julho 20, 2019

5 Razões porque é Difícil fazer Videojogos

Comecei a ler “Blood, Sweat, and Pixels” do Jason Schreier e chegado ao final da introdução pareceu-me existir já material relevante para partilhar, tendo em conta que Schreier apresenta nessa mesma introdução uma espécie de síntese daqueles que são os problemas centrais da produção de videojogos, ou seja, dos elementos específicos que separam esta indústria cultural das demais, nomeadamente de um lado a cinematográfica, e do outro a de produção de software.


Definição do processo de produção de qualquer jogo:
“Every single video game is made under abnormal circumstances. Video games straddle the border between art and technology in a way that was barely possible just a few decades ago. Combine technological shifts with the fact that a video game can be just about anything, from a two-dimensional iPhone puzzler to a massive open-world RPG with über-realistic graphics, and it shouldn’t be too shocking to discover that there are no uniform standards for how games are made. Lots of video games look the same, but no two video games are created the same way”
As 5 razões apresentadas abaixo são o resultado da síntese de entrevistas a mais de 100 criadores da grande indústria internacional de jogos, entre 2015 e 2017, responsáveis por títulos como: "Pillars of Eternity", "Uncharted 4", "Stardew Valley", "Diablo III", "Halo Wars", "Dragon Age: Inquisition", "Shovel Knight", "Destiny", "The Witcher 3":


1. Eles são Interativos
“Video games don’t move in a single linear direction. Unlike, say, a computer-rendered Pixar movie, games run on “real-time” graphics, in which new images are generated by the computer every millisecond. Video games, unlike Toy Story, need to react to the player’s actions. As you play a video game, your PC or console (or phone, or calculator) renders characters and scenes on the fly based on your decisions. If you choose to walk into a room, the game needs to load up all the furniture. If you choose to save and quit, the game needs to store your data. If you choose to murder the helpful robot, the game needs to identify (a) whether it’s possible to kill the robot, (b) whether you’re powerful enough to kill the robot, and (c) what kind of awful sounds the robot will make as you spill its metallic guts. Then the game might have to remember your actions, so other “characters know that you’re a heartless murderer and can say things like, “Hey, you’re that heartless murderer!”
2. A Tecnologia está Constantemente a Mudar
“As computers evolve (which happens, without fail, every year), graphic processing gets more powerful. And as graphic processing gets more powerful, we expect prettier games. As Feargus Urquhart, the CEO of Obsidian, told me, “We are on the absolute edge of technology. We are always pushing everything all the time.” Urquhart pointed out that making games is sort of like shooting movies, if you had to build an entirely new camera every time you started. That’s a common analogy. Another is that making a game is like constructing a building during an earthquake. Or trying to drive a train while someone else runs in front of you, laying down track as you go.”
3. As Ferramentas são Sempre Diferentes 
To make games, artists and designers need to work with all sorts of software, ranging from common programs (like Photoshop and Maya) to proprietary apps that vary from studio to studio. Like technology, these tools are constantly evolving based on developers’ needs and ambitions. If a tool runs too slowly, is full of bugs, or is missing pivotal features, making games can be excruciating. “While most people seem to think that game development is about ‘having great ideas,’ it’s really more about the skill of taking great ideas from paper to product,” a developer once told me. “You need a good engine and toolset to do this.”
4. A Calendarização é Impossível
“The unpredictability is what makes it challenging,” said Chris Rippy, a veteran producer who worked on Halo Wars. In traditional software development, Rippy explained, you can set up a reliable schedule based on how long tasks have taken in the past. “But with games,” Rippy said, “you’re talking about: Where is it fun? How long does fun take? Did you achieve that? Did you achieve enough fun? You’re literally talking about a piece of art for the artist. When is that piece of art done? If he spends another day on it, would that have made all the difference in the world to the game? Where do you stop? That’s the trickiest part. Eventually you do get into the production-y side of things: you’ve proven the fun, you’ve proven the look of the game, and now it becomes more predictable. But it’s a real journey in the dark up until that point.” Which leads us to...”
5. É Impossível saber o quão "Divertido" será um Jogo até que o Joguemos
“You can take educated guesses, sure, but until you’ve got your hands on a controller, there’s no way to tell whether it feels good to move, jump, and bash your robot pal’s brains out with a sledgehammer. “Even for very, very experienced game designers, it’s really scary,” said Emilia Schatz, a designer at Naughty Dog. “All of us throw out so much work because we create a bunch of stuff and it plays terribly. You make these intricate plans in your head about how well things are going to work, and then when it actually comes and you try to play it, it’s terrible.”

Excertos da Introdução de “Blood, Sweat, and Pixels: The Triumphant, Turbulent Stories Behind How Video Games Are Made” (2017) de Jason Schreier, da Harper Paperbacks.

julho 14, 2019

A Ilusão da Memória: Recordando, Esquecendo e a Ciência das Memórias Falsas

O livro "The Memory Illusion: Remembering, Forgetting, and the Science of False Memory" (2016) não traz nada de muito novo, mas reforça com amplas evidências a fragilidade de algo que nos habituámos a acreditar como sendo a verdade daquilo de que somos feitos. Seguindo Damásio, o Eu é feito das memórias autobiográficas, por isso perceber o quão frágeis essas memórias são, e quão iludidos podemos tão facilmente ser, põe a nu a impotência daquilo que somos e ansiamos ser. Neste sentido, ler Memory Illusion funciona como uma espécie de porta para um ganho de maior consciência sobre o funcionamento do nosso inconsciente.


A especialidade de Julia Shaw é o estudo das memórias falsas. É professora na London South Bank University, e trabalha como consultora forense em casos relacionados com o abuso sexual. O foco do livro é sobre a facilidade com que se criam e apagam memórias, descrevendo-se técnicas sobre modos de fabricação de memórias falsas, e algumas tentativas para despistar as mesmas. É uma área de estudo pantanosa, já que incide totalmente sobre a subjetividade mais íntima, obrigando a trabalhar com grande latência ao erro, ou seja, sabendo que a verdade pode em muitos casos ser completamente impossível de recuperar.

Na generalidade gostei das abordagens, tive apenas algumas reticências nas breves incursões que a autora faz no campo educativo, nomeadamente no papel cognitivo da memória na aquisição de competências, tal como o pensamento crítico, deixou-se enredar facilmente pelo discurso do digital e da memória externa do Google, algo que acaba a fazer novamente quando discute o impacto das redes sociais nas memórias. O que vale é que estas duas incursões são muito breves, não podendo ser de outra forma, já que o foco e trabalho da autora está noutro campo.

Shaw não se inibe também de desmontar uma série de mitos, desde as memórias que alguns de nós pensam reter, anteriores à linha dos 3.5 anos, podendo rondar entre os 2 e os 5, mas colocando todas as memórias abaixo de 1 ano como simplesmente impossíveis. Parece existir um fascínio e grupos de pessoas que assumem recordar o dia em que nasceram, ou o primeiro objecto que viram, e no entanto tudo isso não passa de fabricações, como demonstram as dezenas de estudos realizados no campo. Outra das áreas que Shaw demonstra é a da hipnose, reconhecida por aparentemente ser capaz de recuperar memórias perdidas, algo também sem qualquer sustentação empírica. Do mesmo modo Shaw ataca sem qualquer pudor um dos métodos da psicanálise herdado de Freud, o tratamento por vida da recuperação de memórias traumáticas e reprimidas. Segundo Shaw, o que estes métodos — hipnose e psicanálise — tendem a fazer, é simplesmente criar memórias falsas, já que seguem todo o modus operandi da produção das mesmas.

Por fim quero deixar uma nota de reconhecimento e admiração pelo esforço que Shaw fez em evitar as chamadas universidades de elite, que não passam de universidades de propaganda, o que fica bem evidenciado pelo trabalho aqui apresentado, para o qual contribuíram dezenas de universidades europeias e estatais americanas, sem as quais o trabalho no campo hoje teria muito menos valor. Não raro, estes livros de divulgação limitam-se a citar meia-dúzia de universidades, sempre as mesmas, facilmente reconhecíveis e associáveis a uma chamada elite, ou seja a Ivy League americana e duas ou três inglesas, as mesmas que são citadas em todos os filmes de Hollywood e livros bestsellers. Shaw cita algumas dessas, mas não lhes dá qualquer espaço particular, não se coíbe como é tão usual fazer-se de citar universidades estatais americanas, e apesar de britânica cita imensas universidades europeias. Deixo uma listagem das citadas que apanhei rapidamente: Amsterdam, Geneva, Western Washington, Missouri, Oslo, Temple, North Carolina, Chicago, Tel-Aviv, Minnesota, Giessen, Nevada, British Columbia, Trier, Wilfried Laurie, Laval, Durham , Queen Mary, College of London, Southern California, New York, Columbia, Iowa State, Bordeaux, ESPCI Paris, Arizona, St Lawrence University, Freiburg, Cambridge, Stanford, Lille, Virginia, Harvard, Kent State, Tübingen, Zurich, Boston, Turku, Lethbridge, Stockholm, City, New South Wales, Flinders, Glasgow, Vanderbilt, Tufts, Dalhousie, Bielefeld, Cornell, Yale, Fairfield, Victoria, Maryland, Texas Women’s, MIT, Alabama, Illinois State, Hartford, Baylor, Duke, Toledo, Brown, Rice, Bern, Texas A&M.

julho 13, 2019

O Quarto de Marte (2018)

Foi o Segundo livro de Kushner, o primeiro tinha sido “Os Lança-Chamas” (análise), do qual tinha adorado a forma mas não me tinha ligado com o conteúdo, agora aconteceu em parte o contrário, já que a forma sendo boa não me impressionou, mas sendo fluída acabou gerando uma excelente plataforma para as histórias contadas e o universo criado. O tema de fundo é a prisão perpétua, como se chega a ela e como se lida com ela, quem são as pessoas (nos EUA) sujeitas a ela. Kushner faz um bom trabalho, não se liga à defesa nem à provocação, plana antes sobre os diferentes lados da questão, dá-a ver e a sentir, mas deixa na consciência do leitor o labor crítico de formação de opinião.


O mais evidente desta abstenção de exercício da sua posição e propaganda é desde logo o modo como Kushner evita as emoções que seriam fáceis tendo como pano de fundo condenadas à vida, e mesmo à morte. Seria fácil fazer chorar o leitor, ou logo a seguir enraivecer o mesmo. Temos momentos em que Kushner quase roça a defesa, em que dá conta dos problemas que vivem e atravessam as condenadas, mas é tudo suficientemente balançado para não nos levar pelo coração. As descrições do dia-a-dia, das relações entre prisioneiras, suas conquistas e escapes, vão preenchendo o espaço-tempo de algum normalidade que nos retira dos pensamentos de fins ou injustiças do sistema.

Ainda assim, mais perto do final, torna-se praticamente inevitável questionar a razão, o objetivo, o fundamento, e as evidências que suportam tais penas. Não é apenas pela gravidade, ou pela idade em que se cometem, ou pelo efeito de estupefacientes, ou desespero social ou humano, mas é mesmo pela desproporção da pena que não deveria nunca ser vista como vingança mas antes como reabilitadora. É isso que aqui se levanta, ainda que Kushner não o discuta, apenas aflore, ainda que Kusnher nem sequer dê exemplos ou comparações com outros estados americanos, ou com a Europa. Por exemplo em Portugal a pena máxima é de 25 anos, e essa raramente é cumprida na totalidade se a pessoa demonstrar arrependimento e tiver bom comportamento. Que buscamos demonstrar à sociedade quando penalizamos alguém com uma pena, ou no caso, duas penas perpétuas seguidas? Não é isto completamente desprovido de senso? Sim, eu sei que qualquer ser humano quando agredido, ou agredido um dos seus, reage vingativamente, existe uma necessidade interior de expiar a dor, de sentir que o universo se regula por uma justiça com pesos iguais. Mas se inventámos um edifício social de Justiça foi para findar com essa vingança, para pôr cobro a um sentimento que de nada serve, e que se seguido pelo sistema penal dá como exemplo a toda a sociedade a lógica dessa vingança, em nada então se diferenciado do animalesco desse sentir. Veja-se a história da condenada a três perpétuas que Obama indultou, compare-se os seus crimes com as aberrações dos casos OJ Simpson ou o mais recente caso de Jeffrey Epstein, em que o dinheiro e acesso ao sistema fazem toda a diferença.

Neste livro Kushner está completamente focada nas penas e nas prisões, nos seus personagens, e nunca abandona o tema, teve claramente muito trabalho para conseguir chegar a algumas das descrições apresentadas, ainda assim senti-o menos elaborado do que “Os Lança-Chamas”, menos rico em detalhe, talvez menos ornamentado, mas como disse, mais instigante em termos de mensagem.

julho 08, 2019

Therese Raquin (1867)

"Therese Raquin" (1867) é um romance curto, quase uma novela, centrado num triângulo amoroso com crime, e as consequências psicológicas desse crime. O cenário é tão antigo como o humano, a novidade assenta no modo como Zola trabalha os efeitos do crime, como entra pelas mentes dos criminosos adentro que soltos de culpa oficial não conseguem livrar a sua consciência da mesma. É algo que já tinha sido feito, com grande sagacidade no ano anterior, pelas mãos de Dostoiévski com “Crime e Castigo” (1866). Zola não desilude, mas corre mais riscos, apesar de naturalista não consegue evitar uns certos traços de terror psicológico por via de algum exageramento. O livro continua a ler-se bem ainda hoje, mas talvez o mais interessante seja mesma a parte académica, o lançamento da obra e as críticas duras que recebeu, o que pretendia Zola fazer e as justificações nos prefácios seguintes, assim como as adaptações para teatro e depois cinema.


Deixo ainda uma nota, estes clássicos têm sempre algo de mais relevante que é o modo como nos dão a ver outras épocas, os costumes e comportamentos, os receios e os despreendimentos. Uma das cenas mais impressionantes deste livro acontece na descrição do funcionamento da morgue de Paris em 1860. É uma descrição absolutamente macabra. Deixo um excerto:
“A Morgue é espetáculo ao alcance de todas as bolsas, que pobres ou ricos oferecem gratuitamente a si próprios.
A porta está aberta, entra quem quer. Amadores há que fazem um desvio para não perder uma destas representações da morte. Se as lajes estão vazias, saem desapontados, murmurando entre dentes. Quando estão bem providas, quando há uma boa exposição de carne humana, os visitantes comprimem-se, dando-se emoções baratas, assustam-se, deleitam-se, aplaudem ou assobiam como no teatro e retiram-se satisfeitos, declarando que a Morgue nesse dia saiu-se bem.
Laurent conheceu depressa o público que ali acorria, público heterogéneo que se compadecia e escarnecia em comum. Entravam operários, a caminho do trabalho, com um pão e as ferramentas debaixo do braço; achavam a morte divertida. Entre eles encontravam-se os que faziam sorrir a galeria a cada frase sobre o rito de cada cadáver; chamavam carvoeiros aos que tinham morrido queimados; os enforcados, os assassinados, os afogados, os cadáveres estripados ou esmagados, excitavam-lhes a imaginação zombeteira e com voz que lhes tremia ligeiramente balbuciavam frases cómicas no silêncio arrepiante da sala.”

Storytelling e as Ciências da Mente

O livro “Storytelling and the Sciences of Mind” (2013) de David Herman, pela MIT Press, trata um dos temas que mais tem atraído o meu interesse nos últimos 15 anos, e que tem que ver com o modo como as histórias servem o nosso enquadramento da realidade. Tentar compreender como é que a organização narrativa de informação nos ajuda a compreender o mundo e os outros, como é que essa organização se relaciona com as nossas capacidades cognitivas e nos impele não apenas a refletir e a interpretar os mundos, situações e pessoas apresentadas, mas também a conceber e especular planos futuros para ação, produzindo assim transformações comportamentais a partir da relação com essas narrativas. O livro de Herman é brilhante, porque não se limita a um dos lados da questão, antes trabalha transdisciplinarmente a narratologia e as ciências cognitivas, importando e fusionando conhecimento de parte a parte. O único problema é estar escrito numa forma nada amigável para quem não estude a área, reduzindo completamente o alcance da obra.


Na última década não têm faltado trabalhos no domínio da narrativa e storytelling sobre a sua importância para o humano e para as nossas capacidades cognitivas (Gottschall, Brian Boyd, Paul Zak, etc. ), contudo como diz Herman esses trabalhos têm-se limitado a importar apenas de um lado para o outro. Ora Herman apresenta uma obra na qual apresenta um troca entre ambas as partes, alimentando mutuamente o conhecimento tanto da narrativa como do modo como apreendemos o mundo. Assim o livro divide-se em duas grandes partes, procurando responder às duas grandes questões: (1) “How do stories across media interlock with interpreters’ mental capacities and dispositions, thus giving rise to narrative experiences?”, ou seja, como é que interpretamos os mundos apresentados pelas narrativas. (2) “And how (to what extent, in what specific ways) does narrative scaffold efforts to make sense of experience itself?”, ou seja, como é que a narrativa contribuiu para a nossa compreensão da realidade. Para o efeito Herman propõe dois grandes conceitos: “Narrative Worldmaking” e “Storying the World”.

Assim para o Worldmaking, Herman propõe que as narrativas — independentemente do media — funcionam de modo referencial, providenciando estímulos cognitivos para a criação de entidades na forma de mundos onde as histórias acontecem. No “storying”, Herman propõe que as histórias configuram o modo como organizamos o fluxo do caos de estímulos da experiência diária. Deste modo, o worldmaking poderia ser visto como um instrumento de criação de sentido da realidade. Esta proposta de convergência de enquadramento teórico acaba por configurar aquilo que Herman define como o “mind-narrative nexus”.

Em jeito de introdução a toda esta teorização Herman abre o livro como uma discussão extremamente pertinente e com a qual me venho debatendo há algum tempo, a intenção autoral. Assim, só faz sentido configurarmos as histórias com base na criação de sentido se assumirmos que quem conta histórias o faz com uma intenção, ou seja, que a narrativa é em essência um ato de comunicação, algo que Walter Fisher já tinha proposto em 1985, mas que choca com alguns defensores da arte como algo não comunicacional. Do meu lado, tendo a aceitar mais facilmente que a arte possa não ser dotada de intenção comunicativa quando ela é de ordem simbólica — música ou abstracta — contudo quando falamos de estruturas narrativas, falar de ausência de intenção expressiva é no mínimo paradoxal. Para Herman isto é tanto mais central porque o modo como compreendemos as narrativas é a partir das razões que movem os personagens/pessoas sendo elas que conduzem as razões das histórias e sendo com elas que nós nos envolvemos. Porque os atos das pessoas nas histórias estão fundamentadas em "crenças", "intenções", "objetivos", "motivações", "emoções", "estados mentais" ou "competências" que para a interpretação do leitor têm de inevitavelmente ser atribuídas aos autores/criadores das narrativas.

Isto vai ao encontro da discussão que se segue que tem que ver com a análise não-redutível das situações e das pessoas nas histórias. Herman considera que apesar de podermos aprofundar neurocientificamente os constituintes de "pessoa", isso não nos ajuda a compreender o que acontece no processo de experiência dos recetores. Porque considera que os processos que decorrem acontecem ao nível da intersubjectividade, que pode ser definida em dois níveis, segundo Trevarthen  — primário, “the core of every human consciousness” que “appears to be an immediate, unrational, unverbalized, conceptless, totally atheoretical potential for rapport of the self with another’s mind”; e secundário “sympathetic intention toward shared environmental affordances and objects of purposeful action” — e que é responsável pela nossa noção de individualidade no seio da comunidade, e assim pela nossa capacidade de construir uma noção do nosso posicionamento nessa realidade. Deste modo as histórias servem não apenas o reforço de modelos sociais, mas servem fundamentalmente como experimento e teste desses modelos. Se as pessoas se baseiam nos seus conceitos do mundo para compreender o mundo apresentado pela narrativa, não deixam de usar essas mesmas narrativas como instrumentos de suporte ao pensamento crítico sobre esses conceitos. Ou seja, existe uma interação contínua entre aquilo que a narrativa apresenta e aquilo que é o mundo pré-exposição à história do recetor que conduz a uma discussão crítica interna.

Herman defende que o cerne do engajamento com as histórias acontece a partir do modo como podemos ou não mapear as pistas dadas em dimensões de configuração mental assentes no em: Quem, O Quê, Onde, Como e Porquê. E por sua vez como é que estas questões servem na passagem das categorias narrativas à definição dos personagens, para o que Herman defende que o leitor prossegue um conjunto de questões tais como:
(1) “For which elements of the WHAT dimension of the narrative world are questions about WHO, HOW, and WHY pertinent? In other words, in what domains of the storyworld do actions supervene on behaviors, such that it becomes relevant to ask, not just what cause produced what effect, but also who did (or tried to do) what, through what means, and for what reason?” 

(2) “How does the text, in conjunction with broader understandings of persons, enable interpreters to build a profile for the characters who inhabit these domains of action? Put otherwise, how do textual features along with models of personhood (deriving from various sources) cue interpreters to assign to characters personlike constellations of traits?” 

(3) “Reciprocally, how does the process of developing these profiles for individuals-in-a-world bear on broader understandings of persons?” 
Na segunda parte, dedicada ao "Storying the world", Herman dedica-se a desconstruir o modo como as narrativas podem servir de instrumentos ou ferramentas mentais para trabalhar o mundo, para o que apresenta cinco grandes modos de criação de sentido, ou modos de scaffolding (de suporte) ao nosso pensamento:

1 — “’chunking’ experience into workable segments”
Aqui Herman começa por exemplificar com a divisão em 3 atos de Aristóteles, que tem apenas como objetivo podermos separar em partes a experiência absorvida. Ou seja, particionar e atribuir estrutura à informação, organizando em “pedaços” facilmente indexáveis e chamáveis à memória. Neste processo de chunking enquadram-se vários processos, um também muito interessante é a noção de espaço versus lugar:
“stories can be used to turn spaces into places — to convert mere geographic locales into inhabited worlds. My analysis suggests that there is in fact a range of ways in which narrative can serve as a resource for transforming abstract spaces into lived-in, experienced, and thus meaningful places (..) As Johnstone (1990) puts it, “coming to know a place means coming to know its stories; new cities and neighborhoods do not resonate the way familiar ones do until they have stories to tell” (p. 109; cf. p. 119 and also Johnstone 2004; Easterlin 2012, pp. 111–151; Finnegan 1998; Relph 1985; Tuan 1977). Accordingly, “in human experience, places are narrative constructions, and stories are suggested by places” (Johnstone 1990, p. 134). Hence narrative worldmaking can also be described as a resource for place making—for saturating with lived experience what would otherwise remain an abstract spatial network of objects, sites, domains, and regions."
2 — “imputing causal relations between events” 
É esta componente que nos permite desenvolver pensamento crítico sobre o que acontece nas relações entre os agentes, analisar, contrastar e confrontar as razões, a justeza, a verdade e falsidade. Herman defende que lemos os eventos como ações que constroem o mundo-história dirigido a um objetivo, para uma meta que condiciona as ações e reações. No fundo esta abordagem pela causalidade serve também o chunking, já que permite relacionar eventos e ocorrências até aqui isoladas, em episódios ou cenas, que depois podemos utilizar mentalmente. Herman diz mesmo que as histórias funcionam como heurísticas de julgamento, que vão contribuindo para alimentar com regras básicas a nossa interpretação da realidade.

3 — “addressing problems with the 'typification' of phenomena” 
Neste ponto entramos num processo de chunking, ou organização, em parte, do modo como resolvemos problemas. No fundo, o modo como conseguimos partir do particular de cada história para a generalização da nossa relação com a realidade diária. Herman fala então da tipificação, ou categorização — em objetos e classes — que nos permite gerar expectativas para determinadas resultados de solução para situações nunca antes encontradas, através daquilo que já experienciámos. Assim “If assimilated to preexistent types, any encountered object, situation, or event can be placed within a “horizon of familiarity and pre-acquaintanceship which is, as such, just taken for granted until further notice as the unquestioned, though at any time questionable stock of knowledge at hand”. As histórias recebidas sobre o mundo fornecem contextos de tipicidade, garantindo a interpretação de ocorrências inesperadas, permitindo vários modos de resolução de problemas. No fundo, “a general account of narrative as a mind-extending, mind-enabling resource” (p. 251).

4 — “sequencing actions” 
Aqui a ideia é de que as histórias nos fornecem também uma espécie de protocolos de atuação, de racionalização da sequência de ações a tomar. Este processo é comparado por Herman à conversação, na qual nos organizamos para colaborar, aqui utilizamos as pistas para nos organizer para agir na relação com o problema proposto pela realidade.

5 — “distributing intelligence across time and space”
Este ponto surpeendeu-me porque me habituei a pensar nele a partir da rede de internet, e apesar dele ter nascido com o contar de histórias, e apesar de sabermos que esse é um dos grandes fundamentos das histórias, a passagem de conhecimento entre gerações, nunca tinha parado para compreender as histórias como um fenómeno de inteligência distribuída, que o é também.


Deixo ainda uma palavra para a complexidade do texto. Herman trabalha de forma soberba a abstração de conceitos, o seu problema acaba sendo a enorme dificuldade que tem em particularizar as mesmas. O livro denota um esforço tremendo no sentido de tornar o texto mais acessível, desde logo todos os capítulos apresentam introduções e conclusões de sumário, que repetem os argumentos, assim como são utilizadas várias histórias de vários meios — literatura, cinema, banda desenhada — para desmontar os conceitos, mas nem assim se torna mais fácil compreender o que é aqui discutido. É interessante como Herman compreende que a força das histórias está na particularização e individuação dos eventos e das ações, no uso das pessoas/personagens como veículos principais da compreensão, mas depois não consegue aplicar essas ideias na sua abordagem comunicativa. Não é uma mera questão de uso de jargão, embora diga-se que não houve nesse domínio qualquer controlo de danos, e isso também não ajuda, mas o maior problema são mesmo as enormes tiradas de conceitos abstractos, definidos por jargão, que se interligam e embrenham em novos conceitos, que obrigam o leitor a montar todo um enquadramento mental altamente exigente, para o que quem não possui experiência e conhecimentos anteriores da discussão se torna praticamente inacessível.

julho 06, 2019

O caos do social e a força do humano

Vi o filme, "Capernaum" (2018), sabendo pouco mais além de ter ganho prémios e um trailer visto na diagonal. Enquanto o via senti uma abertura de território novo — o caos do Líbano e os efeitos da crise dos refugiados do país vizinho, a Síria, de onde chegou na última década mais de um milhão de refugiados a um país feito de apenas seis milhões —, um mundo de que vamos falando, mas conhecemos mal, com uma perspectiva a partir de dentro, e uma forma de filmar de guerrilha, que garante simultaneamente enorme realismo e intensidade, a fazer lembrar o  melhor de Dardenne, com um pouco de Padilha e Zvyagintsev. “Capernaum” significa “caos” em árabe, e é isso que o filme nos dá a ver, o contínuo caos social, o caos que nós humanos produzimos na relação com os outros e com a realidade, um caos que sabemos ser parte de nós mas que nos habituámos a domar para criar a cultura sobre a natureza.





Falando o filme sobre tantas e imensas vertentes desse caos e dessa relação homem-natureza, foi com algum espanto que no final ao abrir o Letterbox me deparei com as críticas mais populares ao filme, não apenas com notas baixíssimas mas todas focando-se num único ponto desse caos: o controlo da natalidade. A história apresenta uma criança de rua que decide levar os pais a tribunal por o terem feito nascer, dizendo no final que aquilo que quer é que os pais não tenham mais filhos. Para a ala esquerda da crítica, caiu o “carmo e a trindade”, dizem-nos que isto é um filme eugénico, a realizadora logo atacada de pertencer à direita libanesa e andar a fazer dinheiro à custa dos pobres, um filme que não entende que o problema são os políticos e os senhores da guerra, e depois vem apontar o dedo aos pobres pais e ao sexo desenfreado. Estas críticas são imensamente populares, ainda para mais porque em contra-corrente à chamada burguesia de Cannes que ousou dar um prémio a tal filme, mostrando que quem vai a tais festivais é tudo gente que vive numa bolha e não percebe nada deste mundo.

Talvez todos estes pseudo-defensores dos direitos de todos terem os filhos que quiserem, devessem ter atentado na sigla que surge colada ao casaco da criança que percorre todo o filme e diz SPSS. Talvez pudessem ter parado para pensar que SPSS é um software usado pelas Ciências Sociais para compreender os problemas das sociedades, e ajudar a encontrar formas de melhorar as vidas dessas pessoas. Talvez se estes críticos compreendessem um pouco melhor o mundo em que vivem, soubessem que nos países ricos em que vivem, existe todo um sistema de saúde nacional montado, que faz exatamente isto, que tem todo um sistema de Planeamento Familiar montado que passa pela oferta de consultas, informação e acesso gratuito aos mais diversos meios anticoncepcionais, tudo para evitar o descontrolo e insustentabilidade dessa natalidade.

Mas o filme é muito mais do que essa banal defesa do controlo de natalidade, o filme mostra a que ponto pode chegar um lugar, Beirute, que já foi a Paris do médio-oriente nos anos 1960, e que por causa de uma guerra-civil motivada pela força das convicções religiosas, se deixou afundar e autodestruir. A realizadora, Nadine Labaki, já tinha atacado o problema das religiões no filme “Where Do We Go Now?” (2011) usando como fundo a Lisístrata de Aristófanes, dando conta de uma realizadora que não faz filmes apenas porque é giro, mas porque sente a necessidade de pôr o dedo na ferida. E isso mesmo voltou a fazer neste “Capernaum”, pondo a nu os problemas da sociedade libanesa mostrando-lhes o que vai mal no seu país, apontando o dedo sem pudor, e dizendo bem alto que é preciso fazer alguma coisa. Sim, porque existe uma sociedade libanesa que vê cinema, o filme não foi feito para os senhores europeus ou americanos poderem apreciar a arte que se faz nos países “pobres”.

Nadine Labaki e Zain Al Rafeea em rodagem. Numa entrevista Labaki refere que todo foi filmado sem quais acessos especiais nem cortes de trânsito, incluindo a atriz da Etiópia chegou mesmo a ser presa durante a rodagem por não ter papéis.

Um filme destes facilmente cairia na exploração da pobreza, do sentimento fácil, apelando meramente à pena e compaixão, mas nem aí têm razão os seus detractores, apenas no final Labaki permite uma tal sequência. Todo o filme está centrado num personagem que é uma criança de 12 anos, Zain, muito franzina, mas imensamente resiliente, que nunca se vai abaixo por mais fundo o lugar em que se encontre, luta sempre, até ao final. Não há aqui qualquer exploração sentimentalista, antes existe sim o enaltecimento das qualidades humanas, daquilo que nos motiva a lutar todos os dias, a justiça, e daquilo que mantém os humanos em pé, a solidariedade e a empatia. Labaki utiliza os personagens como veículos da força humana capaz da sobrevivência nos mais inóspitos lugares, lutando contra todos os problemas recorrendo à inteligência armados pela justeza.

Temos de aceitar que a construção de Zain é magistral, não apenas pela performance ímpar da criança (ela própria um refugiado sírio na Líbia, hoje a viver na Noruega com os seus pais) mas pela composição criada para a sua apresentação, que põe em evidência desde o início o modo como a inteligência e o espirito crítico faz a diferença num mundo em que todos se limitam a seguir os exemplos à sua volta. Os seus pais quando questionados pelo tribunal é apenas isso que dizem, que foram assim tratados pelos seus pais, e por isso como eles continuam a fazer o mesmo. Mas Zain não se limita a fazer o mesmo que os seus pais ou os amigos do bairro, porque Zain não se limita a estar parado em casa, todos os dias tem de partir à luta, empurrado pelos pais e pela necessidade de alimentar todos aqueles irmãos. E é dessa luta diária que Zain extrai que lutando poderá conseguir mais, que fazendo outras opções poderá chegar a algo diferente, e não limitar-se a aceitar o mínimo que lhe querem oferecer. Existem duas cenas absolutamente excecionais e instigantes, uma inicial em que Zain dá a sua camisola à sua irmã para que ela consigo controlar o fluxo menstrual, e possa esconder à sua mãe que já entrou na puberdade, e uma outra em que Zain surge a aperfeiçoar o sotaque sírio para poder dirigir-se a um centro de apoio a refugiados sírios e assim conseguir comida para ele e para o bebé de 1 ano de quem toma conta.

Podemos dizer que o filme arrisca excessivamente, que quase se poderia ler como um dedo apontado à parte da sociedade em questão, atirando-lhes todas as culpas pelo seu insucesso, que é uma clara visão de direita, de que os pobres são pobres porque o querem ser. Mas querer ver tal mensagem no filme de Labaki, só pode partir de quem se ocupa de deturpação das mensagens e convicções dos outros. Se realmente o problema fosse esse, e fosse isso que corresse nas veias de Labaki, porque raio iria ela mostrar que pode brotar tanta inteligência de uma criança vinda de uma família tão indigente? Porque raio colocar em cena uma refugiada da Etiópia que tem de fugir para a clandestinidade porque os patrões ricos para quem trabalha não admitem empregadas grávidas? Porque raio colocar tanta enfâse nas repugnantes leis que permitem ter homens a casar com crianças de 11 anos?

Ainda bem que a crítica internacional soube compreender esta obra e agraciar a sua receção, só tenho pena que os júris do BAFTA e do Oscar não tenham também compreendido, tendo deixado-se seduxir por um muito inferior "Roma" (2018).

junho 23, 2019

A ciência de Steven Pinker, e dos seus

Uma rápida passagem pelas discussões genéricas em redor de “Enlightenment Now” passa a ideia de que uma boa parte não o leu, focando-se mais nas entrevistas e textos promocionais da obra do que no texto em si. Parece existir uma fixação da elite intelectual, mais de esquerda, em atacar os dados quantitativos e otimistas de Pinker, e uma fixação da elite científica, mais à direita, em defender esses mesmos dados. Quanto ao progresso visível nos dados, passo a discussão, Pinker não diz nada que Hans Rosling não tenha já dito em “Factfulness: Ten Reasons We're Wrong About the World – and Why Things Are Better Than You Think” (2018) (análise). Por outro lado, é tonto, para não dizer algo mais rude, ver Pinker ao longo de todo o livro a acicatar estes dois grupos de pessoas, querendo ele próprio colocar-se de fora, citando amiúde a seminal obra de CP Snow “The Two Cultures” (1959) (análise), mas de cada vez que o faz só se afunda mais num desses lados. Repare-se que estas duas culturas — que prefiro sintetizar pelos perfis dos modelos mentais, lógicos e ambíguos —, não são uma invenção do século XX, elas estão presentes desde a oposição entre Platão e Aristóteles, passando pela oposição entre Descartes e Hume, chegando aos estereótipos delineados por William James — “tender-minded” vs. “tough-minded” — que C.P. Snow opta por diferenciar como — “cientistas” e “intelectuais literários” — e que podemos apresentar, nos dias de hoje como — positivistas e interpretivistas.

Este mapa de conceitos explica muitos dos problemas do livro de "Enlightenment Now" (2018). No entanto se Pinker se coloca do lado do positivismo para defender o seu modo de ver, quando lhe interessa passa para o lado do interpretivismo, nomeadamente no que toca a atacar académicos como Bauman ou Foucault ou filósofos como Nietzsche.

Dito isto, teria pouco mais a dizer sobre o livro, porque como já disse Pinker não diz nada, em termos de dados económicos mundiais, que Rosling não diga muito melhor. Por outro lado, ao longo do livro as leituras que vai apresentando sobre esses dados são não só pouco novas, como pouco estimulantes, nomeadamente quando comparadas com as de Yuval Harari (análises dos seus livros). No entanto, não posso deixar de dizer algo mais sobre esta obra, mais concretamente sobre a terceira parte, e em especial os últimos dois capítulos — “Ciência” e “Humanismo — nos quais considero que Pinker destrói completamente a sua credibilidade enquanto académico moderado e conciliador, para não dizer mesmo enquanto académico.


No capítulo sobre Ciência, Pinker ataca diretamente Bauman e Foucault, rotulando-os de pós-modernos, anti-verdade, anti-ciência, anti-dados, tudo rótulos que não colam com nenhum dos autores, mas de que Pinker abusa para assim poder agregar valor ao trumpismo, populismo, conspiracionismo, etc. etc. O pior é que ao fazê-lo, rotulou esses dois autores com estes mesmos rótulos, o que é do muito ponto de vista, não um erro grosseiro, mas uma filha-da-putice (peço desculpa pela linguagem). É inadmissível que Pinker para defender as suas ideias, atire para a lama dois dos mais respeitados pensadores das ciências sociais, duas mentes dotadas de uma capacidade visionária impar. Não vou defender Foucault, que tem andado na boca de muitos, mas sobre o ataque  a Bauman tenho de falar.

Pinker não compreendeu, ou não quis compreender Zygmunt Bauman. Optou por simplesmente pegar nele e metê-lo no saco duvidoso em que estavam Adorno e Horkheimer, levando de arrasto o próprio Foucault. Ao fazê-lo cometeu um erro que destruiu tudo o que tinha para dizer. Adorno era um filósofo da Estética, não era sociólogo, ainda assim não se pode dizer que tenha só dito banalidades, muito do seu discurso de ataque à Arte Moderna na relação com o Nazismo faz algum sentido, claro que no final as suas teorias valem o que valem, falo extensivamente sobre isto na análise do “Doutor Fausto” (1947) de Mann (análise). Mas Bauman não era crítico de arte, foi um dos mais importantes sociólogos do século XX, judeu-polaco fugido dos Nazis para União Soviética, o seu impacto cresceu durante toda a segunda metade do século, recebendo as mais diversas premiações e condecorações científicas. Pinker comete um erro que vejo amiúde, misturar a discussão sobre Arte pós-moderna com a análise sociológica que define o tecido social como pós-modernista.

Vejamos então como para defender a sua visão otimista Pinker opta por dizer que a ciência não trouxe mais guerra, antes o contrário, e por isso não aceita que Bauman veja os nazis, o Holocausto, como fruto do Iluminismo. Ora, em primeiro lugar, isso mesmo diz Bauman, a evolução científica trouxe mais paz, mas isso não serve para eliminar a ciência da leitura, antes serve sim para tornar o Holocausto uma aberração ainda maior. Pinker do alto do seu racional lógico é incapaz de aceitar a anomalia à regra. Repare-se então como o tamanho e a brutalidade do que foi feito no Holocausto não é igual a nada na História anterior. Desde logo aqui seria preciso questionar-nos, então porquê agora? Mas Pinker, em vez de questionar, atira para o lado, do mesmo modo como faz noutros assuntos ao longo do livro, e menoriza mesmo, dizendo sobre o Holocausto apenas e só que racismo sempre existiu.

É preciso ler Bauman, ler como ele desmonta toda a máquina Nazi desde a burocracia à criação de rotina e desumanização, todo o modo como se constrói o distanciamento moral do ato violento. Nada disto era possível noutro tempo, porque nunca antes houvera civilizações tão racionalmente avançadas e organizadas para criar uma máquina que funcionasse sem controlo central, em cadeias autónomas. Repare-se como passados 75 anos não se sabe se a ordem para uma Solução Final chegou alguma vez a existir, pelo menos registos escritos não existem (ver “Shoa” (1985) análise), porque talvez a ordem nunca tenha mesmo sido proferida, mas tenha resultado de um conjunto de ideias, ordens, pressões, que se foram amontoando e culminaram em algo que provavelmente ninguém conseguiria sequer imaginar enquanto sujeito humano normal, e sim, a maior parte daqueles alemães eram pessoas normais, empáticas, com aversão à violência, mas o sistema conseguiu furar essas barreiras do humano. Repare-se ainda no modo como a racionalização científica atuou sobre a ideia de raça, não pela simples ideia da diferenciação de raças, mas pela lógica e causalidade, como fica explanado num excerto de Goebbels que Bauman cita:
"There is no hope of leading the Jews back into the fold of civilized humanity by exceptional punishments. They will forever remain Jews, just as we are forever members of the Aryan race." Goebbels
Ou seja, o racional está ali, não há como transformar judeus em arianos, por isso só nos resta aniquilá-los. A razão é lógica, só a compaixão poderia derrubar este racional, algo completamente inaceitável num sistema brutalmente lógico como o Nazi. Veja-se como as pessoas foram selecionadas para ser levadas para os campos, no caso de judeus regulares era direto, mas para aqueles que tinham casado fora do reduto judeu, criou-se uma fórmula de cálculo das gerações até às quais se contava o parentesco e a presença de sangue judeu. Isto não é algo que um grupo de simples racistas se lembrasse de fazer, isto é feito assim para garantir a solidez da razão lógica, inquestionável, justificando plenamente a ação (leia-se “La Storia” (1974) (análise)).

É muito triste ver Pinker a desancar em Bauman e Foucault, dizendo barbaridades como o facto de eles não utilizarem dados quantitativos, ou de se dedicarem a meras abstrações (sendo a abstração o reino por excelência do racionalismo e positivismo) e depois pondo-os no mesmo saco de comentadores de jornais, e extremistas que atacam a ciência a partir do seu mero fervor religioso, ou simplesmente, porque financeiramente não lhes dá jeito, como no caso dos Republicanos e o aquecimento global.

Mas não posso dizer que me tenha surpreendido totalmente, Pinker é psicólogo, mas o seu discurso está completamente imbuído de positivismo, mesmo que ele vá dizendo amiúde que a ciência é um contínuo refinar de hipótese e teses, amiúde vai dizendo que a ciência é a última verdade. Ora um posicionamento destes é inaceitável. Não podemos querer tudo, não podemos querer fazer da ciência religião e política, porque ela nunca quis tal lugar. Sim, vivemos tempos de Humanismo, em que as religiões caíram e resta-nos a ciência, mas usemos a ciência para nos ajudar, não para nos controlar. Aliás, é isso mesmo que se discute em “Doutor Fausto”, o problema da racionalização é que impede o subjetivismo, levado ao extremo seremos todos tão racionais quanto iguais, e nisso a única coisa que poderemos ganhar é o fim da nossa liberdade interior.

No fundo Pinker ataca todos, tanto os que ousam duvidar do discurso científico, como aqueles que duvidam de tudo ou simplesmente são lunáticos, e assim acaba a juntar-se à turba de lunáticos, atirando indiscriminadamente sem olhar a quem. Se alguém ousa falar mal da ciência, deve ser imediatamente excomungado. Esquece Pinker que a ciência só existe enquanto criação humana, não nos foi enviada por nenhuma entidade exterior e divina. Como tal a ciência tanto nos dá a Penicilina como nos dá Hiroshima. Não se pode simplesmente contorcer o discurso, porque se não não estamos a falar de ciência, mas de política, de aniquilação do pensamento daqueles que não podem exercer pensamento crítico.

No fundo, falta a Pinker tudo aquilo que ele passa mais de metade do livro a pregar: abertura suficiente para reconhecer que só podemos viver em paz se nos aceitarmos uns aos outros nos diferentes modos de viver. Porque o progresso científico sendo um ganho fenomenal para a raça humana, deve evoluir ao ritmo que for possível, e não ao ritmo que teoricamente, ou racionalmente, nos pareceria desejável.  Para fechar, deixo um apanhado do último capítulo, que entretanto tinha colado no Facebook, e que julgo falar por si, sobre o que podem esperar deste livro, em termos de cientificidade:
“If one wanted to single out a thinker who represented the opposite of humanism (indeed, of pretty much every argument in this book), one couldn’t do better than the German philologist Friedrich Nietzsche”
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“Nietzsche helped inspire the romantic militarism that led to the First World War and the fascism that led to the Second.”
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“Nietzsche posthumously became the Nazis’ court philosopher”
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“The link to Italian Fascism is even more direct”
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“The connections between Nietzsche’s ideas and the megadeath movements of the 20th century are obvious enough: a glorification of violence and power, an eagerness to raze the institutions of liberal democracy, a contempt for most of humanity, and a stone-hearted indifference to human life.”
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“So if Nietzsche’s ideas are repellent and incoherent, why do they have so many fans? (..) A sample: W. H. Auden, Albert Camus, André Gide, D. H. Lawrence, Jack London, Thomas Mann, Yukio Mishima, Eugene O’Neill, William Butler Yeats, Wyndham Lewis, and (with reservations) George Bernard Shaw,”
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“he was a key influence on Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Jacques Derrida, and Michel Foucault, and a godfather to all the intellectual movements of the 20th century that were hostile to science and objectivity, including Existentialism, Critical Theory, Poststructuralism, Deconstructionism, and Postmodernism.”
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“the [Nietzsche] mindset has sat all too well with all too many of them. A surprising number of 20th-century intellectuals and artists have gushed over totalitarian dictators, a syndrome that the intellectual historian Mark Lilla calls tyrannophilia (..) Ezra Pound, Shaw, Yeats, Lewis (..) H. G. Wells (..) Sartre, Beatrice, Sidney Webb, Brecht, W. E. B. Du Bois, Pablo Picasso, Lillian Hellman (..) Foucault, Louis Althusser, Steven Rose, Richard Lewontin (..) Graham Greene, Günter Grass, Norman Mailer, Harold Pinter, Susan Sontag"
Atente-se na irracionalidade dos pesos colocados nesta interpretação, pois aqui Pinker esquece completamente a sua preciosa busca pela verdade, pelos dados de suporte. Para Pinker, um movimento de transformação global da sociedade, em que a ciência tudo revoluciona pela força da tecnologia colocada ao serviço da industrialização, não tem qualquer relação com o Holocausto. Mas um simples professor universitário que passou por várias crises de insanidade, pode perfeitamente ser o responsável pelas guerras mais devastadoras até à data.

Leituras adicionais recomendadas:
The World's Most Annoying Man, Current Affairs, Maio 2019
Unenlightened thinking: Steven Pinker’s embarrassing new book is a feeble sermon for rattled liberals, New Stateman, Fevereiro 2018

junho 22, 2019

Filmando o sentir humano

Vi há duas semanas “Everybody Knows” (2018) e vi hoje “The Wild Pear Tree” (2018), de ambas as experiências guardo sentires em forma de hipérbole. Asghar Farhadi  e Nuri Bilge Ceylan são os meus realizadores preferidos desta última década. Não são apenas realizadores, são também quem escreve os filmes, e isso faz toda a diferença. Ambas as obras usam o meio, do cinema, para expressar o sentir mais humano possível. Não falo de drama, nem tragédia, não existe aqui puxar à lágrima, à tristeza ou sofrimento para gerar empatia, mas do sentir que todos sentimos em todos os momentos, emergente dos questionamentos a que não podemos escapar enquanto seres conscientes. Nem Ceylan nem Farhadi têm qualquer pretensão de dar respostas, mas apenas e só plasmar esse mesmo sentimento para que possamos ver-nos ao espelho e compreender que não estamos sozinhos.



Imagens de “The Wild Pear Tree” (2018)

“Everybody Knows” centra-se nas relações familiares, imagem de marca do autor, pode-se mesmo dizer que é a sua obsessão, explorar as pequenas quezílias que testam a força das relações, a força do que une pelo sangue, filhos e pais, assim como pela experiência, maridos e esposas. Farhadi desenha os seus filmes como se fossem acessos temporários a vidas e conflitos reais que decorrem num qualquer lugar, colocando-nos no lugar privilegiado da primeira fila para a tudo podermos assistir em  primeira-mão. E apesar de não serem nossa família dificilmente não compreendemos, não sentimos o que sentem. Farhadi não se socorre da estratégia clássica do arco narrativo, com princípio, meio e fim, mete-nos antes dentro do conflito em ebulição e faz-nos viver com eles, no final retira-se e retira-nos, sem respostas nem fechamentos. Cabe ao espectador compreender tudo aquilo por onde acabou de passar e sentir.



Imagens de “Everybody Knows” (2018)

Ceylan não é muito diferente, ainda que tenda a seguir uma estrutura mais progressiva, sem no entanto se coibir de lançar rasgos de fluxo de consciência por entre sonhos que por vezes nos deixam perdidos, ou rasgos de dissertação filosófica pura. Ou seja, tecnicamente é bastante diferente de Farhadi, mas não deixa de procurar tocar os mesmos modos do humano que este. Ceylan foca-se mais no indivíduo, no modo como o mundo o pressiona e com ele se relaciona, como ele se desenvolve, evolui e progride. Deste modo acaba servindo-nos experiências mais melancólicas, introspectivas. Neste “The Wild Pear Tree” atravessamos três gerações pelos olhos de um jovem a entrar na fase adulta, acabado de sair da universidade, sem saber o que se segue na sua vida, com o sonho de publicar um livro, num confronto entre o citadino e o rural, entre a educação e a religião.

junho 20, 2019

“Pão de Açúcar” (2018)

Não posso dizer que tenha ficado desiludido, um segundo romance, depois de uma obra de excelência e premiada, representa sempre um enorme peso e responsabilidade para alguém que ainda neste segundo romance se mantém bastante novo para o tipo de mundos que a literatura a este nível exige. “Pão de Açúcar” não chega a ser Romance, é um exercício de escrita, bem conseguido tecnicamente, capaz de agarrar o leitor e levá-lo ao longo das 200 páginas encurtadas pelas largas margens e caracteres grandes. É uma história que exigiu bastante pesquisa ao autor, mas ainda assim todo o enquadramento estava definido à partida, diga-se mesmo já amplamente esboçado pelo extensíssimo artigo (20 páginas) de Catarina Marques Rodrigues, “Gisberta, 10 anos depois”, para o Observador.


Cabral cumpre, em parte, com o que se tinha comprometido, dar vida às vidas dos jovens envolvidos naqueles derradeiros dias. Lendo os jornais o que temos é apenas a ideia de miúdos sem nada na cabeça, dispostos a tudo para magoar os outros, sem empatia nem sentimentos, na falta de mais dados especulamos a partir dos efeitos, e vemos na nossa cabeça um bando de energúmenos. A obra de Cabral refaz esta ideia, não desculpando, mas racionalizando sustentando com emoção e realidade vivida alguns dos jovens envolvidos. Posso dizer que consegui chegar bastante perto dos jovens, dos seus mundos, das suas realidades, sentir as suas dúvidas, incertezas e medos do mundo vivido no dia-a-dia. Inevitável pensar em “Deus das Moscas” e olhar para um grupo de jovens que sem regra nem direção acaba seguindo a força do mais forte e o efeito de grupo. Cabral faz-nos sentir o lugar e os seus habitantes, onde viveram aqueles miúdos, os seus devaneios pela cidade do Porto, assim como o prédio abandonado, somos completamente transportados para lá.

Mas era necessário este livro? Senti-me a maior parte do tempo um voyeur. Existe ali uma história, sem dúvida, mas devemos questionar-nos se produzindo obras sobre estas contribuímos para algo mais além do prazer do sofrimento de outrem. Repare-se que não precisamos de um livro para chamar a atenção, o assunto foi amplamente dissecado pelos media, e o artigo referenciado acima foi feito para recordar os 10 anos. Ou seja, o que podia um livro dar-nos mais? Conhecer melhor os envolvidos? Correto, mas com que objetivo, desculpá-los, ou aceitar a normalidade do acontecido? Repare-se que não é um assunto ficcionado para testar temperamentos ou efeitos da fraca educação (que é parcamente definida no livro), trata-se de um caso real, com pessoas que existem e sobre as quais devemos ter uma posição enquanto sociedade. Humanizar é preciso, mas enquanto sociedade precisamos de balizas concretas sobre o que podemos aceitar e o que não podemos de forma alguma. Um livro destes coloca tudo em questão, faz-nos questionar, faz-nos sentir impotentes porque co-culpados pela falta de apoio que aqueles jovens tiveram nas suas infâncias, ou da aparente falta de apoio que Gisberta teve. Mas tudo isto não o sabíamos já antes de ler este livro? Onde está o rasgo da arte para nos despertar do sentimento cliché, para nos transformar? Tenho de dizer que não me preencheu enquanto obra, enquanto Romance, longe disso.

Falando da escrita, é boa apesar de não ser excecional. Cabral consegue algo difícil, encaixar um pensar e diálogos que tinham de ser bastante incompetentes e até incongruentes, num texto de grande elegância, sem que duvidemos todo o tempo da sua veracidade. O mesmo se pode dizer da crueza e calão que vão surgindo, mas muito longe daquilo que é a realidade destes universos. Nota-se um esforço de aproximação aos contextos e à potencial escrita, mas ainda assim muito longe do que seria verdadeiramente um texto escrito por alguém saído daquelas condições. Muito do que se lê percebe-se impossível de germinar ali, mas não deixa de parecer provir daquele mundo, daquele universo, por isso algo foi bastante bem feito por Afonso Cabral para nos fazer sentir deste modo.