Desconfiei da beleza visual de “Gris” (2018) porque foram inúmeras as vezes, no passado, em que tal se revelou mera superfície sem qualquer substrato. Algumas das resenhas que li inclinaram-me mesmo a deixá-lo para jogar apenas em 2019. No entanto, algo fez com que o comprasse na Steam junto com mais alguns jogos nas promoções deste Natal. Por isso, se sabia que a ilustração me ia deslumbrar, esperava pouco do resto, nomeadamente acreditava que a jogabilidade seria fraca, e que por isso o fluxo seria um tanto arrastado, tudo muito suportado no campo visual apenas. Nada poderia estar mais errado, “Gris” é um exercício de completo domínio de todas as artes envolvidas na criação de um artefacto interativo: da ilustração à interação, passando pela câmara, animação, som e música.
Sendo um jogo de plataformas, não se espere nada que o relacione com outros plataformas deste ano, seja “Celeste” (2018) ou menos ainda “Iconoclasts” (2018) ou “Dead Cells” (2018). “Gris” é uma experiência singular, não existe nada que se lhe assemelhe, é uma obra marcada por uma intensa direção artística. Posso talvez invocar, no plano visual, “Child of Light” (2014), e no campo experiencial, do fluxo interativo, o trabalho de Jenova Chen, “Journey” (2012). Mas se Chen é um visionário do fluxo de interação, Conrad Roset é apenas um artista de aguarela, o que quer dizer que “Gris” não é uma obra de uma pessoa apenas.
A equipa por detrás de “Gris” é composta por três pessoas, todas baseadas em Barcelona. O artista Conrad Roset (1984), que já expôs um pouco por todo o mundo, desde o MoMA em Virginia, ao Show Studio em Londres, passando pela Steven Kasher Gallery em Nova Iorque ou TiposInfames em Madrid, imensamente comissionado para trabalhos de ilustração, possui um significativo número de seguidores. Desenvolveu um estilo próprio, facilmente reconhecível, assente na aguarela colorida em contraste com fortes formas a tinta preta, socorrendo-se bastante da silhueta e sensibilidade femininas como motivação. Em segundo, temos Roger Mendoza que trabalhou na última década na indústria AAA, fazendo programação de IA e gameplay, essencialmente para a série Assassin’s Creed, tendo trabalho no "Assassin’s Creed III" (2012), "Assassin’s Creed IV" (2013) e "Assassin’s Creed: Syndicate" (2015). E por fim, Adrian Cuevas, outro especialista em tecnologia e programação, que também veio dos AAA, onde esteve envolvido em “Far Cry 3” (2012), “Tom Clancy's Rainbow Six: Siege” (2015), e “Hitman: The Complete First Season” (2017). Mendonza e Cuevas resolveram deixar os AAA, e em 2016 juntaram-se a Roset para criar o Nomada Studio em Barcelona. Com dois especialistas em tecnologia, treinados ao mais alto nível para garantir a fluidez do gameplay, e um especialista em arte visual, algo de qualidade teria de ser possível criar.
As competências que suportam a criação de “Gris” explicam porque a ideia que tinha, do indie belo mas gorado, não aconteceu. Roset tinha uma visão criativa, mas Mendoza e Cuevas sabiam como lhe dar forma, como a sustentar ao longo de 5 horas, e contribuir para o densificar dessa visão. Quando se entra em "Gris" e começamos a jogar, mesmo não sabendo nada sobre as pessoas por detrás da obra, sentimos de imediato um trabalho altamente apurado, refinado e polido por alguém que sabe muito bem o que está a fazer. Além disso, estes tiveram ainda a humildade de procurar quem sabia mais do que eles, em áreas como a animação, o irmão de Roset foi buscar Adrian Miguel, que já tinha trabalhado em "Invizimals", e para o sound design, Mendoza trouxe Ruben Rincon, que já tinha trabalhado para “Assassin’s Creed III” e para o português “Between Me and the Night” (2016). Para coroar todo este trabalho, e encorpar completamente as aguarelas de Roset, posso dizer que a entrada de Berlinist, banda composta por Gemma Gamarra, Luigi Gervasi e Marco Albano e responsável pela banda sonora, eleva o jogo em vários patamares experienciais. Os Berlinist trabalham bastante no campo ambiental e atmosférico, em certos momentos pareceu-me existir um traço futurista, a fazer lembrar a banda sonora de "Blade Runner 2049" (2017) de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer.
Pegando neste último ponto, o da experiência, é nele que “Gris” mais investe. Na minha modelação do Design de Experiência tenho dividido o mesmo em três camadas — funcional, sensorial e significado. “Gris” não está propriamente focado no significado, em contar uma história, “Gris” desenvolve-se completamente no plano sensorial. Ou seja, “Gris” trabalha a interação pela forma, busca impactar e transportar emocionalmente o jogador, mais do que fazê-lo pensar nesta ou naquela ideia. Assim como a narrativa não é o fundamento, o jogo também não o é, ele está lá como está a história, mas são ambos suporte. O foco são mesmo as imagens e a música que juntos garantem uma experiência audiovisual interativa única, suficientemente abstrata para que possamos preenchê-la com as nossas experiências, deixando-nos guiar pelo pautamento emocional que nos vai sendo imposto.
dezembro 24, 2018
dezembro 22, 2018
Lógica no suporte da narrativa
"Return of the Obra Dinn" (2018) é o último jogo de Lucas Pope, mais conhecido pelo brilhante "Papers, Please" (2013), que volta a colocar-nos no lugar de um profissional que tem de executar um trabalho, neste caso somos um perito de uma agência de seguros que tem de fazer um relatório sobre o que se terá passado num barco perdido em alto-mar no século XIX, que entretanto deu à costa. O jogo assume o velho desenho das histórias de detetives, e nós assumimos o papel do detetive, só que desta vez não temos de descobrir uma morte mas sessenta.
Dividiria "Return of the Obra Dinn" em dois grandes momentos: a descoberta de todas as mortes ocorridas no barco, à medida que vamos descobrindo cadáveres, que por meio de uma bússola mágica nos permitem ver o momento, visualmente congelado, em que morreram, e assim vão dando estampa a todas as páginas do livro, que vamos utilizando para tomar notas para enviar à seguradora; e o segundo, o da decifração de quem são essas pessoas e como é que morreram. O primeiro momento tem a particularidade de acontecer em modo reverso, seguindo a abordagem narrativa de "Memento" (2000), o que contribui para aumentar a complexidade do segundo, na decifragem dos eventos. Estes dois momentos são responsáveis pela criação de um terceiro, apenas no nosso plano mental, que é a reconstrução da história de como tudo aconteceu e que acaba sendo a grande motivação para jogar até ao final.
O passar do decifrar de 1 morte para 60 não é mera quantidade para aumentar a duração do jogo, é antes responsável pela criação de uma teia vasta e profusa de elementos, automaticamente ligados por estarem todos num mesmo espaço, o barco, mas órfãos por pertencerem a pessoas que não conhecemos e já estão mortas. Cabe-nos a nós, enquanto investigadores, reconectar todos os elementos, conjecturar a partir das evidências, dar-lhes lógica e inseri-las na grande narrativa do que aconteceu ali. É isto o jogo, e por isso se a base poderia facilmente ser passada a outro formato não-digital, a dimensão do que está em jogo torna isso completamente impossível, ainda que nos vejamos obrigados a recorrer a caderno de notas e lápis reais para nos ajudar a reconstruir o que vamos experienciando no jogo.
Não se pode dizer que seja um jogo revolucionário, muito longe até de algumas resenhas que se viram nalguns sites de referência dizendo que pela primeira vez se sentiram verdadeiros detetives. Basta recuar ao brilhante "The Last Express" (1997) de Jordan Mechner, ou mais recentemente "LA Noire" (2011) ou "Sherlock Holmes: Crimes and Punishments" (2014). Mas e o que dizer da enorme quantidade de jogos de aventura gráfica dos anos 1990 que usavam e abusavam do mistério e do detetivismo para motivar o jogador na progressão narrativa, dos quais temos o grande expoente "Myst" (1993), mas também "7th Guest" (1993) ou "Phantasmagoria" (1995), e porque não falar dos seus sucessores, os walking-simulators, nomeadamente com "Dear Esther" (2012) e "Gone Home" (2013). Todos estes exemplos dão conta de uma vertente de excelência do jogo, o "storytelling ambiental", mas não se fica por aí. Numa outra vertente, um outro jogo em que pensei bastante, à medida que ia avançando, foi "Her Story" (2015), pelo modo intrincado do design de todo o sistema que interconecta as centenas de indícios. E por fim, no campo específico da forma, das sequências congeladas em 3d que nos permitem investigar o espaço em redor de cada momento e obter indícios, embora aqui não saiba dizer quem chegou primeiro, já que os jogos saíram ambos este ano, podemos olhar para "Detroit" (2018) de David Cage que explorou exatamente o mesmo conceito.
Ou seja, "Return of the Obra Dinn" não inova num sentido radical, mas também não tinha de o fazer. O que se pedia a Lucas Pope era uma experiência ludo-narrativa, e essa temo-la. Resta-nos avaliar se enquanto tal nos faz sentir, e se o faz, como o faz, se ocupa suficientemente a nossa mente e se se regista nas nossas memórias. Quanto a isto, não há dúvidas, a resposta é cabal: "Return of the Obra Dinn" é uma experiência de grande prazer e objetivamente inesquecível. O primeiro embate é de enorme estranheza, todo o universo visual cria distância, mas à medida que vamos investindo tempo no jogo e vamos assimilando as suas mecânicas, compreendendo as suas vontades e motivações, vamos sentindo-nos em casa, com o que vem o desejo de ali permanecer mais e mais tempo, ao que se seguem as descargas de adrenalina do suspense e mistério e da dopamina pela descoberta das evidências e conexões. "Return of the Obra Dinn" é um artefacto complexo, mas elaborado num detalhe imensamente cuidado, que vai da lógica do sistema à plástica audiovisual, incluindo a banda sonora, criando uma experiência única.
Dividiria "Return of the Obra Dinn" em dois grandes momentos: a descoberta de todas as mortes ocorridas no barco, à medida que vamos descobrindo cadáveres, que por meio de uma bússola mágica nos permitem ver o momento, visualmente congelado, em que morreram, e assim vão dando estampa a todas as páginas do livro, que vamos utilizando para tomar notas para enviar à seguradora; e o segundo, o da decifração de quem são essas pessoas e como é que morreram. O primeiro momento tem a particularidade de acontecer em modo reverso, seguindo a abordagem narrativa de "Memento" (2000), o que contribui para aumentar a complexidade do segundo, na decifragem dos eventos. Estes dois momentos são responsáveis pela criação de um terceiro, apenas no nosso plano mental, que é a reconstrução da história de como tudo aconteceu e que acaba sendo a grande motivação para jogar até ao final.
O passar do decifrar de 1 morte para 60 não é mera quantidade para aumentar a duração do jogo, é antes responsável pela criação de uma teia vasta e profusa de elementos, automaticamente ligados por estarem todos num mesmo espaço, o barco, mas órfãos por pertencerem a pessoas que não conhecemos e já estão mortas. Cabe-nos a nós, enquanto investigadores, reconectar todos os elementos, conjecturar a partir das evidências, dar-lhes lógica e inseri-las na grande narrativa do que aconteceu ali. É isto o jogo, e por isso se a base poderia facilmente ser passada a outro formato não-digital, a dimensão do que está em jogo torna isso completamente impossível, ainda que nos vejamos obrigados a recorrer a caderno de notas e lápis reais para nos ajudar a reconstruir o que vamos experienciando no jogo.
Não se pode dizer que seja um jogo revolucionário, muito longe até de algumas resenhas que se viram nalguns sites de referência dizendo que pela primeira vez se sentiram verdadeiros detetives. Basta recuar ao brilhante "The Last Express" (1997) de Jordan Mechner, ou mais recentemente "LA Noire" (2011) ou "Sherlock Holmes: Crimes and Punishments" (2014). Mas e o que dizer da enorme quantidade de jogos de aventura gráfica dos anos 1990 que usavam e abusavam do mistério e do detetivismo para motivar o jogador na progressão narrativa, dos quais temos o grande expoente "Myst" (1993), mas também "7th Guest" (1993) ou "Phantasmagoria" (1995), e porque não falar dos seus sucessores, os walking-simulators, nomeadamente com "Dear Esther" (2012) e "Gone Home" (2013). Todos estes exemplos dão conta de uma vertente de excelência do jogo, o "storytelling ambiental", mas não se fica por aí. Numa outra vertente, um outro jogo em que pensei bastante, à medida que ia avançando, foi "Her Story" (2015), pelo modo intrincado do design de todo o sistema que interconecta as centenas de indícios. E por fim, no campo específico da forma, das sequências congeladas em 3d que nos permitem investigar o espaço em redor de cada momento e obter indícios, embora aqui não saiba dizer quem chegou primeiro, já que os jogos saíram ambos este ano, podemos olhar para "Detroit" (2018) de David Cage que explorou exatamente o mesmo conceito.
Ou seja, "Return of the Obra Dinn" não inova num sentido radical, mas também não tinha de o fazer. O que se pedia a Lucas Pope era uma experiência ludo-narrativa, e essa temo-la. Resta-nos avaliar se enquanto tal nos faz sentir, e se o faz, como o faz, se ocupa suficientemente a nossa mente e se se regista nas nossas memórias. Quanto a isto, não há dúvidas, a resposta é cabal: "Return of the Obra Dinn" é uma experiência de grande prazer e objetivamente inesquecível. O primeiro embate é de enorme estranheza, todo o universo visual cria distância, mas à medida que vamos investindo tempo no jogo e vamos assimilando as suas mecânicas, compreendendo as suas vontades e motivações, vamos sentindo-nos em casa, com o que vem o desejo de ali permanecer mais e mais tempo, ao que se seguem as descargas de adrenalina do suspense e mistério e da dopamina pela descoberta das evidências e conexões. "Return of the Obra Dinn" é um artefacto complexo, mas elaborado num detalhe imensamente cuidado, que vai da lógica do sistema à plástica audiovisual, incluindo a banda sonora, criando uma experiência única.
dezembro 21, 2018
Metanarrativas de uma nova sociedade, num videojogo
Que mais se pode pedir a um videojogo que nos faz refletir sobre aquilo que somos, sobre a sociedade em que nascemos e a que estamos a criar para deixar aos nossos filhos? “Florence” (2018) é um jogo extremamente simples, criado para telemóvel, mas munido de uma história que apesar de aparentemente também simples, é capaz de nos lançar nestas interrogações.
Sendo um pequeno jogo surpreende pela boa integração do design. Apesar de usar mecânicas bem conhecidas (ex. puzzles) estas são potenciadas pela história, ganham valor semântico, o que demonstra o cuidado tido na produção do jogo. Este mesmo cuidado é espelhado na arte, tanto no campo visual minimalista mas imensamente coerente, que se socorre da forma e cor conjugadas com a banda sonora (fazendo uso da sonoridade do violoncelo) para dirigir as nossas emoções. Nada disto surpreende se pensarmos que o autor por detrás do trabalho é Ken Wong, criador do brilhante "Monument Valley" (2014). Já agora, não esquecer que a editora de "Florence" é a Annapurna Pictures, que tem desenvolvido um trabalho notável no cinema, e no campo interativo conta com um portefólio bastante coerente. Claro que o ponto alto desta experiência é a narrativa, que sendo tão realista levou alguns críticos a rotularem o artefacto de jogo sério. Bem, só se quiserem rotular os romances de Hollywood também como sérios, ou então dizer que no mundo dos videojogos, o entretenimento só pode acontecer por via de tiros, magia e fantasia.
*** Spoilers ***
Em “Florence” somos uma mulher citadina, vivendo só, à distância da mãe, num trabalho que não a entusiasma e um hobby que nos agrada. Conhecemos a nossa cara metade, e seguimos com ela todo o percurso narrativo da paixão, do entusiasmo ao seu desaparecimento. A mesmíssima história que já vimos e lemos milhares de vezes no cinema, na televisão, na literatura, no teatro. Mas aqui, e noutras representações mais recentes deste “girl meet boy”, o padrão alterou-se. Se no passado, a separação do casal era o clímax da tensão para intensificar o sabor da reconciliação, agora a separação é uma oportunidade de transformação e crescimento. Passámos de uma narrativa que nos parecia tão natural, o encontro entre dois seres e o lançamento da base para uma nova família, uma nova comunidade de suporte à sociedade, para o indivíduo, dono do seu destino a solo, pensando apenas sobre si e em si.
Ou seja, a ideia de que as metanarrativas desapareceram pela fragmentação das possibilidades acaba sendo uma falsa ideia, já que ela acontece na mesma, como se pode ver bem neste jogo. O encontro entre humanos é uma necessidade potenciada pelo sexo e pela paixão, mas temos vindo a racionalizar essa necessidade, não de um modo consciente, mas pela própria pressão a que estamos sujeitos nas nossas vidas, que acabam conduzindo-nos a um recolhimento sobre nós mesmos. Já não temos tempo para nada nem para ninguém, quanto mais para formar um casal que tanto exige, menos ainda pensar em descendência que nos roubaria tudo aquilo que sonhámos ser enquanto indivíduos. Queremos continuar a crescer, continuar a transformar-nos, continuar a ser crianças merecedoras de mimos, a ouvir o enaltecer das nossas competências individuais. Mais do que construir uma sociedade, estamos a construir bolsas de indivíduos que se sustentam em estruturas abstratas (leis, regulamentos, cidades e políticas) que vão mantendo as sociedades a funcionar...
Claro que estas reflexões são minhas, foram algo imediatas, mas por detrás destas existem outras não menos relevantes: como o empoderamento da mulher, ou a subversão da formatação pela sociedade, entre outras. E é por isso mesmo que o jogo é tão relevante, por abrir a discussão.
Nota: A constante troca entre o "nós" e "ela" faz parte da experiência que é despoletada pela linguagem própria dos videojogos que nos coloca no lugar de uma personagem, um avatar, levando-nos a assumir por vezes o lugar "dela", e outras o de nós mesmos.
Sendo um pequeno jogo surpreende pela boa integração do design. Apesar de usar mecânicas bem conhecidas (ex. puzzles) estas são potenciadas pela história, ganham valor semântico, o que demonstra o cuidado tido na produção do jogo. Este mesmo cuidado é espelhado na arte, tanto no campo visual minimalista mas imensamente coerente, que se socorre da forma e cor conjugadas com a banda sonora (fazendo uso da sonoridade do violoncelo) para dirigir as nossas emoções. Nada disto surpreende se pensarmos que o autor por detrás do trabalho é Ken Wong, criador do brilhante "Monument Valley" (2014). Já agora, não esquecer que a editora de "Florence" é a Annapurna Pictures, que tem desenvolvido um trabalho notável no cinema, e no campo interativo conta com um portefólio bastante coerente. Claro que o ponto alto desta experiência é a narrativa, que sendo tão realista levou alguns críticos a rotularem o artefacto de jogo sério. Bem, só se quiserem rotular os romances de Hollywood também como sérios, ou então dizer que no mundo dos videojogos, o entretenimento só pode acontecer por via de tiros, magia e fantasia.
As várias mecânicas, apesar de lembrarem pequenos mini-jogos, são integradas como parte da história, ou seja, as ações conduzem a progressão narrativa.
*** Spoilers ***
Em “Florence” somos uma mulher citadina, vivendo só, à distância da mãe, num trabalho que não a entusiasma e um hobby que nos agrada. Conhecemos a nossa cara metade, e seguimos com ela todo o percurso narrativo da paixão, do entusiasmo ao seu desaparecimento. A mesmíssima história que já vimos e lemos milhares de vezes no cinema, na televisão, na literatura, no teatro. Mas aqui, e noutras representações mais recentes deste “girl meet boy”, o padrão alterou-se. Se no passado, a separação do casal era o clímax da tensão para intensificar o sabor da reconciliação, agora a separação é uma oportunidade de transformação e crescimento. Passámos de uma narrativa que nos parecia tão natural, o encontro entre dois seres e o lançamento da base para uma nova família, uma nova comunidade de suporte à sociedade, para o indivíduo, dono do seu destino a solo, pensando apenas sobre si e em si.
Ou seja, a ideia de que as metanarrativas desapareceram pela fragmentação das possibilidades acaba sendo uma falsa ideia, já que ela acontece na mesma, como se pode ver bem neste jogo. O encontro entre humanos é uma necessidade potenciada pelo sexo e pela paixão, mas temos vindo a racionalizar essa necessidade, não de um modo consciente, mas pela própria pressão a que estamos sujeitos nas nossas vidas, que acabam conduzindo-nos a um recolhimento sobre nós mesmos. Já não temos tempo para nada nem para ninguém, quanto mais para formar um casal que tanto exige, menos ainda pensar em descendência que nos roubaria tudo aquilo que sonhámos ser enquanto indivíduos. Queremos continuar a crescer, continuar a transformar-nos, continuar a ser crianças merecedoras de mimos, a ouvir o enaltecer das nossas competências individuais. Mais do que construir uma sociedade, estamos a construir bolsas de indivíduos que se sustentam em estruturas abstratas (leis, regulamentos, cidades e políticas) que vão mantendo as sociedades a funcionar...
Claro que estas reflexões são minhas, foram algo imediatas, mas por detrás destas existem outras não menos relevantes: como o empoderamento da mulher, ou a subversão da formatação pela sociedade, entre outras. E é por isso mesmo que o jogo é tão relevante, por abrir a discussão.
Nota: A constante troca entre o "nós" e "ela" faz parte da experiência que é despoletada pela linguagem própria dos videojogos que nos coloca no lugar de uma personagem, um avatar, levando-nos a assumir por vezes o lugar "dela", e outras o de nós mesmos.
dezembro 20, 2018
Origens da Comunicação Humana
Michael Tomasello é psicólogo de desenvolvimento e diretor do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology, apesar da sua investigação não ser na área da Comunicação o seu trabalho, e em particular este livro, “Origins of Human Communication” (2008), é um contributo fundamental para a compreensão daquilo de que a Comunicação é feita. A pergunta de partida é muito simples: sendo os chimpanzés reconhecidamente tão inteligentes, porque é que eles não falam?
O livro inicia com uma discussão assente numa grande variedade de estudos à volta dos chimpanzés, focada no modo como estes comunicam usando a linguagem não-verbal, principalmente o ato de apontar. Tomasello conclui que estes não apontam uns para os outros, pelo menos de forma consciente ou de modo intencional, e apesar de poderem ser ensinados a apontar, quando aprendem fazem-no apenas para realizar pedidos (normalmente para pedir comida).
Prosseguindo a discussão no campo dos humanos, Tomasello demonstra por um largo conjunto de estudos, e exemplos, que nós utilizamos o ato, ou gesto, de apontar como forma de comunicar entre nós, dando conta da complexidade envolvida neste ato aparentemente tão simples, mas capaz de conduzir à produção de sentidos altamente elaborados, mas que isso só é possível graças a uma condição: o “common ground”. Ora vejamos:
Isto não é propriamente revolucionário para quem trabalha em comunicação, já que a sua definição essencial é exatamente “colocar em comum”, e o contexto elaborado de que aqui se fala não é mais do que a Pragmática da Comunicação. O que é aqui mais relevante é este ato de colocar em comum, ou seja, a comunicação, ser responsável pela criação da linguagem humana e ao mesmo tempo por definir o fino fio que separa o humano das restantes espécies. Ou seja, a capacidade de informar e partilhar, a “intencionalidade partilhada” que é providenciada pela “leitura mental recursiva”, potencia a produção de pontes entre os indivíduos, acabando por fomentar a linguagem que por sua vez não acontece em mais nenhuma espécie.
O livro inicia com uma discussão assente numa grande variedade de estudos à volta dos chimpanzés, focada no modo como estes comunicam usando a linguagem não-verbal, principalmente o ato de apontar. Tomasello conclui que estes não apontam uns para os outros, pelo menos de forma consciente ou de modo intencional, e apesar de poderem ser ensinados a apontar, quando aprendem fazem-no apenas para realizar pedidos (normalmente para pedir comida).
Prosseguindo a discussão no campo dos humanos, Tomasello demonstra por um largo conjunto de estudos, e exemplos, que nós utilizamos o ato, ou gesto, de apontar como forma de comunicar entre nós, dando conta da complexidade envolvida neste ato aparentemente tão simples, mas capaz de conduzir à produção de sentidos altamente elaborados, mas que isso só é possível graças a uma condição: o “common ground”. Ora vejamos:
“All the instances of pointing and pantomiming just recounted involve one person simply directing another’s attention or imagination to some referent. The recipient then looks to the indicated referent, or imagines it, and from this discerns what the communicator is attempting to communicate—anything from “Are you waiting for the bathroom?” to “I’d like my cheese grated.” How do we do it? Where does this communicative complexity come from, if it is not “in” the protruding or sprinkling fingers? The answer is of course “context,” but this only takes us so far. Thus, great apes often operate in complex social contexts without seeming to communicate so richly.” (p.74)Então o que é que acontece com os humanos, porque é que o seu contexto é distinto?
“For humans the communicative context is not simply everything in the immediate environment, from the temperature of the room to the sounds of birds in the background, but rather the communicative context is what is “relevant” to the social interaction, that is, what each participant sees as relevant and knows that the other sees as relevant as well—and knows that the other knows this as well, and so on, potentially ad infinitum. This kind of shared, intersubjective context is what we may call, following Clark (1996), common ground or, sometimes (when we wish to emphasize the shared perceptual context), the joint attentional frame. Common ground includes everything we both know (and know that we both know, etc.), from facts about the world, to the way that rational people act in certain situations, to what people typically find salient and interesting (Levinson 1995).” (p.74)Deste modo, o nosso ato de apontar consegue funcionar com bastante maior elaboração, expandindo a comunicação, do simples “pedir” dos chimpanzés para três funções básicas: “solicitar (solicitando ajuda); informar (oferecendo ajuda na forma de informações úteis); e partilhar emoções e atitudes (unindo-se socialmente pela expansão do common ground)”. Tomasello defende assim que é o facto de termos desenvolvido a capacidade, e a necessidade, de comunicar que nos levou a desenvolver a linguagem, que acaba não sendo mais do que uma elaboração simbólica sobre estes três modos. No fundo, é a capacidade de estabelecer um “common ground” que potencia a complexificação do gesto e assim da comunicação e por sua vez do próprio tecido social humano, que é fundamentalmente baseado na nossa motivação para a cooperação.
Isto não é propriamente revolucionário para quem trabalha em comunicação, já que a sua definição essencial é exatamente “colocar em comum”, e o contexto elaborado de que aqui se fala não é mais do que a Pragmática da Comunicação. O que é aqui mais relevante é este ato de colocar em comum, ou seja, a comunicação, ser responsável pela criação da linguagem humana e ao mesmo tempo por definir o fino fio que separa o humano das restantes espécies. Ou seja, a capacidade de informar e partilhar, a “intencionalidade partilhada” que é providenciada pela “leitura mental recursiva”, potencia a produção de pontes entre os indivíduos, acabando por fomentar a linguagem que por sua vez não acontece em mais nenhuma espécie.
Lebensborn, os videojogos como cultura
Foi a primeira vez que ouvi a palavra "Lebensborn" que significa "fonte de vida", mas é também o nome dado pelo regime Nazi a um programa que tinha como objetivo aumentar a natalidade de crianças de raça ariana, a partir de um conjunto de pessoas classificadas "racialmente puras e saudáveis", centrado na Alemanha e na Noruega. O programa procurava oferecer suporte a mulheres não casadas, inicialmente mulheres arianas que tinham tido filhos de membros das SS, encorajando-se nascimentos e partos anónimos de mulheres nas casas dos programas com reconhecimento do estado Nazi. O videojogo "My Child Lebensborn" (2018) inicia-se no pós-guerra, e relata o modo como a sociedade norueguesa reagiu a estas crianças. Não é um jogo fácil, é duro, bastante violento em termos emocionais e morais, e mostra como os genes continuaram a servir ideologias mesmo depois do fim da guerra.
Como jogo, é um artefacto muito simples que recorre a estruturas de gestão de recursos, do tipo tamagotchi, mas que nos coloca na pele de educador de uma criança de 8 anos, fazendo-nos atravessar a sua entrada na escola, cuidando por forma a definir a sua personalidade através de um conjunto de decisões complexas que vamos tendo de tomar sobre o que achamos ser melhor para a criança, sobre como deve ela reagir ao mundo que a afeta. Apesar de ser um pequeno jogo móvel, oferece várias horas de jogo, a ponto de conseguir criar um forte envolvimento com a criança, de a sentirmos cada vez mais próxima quanto mais vamos investindo no jogo. A criança de quem tomamos conta, nasceu de mãe norueguesa e pai alemão no tempo da Guerra. A mãe não o quer, o pai arranjou outra vida, os avós não o reconhecem, a sociedade abomina-o. Cabe a nós conduzir o seu crescimento até ao ponto mais saudável possível.
Em termos de estrutura, temos um arco narrativo a permear todo o desenrolar de eventos e ações, com alguns altos e baixos que nem sempre vão sendo suficientemente apoiados pelo design de jogo. Ou seja, por vezes existe a necessidade de criar tensão, ou introspeção, e os designers optam por inibir as ações no jogo, mas não de uma forma direta (ex. retiram a criança de cena, ou da ação, sem explicação) e isso acaba afetando a jogabilidade, já que do ponto de vista da funcionalidade nos interrogamos se aquilo que está a acontecer faz sentido narrativo, ou é mero bug informático. Ainda assim, e a bem da experiência, tenho de dizer que foram múltiplas as vezes em que me comovi com os eventos relatados e as consequências.
No final, quando fui procurar saber mais sobre o "Lebensborn", e quando achei que já não poderia chocar-me mais, descobri que para além de fomentar a procriação desenfreada de filhos de mulheres arianas, chegaram a estabelecer-se redes de raptos pelo norte da Europa, que tiravam crianças com traços arianos às famílias. Para além disto, quando as crianças que nasciam de mulheres arianas nestes programas não apresentavam os traços esperados, eram enviados para campos de concentração, ou internados em hospícios dados como doentes mentais...
Os números não têm qualquer relação com os milhões de judeus mortos, estamos a falar de cerca de 10 mil crianças neste programa, mais cerca de 10 mil raptadas, mas não são os números que me tocam, é a brutalidade, é a total ausência de humanismo que começa na ideologia Nazi e prossegue com a recusa do povo norueguês na aceitação destas crianças, completamente inocentes. É algo humanamente transcendente, e é algo tratado por um videojogo que dá assim mostras da sua total maturidade enquanto medium, enquanto produtor de cultura.
O jogo foi criado pela Sarepta Studios, e está disponível para iOS e Android.
Como jogo, é um artefacto muito simples que recorre a estruturas de gestão de recursos, do tipo tamagotchi, mas que nos coloca na pele de educador de uma criança de 8 anos, fazendo-nos atravessar a sua entrada na escola, cuidando por forma a definir a sua personalidade através de um conjunto de decisões complexas que vamos tendo de tomar sobre o que achamos ser melhor para a criança, sobre como deve ela reagir ao mundo que a afeta. Apesar de ser um pequeno jogo móvel, oferece várias horas de jogo, a ponto de conseguir criar um forte envolvimento com a criança, de a sentirmos cada vez mais próxima quanto mais vamos investindo no jogo. A criança de quem tomamos conta, nasceu de mãe norueguesa e pai alemão no tempo da Guerra. A mãe não o quer, o pai arranjou outra vida, os avós não o reconhecem, a sociedade abomina-o. Cabe a nós conduzir o seu crescimento até ao ponto mais saudável possível.
Os capítulos desbloqueados no final dão conta da Estrutura Narrativa.
Em termos de estrutura, temos um arco narrativo a permear todo o desenrolar de eventos e ações, com alguns altos e baixos que nem sempre vão sendo suficientemente apoiados pelo design de jogo. Ou seja, por vezes existe a necessidade de criar tensão, ou introspeção, e os designers optam por inibir as ações no jogo, mas não de uma forma direta (ex. retiram a criança de cena, ou da ação, sem explicação) e isso acaba afetando a jogabilidade, já que do ponto de vista da funcionalidade nos interrogamos se aquilo que está a acontecer faz sentido narrativo, ou é mero bug informático. Ainda assim, e a bem da experiência, tenho de dizer que foram múltiplas as vezes em que me comovi com os eventos relatados e as consequências.
No final, quando fui procurar saber mais sobre o "Lebensborn", e quando achei que já não poderia chocar-me mais, descobri que para além de fomentar a procriação desenfreada de filhos de mulheres arianas, chegaram a estabelecer-se redes de raptos pelo norte da Europa, que tiravam crianças com traços arianos às famílias. Para além disto, quando as crianças que nasciam de mulheres arianas nestes programas não apresentavam os traços esperados, eram enviados para campos de concentração, ou internados em hospícios dados como doentes mentais...
Os números não têm qualquer relação com os milhões de judeus mortos, estamos a falar de cerca de 10 mil crianças neste programa, mais cerca de 10 mil raptadas, mas não são os números que me tocam, é a brutalidade, é a total ausência de humanismo que começa na ideologia Nazi e prossegue com a recusa do povo norueguês na aceitação destas crianças, completamente inocentes. É algo humanamente transcendente, e é algo tratado por um videojogo que dá assim mostras da sua total maturidade enquanto medium, enquanto produtor de cultura.
O jogo foi criado pela Sarepta Studios, e está disponível para iOS e Android.
dezembro 15, 2018
"A Way Out", obrigatório dois para jogar
Josef Fares é autor de um dos mais importantes jogos desta década, “Brothers: A Tale of Two Sons” (2013), tendo conseguido inovar no cruzamento entre a linguagem cinematográfica e a linguagem da interação. Por isso quando foi anunciado que no seu novo jogo seria obrigatório duas pessoas para fazer avançar o jogo, as expectativas aumentaram exponencialmente: 'o que estaria Josef Fares a congeminar com o potencial da interação partilhada?' O resultado pode ser agora jogado em “A Way Out” (2018), e se no geral não nos surpreendeu, porque abusa dos clichés de Hollywood, no final consegue marcar-nos emocionalmente e deixar-nos na ânsia pelo próximo.
O jogo começa inteiramente colado à atmosfera de “The Shawshank Redemption” (1994) passando depois por “Escape from Alcatraz” (1979), chegados cá fora, iniciamos uma viagem primeiro mais pastoral pelo interior rural americano, à la “Cool Hand Luke” (1967), seguido de uma fuga à policia à lá “The Sugarland Express” (1974), incluindo família, que de tão alucinante quase mais parece “Fast & Furious” (2009), o que não é completamente inocente tendo em conta o que se revela perto do final sobre os personagens. Continua-se a viagem e voa-se para o México para ir atrás de Harvey, uma espécie de Fausto Alarcón de "Sicario" (2015), ambos colados a Tony Montana de “Scarface” (1983). No final temos uma luta, com armas e punhos, rumando a um ambiente de um qualquer “Bourne” (2002-2016). Como se tudo não bastasse, um dos principais personagens é o irmão do diretor, Fares Fares, imediatamente reconhecível de Westworld (2018) mas também de “Zero Dark Thirty” (2012). Já no campo dos jogos, por vezes sentimo-nos em "Uncharted", outras em "Life is Strange" (2015). Exposto tudo isto, fica evidente a quantidade de clichés de que se faz o universo cinemático criado por Josef Fares, o que é pena, porque não havia necessidade. Não me parece que faltem ideias a Fares, nem me parece que o público dos videojogos tenha de ser tratado como se só conseguisse acompanhar uma história quando ela é marcada por um ritmo de Hollywood. Assim não adianta nada Fares andar a mandar f@der os Oscars (já agora o jogo peca por excesso de asneiredo completamente desnecessário).
Em termos de interação segue-se “A Way Out” vem bastante colado a “Brothers” com uma fluidez algo presa mas aprazível, se bem que por vezes deixando um pouco a desejar, facilitando em excesso a vida ao jogador. Já no campo do gameplay, é onde se goram mais as expectativas, já que o engenho apesar de interessante, rapidamente entra em repetição, acabando por raramente nos surpreender. Ou seja, se é engraçado termos de colaborar para realizar ações, muitas vezes isso acaba por nos desligar da atmosfera narrativa, porque ficamos mais a pensar na pessoa que está a jogar connosco do que no jogo. Por outro lado, e ao contrário “Brothers” existe um claro excesso de cinemático vs. Jogo/interação o que por vezes gera alguma frustração. Se a isso juntarmos os clichés, percebe-se rapidamente porque o jogo tem dificuldade em atingir notas máximas.
O melhor é mesmo a componente emocional que Fares controla muito bem por via das cinemáticas e acima de tudo da música, com um jogo que exige pouco do jogador e está mais disposto a criar uma experiência pronta a ser sorvida. Já a sequência final é digna de ser jogada por todos, e voltar a ser jogada, e voltar a ser jogada, que foi o que aconteceu cá em casa. Percebemos claramente que não é um filme, e que nem sequer se trata apenas de carregarmos simultaneamente no mesmo botão, é antes algo que um filme nunca nos poderia dar, o sabor da picardia, a tristeza pela descoberta da verdade, o choque perante os nossos personagens, o querer ganhar a todo o custo, e o rematar de um enredo que nem sempre tem de seguir o caminho moral aguardado.
“A Way Out” (2018) de Josef Fares
O jogo começa inteiramente colado à atmosfera de “The Shawshank Redemption” (1994) passando depois por “Escape from Alcatraz” (1979), chegados cá fora, iniciamos uma viagem primeiro mais pastoral pelo interior rural americano, à la “Cool Hand Luke” (1967), seguido de uma fuga à policia à lá “The Sugarland Express” (1974), incluindo família, que de tão alucinante quase mais parece “Fast & Furious” (2009), o que não é completamente inocente tendo em conta o que se revela perto do final sobre os personagens. Continua-se a viagem e voa-se para o México para ir atrás de Harvey, uma espécie de Fausto Alarcón de "Sicario" (2015), ambos colados a Tony Montana de “Scarface” (1983). No final temos uma luta, com armas e punhos, rumando a um ambiente de um qualquer “Bourne” (2002-2016). Como se tudo não bastasse, um dos principais personagens é o irmão do diretor, Fares Fares, imediatamente reconhecível de Westworld (2018) mas também de “Zero Dark Thirty” (2012). Já no campo dos jogos, por vezes sentimo-nos em "Uncharted", outras em "Life is Strange" (2015). Exposto tudo isto, fica evidente a quantidade de clichés de que se faz o universo cinemático criado por Josef Fares, o que é pena, porque não havia necessidade. Não me parece que faltem ideias a Fares, nem me parece que o público dos videojogos tenha de ser tratado como se só conseguisse acompanhar uma história quando ela é marcada por um ritmo de Hollywood. Assim não adianta nada Fares andar a mandar f@der os Oscars (já agora o jogo peca por excesso de asneiredo completamente desnecessário).
Em termos de interação segue-se “A Way Out” vem bastante colado a “Brothers” com uma fluidez algo presa mas aprazível, se bem que por vezes deixando um pouco a desejar, facilitando em excesso a vida ao jogador. Já no campo do gameplay, é onde se goram mais as expectativas, já que o engenho apesar de interessante, rapidamente entra em repetição, acabando por raramente nos surpreender. Ou seja, se é engraçado termos de colaborar para realizar ações, muitas vezes isso acaba por nos desligar da atmosfera narrativa, porque ficamos mais a pensar na pessoa que está a jogar connosco do que no jogo. Por outro lado, e ao contrário “Brothers” existe um claro excesso de cinemático vs. Jogo/interação o que por vezes gera alguma frustração. Se a isso juntarmos os clichés, percebe-se rapidamente porque o jogo tem dificuldade em atingir notas máximas.
dezembro 12, 2018
Multimedia 25 anos [1993 - 2018]
1993 foi há 25 anos e foi um ano revolucionário na afirmação das imagens geradas por computador (CGI), assim como no campo da afirmação da Multimedia, tanto na sua aplicação em termos visuais no cinema, por via dos VFx 3D, como na afirmação dos modos expressivos dos videojogos. Foram lançadas, neste mesmo ano, três obras fundamentais para esta viragem —"Myst", "Doom" e "Jurassic Park"— que marcariam um antes e um depois nas capacidades tecnológicas e potencialidades criativas. A estes juntavam-se ainda, neste mesmo ano, o lançamento do primeiro browser de internet gráfico, a primeira revista sobre avanços multimédia, e a primeira licenciatura nacional na área.
No campo das efemeridades, mas parte das experiências a que vou ainda recorrendo como memórias de referência, deixo mais alguns destaques: um dos mais interessantes filmes no campo do Design de Narrativa, "Groundhog Day", já no campo da História do Cinema, internacional, tivemos "Schindler's List" de Steven Spielberg, e a nível nacional, o filme mais relevante de Manoel de Oliveira, "Vale Abraão". Foi ainda o ano de Toni Morrison receber o Nobel da Literatura ("The Bluest Eyes" (1970) e "Beloved" (1987)) escritora que gosto de comparar com José Saramago.
"Myst" (1993) de Rand Miller e Robyn Miller (documentário online)
"Doom" (1993) de John Carmack e John Romero
"Jurassic Park" (1993) de Steven Spielberg
Esta viragem e afirmação não se fez apenas por via de filmes e jogos, mas foi também impulsionada por vários outros atores dos quais destaco, no plano internacional, o surgimento do primeiro browser gráfico, o "Mosaic", responsável pela total revolução no acesso e compreensão daquilo que representava a internet, e em particular a web; o surgimento do pacote de software "After Effects" adquirido mais tarde pela Adobe e que se transformaria no principal editor de Efeitos Visuais; o nascimento da revista "Wired" pelas mãos de Nicholas Negroponte, na altura diretor do MIT Media Lab; e no plano nacional, o lançamento da primeira licenciatura em multimédia do país, o curso "Novas Tecnologias da Comunicação" na Universidade de Aveiro."Ao tomar a decisão de não utilizar o stop-motion para utilizar o CGI na realização de Jurassic Park, Spielberg dava um verdadeiro salto em frente nos efeitos visuais. Uma decisão bastante complicada, uma vez que já estavam fabricados imensos modelos, Phil Tippett já tinha começado a fazer experiências com a sua técnica de Go-motion. Ou seja, quando a produção de Jurassic Park começou, Spielberg não tinha previsto a utilização de qualquer personagem CGI" (Zagalo, 2009:101)(..)Esta mudança marca o início de uma nova busca pelo realismo no cinema a que Prince (1996) chama de “realismo perceptivo”, um realismo que “estruturalmente corresponde à experiência audiovisual de um espaço tridimensional”. Já no caso dos videojogos, Myst representa uma marca similar à de "Jurassic Park". A audiência percebeu que se os gráficos de computador poderiam permitir a representação de uma espécie “desconhecida”, poderiam permitir a representação de um mundo completo, misterioso e desconhecido, do passado ou do futuro (Pierson, 2002). O CGI era visto como uma máquina do tempo." (Zagalo, 2009:235)
"Mosaic 1.0" do National Center for Supercomputing Applications, Setembro 1993
"After Effects 1.0", Janeiro 1993
Primeiro número da revista "Wired", Novembro 1993
Panfleto de lançamento do curso "Novas Tecnologias da Comunicação" na Universidade de Aveiro, Outubro 1993. O curso iniciou este mês de setembro as comemorações que se vão prolongar até ao final do ano lectivo.
No campo das efemeridades, mas parte das experiências a que vou ainda recorrendo como memórias de referência, deixo mais alguns destaques: um dos mais interessantes filmes no campo do Design de Narrativa, "Groundhog Day", já no campo da História do Cinema, internacional, tivemos "Schindler's List" de Steven Spielberg, e a nível nacional, o filme mais relevante de Manoel de Oliveira, "Vale Abraão". Foi ainda o ano de Toni Morrison receber o Nobel da Literatura ("The Bluest Eyes" (1970) e "Beloved" (1987)) escritora que gosto de comparar com José Saramago.
"Groundhog Day" (1993) cartaz de celebração dos 25 anos com regresso às salas de cinema.
"Schindler's List" (1993) cartaz de celebração dos 25 anos com regresso às salas de cinema.
"Vale Abraão" (1993) de Manoel de Oliveira, premiado em 1993 nos festivais internacionais de cinema de São Paulo e Tóquio. Ao contrário dos dois filmes americanos, acima, e apesar de ser um dos filmes mais importantes da filmografia nacional, não tem prevista qualquer reposição em sala. Assim torna-se difícil fazer valer a nossa cultura.
dezembro 09, 2018
A narrativa excecional e o design por vezes arcaico de "God of War"
"God of War" (2018) não é uma experiência revolucionária, mas tal como já tinha acontecido na primeira série, iniciada na PS2, que também não o era, é um jogo capaz de utilizar várias componentes criativas dos videojogos em níveis de excelência e assim oferecer uma experiência bastante elaborada. Diria mais, que GoW tem vindo a servir para mostrar o que é possível fazer com a linguagem dos videojogos, dando conta, em cada novo jogo, dos parâmetros mais estáveis do meio. Ainda assim, e apesar de ser uma experiência, do ponto de vista estético, muito boa, tanto consegue apresentar elementos excecionais como elementos meramente satisfatórios. Nas próximas linhas detenho-me nos elementos que geram o contraste.
A) EXCECIONAL
1 - O tratamento da narrativa, desde o cruzamento de enredos a toda a relação destes com a arte de suporte aos personagens por via dos atores, assim como toda a arte de suporte ao ambiente desde a arte visual, à sonora e animação. É isto que torna "God of War" tão poderoso, e o reconhecimento por tal é oferecido nos créditos, com a equipa de Narrativa a surgir em primeiro lugar, logo após o diretor e produtores, seguida do Design, Programação e Arte (sobre as equipas e seus lugares na produção e desenvolvimento de videojogos ainda falarei noutro post).
2 - A história, tanto do jogo como na sua relação com os jogos passados. A história não é decoração nem mero suporte ao jogo, a história é o pilar que sustenta a razão do jogo existir. Mas ela só se eleva a esse patamar pela presença de Atreus (filho de Kratos), que obriga a história a sair dos elementos externos de Kratos, que por via da mitologia nórdica são bastante coesos, para se focar no seu interior, algo que só é possível por via do filho, já que este funciona como autêntico espelho psicológico. Por outro lado, e agora entrando na história, existe uma coerência na manutenção da firmeza de Kratos, que é um deus, por oposição à belíssima progressão de carácter de Atreus que está em crescimento, mas que é não é apenas um deus (não revelo o resto porque entraria no detalhe da história).
3 - As performances dos atores, nomeadamente de Jeremy Davies como Baldur, que é talvez das melhores performances algumas vistas num videojogo, desde sempre. Interessante, como quanto mais avança o 3d e os jogos se vão tornando quase fotoreais, maior vai sendo a necessidade de atores reais. Nesse sentido, Sunny Suljic oferece uma belíssima transformação a Atreus ao longo de todo o jogo, já Christopher Judge (Stargate) mantém a firmeza de Kratos completamente inabalável.
4 - O design dos combates, na sua fluidez e relação com as artes visuais e sonoras, capaz de oferecer pura adrenalina e ao mesmo tempo descargas de dopamina via progresso e impacto estético.
B) SATISFATÓRIO
1 - Os resquícios de um game design ultrapassado, nomeadamente pelas arcas que se vão encontrando em todo e qualquer canto e as batalhas que surgem a metrónomo. Este problema sente-se com maior força durante toda a primeira metade do jogo, em que se opta por atrair os fãs da série, e por isso não dedicar muito espaço à progressão narrativa.
2 - O design do espaço, com demasiadas áreas a impossibilitar o jogador de avançar sem que os elementos do terreno deem qualquer razão para tal. Ou seja, não só o jogo está ainda demasiado linear, como força o jogador a fazer o que quer ou necessita para fazer progredir a experiência. Isto é tanto mais evidente no facto de todas as interações com o mundo serem apenas possíveis quando surge o círculo, o que é um péssimo indicador do trabalho de design.
3 - Se a câmara está desenhada de forma magistral, com um constante vai-e-vem entre interativo e não-interativo, existindo um responsável na equipa especificado como "narrative camera animation", acaba por assumir uma preponderância tal, diria mesmo obsessiva no controlo da câmara, a ponto de por tudo e por nada, nos ser retirado o controlo do jogo apenas para poder gerar a experiência estética desejada.
4 - Esta obsessão por guiar, orientar, alinhar, no fundo forçar uma determinada experiência atinge o cume na total ausência de design de estruturas ou sistemas no campo da narrativa. A história oferece-se como experiência completamente fechada, com a agência num nível quase zero, ao jogador resta-lhe seguir e assistir passivamente ao desenrolar dos eventos.
Para que os amantes do jogo, e são muitos, a julgar pelo Metacritic, tanto dos críticos como dos jogadores, não digam que estou a ser injusto e que estou sozinho nestas críticas, deixo-vos com as notas de Adrian Chmielarz, diretor de "The Vanishing of Ethan Carter" (2014), com as quais me identifico bastante.
C) SÍNTESE
GoW é uma experiência deslumbrante, capaz de tocar as nossas teclas mais humanas, da exaltação à empatia. Enquanto artefacto, representa uma vitória das artes narrativa e visual sobre o design, com a história a tudo comandar, a arte a tudo obrigar, e o design simplesmente a aceitar em modo subserviente. No final senti-me dividido, mas nem por um momento arrependido do tempo investido.
Atreus e Kratos apresentando as roupas e armaduras que lhes atribuí no final.
A) EXCECIONAL
1 - O tratamento da narrativa, desde o cruzamento de enredos a toda a relação destes com a arte de suporte aos personagens por via dos atores, assim como toda a arte de suporte ao ambiente desde a arte visual, à sonora e animação. É isto que torna "God of War" tão poderoso, e o reconhecimento por tal é oferecido nos créditos, com a equipa de Narrativa a surgir em primeiro lugar, logo após o diretor e produtores, seguida do Design, Programação e Arte (sobre as equipas e seus lugares na produção e desenvolvimento de videojogos ainda falarei noutro post).
Kratos
2 - A história, tanto do jogo como na sua relação com os jogos passados. A história não é decoração nem mero suporte ao jogo, a história é o pilar que sustenta a razão do jogo existir. Mas ela só se eleva a esse patamar pela presença de Atreus (filho de Kratos), que obriga a história a sair dos elementos externos de Kratos, que por via da mitologia nórdica são bastante coesos, para se focar no seu interior, algo que só é possível por via do filho, já que este funciona como autêntico espelho psicológico. Por outro lado, e agora entrando na história, existe uma coerência na manutenção da firmeza de Kratos, que é um deus, por oposição à belíssima progressão de carácter de Atreus que está em crescimento, mas que é não é apenas um deus (não revelo o resto porque entraria no detalhe da história).
Kratos e Atreus
3 - As performances dos atores, nomeadamente de Jeremy Davies como Baldur, que é talvez das melhores performances algumas vistas num videojogo, desde sempre. Interessante, como quanto mais avança o 3d e os jogos se vão tornando quase fotoreais, maior vai sendo a necessidade de atores reais. Nesse sentido, Sunny Suljic oferece uma belíssima transformação a Atreus ao longo de todo o jogo, já Christopher Judge (Stargate) mantém a firmeza de Kratos completamente inabalável.
Stranger e Kratos
Atreus, Baldur e Kratos
4 - O design dos combates, na sua fluidez e relação com as artes visuais e sonoras, capaz de oferecer pura adrenalina e ao mesmo tempo descargas de dopamina via progresso e impacto estético.
B) SATISFATÓRIO
1 - Os resquícios de um game design ultrapassado, nomeadamente pelas arcas que se vão encontrando em todo e qualquer canto e as batalhas que surgem a metrónomo. Este problema sente-se com maior força durante toda a primeira metade do jogo, em que se opta por atrair os fãs da série, e por isso não dedicar muito espaço à progressão narrativa.
2 - O design do espaço, com demasiadas áreas a impossibilitar o jogador de avançar sem que os elementos do terreno deem qualquer razão para tal. Ou seja, não só o jogo está ainda demasiado linear, como força o jogador a fazer o que quer ou necessita para fazer progredir a experiência. Isto é tanto mais evidente no facto de todas as interações com o mundo serem apenas possíveis quando surge o círculo, o que é um péssimo indicador do trabalho de design.
3 - Se a câmara está desenhada de forma magistral, com um constante vai-e-vem entre interativo e não-interativo, existindo um responsável na equipa especificado como "narrative camera animation", acaba por assumir uma preponderância tal, diria mesmo obsessiva no controlo da câmara, a ponto de por tudo e por nada, nos ser retirado o controlo do jogo apenas para poder gerar a experiência estética desejada.
4 - Esta obsessão por guiar, orientar, alinhar, no fundo forçar uma determinada experiência atinge o cume na total ausência de design de estruturas ou sistemas no campo da narrativa. A história oferece-se como experiência completamente fechada, com a agência num nível quase zero, ao jogador resta-lhe seguir e assistir passivamente ao desenrolar dos eventos.
Para que os amantes do jogo, e são muitos, a julgar pelo Metacritic, tanto dos críticos como dos jogadores, não digam que estou a ser injusto e que estou sozinho nestas críticas, deixo-vos com as notas de Adrian Chmielarz, diretor de "The Vanishing of Ethan Carter" (2014), com as quais me identifico bastante.
C) SÍNTESE
GoW é uma experiência deslumbrante, capaz de tocar as nossas teclas mais humanas, da exaltação à empatia. Enquanto artefacto, representa uma vitória das artes narrativa e visual sobre o design, com a história a tudo comandar, a arte a tudo obrigar, e o design simplesmente a aceitar em modo subserviente. No final senti-me dividido, mas nem por um momento arrependido do tempo investido.
dezembro 07, 2018
A construção inata das emoções
Lisa Feldman-Barrett tem provocado imensas ondas no campo das ciências da emoção com a sua nova proposta sobre o modo como surgem as emoções. Se no mundo da ciência as suas abordagens vão sendo aceites mas bastante questionadas, dada a natureza de regulação da ciência que favorece a dúvida, no campo mais mediático, da chamada folk science, as suas abordagens têm sido recebido como revolucionárias e de extrema importância. É verdade que Barrett tem um currículo académico que lhe granjeia facilmente autoridade, e por isso a aceitação daquilo que diz como sendo cientificamente demonstrada e logo verdade. Do meu lado, darei aqui conta do ceticismo para com a sua teorização.
Barrett apresentou uma TED, escreveu dezenas de artigos e no ano passado lançou o livro “How Emotions Are Made: The Secret Life of the Brain” (2017), tudo para defender aquilo que ela define como uma teoria revolucionária das emoções, a que chamou de "theory of constructed emotion". Nessa teoria diz-nos que a teoria clássica da emoção está completamente errada: que as emoções não são universais, variam entre seres-humanos, e mais, não são inatas. Para Barrett, as emoções são meras construções mentais, simulações que fazemos a partir de experiências passadas. Para sentir uma emoção precisamos de julgar momento a momento para determinar a emoção que sentimos. Estas conclusões de Barrett advém do facto de ter passado as últimas décadas a tentar encontrar a "impressão digital" das emoções e não a ter encontrado. Ou seja, nos estudos que fez com fotografias de faces humanas encontrou demasiada variabilidade nas respostas; nos estudos que fez com a variação corporal e nos estudos que fez com os circuitos neuronais, igual. Barrett diz assim que até hoje não foi possível encontrar no corpo humano o lugar em que a emoção se define, e desse modo ela não existe de forma inata, sendo mera construção mental.
Esta abordagem de Barrett, do meu ponto de vista, enquanto investigador da emoção e cognição, levanta-me imensas dúvidas, algumas a partir de outros autores, outras como reação direta ao que é questionado pela autora, e que passo a elencar:
1 – Expressão Facial e Paul Ekman
Ekman é um dos mais reputados investigadores de emoção, em especial, da emoção facial. E é também um dos mais atacados por Barrett, porque segundo ela, nas suas replicações experimentais, nunca conseguiu encontrar os mesmos resultados que Ekman. Por sua vez Ekman, respondeu-lhe em 2014, de forma muito direta, com a imensidade de estudos que suportam o seu trabalho e as suas propostas, vale a pena ler. Barrett aceita que a leitura de expressões faciais possa ser demasiado subjectiva, e por isso realizou testes com sensores de variação muscular da cara, a partir dos quais concluiu que continua a existir demasiada variabilidade.
Ora estes estudos levantam-me vários problemas, primeiro porque a avaliação de emoção apenas por meio de uma fotografia é algo que só muito treino pode garantir, pela simples razão de que lhe falta a variabilidade temporal da cara. Uma emoção facial não tem a duração de um momento congelado no tempo, mas no mínimo, a variação da posição neutra até à posição da emoção, e depois o voltar ao neutral novamente. Ora, nós seres humanos estamos apenas dotados de capacidade para ler essa variação, e não instantes captados com máquinas fotográficas. É o mesmo que tentar ver o que acontece numa imagem de um filme quando o filme está em movimento, não conseguimos, temos de usar a tecnologia para parar o movimento. Por isso Ekman defende a necessidade de treinar as pessoas para lerem emoções.
Mas pior do que isto são os testes com sensores feitos por Barrett. Como vemos na fotografia, está a usar 8 sensores para captar a variação muscular. Mesmo aceitando que são sensores capazes de uma mais alargada sensibilidade, se compararmos com os sistemas de motion capture que temos criado para realizar animação facial com alguma qualidade, as quais recorrem a mais de 150 pontos, soa no mínimo ingénuo a experiência de Barrett. Mas agrava-se, porque se pensarmos que mesmo com esses 150 pontos, continuamos a não conseguir captar toda a essência do movimento da cara, e a ter problemas na representação facial em 3d, o qual é reconhecido como uncanny valley, então ficamos a pensar que falta muito trabalho a Barrett para chegar à identificação das expressões faciais por meios ditos objetivos.
2 – Marcadores somáticos de Damásio
Um segundo aspeto que me parece um pouco tonto na teoria de Barrett, até por ela a apresentar como se fosse algo completamente revolucionário, é que Damásio já tinha defendido que as emoções emergiam a partir de marcadores somáticos, que não são mais do que inferências do passado, preservadas no nosso corpo. Aliás, Barrett é bastante desleal aqui, porque o único lugar em que reconheceu semelhanças com a sua teoria foi numa página wiki de trabalho para o livro, já nos seus artigos e no livro, não existe qualquer menção aos marcadores somáticos. Na wiki, Barrett diz que descarta a teoria de Damásio, porque apesar de semelhante, Damásio defende as emoções como sendo inatas. Ora Damásio, como Ekman, Darwin e tantos outros, só defendem seis emoções como inatas — Alegria, Tristeza, Medo, Raiva, Nojo e Surpresa—, todas as outras Damásio defende como emoções sociais, ou seja construídas culturalmente.
Na verdade a teorização de Damásio é muito mais relevante porque defende os marcadores somáticos presentes no corpo e não apenas na mente como defende Barrett. Para Barrett a emoção é apenas uma resposta mental, enquanto para Damásio é todo um quadro somático do nosso corpo que nos permite sentir o impacto fisiológico da emoção (não esquecer as mais recentes descobertas em torno dos neurónios presentes na medula espinal, no coração, e no intestino.). E aqui agrava-se ainda mais a abordagem de Barrett apresentando-se como defensora do mais básico dualismo mente/corpo, aquele que Damásio procurou desmontar, e desde então tem sido aceite por boa parte da ciência.
Mas Barrett vai mais longe, no livro e na TED, atira à cara das pessoas que estas “não estão à mercê das emoções”, uma vez que essas são meramente criadas pelo cérebro. Que “nós não somos vítimas de circuitos de emoção primitivos e animalescos” porque é o nosso “cérebro que constrói as experiências emocionais, mesmo aquelas fora de controlo”. Ou seja, não só atira as questões inatas como todo o corpo fora. Onde é que na equação de Barrett entram as situações pós-traumáticas e as hormonas da testosterona, da ocitocina, da adrenalina ou da dopamina!?
3 – Emoção e Cognição
No terceiro ponto vejo um problema enorme, que é a total confusão entre cognição e emoção. Barrett usa princípios da Gestalt para definir o modo como se processa a identificação de etiquetas emocionais. Os princípios da Gestalt são operados por lógica, pela busca de padrões que o nosso cérebro opera, mas que se diferenciam imenso das sensações ou emoções que atuam sobre o nosso corpo como um todo. Aliás, Barrett usa e abusa de todas as teorias no campo visual, narrativo, da aprendizagem, assim como da psicologia — tal como a "appraisal theory" — mas nunca cita todo o trabalho feito nessas áreas. No fundo, arranjou uma interpretação sua para algo que diz que não tem explicação na neurociência, e fala dela sem ligar nenhuma a todos os restantes ramos do conhecimento que se têm dedicado a perceber como construímos conhecimento, como compreendemos o real, e como isso se diferencia dos modos como sentimos esse real.
4 – Expressões faciais em invisuais
Apesar de ter deixado este ponto para quarto, é talvez o mais impactante em toda esta teorização de Barrett, porque é uma evidência clara da insustentabilidade da teoria proposta. Ou seja, se as emoções e expressões faciais são respostas mentais construídas, apreendidas no tempo, por via dos pais e cuidadores, então como é que se explica que invisuais de nascença, possam expressar emoções com a cara do mesmo modo que pessoas com sentido de visão? Como é que estas pessoas aprenderam a gerar aquelas emoções? Como é que o seu cérebro sabe o que deve fazer com a cara?
5 – Emoção como palavra!
Para Barrett só sentimos as emoções para as quais temos palavras. Se não soubermos definir o que sentimos, então não sentimos essa emoção. Aliás, neste mesmo sentido diz-nos que os
animais não sentem medo, que sentem apenas uma espécie de afeto! Ou seja, é preciso ter um sistema mental completo e dotado de expressão e comunicação para sentir! Seguindo esta ideia, uma criança a quem nunca tivesse sido ensinado o que é a tristeza, ou a alegria, ou o medo, poderia viver toda a sua vida sem sentir emoção. Então pergunto porque não temos a nossa espécie cheia de Spocks? Ou pior, porque raio continuam os animais a insistir em sentir emoções?!!!
São tantos os problemas desta teoria, a ponto de ser a própria a aceitar que a sua teoria é apenas uma teoria — "the roles I’ve described for your various brain networks are not objective facts. They are concepts invented by scientists to describe the physical activity within a brain" — e que tem imensos problemas, apresentando vários buracos. No entanto, esta aceitação entra em choque com a sua vontade de estar constantemente a atacar as teorias que aceitam o lado biológico das emoções, e pior, apresentar a sua teoria como verdade absoluta e inquestionável.
Se quiserem um atalho para o livro, leiam o artigo da autora "The theory of constructed emotion: an active inference account of interoception and categorization" (2017) publicado no Social Cognitive and Affective Neuroscience, resume todo o livro.
Barrett apresentou uma TED, escreveu dezenas de artigos e no ano passado lançou o livro “How Emotions Are Made: The Secret Life of the Brain” (2017), tudo para defender aquilo que ela define como uma teoria revolucionária das emoções, a que chamou de "theory of constructed emotion". Nessa teoria diz-nos que a teoria clássica da emoção está completamente errada: que as emoções não são universais, variam entre seres-humanos, e mais, não são inatas. Para Barrett, as emoções são meras construções mentais, simulações que fazemos a partir de experiências passadas. Para sentir uma emoção precisamos de julgar momento a momento para determinar a emoção que sentimos. Estas conclusões de Barrett advém do facto de ter passado as últimas décadas a tentar encontrar a "impressão digital" das emoções e não a ter encontrado. Ou seja, nos estudos que fez com fotografias de faces humanas encontrou demasiada variabilidade nas respostas; nos estudos que fez com a variação corporal e nos estudos que fez com os circuitos neuronais, igual. Barrett diz assim que até hoje não foi possível encontrar no corpo humano o lugar em que a emoção se define, e desse modo ela não existe de forma inata, sendo mera construção mental.
Esta abordagem de Barrett, do meu ponto de vista, enquanto investigador da emoção e cognição, levanta-me imensas dúvidas, algumas a partir de outros autores, outras como reação direta ao que é questionado pela autora, e que passo a elencar:
1 – Expressão Facial e Paul Ekman
Ekman é um dos mais reputados investigadores de emoção, em especial, da emoção facial. E é também um dos mais atacados por Barrett, porque segundo ela, nas suas replicações experimentais, nunca conseguiu encontrar os mesmos resultados que Ekman. Por sua vez Ekman, respondeu-lhe em 2014, de forma muito direta, com a imensidade de estudos que suportam o seu trabalho e as suas propostas, vale a pena ler. Barrett aceita que a leitura de expressões faciais possa ser demasiado subjectiva, e por isso realizou testes com sensores de variação muscular da cara, a partir dos quais concluiu que continua a existir demasiada variabilidade.
Ora estes estudos levantam-me vários problemas, primeiro porque a avaliação de emoção apenas por meio de uma fotografia é algo que só muito treino pode garantir, pela simples razão de que lhe falta a variabilidade temporal da cara. Uma emoção facial não tem a duração de um momento congelado no tempo, mas no mínimo, a variação da posição neutra até à posição da emoção, e depois o voltar ao neutral novamente. Ora, nós seres humanos estamos apenas dotados de capacidade para ler essa variação, e não instantes captados com máquinas fotográficas. É o mesmo que tentar ver o que acontece numa imagem de um filme quando o filme está em movimento, não conseguimos, temos de usar a tecnologia para parar o movimento. Por isso Ekman defende a necessidade de treinar as pessoas para lerem emoções.
8 pontos de Barrett vs. 152 marcadores usados por Tom Hanks para o filme "Polar Express" (2014)
Mas pior do que isto são os testes com sensores feitos por Barrett. Como vemos na fotografia, está a usar 8 sensores para captar a variação muscular. Mesmo aceitando que são sensores capazes de uma mais alargada sensibilidade, se compararmos com os sistemas de motion capture que temos criado para realizar animação facial com alguma qualidade, as quais recorrem a mais de 150 pontos, soa no mínimo ingénuo a experiência de Barrett. Mas agrava-se, porque se pensarmos que mesmo com esses 150 pontos, continuamos a não conseguir captar toda a essência do movimento da cara, e a ter problemas na representação facial em 3d, o qual é reconhecido como uncanny valley, então ficamos a pensar que falta muito trabalho a Barrett para chegar à identificação das expressões faciais por meios ditos objetivos.
2 – Marcadores somáticos de Damásio
Um segundo aspeto que me parece um pouco tonto na teoria de Barrett, até por ela a apresentar como se fosse algo completamente revolucionário, é que Damásio já tinha defendido que as emoções emergiam a partir de marcadores somáticos, que não são mais do que inferências do passado, preservadas no nosso corpo. Aliás, Barrett é bastante desleal aqui, porque o único lugar em que reconheceu semelhanças com a sua teoria foi numa página wiki de trabalho para o livro, já nos seus artigos e no livro, não existe qualquer menção aos marcadores somáticos. Na wiki, Barrett diz que descarta a teoria de Damásio, porque apesar de semelhante, Damásio defende as emoções como sendo inatas. Ora Damásio, como Ekman, Darwin e tantos outros, só defendem seis emoções como inatas — Alegria, Tristeza, Medo, Raiva, Nojo e Surpresa—, todas as outras Damásio defende como emoções sociais, ou seja construídas culturalmente.
Na verdade a teorização de Damásio é muito mais relevante porque defende os marcadores somáticos presentes no corpo e não apenas na mente como defende Barrett. Para Barrett a emoção é apenas uma resposta mental, enquanto para Damásio é todo um quadro somático do nosso corpo que nos permite sentir o impacto fisiológico da emoção (não esquecer as mais recentes descobertas em torno dos neurónios presentes na medula espinal, no coração, e no intestino.). E aqui agrava-se ainda mais a abordagem de Barrett apresentando-se como defensora do mais básico dualismo mente/corpo, aquele que Damásio procurou desmontar, e desde então tem sido aceite por boa parte da ciência.
Mas Barrett vai mais longe, no livro e na TED, atira à cara das pessoas que estas “não estão à mercê das emoções”, uma vez que essas são meramente criadas pelo cérebro. Que “nós não somos vítimas de circuitos de emoção primitivos e animalescos” porque é o nosso “cérebro que constrói as experiências emocionais, mesmo aquelas fora de controlo”. Ou seja, não só atira as questões inatas como todo o corpo fora. Onde é que na equação de Barrett entram as situações pós-traumáticas e as hormonas da testosterona, da ocitocina, da adrenalina ou da dopamina!?
3 – Emoção e Cognição
No terceiro ponto vejo um problema enorme, que é a total confusão entre cognição e emoção. Barrett usa princípios da Gestalt para definir o modo como se processa a identificação de etiquetas emocionais. Os princípios da Gestalt são operados por lógica, pela busca de padrões que o nosso cérebro opera, mas que se diferenciam imenso das sensações ou emoções que atuam sobre o nosso corpo como um todo. Aliás, Barrett usa e abusa de todas as teorias no campo visual, narrativo, da aprendizagem, assim como da psicologia — tal como a "appraisal theory" — mas nunca cita todo o trabalho feito nessas áreas. No fundo, arranjou uma interpretação sua para algo que diz que não tem explicação na neurociência, e fala dela sem ligar nenhuma a todos os restantes ramos do conhecimento que se têm dedicado a perceber como construímos conhecimento, como compreendemos o real, e como isso se diferencia dos modos como sentimos esse real.
4 – Expressões faciais em invisuais
Apesar de ter deixado este ponto para quarto, é talvez o mais impactante em toda esta teorização de Barrett, porque é uma evidência clara da insustentabilidade da teoria proposta. Ou seja, se as emoções e expressões faciais são respostas mentais construídas, apreendidas no tempo, por via dos pais e cuidadores, então como é que se explica que invisuais de nascença, possam expressar emoções com a cara do mesmo modo que pessoas com sentido de visão? Como é que estas pessoas aprenderam a gerar aquelas emoções? Como é que o seu cérebro sabe o que deve fazer com a cara?
Nestas imagens vemos como as expressões faciais são iguais. Mas algo que é muito interessante no estudo que apresenta estas imagens é que se verificou que os invisuais só apresentam a mesma expressão facial quando estão a sentir a emoção, e não quando lhes pedem para fazer a cara de uma determinada emoção, o que torna ainda mais evidente o facto da emoção ser um processo inato e automático, e não aprendido e consciente.
5 – Emoção como palavra!
Para Barrett só sentimos as emoções para as quais temos palavras. Se não soubermos definir o que sentimos, então não sentimos essa emoção. Aliás, neste mesmo sentido diz-nos que os
animais não sentem medo, que sentem apenas uma espécie de afeto! Ou seja, é preciso ter um sistema mental completo e dotado de expressão e comunicação para sentir! Seguindo esta ideia, uma criança a quem nunca tivesse sido ensinado o que é a tristeza, ou a alegria, ou o medo, poderia viver toda a sua vida sem sentir emoção. Então pergunto porque não temos a nossa espécie cheia de Spocks? Ou pior, porque raio continuam os animais a insistir em sentir emoções?!!!
Seguindo a teoria de Barrett, como podem estes cão sentir algo se ninguém lhes ensinou as palavras que definem as emoções que sentem?!
São tantos os problemas desta teoria, a ponto de ser a própria a aceitar que a sua teoria é apenas uma teoria — "the roles I’ve described for your various brain networks are not objective facts. They are concepts invented by scientists to describe the physical activity within a brain" — e que tem imensos problemas, apresentando vários buracos. No entanto, esta aceitação entra em choque com a sua vontade de estar constantemente a atacar as teorias que aceitam o lado biológico das emoções, e pior, apresentar a sua teoria como verdade absoluta e inquestionável.
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