outubro 19, 2018

“Factfulness” (2018), factos e comunicação

Nos últimos anos tenho-me posicionado cada vez mais do lado dos céticos em relação a análises do real a partir de números. Para isso muito tem contribuído a voragem a que todos vamos sendo submetidos por meios de avaliação que não levam em conta quem somos, mas apenas o que debitamos em termos de resultados numa folha de Excel. Por isso mesmo, não fosse a enorme recomendação feita ao livro, por Bill Gates entre outros, dificilmente lhe teria pegado. Reconheço que aprendi muito com Hans Rosling, mas a minha impressão em relação a números, métricas e estatísticas não se alterou, aliás Hans acaba por sem se dar conta dar razão ao trabalho de Daniel Kahneman a propósito da economia comportamental, e do modo como as pessoas simplesmente munidas de números pensam poder compreender o ser humano. Com isto não quero dizer que o trabalho de Hans seja mau ou irrelevante, ele é imensamente relevante e o livro vale a leitura para todos, mas deve ser lido com muito espírito crítico.

O livro foi publicado em 2018, mas Hans Rosling (1948) morreria antes da publicação, em 2017, com um cancro no pâncreas.

Hans inicia o livro com uma queixa que se prolonga ao longo de todo o livro, o facto de as pessoas desconhecerem os dados efetivos sobre o ponto de situação em que a nossa espécie se encontra a nível mundial. Hans explica como passou 30 anos a lecionar, a falar com líderes mundiais, a criar diferentes formas de comunicar, e se sentia, no final da sua vida completamente impotente. “Factfulness” (2018) foi, segundo o próprio, o derradeiro grito e tentativa para levar o conhecimento às pessoas, para lhes mostrar principalmente o quanto o mundo mudou, o quanto conseguimos enquanto espécie deste planeta evoluir e progredir em termos de condições de vida. E neste ponto, só tenho de agradecer a Hans, a todo o seu conhecimento e trabalho por todo o planeta em defesa das melhores condições para todos, assim como o seu incansável esforço em tentar que pudéssemos todos ver um mundo diferente, melhor acima de tudo, com muito mais esperança. Julgo que consegue isso, em parte, com este livro.

A pobreza extrema caiu a pique nos últimos 200 anos.

Uma das principais teses de Hans tem que ver com a divisão do mundo em duas metades, os pobres e ricos, contra o que se opõe determinantemente, tendo conseguido durante a sua vida fazer com que várias instituições mundiais mudassem essa visão, e passassem a ver o mundo antes em 4 níveis (ver imagem abaixo). Os níveis propostos por Hans dividem-se entre os que ganham 1 dólar/dia e estão no nível 1, e os que ganham pelo menos 32/dia e estão no nível 4. Pode parecer algo de somenos, mas nisto concordo, já que vermos o mundo em 4 mundos permite-nos compreender como progride o planeta, como evoluem as condições de vida. Permite-nos ver como as pessoas que estão no nível 1 podem realmente chegar ao nível 2, e isso para elas representará uma evolução imensa, algo que para quem está no nível 4, será completamente impercetível. Alguém que ganha 32 euros por dia, ganhar mais 1 euro ou 4 por dia, não mudará a sua vida. Alguém que ganha 1, passar a ganhar 4, muda completamente tudo aquilo que pode oferecer à sua família.

4 Níveis em vez de só Ricos e Pobres. Cada boneco representa mil milhões de pessoas, podendo ver na imagem a distribuição dos mesmos por cada nível. Hans diz-nos que houve progresso, a pobreza extrema decresceu imenso, ou seja muitos milhões passaram do Nível 1 para o Nível 2, no entanto para quem vê a partir do nível 4, a pobreza continua a ser enorme. Por outro lado, Hans tem razão quando diz que o progresso ocorreu, e que permitindo as coisas seguirem o seu rumo, estes que progrediram do 1 para o 2, acabarão por progredir para 3 e depois para 4, claro que isso não acontecerá numa geração apenas.

O problema com a conceção dicotómica, entre ricos e pobres, é que passamos o tempo a acreditar que as pessoas pobres nunca poderão chegar a ser como nós (partindo da visão de quem vive no nível 4, que como diz Hans é quem terá condições para ler o livro). Daí todo o debate que Hans realiza sobre a visão entre o Ocidente e o resto, ou entre os países desenvolvidos e os não desenvolvidos, ou industrializados e não industrializados, ou entre 1º mundo e 3º mundo. Esta visão em duas metades faz-nos acreditar que não é possível fazer nada, que não podemos ao longo da nossa vida contribuir para mudar o mundo, e acaba por criar a desesperança e frustração, e pior, a desistência do outro. Hans debate em profundidade, e mostra como não existe um nível 4 e um nível 1, existem no meio o nível 2 e 3, nos quais vive a maior fatia da população do globo, e essa fatia tem hoje acesso a 10 anos de escola para homens e mulheres, tem acesso a eletricidade, a vacinas, e que a sua média de esperança de vida não está muito distante dos que vivem no nível 4.

O mapa de Hans que coloca em evidência a ausência de um mundo dividido em apenas duas partes.

Com esta abordagem Hans consegue colocar em evidência o facto de não estarmos a crescer a um ritmo insustentável. Que o acesso a métodos contracetivos se globalizou, mas mais importante, a educação também se globalizou, e quem conseguiu chegar ao nível 2 e 3, já não tem mais de 5 filhos, mas menos de 3, e com isso conseguiremos um equilíbrio da vida no planeta. Aliás, nesta constatação dá conta de uma descoberta impressionante. Não é o dar melhores condições às pessoas de nível 1, que têm muitos filhos, que vai fazer com que tenham mais, mas é todo o contrário. Quanto mais educados e acesso à educação tenham, menos filhos terão. Esta constatação é muito importante, já que Hans relata o caso de pessoas que o abordavam em congressos, com medo da superpopulação do planeta, dizendo que não podemos dar a mesma qualidade de vida a todos, porque o planeta não aguentaria a pressão de tantos humanos.

O impacto na descida de número de bebés deve-se aos contraceptivos mas não só, deve-se muito à formação escolar das mulheres, ao retardar do primeiro filho para finalizar os estudos, etc.

Se tudo isto é muito relevante, entristece-me que Hans tenha optado por escrever um livro tão paternalista e condescendente para com o leitor. Eu não teria acertado em todas as perguntas que ele nos faz no início do livro, acertei pouco mais de 25% (ex. quantas crianças foram vacinadas no mundo; o número de anos que as mulheres, acima dos 30 anos, passaram em média na escola; a percentagem de pessoas que têm acesso a eletricidade; a variação da pobreza extrema no mundo; etc.). Embora me esforce por ter um conhecimento alargado dos problemas que assolam o planeta Hans conseguiu surpreender-me, e demonstrar que vivemos numa ideia distorcida da realidade (já falarei sobre esta distorção). Hans passou mais de metade da sua vida a tentar mudar esta perceção errada dos factos do mundo, mostrando que era um investigador tenaz e persistente, tentou múltiplas abordagens distintas a nível local e global, com diferentes extratos de população, com diferentes ferramentas de comunicação (artigos, tabelas, gráficos, infografias, documentários de televisão, discursos para grandes organizações, etc.) foi mesmo eleito pela Time em 2012, como uma das 100 pessoas mais influentes, mas todas as suas tentativas produziram apenas insucesso. No entanto, quanto mais o lia mais me questionava, porquê toda esta insistência, e porque razão tem de repetir no início de todos os capítulos que o mundo não sabe as respostas que as desconhece e esfregar isso na cara do leitor?

Hans era médico, fez o seu doutoramento no estudo de epidemias o que o levou a desenvolver bastante o domínio da estatística, foi médico em Moçambique e várias outras partes do planeta, foi professor universitário na Suécia durante grande parte da sua vida, co-fundou a Médicos Sem Fronteiras, e tornou-se consultor de grandes organizações internacionais como a UNICEF, a Organização Mundial de Saúde ou o Banco Mundial, e no entanto neste livro acaba por nos dizer que a maior batalha da sua vida assentou no desejo de mudar a perceção que temos do mundo, ou seja, um processo de comunicação. Reparem como essa não era, de todo, a especialidade de Hans, ele era médico e professor de saúde internacional, e esse é para mim o grande problema de toda a lógica de Hans. Porque é o próprio Hans que faz questão de frisar que os experts só o são no seu campo, e não devem tentar usar do seu conhecimento especializado para responder a tudo o resto.

Antes de explicar o problema de comunicação, dizer que o livro e o próprio Hans encontraram muitas outras contrariedades da parte de outros colegas, mas nas quais não me revejo, embora as compreenda. Ou seja, Hans foi muito atacado por se apresentar como um otimista incapaz de ver o mal que nos assola, tal como tem acontecido com Steven Pinker. Ambos ousaram quebrar com o status quo do apocalipse, e dizer que o mundo em que hoje vivemos é francamente melhor do que aquele em que viveram os nossos avós, e que não temos parado de progredir em todas as estatísticas mais relevantes para a nossa espécie. Pinker concentrou-se na diminuição da violência, enquanto Hans se centrou na diminuição da mortalidade infantil. Eu sigo ambos, os dados que apresentam são válidos, não existem razões para duvidar.

Uma das grandes razões porque as famílias tinham mais de 5 filhos era o alto nível de mortalidade. Ter 1 filho ou 2 era meio caminho para se chegar a velhice sozinho, sem filhos vivos para ajudar a sobreviver os últimos anos.

Existe uma corrente, claramente fundamentada em ideologia de extrema-esquerda, que desdenha todo este otimismo, porque o vê como conversa para ricos, para os apaziguar e fazer acreditar que estão a agir bem. Estes acreditam que Hans e Pinker não o deviam fazer, deviam antes lutar contra esses ricos para eliminar a pobreza. Ora, estes colegas simplesmente não perceberam nada daquilo que leram. As estatísticas estão lá, e não são para ser lidas como meros números, são para ser interpretadas, no tempo e na relação direta com as variáveis humanas. Não compreender isto, é negar a todas as pessoas que têm saído da pobreza extrema, da pobreza média, e a países como Portugal que atingiram o nível dos países desenvolvidos, o que estas estatísticas demonstram. Eu compreendo que para quem acredita num modelo anti-capitalista, isto surja como uma facada nas costas, porque não é mera conversa, são dados empíricos que demonstram, que não deixam espaço para interpretações ideológicas aquilo que está a acontecer. Mas estes ataques também demonstram algo bem diferente, ou nem por isso, de que estas noções de extrema-esquerda simplesmente não querem saber das pessoas reais, querem apenas colocar em marcha uma ideia do mundo que conceberam como a única possível, doa a quem doer. Hans não é um louco otimista, ele tem noção das complexidades em que vivemos:
"I do not deny that there are pressing global risks we need to address. I am not an optimist painting the world in pink. I don’t get calm by looking away from problems. The five that concern me most are the risks of global pandemic, financial collapse, world war, climate change, and extreme poverty. Why is it these problems that cause me most concern? Because they are quite likely to happen: the first three have all happened before and the other two are happening now; and because each has the potential to cause mass suffering either directly or indirectly by pausing human progress for many years or decades. If we fail here, nothing else will work. These are mega killers that we must avoid, if at all possible, by acting collaboratively and step-by-step."
Aconselho vivamente todos aqueles que colocam em causa o que Hans e Pinker têm vindo a discutir, a lerem antes deste: “Cosmos” (1980) de Carl Sagan, “Guns, Germs and Steel” (1997) de Jared Diamond, e “Sapiens” (2011) de Harari. O mundo não é feito só do “agora”, nem só do “nós”, aquilo que hoje representamos no planeta e representámos no passado é vital para compreender o alcance de muito daquilo que Hans aqui discute. O que está aqui em questão, está muito longe de meros fogos ideológicos ou de classes.

Voltando então à questão da comunicação. Julgo que o maior problema de Hans esteve em não se questionar porque as pessoas processavam o mundo desta forma. Para comunicar efetivamente temos de conhecer o público da nossa mensagem como nos conhecemos a nós. Mas não só, tenho de compreender como o ser-humano processa a informação, o conhecimento, como dá sentido ao real, como o perceciona e ganha consciência do mundo e dos outros. Não basta ter números, não basta ter bons gráficos, ou ter uma boa equipa audiovisual para fazer um documentário tipo BBC, é preciso primeiro compreender o que queremos dizer e que efeito procuramos com aquilo que queremos dizer.

Neste caso Hans demonstrou uma incompreensão sobre o funcionamento dos modelos cognitivos que nos permitem gerar e gerir a realidade circundante. Hans até percebe que os media usam e abusam do drama e tragédia para fazer o seu jornalismo e comunicar, e até os tenta desculpar, um pouco como Jesus pedia desculpa ao seu pai porque, dizia ele, "eles não sabem o que fazem". Mas o que Hans não percebeu foi que os media usam o drama porque é ele que tem o potencial de comunicação, não são os factos. As pessoas não recebem factos, não compreendem o mundo por via de tabelas e estatísticas, as pessoas precisam de histórias, de enredos e personagens estereotipados, precisam de tragédias e dramas para dar sentido aos factos e assim compreender o real. Uma listagem de eventos e percentagens vale zero para a generalidade das pessoas se não vier embrulhada numa narrativa que lhe dê sentido.

A razão disto é que nós precisamos de modos simplificadores do real, não somos capazes de manter múltiplos números soltos na nossa cabeça. Por isso criamos o lado bom e o mau, o herói e o vilão, o negro e o claro, para podermos comparar e tomar decisões rapidamente. Não existe outra forma, se eu sou pobre os outros são ricos, se eu sou rico os outros são pobres. Mas o problema não reside aqui apenas, o problema é que precisamos de motivar estas pessoas para ação, para a entre-ajuda, e para isso precisamos de forçar as diferenças entre os que têm e os que não têm, o drama. Aliás, aqui acabo por ter até de concordar com algumas das afirmações dos colegas mais à esquerda, porque o modelo corre o risco de colocar as pessoas no melhor nível a pensar que afinal as pessoas abaixo nem estão assim tão mal.

Um dos exemplos em que claramente percecionei isto foi nos dados de Hans sobre a vacinação. Ele atira com o número impressionante de 80% crianças no mundo vacinadas, mas aqui não diz que isso só foi possível graças à UNICEF e doações do mundo inteiro (embora ele diga noutra parte do livro que os preços das vacinas só são a preço de custo graças à força internacional da UNICEF para negociar preços). E que para que tal aconteça, é preciso que as pessoas acreditem que os outros estejam tão mal que se tenha de doar parte do que eles construíram com o seu suor a quem está pior que eles. Isto é o instinto de dividir o mundo em dois que consegue, de querer ajudar quem está pior do que nós. Porque se for para ajudar quem está pior, mas muito melhor que outros, então se calhar as pessoas pensarão duas vezes.

Ou seja, Hans é um otimista e acredito que devemos ouvir os seus argumentos porque devemos crer num mundo que está a melhorar, e não o contrário. Só que ter esta visão implica também continuar a lutar por manter uma consciência das múltiplas complexidades que assolam a vida de todos neste planeta, e que o facto de estarmos a progredir, de estarmos melhor, não quer dizer que não continuemos a precisar de ajudar e de ser ajudados. O progresso tem a vantagem de nos servir de confirmação de estarmos a agir bem e de estamos no caminho certo, o problema é que se temos conseguido fazer algumas coisas bem isso não nos garante que possamos vir a fazer o mesmo com a imensidade de outras coisas que continuamos a fazer mal e muito mal.

2 comentários:

  1. Acabei de ler o livro e li agora a crítica, muito boa, como de costume. Confesso que já tinha lido outras críticas ao livro e ficara convencido que era um panfleto optimista sem mais. Mas não foi isso que encontrei. Aliás, o livro acaba com um apelo quase desesperado para resolvermos o problema da pobreza extrema dos 800 milhões de pessoas que ainda vivem nessa pobreza. Por outro lado, fiz uma leitura diferente desse paternalismo de que falas. Pareceu-me uma estratégia: usa o dramatismo que sabe ser a única forma de chamar a atenção ("vejam como somos todos ignorantes!") para chamar a atenção para os factos e para as frias tabelas... Notei também, com gosto, que usa histórias ao longo do livro para, precisamente, contar as histórias por trás dos números. A certa altura, diz mesmo: precisamos de números, mas precisamos mais do que números. Eu diria ainda: os números enganam-nos muito, mas histórias desgarradas e sedutoras enganam-nos muito mais. Enfim, vejo o livro como uma boa forma de (continuar a) melhorar o mundo. Um mundo que, como diz o autor várias vezes, está mal, mas está melhor (e isto não é uma contradição). Um abraço, Nelson!

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