada no domínio específico das artes e entretenimento — em 11 áreas: Livros, Filmes, Videojogos, Teatro, Programas/Séries TV, Arte, Dança, Álbuns, Obras de Música Clássica, Comediantes e Arquitetura. Para apresentar esse balanço, recorreu ao comum meio de listas ordenadas que são sempre responsáveis por gerar celeuma, mas continuam a ser o melhor método para efeitos de catalogação. O melhor, não pela sua natureza avaliativa, algo que em cultura e artes deixa sempre muito a desejar, mas pelo modo como apresenta à sociedade um apanhado daquilo que um conjunto de especialistas considera ser digno de continuar experienciar, e que é imensamente relevante porque é destas listas que se geram os cânones, sem os quais nos perderíamos na imensidão de produção que o globo que habitamos produz num único dia. Estas vão servindo ainda para manipular o viés internacional cultural que está hoje completamente inquinado pelos EUA e UK, não apenas por causa do inglês, mas também porque a sua cultura mais competitiva tende a privilegiar a produção continuada destas listas. Diga-se que não é um trabalho fácil, e nos tempos que correm e num jornal aberto e gratuito, absolutamente impressionante.
Começar pelo todo das áreas escolhidas, percebe-se um enfoque na arte e na narrativa, notando-se a inclusão de duas áreas que apenas recentemente começaram a ganhar projeção: os Programas de TV e os Comediantes. Os primeiros claramente pela enorme força das séries de televisão que se têm vindo a transformar no grande meio de cultura de massas, lugar que já tinha pertencido à televisão, passou para o cinema, e agora parece estar a voltar à televisão. Interessante recapitular como os videojogos tinham sido anunciados como o meio do século XXI, mas até ao momento ainda não conseguiu nada que se aproxime das demografias das séries de televisão. Os comediantes sendo também uma novidade, surgem também pela força da televisão, seja por cabo ou stream ou simplesmente na rede, eles surgem enquanto programa de televisão. E ainda que possam encher teatros e auditórios, a sua força de atração e relevância social é emanado por esses programas, o que nos alerta para mais uma das muitas visões que os futuristas nos deram no passado, o fim da televisão.
Ainda no campo das áreas, e apesar de serem já bastantes, e nem saber se o Guardian não irá continuar a publicar mais listas, estranha-se a não presença de Banda Desenhada, ainda que alguns livros surjam no meio da lista de Livros, e podíamos dizer o mesmo da Pintura ou Escultura que desapareceram no meio das Artes, engolidas pela Arte Contemporânea, assim como a Animação e as Curtas-metragens. Ainda assim notamos também a falta de uma maior atenção às obras Multimédia — Webdocs, Filmes Interativos, Realidade Virtual e Aumentada, Instalações, Transmedia — que parece quase sempre existir por via dos videojogos, pela simples razão do dinheiro que movimentam.
Sobre as listas, comento apenas 3 — Filmes, Livros e Videojogos — por serem aquelas que sigo com maior proximidade a produção de cânone. Não discordando de nenhuma das primeiras obras de cada lista, estranhei o facto de discordar bastante do resto dos Top 5, nomeadamente todos apresentam pelo menos 2 obras que não figurariam no meu Top 50 ou mesmo 100. No cinema — "12 Years a Slave" e "Under the Skin". No caso dos jogos — "Legend of Zelda: Breath of the Wild" e "Dark Souls". No caso dos livros, "Gilead" e "Never Let Me Go". Estranhei esta minha reação, algo visceral, porque como disse acima os cânones são importantes, e por isso sentir-me em desacordo tão profundo deverá querer dizer algo. Talvez a única explicação seja apenas e só que estou a ficar velho, e desfasado do tempo em que as modas são definidas. Não é a primeira vez que o sinto, já o senti antes ainda que seja algo mais recente. Como se nós fossemos envelhecendo e os mais novos fossem tomando o nosso lugar no domínio das correntes culturais e de entretenimento e os gostos gerais fossem naturalmente sendo atualizados.
Como criticar é sempre mais fácil do que fazer, e porque fazer listas limitadas apenas ao século XXI no caso da literatura é altamente complicado pelo que não pode ser equacionado pela data de produção, e no caso dos videojogos porque praticamente tudo cai dentro deste período. Deixo assim as minhas três lista de 5 obras em cada uma das áreas:
LIVROS
1. A Mancha Humana, Philip Roth, 2000, EUA
2. Liberdade, Jonathan Franzen, 2010, EUA
3. Os Dias do Abandono, Elena Ferrante, 2002, Itália
4. Uma Questão de Beleza, Zadie Smith, 2005, UK
5. A Estrada, Cormac McCarthy, 2007, EUA
FILMES
1. In the Mood for Love, Wong Kar-Wai, 2000, China
2. The Turin Horse, Béla Tarr, 2011, Hungria
3. A Separation, Asghar Farhadi, 2011, Irão
4. The Return, Andrey Zvyagintsev, 2003, Rússia
5. Three Monkeys, Nuri Bilge Ceylan, 2008, Turquia
VIDEOJOGOS
1. Ico, Fumito Ueda, 2001, Japão
2. The Last of Us, Bruce Straley & Neil Druckmann, 2013, EUA
3. Papers, Please, Lucas Pope, 2013, EUA
4. Her Story, Sam Barlow, 2015, EUA
5. Brothers: A Tale of Two Sons, Josef Fares, 2013, Suécia
Como disse, os grandes videojogos foram todos feitos já neste século, por isso é muito difícil fazer uma mera lista de 5. Adiciono aqui mais alguns que podiam ter entrado: The Witcher 3: Wild Hunt (2015), Max Payne (2001), Mass Effect Trilogy (2007-2012), The Stanley Parable (2013), Soma (2015), Inside (2016), The Sims (2000), Gris (2018), This War of Mine (2014), Gone Home (2013), The Walking Dead (2012), Thomas Was Alone (2012), Life is Strange (2015), Minecraft (2009), entre outros. Já agora, reparo que tenho 3 jogos de 2013 nos 5, mais 2 referenciados neste lista alargada, algo para analisar e refletir posteriormente.
Começar pelo todo das áreas escolhidas, percebe-se um enfoque na arte e na narrativa, notando-se a inclusão de duas áreas que apenas recentemente começaram a ganhar projeção: os Programas de TV e os Comediantes. Os primeiros claramente pela enorme força das séries de televisão que se têm vindo a transformar no grande meio de cultura de massas, lugar que já tinha pertencido à televisão, passou para o cinema, e agora parece estar a voltar à televisão. Interessante recapitular como os videojogos tinham sido anunciados como o meio do século XXI, mas até ao momento ainda não conseguiu nada que se aproxime das demografias das séries de televisão. Os comediantes sendo também uma novidade, surgem também pela força da televisão, seja por cabo ou stream ou simplesmente na rede, eles surgem enquanto programa de televisão. E ainda que possam encher teatros e auditórios, a sua força de atração e relevância social é emanado por esses programas, o que nos alerta para mais uma das muitas visões que os futuristas nos deram no passado, o fim da televisão.
Ainda no campo das áreas, e apesar de serem já bastantes, e nem saber se o Guardian não irá continuar a publicar mais listas, estranha-se a não presença de Banda Desenhada, ainda que alguns livros surjam no meio da lista de Livros, e podíamos dizer o mesmo da Pintura ou Escultura que desapareceram no meio das Artes, engolidas pela Arte Contemporânea, assim como a Animação e as Curtas-metragens. Ainda assim notamos também a falta de uma maior atenção às obras Multimédia — Webdocs, Filmes Interativos, Realidade Virtual e Aumentada, Instalações, Transmedia — que parece quase sempre existir por via dos videojogos, pela simples razão do dinheiro que movimentam.
Sobre as listas, comento apenas 3 — Filmes, Livros e Videojogos — por serem aquelas que sigo com maior proximidade a produção de cânone. Não discordando de nenhuma das primeiras obras de cada lista, estranhei o facto de discordar bastante do resto dos Top 5, nomeadamente todos apresentam pelo menos 2 obras que não figurariam no meu Top 50 ou mesmo 100. No cinema — "12 Years a Slave" e "Under the Skin". No caso dos jogos — "Legend of Zelda: Breath of the Wild" e "Dark Souls". No caso dos livros, "Gilead" e "Never Let Me Go". Estranhei esta minha reação, algo visceral, porque como disse acima os cânones são importantes, e por isso sentir-me em desacordo tão profundo deverá querer dizer algo. Talvez a única explicação seja apenas e só que estou a ficar velho, e desfasado do tempo em que as modas são definidas. Não é a primeira vez que o sinto, já o senti antes ainda que seja algo mais recente. Como se nós fossemos envelhecendo e os mais novos fossem tomando o nosso lugar no domínio das correntes culturais e de entretenimento e os gostos gerais fossem naturalmente sendo atualizados.
Como criticar é sempre mais fácil do que fazer, e porque fazer listas limitadas apenas ao século XXI no caso da literatura é altamente complicado pelo que não pode ser equacionado pela data de produção, e no caso dos videojogos porque praticamente tudo cai dentro deste período. Deixo assim as minhas três lista de 5 obras em cada uma das áreas:
LIVROS
1. A Mancha Humana, Philip Roth, 2000, EUA
2. Liberdade, Jonathan Franzen, 2010, EUA
3. Os Dias do Abandono, Elena Ferrante, 2002, Itália
4. Uma Questão de Beleza, Zadie Smith, 2005, UK
5. A Estrada, Cormac McCarthy, 2007, EUA
FILMES
1. In the Mood for Love, Wong Kar-Wai, 2000, China
2. The Turin Horse, Béla Tarr, 2011, Hungria
3. A Separation, Asghar Farhadi, 2011, Irão
4. The Return, Andrey Zvyagintsev, 2003, Rússia
5. Three Monkeys, Nuri Bilge Ceylan, 2008, Turquia
VIDEOJOGOS
1. Ico, Fumito Ueda, 2001, Japão
2. The Last of Us, Bruce Straley & Neil Druckmann, 2013, EUA
3. Papers, Please, Lucas Pope, 2013, EUA
4. Her Story, Sam Barlow, 2015, EUA
5. Brothers: A Tale of Two Sons, Josef Fares, 2013, Suécia
Como disse, os grandes videojogos foram todos feitos já neste século, por isso é muito difícil fazer uma mera lista de 5. Adiciono aqui mais alguns que podiam ter entrado: The Witcher 3: Wild Hunt (2015), Max Payne (2001), Mass Effect Trilogy (2007-2012), The Stanley Parable (2013), Soma (2015), Inside (2016), The Sims (2000), Gris (2018), This War of Mine (2014), Gone Home (2013), The Walking Dead (2012), Thomas Was Alone (2012), Life is Strange (2015), Minecraft (2009), entre outros. Já agora, reparo que tenho 3 jogos de 2013 nos 5, mais 2 referenciados neste lista alargada, algo para analisar e refletir posteriormente.
setembro 14, 2019
Uma Obra Enternecedora de Assombroso Génio
Não é um texto de génio, mas por vezes parece, no essencial é uma obra que demonstra uma assombrosa autoconsciência social, emocional e literária. Eggers conhece muito bem o mundo da literatura, tão bem como conhece as relações sociais humanas, e aproveita-se disso para brincar e romancear o centro da sua narrativa autobiográfica tornando-a mais digestível, porque assenta na morte de ambos os pais de cancro, tendo ficado o autor com 21 anos e responsável pelo irmão mais novo, Toph de 8 anos. Existem vários momentos em que esquecemos que estamos a ler as memórias do autor, tal o distanciamento que ele consegue criar na análise que faz do que aconteceu, antes e depois, especialmente pela intensidade da autocrítica que parece impossível de ser dita por alguém sobre si e sobre os seus, e num tom de brincadeira. Sobre tudo isto existe ainda o facto de ser um livro de memórias de alguém com apenas 29 anos, o que diga-se poderá ter contribuído para essa capacidade de alheamento cómico.
Dito isto, percebe-se melhor o título. Eggers sabe que tem uma história poderosa em mãos, e que facilmente poderia sacar lágrimas de quem o lê, mas não era isso que queria e por isso deu o mote logo no título, gozando consigo mesmo. Cabe ao leitor aceitar o repto do autor, ou não. A escrita é muito boa, Eggers vem munido de grande bagagem literária, não raras vezes damos por nós a parar para avaliar o que foi dito, o modo como foi dito, o que é que aquilo diz sobre o autor, mas também sobre nós, os humanos. Por outro lado, também muitas outra vezes damos por nós a desesperar e a querer avançar na diagonal, porque Eggers resolve engrenar numa variação qualquer que pouco ou nada tem que ver com o enredo geral. Na verdade, o livro é demasiado grande (450), 2/3 teria sido suficiente.
Como nota final, Eggers contribui de algum modo para o atenuar da nossa visão dos problemas num tom pessimista e negro. Por mais mal que estejamos, existe sempre quem estará pior e tem de conseguir encontrar forma de lidar com tal. Ainda que Eggers se recuse a fazer o papel de condutor do leitor pela via do sofrimento, torna-se inevitável olhar para tal e considerar a relação de identificação que criamos com o autor. Sofrer é uma condição inevitável pela qual todos os seres humanos têm de passar, mas podemos optar por usar a nossa consciência desses sofrimento para o tornar menos penoso.
Dito isto, percebe-se melhor o título. Eggers sabe que tem uma história poderosa em mãos, e que facilmente poderia sacar lágrimas de quem o lê, mas não era isso que queria e por isso deu o mote logo no título, gozando consigo mesmo. Cabe ao leitor aceitar o repto do autor, ou não. A escrita é muito boa, Eggers vem munido de grande bagagem literária, não raras vezes damos por nós a parar para avaliar o que foi dito, o modo como foi dito, o que é que aquilo diz sobre o autor, mas também sobre nós, os humanos. Por outro lado, também muitas outra vezes damos por nós a desesperar e a querer avançar na diagonal, porque Eggers resolve engrenar numa variação qualquer que pouco ou nada tem que ver com o enredo geral. Na verdade, o livro é demasiado grande (450), 2/3 teria sido suficiente.
Como nota final, Eggers contribui de algum modo para o atenuar da nossa visão dos problemas num tom pessimista e negro. Por mais mal que estejamos, existe sempre quem estará pior e tem de conseguir encontrar forma de lidar com tal. Ainda que Eggers se recuse a fazer o papel de condutor do leitor pela via do sofrimento, torna-se inevitável olhar para tal e considerar a relação de identificação que criamos com o autor. Sofrer é uma condição inevitável pela qual todos os seres humanos têm de passar, mas podemos optar por usar a nossa consciência desses sofrimento para o tornar menos penoso.
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