julho 23, 2018

5 anos depois

Voltei a "The Last of Us" (2013), rejoguei o jogo completo, algo que há anos e anos não acontecia, e tenho de dizer que a experiência foi tão, ou mais, intensa que a de há 5 anos. Reli agora o que escrevi na altura e nada se alterou, nem tão pouco o jogo foi ultrapassado por qualquer outro. Entre as duas experiências li "A Estrada" (2007) de Cormac McCarthy, uma das principais influências de "The Last of Us" (TLOUS) e tenho de dizer que Neil Druckmann ombreia com McCarthy, bastante mais do que a adaptação cinematográfica homónima de John Hillcoat, mesmo não lhe sendo tão fiel.


Não vou realizar qualquer análise ao jogo porque como já disse, o que escrevi há 5 anos mantém-se tudo, mas quero aproveitar estas linhas para enfatizar algo que nessa altura louvei mas julgo não ter sentido tanto como desta vez, falo dos personagens. Os personagens são a essência da literatura, ela melhor do que qualquer outra arte consegue dar-nos a conhecer quem se nos apresenta, porque nos permite entrar nas suas mentes e escrutinar o que pensam em cada momento. Contudo, como sabemos do cinema, é possível chegar a muito disso pelo que estes decidem fazer em cada momento, e os videojogos não são exceção. Sendo o videojogo muito mais extenso que o filme, passamos muito mais tempo na sua companhia, temos mais oportunidades para ir conhecendo aqueles com quem seguimos na narrativa. E TLOUS aproveita bem as mais de 20 horas que o jogo requer da nossa atenção, criando situações, atividades e escolhas que se vão desenrolando num modo imensamente rico no que toca a expressividade dos personagens. Quando disse acima que Druckmann ombreia com McCarthy era especialmente por esta riqueza narrativa, de situações que nos permitem entrar de forma tão profunda no sentir dos seus personagens.

O personagem principal Joel não é nenhum santo, apesar de começar como um simples pai de classe média americana, com um conjunto de valores iguais a tantos outros, o confronto com o apocalipse transforma-o completamente, algo a que assistimos logo ao abrir do jogo, e o resto do jogo acaba sendo toda uma travessia em busca do Eu perdido de Joel, o que abre espaço constante para a luta moral interior, entre os resquícios da bondade de outro tempo e a violência própria do novo tempo. Diga-se que TLOUS é bastante violento, não sendo mais que "A Estrada", mas por ser mais longo, faz-nos sentir mais vezes essa violência. Por várias vezes questionei-me que não era precisa, e que estaria a ser gratuita, mas saindo da redoma da minha segurança sei que não, tal com McCarthy também sabia.

Este desfiar moral sobre a identidade de Joel está presente até ao fim e é mesmo a chave para explicar o final narrativo mais surpreendente de sempre dos videojogos. As opções apresentadas são: salvar a humanidade ou salvar uma adolescente com quem se desenvolveu uma relação de pai e filha. A decisão é um dilema filosófico sobre o sentido utilitarista da vida, em que nós como jogadores não participamos, mas que define por completo a jornada encetada com Joel, servindo de chave para compreender de onde se parte e onde se chega. Nós não somos Joel, mas Joel pode ser todos nós. Druckmann obriga-nos a refletir sobre algo que McCarthy acaba, em parte, descartando, as relações humanas. No fundo, só investimos tanto na nossa sobrevivência por causa dos outros como nós.



Veremos o que "The Last of Us II" tem para nos oferecer.

julho 21, 2018

Primeiro Eça, depois os Maias

Vejo tanta discussão em redor da importância de "Os Maias" na escola portuguesa porque o Ministério decidiu terminar a sua obrigatoriedade, presenteando os docentes com a missão de serem eles agora a selecionar a obra de Eça de Queiroz que se estuda em cada ano, mas muita desta discussão vem bastante enviesada. Não vejo uma real preocupação com o que está em questão na leitura desta obra, mas mais uma discussão sob os velhos rótulos de alta e baixa cultura. Temos o típico coro de críticas de ataque ao que se muda, como se a mudança fosse sempre para pior. Mas temos também justificações para a mudança baseadas em preceitos de modernidade que não têm qualquer sustentação. Quando é, ou deveria ser, simples aquilo que motiva a escolha de obras de leitura geral e obrigatória nas escolas: a criação de um cânone que una todos os cidadãos num discurso comum, que não pode ser dissociado da idade dos alunos, e do seu desenvolvimento cognitivo.

Eça de Queiroz

Quero deixar algumas linhas sobre assunto, não apenas baseadas em leituras científicas, mas também na minha experiência pessoal de leitura, já que li "Os Maias" quando andava no liceu, com 16 anos, e voltei a lê-lo recentemente, com 42 anos (notas desta última leitura). Posso dizer desde já que foram experiências completamente diferentes, ao ponto de não conseguir ligar qualquer memória afetiva da primeira leitura com a mais recente. Pergunto-me porquê, e a razão não é muito difícil de descortinar, não terá havido ligação afetiva na primeira leitura. A leitura por obrigatoriedade tem destes problemas. Não acontece só com os livros, acontece com tudo, com o cinema, com os jogos, com a maioria dos prazeres da nossa vida. Não é por acaso que passámos os últimos 44 anos a prezar a Liberdade, porque a liberdade é a base da criação da experiência humana individual. Se, experienciamos porque alguém nos obriga a tal, a emoção troca de lugar com a razão, e a experiência que nos deveria tocar o coração passa a tocar a racionalização. Queremos compreender porque somos obrigados a experienciar, e no meio disso perdemos a oportunidade de chegar a sentir.

É claro que este discurso nos coloca face a um dilema insustentável. Se a escola deve ter como missão, além da promoção do conhecimento, a criação de sociedade, para o que dota os indivíduos de conhecimento comum que permite a emergência da comunidade, como é que tal pode acontecer se aquilo que se estuda é feito por obrigação, perdendo-se a fruição. Na verdade, isto não deve ser dilema porque quando estudamos Biologia ou Matemática, também não o fazemos para fruir, fazem-lo por necessidade de elevar o conhecimento dessa sociedade, para sermos capazes de operar a outros níveis de abstração da realidade. Então porque não pensar a literatura da mesma forma? E se em vez de obrigar à leitura de obras completas, livros com mais de meio milhar de páginas, a literatura não é apenas feita de romances, e não existe autor que não tenha escrito contos, porque não optar por trabalhar com contos?

Se pensarmos em concreto no que estamos a exigir cognitivamente a um miúdo de 16 anos para que leia "Os Maias", perceberemos o quão desprovido de senso é. E não estou a falar de sociedade digital, de internet ou videojogos e o famigerado discurso do défice de atenção das novas gerações. Podemos pensar em 1980, com um canal de televisão único, televisão a preto e branco, sem consolas, nem telemóveis. Estamos a falar de entreter a mente ao longo de centenas e centenas de páginas com uma escrita elaborada e detalhada, altamente estilizada com base em técnicas descritivas herdadas ainda do romantismo. Eça foi o nosso primeiro grande realista, mas foi-o mais no conteúdo do que na forma. Ler Eça não é propriamente simples, não porque use palavras caras, mas porque usa toda uma lógica descritiva da realidade que se enreda. O discurso está longe do modo direto que o realismo desenvolveu nos anos que sucederam a Eça, temos um discurso que se cobre de insinuações sobre aquilo que quer dizer, em vez de simplesmente o dizer. Nada disto é problemático quando estamos preparados para tal, quando já lemos muitas outras obras e aceitamos o contrato daquele tipo de escrita porque desejamos entrar na obra. Quando somos obrigados a ler e temos de realizar um esforço enorme para compreender o que estamos a ler, e na nossa frente esperam-nos ainda 800 páginas, é fácil entrar em desespero, chamar raios e coriscos à escola, aos professores, e desistir.

Mas o problema não é só estético. O problema agrava-se quando começamos a desconstruir o que Eça nos quer dizer com a sua obra. Temos de pensar que somos um leitor com 16 anos, que no século XIX poderíamos ser já um adulto casado com filhos, mas hoje somos quase uma criança ainda. Este leitor não compreende o que significa lidar com filhos, menos ainda adultos, perdê-los, seja por que motivo for. Está longe de compreender as nuances das relações adultas. Podemos até dizer, 'mas é bom que sejam confrontados com tal', sim, talvez se fosse apenas este o problema, mas como vimos assim não é, e adensa-se. A realidade de Eça é de um Portugal do século XIX, o que acaba distanciando ainda mais todos os problemas que aqueles personagens sofrem. Se os miúdos não têm muito contexto sobre as mensagens subtis entre adultos, menos ainda têm sobre o contexto político desse tempo. Não podemos esquecer que Eça escreve para os seus pares, do alto de uma vida carregada de experiência diplomática, o livro está pejado de detalhes que nos adoçam a leitura mas é preciso contexto para chegar a eles. E não se iludam, muito desse contexto não se dá nas aulas, constrói-se ao longo da vida, com experiências, com o cruzamento de leituras com experiências reais, que nos permitem ir criando associações de ideias a experiências, e fazer de nós pessoas mais adultas e sensíveis.

E continua, porque a componente mais intrincada de romance, de desenvolvimento e progressão de ação só surge na terceira parte do livro. Durante mais de metade do livro, somos arrastados por entre contextualizações e descrições, ou seja, muita exposição e pouco drama, o que vem complicar a manutenção do interesse dos leitores menos preparados para a leitura. Ser exposto a algo pode ser interessante, mas é um processo por natureza desprovido de emoção, e por isso dificilmente sustenta o interesse se o leitor não conseguir ligar essa exposição a contexto próprio, edificando-o com as suas próprias emoções. Mas o drama não é só emoção, é acima de tudo transformação. Daí que a progressão seja o maior garante de interesse dos leitores, porque estes focam-se no que muda, querendo saber porque muda e como muda. Os leitores menos preparados conseguem facilmente ler Dan Brown ou J.K. Rowling exatamente por causa disto, porque a mudança desperta a curiosidade para saber o que vai acontecer a seguir, fazendo com que a atenção se mantenha alerta e o interesse estável. "Os Maias" são uma grande obra, elogiada pela crítica internacional, exatamente por não se deixar levar por esse facilitador narrativo, por delinear uma estilística própria que obriga o leitor a trabalhar para mais tarde ser recompensado. Mas um aluno de 16 anos não é um crítico literário.

Podemos simplesmente obrigar, assim como obrigamos a decorar os rios de Portugal ou a tabela periódica, ou podemos pensar de forma diferente. Podemos pensar que aquilo que queremos criar é o conhecimento comum sobre Eça de Queiroz, prolongar o seu legado, criar um esteiro em que a sua obra sirva o cânone de que devemos, enquanto país, partir. (Aproveito para questionar aqui a nossa sociedade, se é verdadeiramente isto que queremos, porque não está Eça no nosso Panteão?). E para isso podemos usar obras mais curtas, contos, que darão muito mais espaço ao professor para nas aulas falar do autor, do tempo em que viveu, do país que conheceu e da sua relação com o país de hoje. A partir desses contos pode-se aprender sobre o estilo e estética de Eça, pode-se iniciar o conhecimento, e aos poucos aprender a amar Eça, a amar a língua portuguesa, e pode ser que no verão seguinte o aluno, por sua própria iniciativa, passe as férias junto de "Os Maias".

julho 16, 2018

A diferença, sempre a diferença

Foi há mais de uma semana que terminei esta primeira obra de Morrison — “The Bluest Eye” (1970)— mas ainda não tinha encontrado o mote para escrever sobre a mesma. Hoje, ao reler algumas passagens, confrontei-as com o espetáculo “Nanette” (2018) de Hannah Gadsby, sobre o que aqui tinha ontem dado conta, e senti um arrepio. O livro é de 1970, mas está tudo ali, não que não hajam obras anteriores, mas com esta força literária, capaz de colocar o dedo na ferida da discriminação, não existem muitas. As razões não são apontadas por Morrison, mas por Gadsby, porque quanto mais vamos interiorizando e compreendendo a sociedade que criámos, mais nos vamos dando conta dos papéis dominantes do homem, do hetero, e do branco. As maiorias dotadas de força, física ou política, nunca se coibiram de a usar, e esse é o mal que nos assola, o da incapacidade empática.


O cerne da história de Morrison assenta numa menina negra, de um bairro americano pobre, que tinha um desejo: ter olhos azuis. Morrison diz-nos no prefácio que este desejo lhe foi relatado por uma amiga de infância, e que foi algo que a perseguiu durante anos. Assim aquilo que é colocado a jogo não é mais do que a vergonha do ser. A vergonha da cor dos olhos, da cor da pele, de Pecola que se junta à vergonha da homossexualidade de Hannah Gadsby. Porque quando crianças, cresceram ambas envolvidas num ambiente de ódio e raiva contra aquilo que eram, e como diz Gadsby isso deixa marcas, podemos reconstruir-nos mas não podemos apagar-nos. Como é possível tanta violência, nem falando de adultos, contra crianças, apenas porque são diferentes?

De Morrison conhecia “Beloved” (1987) que entrou diretamente para as minhas melhores dez leituras de sempre. Não posso dizer que “The Bluest Eye” vá para além, é uma primeira obra e o tema repete-se, a pobreza e a sexualidade das mulheres negras, mas e porque haveria de mudar? Quantos escritores temos a falar da realidade destas mulheres negras? Para não falar da realidade das mulheres. O tempo vai passando, fala-se muito, surgem movimentos feministas, mas continuamos a viver num mundo completamente feito de produção cultural masculina, branca e hetero. Precisamos de muitas mais Morrison e mais Gadsby, porque precisamos de compreender que o mundo não é feito de uma massa única, somos todos tão diferentes sendo tão iguais. De que adianta proclamar o humanismo se ele parece condicionado à partida por um modelo único de humano?

Sobre a escrita de Morrison, tenho pena de não vos poder oferecer uma análise mais sentida. Li “Beloved” em português e aí pude experienciar a beleza da sua poética, dos seus ritmos e fluxos sintáticos que envolvem o significado daquilo que se vai dizendo. “The Bluest Eye”, incompreensivelmente não está traduzido para português, como não estão outras obras desta autora, que ganhou um Nobel em 1993. E eu questiono-me, como é possível que uma autora ganhadora de um Nobel não tenha toda a sua obra, ou pelo menos as suas grandes obras traduzidas para português? Só isto devia ser suficiente para acender os nossos alertas para tudo o que disse nos parágrafos anteriores.

No entanto, como diz Gadsby, também não quero terminar numa nota negativa, nem fazer de tudo no mundo uma inevitabilidade da nossa irracionalidade. Não creio em mandamentos que nos vendem alguns arautos de que tudo é mesmo assim, pegando por exemplo em Jordan Peterson que para nos convencer do status quo usa a armadilha da vida como um caminho de sofrimento, tão cara às religiões seculares. Prefiro evocar Fred Rogers, e o seu discurso em defesa do seu programa educativo na televisão pública americana, em que disse:
"Isto é o que eu faço. Eu ofereço uma expressão de atenção todos os dias a cada criança, para a ajudar a perceber que ela é única. Eu termino o programa dizendo: 'Tu fizeste deste dia um dia especial, apenas por seres quem és. Não há ninguém em todo o mundo como tu e eu gosto de ti tal como és.' E eu sinto que se nós, na televisão pública, pudermos deixar claro que os sentimentos são mencionáveis e geríveis, que teremos contribuído para uma melhor saúde mental.” Testemunho de Fred Rogers perante o Senado dos EUA, 1 de maio 1969 [vídeo].

julho 15, 2018

Humor com poder transformador

Acabo de ver uma hora inteira de stand-up com um único performer, e tenho de dizer que foi uma das experiências mais intensas que experienciei nas últimas semanas. Hannah Gadsby encheu a famosa Sydney Opera House para uma atuação de 60 minutos. Fala de arte, criatividade, género, política, fala de técnicas do storytelling, fala sobre o vitimismo e o poder, fala sobre pedofilia e reputação, fala sobre a raiva e o riso. É uma performance como nenhuma outra, por isso não admira o enorme buzz que está a gerar nas redes e nos jornais internacionais de referência. "Hannah Gadsby: Nanette" (2018) é uma experiência transformadora que recomendo absolutamente que vejam, homens, mulheres, heteros, homos e trans.

"Hannah Gadsby: Nanette" (2018), Netflix

Gadsby não conta apenas piadas, traz para o palco a sua vida, os seus dramas, a sua raiva e tensão. Como diz Gadsby, um performer não pode apenas dizer mal de si próprio, porque para contar uma história é preciso algo mais, é preciso uma conclusão, uma chegada, uma lição. E ao longo desta hora, que vivemos de forma tão intensa apenas a partir das palavras, histórias e vida desta artista, somos conduzidos pela mão, através de todo o arco dramático. E Gadsby é brilhante, porque nos conduz e controla a tensão de forma altamente precisa, e quando menos damos por isso, estamos ali presos pelo pescoço, de boca aberta, sem crer no que estamos a ouvir e a sentir.


Não sou grande seguidor de stand-up, vi alguns espetáculos, nada de grandes estrelas, mas acredito no que dizem alguns dos críticos e comediantes por esse mundo fora, temos aqui algo muito diferente, competente, poderoso, e acima de tudo transformador. A comédia não deve, nem pode servir apenas para passar o tempo, para entreter a mente, a comédia pode ser muito mais, se se decidir a contar a histórias. Esta é a conclusão da Hannah, e tendo em conta todo o meu trabalho com narrativa nas últimas duas décadas, não poderia estar mais de acordo com ela.


Quanto aos que se sentirem incomodados, ou atacados pelo espetáculo, peço que interiorizem, empatizem, compreendam o mundo a partir da perspectiva do outro, e perceberão que não há lugar para tal. Que há lugar sim, para mudar, todos. Porque é mais do que tempo de mudarmos.

julho 13, 2018

A Ilustração de "Your Name"

"Your Name" (2016) é um filme de animação japonês realizado por Makoto Shinkai e um dos maiores sucessos da Ásia dos últimos anos. Mescla romance com viagens no tempo e misticismo tudo num tom muito anime de viés romântico-dramático. A história acaba sendo interessante, com o misticismo a funcionar no sentido da transcendência dos valores humanos. Mas aquilo que me apaixonou pelo filme foi a sua direção de arte, em particular a ilustração. Se a animação segue lógicas tipo do género, a ilustração está bastante acima do que é comum ver nestes filmes, tanto na quantidade de detalhe como no cuidado com a cor, texturas, luz e brilho. Deste modo, e essa foi a razão desta publicação, quero deixar algumas imagens captadas do filme, cada uma daria um quadro que eu gostaria de ter nas minhas paredes.














Entretanto encontrei um artigo no Illustration.org que nos diz que os filmes anteriores de Makoto Shinkai estão também carregados de ilustração de grande qualidade, daí que tenha agora de partir para o visionamento dos seus anteriores filmes.

julho 10, 2018

A homeostase como base do todo, do Big Bang à IA

Sou grande admirador de António Damásio, aliás muito daquilo que é a minha paixão pela investigação científica devo-a a ele, em particular ao seu primeiro livro “O Erro de Descartes” de 1995. Depois disso fui seguindo a sua investigação e entrevistas e lendo todos os seus livros, mas à medida que os anos se foram passando os seus livros foram perdendo chama, muito por se repetirem, por tentar de formas distintas dizer aquilo que já tinha dito antes ainda que sem qualquer preocupação de olhar para o lado e procurar incorporar o que outros académicos iam também dizendo e fazendo. Por isso no ano passado quando saiu “Estranha Ordem das Coisas” não corri a comprar, tinha pensado mesmo passar, até que li as palavras de Leonard Mlodinow, “Quase um quarto de século após o erro de Descartes, Antonio Damasio consegue novamente.” Senti-me obrigado a ler o livro, tinha de saber o que tinha Damásio encontrado de novo para nos dizer. Em poucas palavras: confesso a desilusão, ainda que continue sendo um grande comunicador.

"A Estranha Ordem das Coisas" (2017) António Damásio

“A Estranha Ordem das Coisas” pode dividir-se em três partes fundamentais: a primeira em que surge aquilo que considero ser a inovação, deste livro de Damásio, o modo de olhar para o conceito da homeostasia; a segunda em que somos trucidados pela enésima vez a propósito da diferença entre emoção, sentimento e consciência; e a terceira na qual Damásio procura sair do seu território, abraçando a história e a tecnologia para fazer uma leitura da sociedade atual e futura, acabando por descarrilar totalmente. Esta última parte não surpreende, desde o início que Damásio é acusado de ignorar a psicologia e a sociologia. Para ele tudo começou por ser explicável apenas com base na neurologia e na filosofia, com o tempo abriu-se à biologia e às artes, contudo não chega, nem dá conta do conhecimento já existente sobre o humano. Neste livro tudo isto é ainda mais gritante já que ele deixa de se focar nas estruturas de suporte ao humano, para se focar naquilo que motiva o humano e na sua produção de cultura.

Começando pelo melhor, a primeira parte do livro, Damásio discute e aprofunda as implicações do processo de homeostase na criação e manutenção de vida. A leitura recua milhões de anos, vai ao nível celular, e Damásio, por meio da biologia e muito habilmente, dá conta do modo como terá surgido vida neste planeta, e como o processo evoluiu por longos milhões de anos até chegar ao homo sapiens. Para Damásio a homeoestasia é uma necessidade da célula que busca não a mera estabilidade, mas o estado mais conveniente em cada momento para continuar a viver. Damásio diz mesmo que o equilíbrio completo não existe, já que de um ponto de vista termodinâmico só a morte o poderia garantir. Ou seja, a célula determina sempre o seu estado em função da otimização dos recursos de energia disponíveis e da garantia de manutenção futura da própria vida, isto porque a célula não vive numa ilha isolada, mas está em permanente interação com a realidade que a rodeia. Neste sentido a homeostasia funciona como um ‘drive’ interno, ou seja, a motivação para a vida, que se propaga depois a todos os restantes mecanismos biológicos.
"Homeostasis refers to the fundamental set of operations at the core of life, from the earliest and long-vanished point of its beginning in early biochemistry to the present. Homeostasis is the powerful, unthought, unspoken imperative, whose discharge implies, for every living organism, small or large, nothing less than enduring and prevailing. The part of the homeostatic imperative that concerns 'enduring' is transparent: it produces survival and is taken for granted without any specific reference or reverence whenever the evolution of any organism or species is considered. The part of homeostasis that concerns 'prevailing' is more subtle and rarely acknowledged. It ensures that life is regulated within a range that is not just compatible with survival but also conducive to flourishing, to a projection of life into the future of an organism or a species." (p. 25)
Esta abordagem é-me particularmente útil porque há um anos no meu trabalho sobre emoções nas artes interativas me apercebi que não seria possível dotar um ser humano de emoções nulas (0,0), que o facto de se estar vivo obriga a uma emocionalidade contínua. Assim como é impossível não comunicar, é impossível não sentir emoção. Na altura propus o gráfico abaixo, no qual defendia que a nossa emocionalidade tende para a tranquilidade, o que não seria neutra, mas antes “natural”, ou seja, tal como a homeostasia um modo de garantir a manutenção ótima da experiência humana. Ora esta abordagem aqui proposta por Damásio vem responder e dar força a esta visão. Por outro lado, e isso é mais interessante no livro, explica o modo como a vida é regulada, e a razão porque nunca paramos de evoluir, porque estamos em constante mutação e progressão, ainda que de um modo lento, imperceptível ao nosso olhar quotidiano. Diria que o livro vale só por esta primeira parte, e muito.

Gráfico retirado do meu livro de 2009, Emoções Interactivas, do Cinema para os Videojogos, p. 300.

Entrando na segunda parte, Damásio pega na sua abordagem tripartida da experiência humana — emoção, sentimento e consciência —, e tendo já dedicado livros completos a cada uma destas camadas, vai mais uma vez discutir aquilo que as separa, as suas funções, motivações e riquezas. Diga-se que senti neste livro uma maior tendência para discutir o facto dos sentimentos serem dotados de consciência. Não que isto não tivesse sido já dito, mas foi um pouco como se Damásio tivesse a necessidade de afirmar o estado evolutivo e grandioso dos sentimentos, como se eles fossem não apenas neurologia mas também cultura. Ora, e concordando com esta leitura de Damásio, não é de todo possível aceitar que o faça apenas com base na sua estrutura biológica, relegando todo o trabalho secular da psicologia.

Ou seja, Damásio assume o seu trabalho científico de análise e busca do modo como geramos emoções, sentimentos e consciência, assente em sistemas de imagiologia entre outras ferramentas, o que me parece bem. Contudo para compreender e interpretar aquilo que vai descobrindo serve-se apenas da sua intuição e da arte, aliás como ele diz "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare". Ora aqui temos um problema grave, que é o de assumir a sua subjetividade como passível de leitura do humano. Ou seja, Damásio apesar de não seguir nada das teorizações da psicanálise, acaba, no entanto, seguindo o seu método, analisando-se a si mesmo para compreender e interpretar os dados que vai recolhendo na sua investigação. Ora se temos uma ciência chamada Psicologia é exatamente para refutar essa abordagem subjetiva e psicanalítica. Aquilo que os maiores psicólogos têm feito não é dar nomes espetaculares às estruturas mentais, mas tem antes sido desenvolver métodos complexos para estudar e compreender como funciona a consciência, os sentimentos, os desejos, as motivações, no fundo todo o aparelho cognitivo. Damásio ignora deliberadamente trabalho fundamental de colegas como Nico Frijda ou Lisa Feldman Barrett, autoridades no campo da emoção e cognição, ou o trabalho seminal de Deci e Ryan no campo da motivação, ou de Daniel Kahneman e Amos Tversky no campo do comportamento. Ao ignorar tudo isto, não só ignora colegas, como se afunda em teorizações pouco credíveis.

Mas eu vou ainda mais longe, Damásio não só ignora a psicologia como ignora a primatologia, a ciência que vem estudando o comportamento nos primatas, para não falar da própria etologia, isto no sentido em que o autor obsessivamente coloca o humano numa dimensão paralela, diferente e única, às restantes cadeias animais. Se pensarmos no trabalho de Jane Godall ou Konrad Lorenz, ou se pensarmos nos avanços mais recentes proporcionados por Frans de Waal em redor dos processos de empatia. Ou se pensarmos apenas nos modos como os bonobos se aproximam de nós, ou das capacidades imensamente avançadas apresentadas por espécies não-mamíferas como as aves (especialmente os corvos), teremos de conceder que a nossa especificidade é bem menor, e que só continua a ser amplificada por causa do nosso viés subjetivo, o que como já vimos em Damásio é bastante acentuado.

Mas não é apenas no exterior de nós mesmos, é também no interior. Damásio fala continuamente no corpo, mas à semelhança do que faz com o Humano, vive obcecado com o cérebro. É nele que concentra praticamente toda a sua investigação, deixando de fora áreas que têm evoluído, como por exemplo os estudos sobre o sistema nervoso do intestino. Há anos que nos fala do corpo, da visceralidade da emoção, do sentir nas vísceras, mas descobrir que os nossos intestinos possuem uma enorme camada de neurónios, que é onde 90% da serotonina (neurotransmissor da boa-disposição) está alojada, que são autónomos na gestão das suas necessidades, tanto face ao cérebro como aos sistemas de homeostasia do nosso corpo, devia fazer-nos refletir mais. Damásio fala bastante do modo como nos tornamos espécies dotadas de sistema nervoso, como ele é responsável pelo sentir e pelo ser, como só o sistema nervoso pode mapear o real e construir os sentimentos internos, e no entanto fala tão pouco da medula espinal, e nada diz sobre os intestinos que albergam 5 vezes mais neurónios que a medula.

Obviamente que Damásio não pode falar de tudo, a consciência é complexa e toca em tudo. Por outro lado, escrever livros, uns atrás dos outros, quase repetindo os argumentos que desenvolveu há 25 anos não ajuda muito. Era expectável que alguém tão interessado na emocionalidade e cognição humanas fosse alargando as dimensões da sua análise, albergando trabalho que vai sendo feito com recurso a conhecimento construído durante décadas ou séculos. Recusar-se a fazê-lo, optar em sua vez por citar constantemente filósofos com dois ou mais séculos, pode até dar um ar clássico e intelectual às observações, mas serve apenas uma comunidade leiga. Por isso não admira as críticas que os seus livros vão sofrendo no meio académico.

Por fim, na terceira parte do livro, entramos numa etapa nova de Damásio, embora mais uma vez muito colada ao seu trabalho anterior, ao que tinha juntado a biologia do primeiro capítulo e as artes, para assim discutir o humano e a máquina, motivado pelas assunções apresentadas por Harari em “Homo Deus” (2017). Antes de discutir em detalhe, começar por dizer que Damásio comete um erro gritante nas suas tentativas de interpretar e especular sobre tecnologia, quando não separa a evolução e progresso do humano da evolução e progresso da máquina. Ou seja, aquilo que as máquinas poderão vir a ser não depende daquilo que o humano poderá vir a ser. Sei bem que Damásio está muito ligado a Descartes, e por isso não poderia deixar de combater o mesmo, nomeadamente o seu “Demónio Génio”, aquele criador de ilusões que enganava os nossos sentidos, que viria depois a evoluir para uma outra teorização, a do cérebro numa jarra imaginando a realidade, e que chegou aos nossos dias como a possibilidade de fazer upload da nossa mente para um sistema informático. Tal como Damásio, considero esta hipótese não remota mas impossível porque estapafúrdia, e apoio completamente Damásio neste seu sentimento de afronta face às teorizações que se vão fazendo neste campo, nomeadamente no campo do transhumanismo, ou das hipóteses de se fazerem transplantes da cabeça para outros corpos. A razão porque isto não faz sentido foi já discutida acima. Não somos apenas um cérebro, porque o nosso cérebro não detém uma base de dados daquilo que somos, ele depende do resto do corpo para compreender a realidade, está ligado a todo o mapa nervoso que percorre o corpo, no qual se sustentam as imagens da realidade, e que uma vez quebradas deixarão cair a consciência de si.

O problema de Damásio é pegar nesta abordagem e assumi-la como única, e pior assumi-la para atacar algo que vem sendo cada vez mais aceite por todos os que trabalham no domínio da cognição, pois Harari não é de todo o seu primeiro proponente, e falo do facto de Harari propor analisar o humano como conjunto de algoritmos, como um algoritmo complexo no meio da equação do cosmos. Damásio defende que não, demonstrando claramente não perceber o que é um algoritmo. Para o efeito escuda-se na complexidade biológica do ser humano, nas intermináveis interações biológicas, desde o plano atómico, ao celular, e a todos as camadas que se lhe vão sobrepondo até que a vida emerge. Ou seja, para Damásio a vida não é um algoritmo, porque é algo mais complexo do que um algoritmo.

Isto é tão vazio a ponto de levar Damásio a contradizer-se no seu próprio livro, da primeira parte para a terceira parte. Ou seja, Damásio esforçou-se por encontrar e conceber  o conceito da unidade mínima que nos dá a vida, o processo de homeostase, e no entanto no fim do livro refuta-o. Porque vejamos, o que é a homeostase se não um algoritmo por excelência, um "conjunto de operações" ou regras, bem definidas e delineadas por Damásio, para dar conta do modo como a vida não se limita ao equilíbrio, mas procura ir além, para o que precisa de regras, de um algoritmo. Ou seja, é o próprio Damásio que abre o livro apresentando o algoritmo mais aprimorado daquilo que significa vida, e no final, por incompreensão da ciência exterior ao seu trabalho, contradiz-se.

Mas fosse o problema apenas este, e nada mais diria, o problema é que não é apenas a definição da vida como algoritmo, apesar de ser por aí que decide atacar Harari. Na verdade Damásio fica imensamente aquém das capacidades especulativas de Harari, o que me levou a refletir sobre o porquê, e acabei por concluir que tem que ver com o mundo científico de que ambos partem. Damásio parte do conhecimento da biologia, da máquina orgânica, enquanto Harari parte da História, da maquinaria social. Damásio procura perceber como é que poderemos algum dia criar inteligência artificial, enquanto Harari olha para a curva de progresso da invenção humana para chegar às suas conclusões. Ou seja, Damásio está focado no mero progresso da biologia, e por isso considera tal impossível, já Harari está focado no progresso das máquinas, do quanto evoluíram no sentido de nos imitar. Trago aqui à colação, um texto que escrevi aquando da minha leitura de "Musicophilia" (2007) de Sacks:
“No fundo, somos tecnologia construída a partir de tecidos orgânicos, que evoluíram ao longo de milénios de anos permitindo que a complexidade de armazenamento de informação na nossa cabeça se complexificasse a um tal ponto levando a que esta própria complexidade fizesse emergir em cada um de nós, personalidades com traços próprios. Mas no fundo não passamos de máquinas biológicas com data de validade inscrita à nascença. Aliás nesse sentido, se algum dia viermos a perceber o que faz despoletar a emergência do ser no nosso cérebro, poderemos simular isso em computadores, e a partir daí seremos obrigados a respeitá-los tanto, como respeitamos hoje qualquer outro ser humano. Talvez Kubrick e Spielberg (AI, 2001), tivessem razão, e daqui a 10 mil anos já não existiremos por cá enquanto máquinas biológicas, mas antes como resquícios esquecidos em pequenos robôs.” Zagalo in VI, 2011
Aquilo que Harari apresenta em “Homo Deus”, é isto mesmo, a visão de um pós-humano. Não vamos evoluir para o ponto de sermos carregados para o ciberespaço, mas vamos criar algoritmos capazes de pensar como nós pensamos, porque não somos sequer a única espécie capaz de pensar neste planeta. Porque e apesar de concordar que a componente emocional e de sentimento é extremamente relevante, a verdade é que é o próprio conceito, revolucionário de Damásio, da homeostase que nos vai fazer chegar lá. Porque a máquina não precisa de ter o mesmo leque de emoções que nós detemos. A máquina desenvolverá outras, porque a máquina desenvolverá as suas necessidades a partir da sua homeostase, e esta fará emergir a sua sede de sobrevivência, e dessa as suas emoções, ou não. E este não é o que mais nos entusiasma, porque a máquina, com todo o seu poder de processamento a sua memória infinita, e acima de tudo interligação a todo o conhecimento existente, registado e em tempo real (aquilo que hoje chamamos de big data e machine learning) poderá desenvolver todo um novo sistema de processamento da realidade, para além da nossa compreensão.

Damásio pode dizer que não interessa nada a capacidade racional das máquinas, porque elas não sentem, mas eu digo, no momento em que as máquinas começarem a criar, a desenvolver as suas próprias obras, sem estarem dependentes das obras humanas, ações significantes sobre a realidade, não mais as poderemos descartar como meras ferramentas. Não interessará nada saber se sentem a beleza ou o poder daquilo que criarem, interessará antes reconhecer que aquelas criações não são nossas e são fruto de uma entidade autónoma, e que essa entidade não é descartável, tal como hoje não são descartáveis os animais. Claro que durante muito tempo tenderemos a descartar estes feitos, tal como ainda hoje fazemos com os animais, porque se protegemos os cães e os gatos, não protegemos da mesma maneira as formigas ou as abelhas, para não falar das vacas e porcos, ainda que sobre estes últimos recaiam uma necessidade fisiológica da nossa parte. Mas o que dizer dos nossos jardins zoológicos, continuo sem esquecer a última vez que fui ao de Lisboa, há cerca de 10 anos, e espreitei para dentro da zona fechada em que eram mantidos os gorilas, e vi os seus olhos olharem para mim, o estremecimento que senti nunca mais me abandonou. Mas e todas as outras espécies que não detém fisionomias similares, que nós não compreendemos o que pensam ou sentem?

Porque seguir Damásio é seguir a ideia de que a vida só vale quando se sente, e se sente com a força da consciência, da intelectualidade, mas a vida não é só cultura humana, nem é só sentimento, a vida que surgiu num big bang há milhões de anos, era, aqui sim Damásio, homeostase, não era sentimento. É nessa homeostase que acredito, na capacidade criadora, de manter vivo hoje e avançar para o amanhã, e nesse plano estamos ao nível dos animais, assim como um dia as máquinas estarão para além de nós.

julho 07, 2018

Fábula da Academia do século XXI

A academia era responsável por criar conhecimento, imaterialidade de experiência humana, tinha sido assim a sua génese e assim sobreviveria por vários milénios. No entanto nas últimas duas a três décadas, por várias razões, o conhecimento foi sendo convertido em produto, em matéria resultante e concreta. O conhecimento deixava de valer per se para valer apenas em função do que podia ser medido, quantificado e apresentado como rendimento efetivo.

Sócrates, Academia de Atenas

Começando pelo aumento massivo do ensino superior nas últimas décadas, um aumento de instituições e recursos humanos que inevitavelmente começaria a gerar pressão para que se justificasse o dinheiro investido pelos contribuintes. O conhecimento per se não interessava propriamente a quem ia chegando ao Ensino Superior, já que este era visto como “centro de treino para emprego”. Não se tiravam médias de 19 para ir aprender Medicina, mas apenas e só para ter acesso ao emprego de médico. O conhecimento era um cartão de emprego. Ora, durante algum tempo a relação entre o ensino superior e a empregabilidade foi suficiente para justificar a sua existência, mas essa linha foi ultrapassada quando os números aumentaram exponencialmente e se percebeu que o ensino superior não tinha cartões de emprego para oferecer a todos. Foi então preciso encontrar formas mais criativas de justificar o investimento massivo.

Produzir pessoas com elevados recursos de conhecimento precisava de ciclos muito grandes, não era só o tempo que demorava a produzir o empregado “superior”, era ainda preciso bastante tempo, fora da academia, para este começar a produzir, por isso era preciso encontrar formas alternativas de aumentar o ciclo de produção das universidades. Reduzir o número de anos dos cursos ajudou, Bolonha tinha sido uma vitória, mas sabia a pouco. Muito melhor era se pudéssemos transformar o conhecimento diretamente em produto, politicamente classificado como “transferência de tecnologia” ou “ligação à sociedade”. Os professores precisavam então de acordar para o mundo à sua volta, sair das suas “torres de marfim” e “falar” com a sociedade. Na verdade, e visto de fora, os professores faziam muito pouco, ou nada, diziam que se dedicavam ao conhecimento, mas isso era pouco diferente de se dedicar ao ócio, era preciso pô-los a trabalhar. Havia então que secundarizar o aprender e ensinar, e passar a produzir. Dizia-se, ‘O conhecimento só vale a pena quando aplicado em produtos’, quando 'dá dinheiro'. Chamavam-lhe inovação e criatividade, e diziam à academia que ela tinha a responsabilidade de salvar a economia dos seus países. Com isto esquecia-se a sua principal função, o conhecimento e a formação de pessoas com esse conhecimento, ao que se acrescentou ainda o declínio da natalidade. Era preciso fazer algo que mantivesse o fluxo de estudantes.

Os rankings vieram “ajudar” as universidades mais antigas que tinham perdido espaço para a emergência das que tinham surgido como “centros de formação”. Estar bem posicionado no ranking permitia às universidades tornarem-se atrativas, e assim reganhar alunos a essas instituições “arrivistas”. Mas os rankings eram internacionais, dizia-se que eram independentes e por isso muito bons. Mas também por causa disso precisavam de usar uma única língua, não era possível realizar rankings se o conhecimento produzido fosse nas línguas dos seus países, e como o poder económico era regulado pelo Império Americano, que outra língua além do inglês poderia ser adotada? Começaram então todos a produzir papéis (artigos e textos) na língua que esses rankings pudessem perceber. As pequenas conferências em que os académicos se encontravam e discutiam conhecimento em estado bruto começaram a escassear, cada um estava agora apenas interessado em produzir e publicar papéis. Porque eram esses papéis que permitiam aos rankings classificar as universidades internacionalmente. Quantos mais papéis fossem publicados no sítio em que mais pessoas queriam publicar, mais reconhecidos eram esses papéis. Não mais interessava o que dizia o conhecimento, era tudo uma questão de dança e posicionamento de papéis que garantiam rankings, ou seja, produto.

O número de papéis duplica à razão de 10 anos. Enquanto isso os autores passam a assinar papéis uns dos outros para garantir aumentos de produção de papéis.

Os rankings produziam reconhecimento, ofereciam status, e com ele atraiam alunos que escasseavam, mas também serviam para triar financiamento. Como vimos, a academia já não podia sobreviver só com o ensinar, tinha de produzir, todos o diziam, mas na verdade havia pouco dinheiro para pôr nas mãos dos académicos para potenciar essa produção. Desejava-se que produzissem mas que o fizessem com o mínimo, que fossem criativos, usassem o conhecimento, a “suprema” matéria-prima, a massa cinzenta, para criar produtos. Desta forma os rankings ajudavam também a decidir quem de entre esses académicos tinha direito a receber mais apoios, a ver projetos financiados com os dinheiros que iam sobrando aos estados. Por isso não tardou até que grupos de académicos passassem a dedicar mais tempo a numerar, listar e quantificar os seus feitos do que a discutir conhecimento. Muitos destes passaram a dedicar-se às metodologias de avaliação dos seus próprios feitos, passando até por especular a probabilística dos mesmos a 5 e a 10 anos, enquanto atacavam rankings por usarem maus indicadores e elogiavam outros por usarem as melhores fórmulas de cálculo.

Na verdade, os rankings e os papéis, o produto, interessavam apenas a um grupo restrito, quem os escrevia fazia-o por obrigação, quem fazia a revisão por pares fazia-o por obrigação, e quem os citava fazia-o por obrigação, sobravam as editoras que ganhavam milhões pelo meio, ao que se juntavam as agências de rankings que ganhavam mais alguns milhões. Os políticos fechavam os olhos, na verdade todo esse sistema permitia-lhes tomar decisões sem terem de perceber nada do conhecimento criado pelos académicos. Não admirava por isso até que o próprio comissário europeu para Ciência e Investigação fosse alguém que nunca tivesse produzido qualquer conhecimento, não era preciso, as tabelas e gráficos produzidos por estas empresas eram suficientes para tomar decisões. E, no entanto, a indústria real não queria saber desses rankings nem papéis para nada, da relação que podiam estabelecer com a academia, estava apenas interessada no que poderia ganhar em termos de melhoria das vendas do seu produto, e para esse efeito os papéis eram inconsequentes.


Repare-se como a produtividade não depende dos papéis nem da investigação, já que o aumento de investigadores não representa qualquer aumenta de produtividade.

A ânsia pelo produto conduzia assim ao desaparecimento do conhecimento de cada país, da sua especificidade regional e cultural, porque interessava mais aquilo que era comum a todos, porque só assim poderiam entrar nos locais em que todos “tinham” de publicar. O Império Americano e seus satélites jogavam em casa, os outros tinham de duplicar a velocidade, para em paralelo criar conhecimento e colocá-lo na língua desses. Se em domínios aplicados o conhecimento era facilmente aceite em inglês básico, em domínios fundamentais, em que a língua era ela própria criadora, não bastavam meras proficiências das escolas de inglês do bairro. Deste modo, o Império transferia-se da economia para o conhecimento, e do conhecimento novamente para a economia, tudo conjugado numa hegemonia que se queria robusta.

Os papéis noutras línguas simplesmente desaparecem.

De cada vez que um papel era publicado num daqueles sítios em que todos queriam publicar ficava-se feliz, mas apenas naquele dia, naquela hora, já que apenas interessava o que ainda estava por publicar, porque o que interessava era aumentar o número de papéis, para garantir o aumento e manutenção do reconhecimento que per se não trazia qualquer felicidade. De cada vez que um projeto científico era aprovado, ficava-se feliz, mas apenas até se iniciarem os trabalhos e perceber-se o inferno da gestão burocrática do mesmo que mudava a cada seis meses. Mesmo assim, a ânsia pelo reconhecimento e o receio da falta de financiamento que justificasse a sua posição, faziam com que mal iniciado um projeto se iniciasse de imediato a submissão de um novo, mesmo sem qualquer novo conhecimento que o justificasse.

O conhecimento era produto, o conhecimento era agora algo perfeitamente delineado, medível, quantificável e claro vendável. Para quê entrar em dialéticas quando uma folha de cálculo podia pôr um fim imediato a quem tinha razão. Aliás, dentro da própria academia os físicos viam a filosofia como morta, porque a razão já não era baseada em conhecimento, a razão era oferecida por cálculos baseados em número de papéis, número de citações, locais em que se tinha publicado, projetos financiados e quantidades de financiamento. Assim, a razão que tinha por dever instigar e incentivar a centelha humana, elevar o humano para além dos limites do pensar, tinha ela própria sucumbido e sido transformada em produto.


Referências

julho 01, 2018

Coetzee com Dostoiévski

Cheguei a "O Mestre de Petersburgo" (1994) quando procurava livros sobre São Petersburgo, tendo-me surpreendendo imenso com a descoberta, pois um livro sobre um dos maiores expoentes da literatura escrito por outro grande escritor, entretanto nobilizado, só poderia ser uma grande obra. Não posso dizer que tenha ido além do que conhecia de ambos, mas também não desiludiu propriamente. Senti mais Dostoiévski, apesar de escrito por Coetzee em jeito expiatório, mas isso provavelmente deve-se mais ao facto de conhecer melhor a obra de Dostoiévski.


O texto fala-nos de um Dostoiévski que volta a São Petersburgo, estando a viver em Dresden, para dar conta do funeral do seu enteado, Pavel (enteado verdadeiro). A morte do enteado acaba por estar ligada (imaginado por Coetzee) a alguns personagens revolucionários reais (Sergey Nechayev), conhecidos da história da Rússia e dos livros de Dostoiévski (principalmente "Demónios"). Passamos assim algumas semanas na companhia do escritor enquanto este deambula pela cidade na tentativa de compreender o que terá acontecido ao seu enteado ao mesmo tempo que vai lidando com os seus demónios internos.

Este resumo da trama torna-se imensamente relevante já que ele responde à resposta porque Coetzee (1940) escreveu este livro. O seu filho Nicholas, morreu com 23 anos (1989), aproximadamente a idade do enteado (no livro) de Dostoiévski, 5 anos antes da publicação deste livro. Ou seja, temos Coetzee claramente à procura de respostas dentro de si mesmo, a escrutinar-se, a tentar compreender o que sente, porque sente, como responder a tão grave tragédia, aquela porque nenhum pai deveria passar. Por outro lado, Dostoiévski (1821-1881) não perdeu o enteado, mas perdeu dois filhos, Sonya à nascença (1868), e Alexey com 3 anos (1878) que muito o fez sofrer e o fez mesmo passar algum tempo num convento em busca de respostas. Mais razões pelas quais Coetzee se interessaria por Dostoiévski não são fáceis de descortinar, até porque Coetzee raramente fala, e menos ainda explica as suas obras, mas existe uma nota de uma entrevista que é central para compreender este livro:
“Toda autobiografia é um contar de histórias, toda a escrita é autobiografia. [A escrita autobiográfica é] um tipo de auto-escrita em que nos sentimos obrigados a respeitar os factos da nossa história. Mas quais factos? Todos os factos? Não ... Escolhemos os factos na medida em que eles se encaixam no nosso propósito evolutivo.”  (Coetzee, 1992, fonte)
Por outro lado, a razão porque Coetzee escolhe para pano de fundo o cerne da obra "Demónios" (1872) é bastante menos clara, e menos ainda a razão porque se foca no capítulo censurado da obra, que podemos ler na edição portuguesa, da Editorial Presença, ainda que como anexo. Para mim resulta claro que Coetzee está a tentar entrar na mente do maior psicólogo da literatura em busca de algum tipo de autoterapia, mas pergunto: porquê de forma desviante? Existirá uma sede de mal quando o mal nos bate a porta?

junho 30, 2018

O que Gostaríamos de Ver quando Lemos

"O Que Vemos Quando Lemos" (2014) é um livro interessante mas que tem de ser lido com muito espírito crítico, algo que não me parece ao alcance dos alunos do 9º ano, a quem o livro é recomendado em Portugal. A razão não se reduz apenas à falta de suporte científico para o que se vai debitando, mas agudiza-se com a forma desprezível como olha para essa cientificidade, assumindo a perspectiva do autor como perspectiva de verdade. Ou seja, afirmando o meramente anedótico ("eu acho que é assim", ou "eu vejo assim") como prova de realidade igual para todos. O melhor do livro é mesmo o facto de ser ler em pouco mais de duas horas, por isso não se perde demasiado com a sua leitura.


Alguns exemplos
p.26: "Alguns leitores juram que conseguem imaginar os personagens perfeitamente, mas apenas enquanto estão a ler. Eu duvido disso."
Bem, isto é o mesmo que dizer que Nabokov, entre muitos outros sinestesistas, não viam cores ou ouviam sons quando liam letras, palavras ou frases. Ou seja, o autor diz simplesmente: "se eu não vejo, os outros também não vêem."
P.39: “É provável que ouçam a linha (no ouvido da mente) antes de imaginar o personagem. Eu posso ouvir as palavras de Ishmael com mais clareza do que consigo ver o seu rosto. (A audição requer processos neurológicos diferentes da visão, ou cheiro. E eu sugeriria que nós ouvimos mais do que vemos enquanto lemos.)”
Mais uma. Simplesmente porque o autor tem a impressão de ouvir melhor, nada reportando sobre essa diferença, até porque o livro é sobre apenas o que vê, ou melhor sobre o que imagina que deveria ver, esquecendo completamente toda a restante componente sensorial que a experiência de leitura produz no leitor, já avança com afirmações a que liga termos científicos ("processos neurológicos") sem qualquer suporte. Isto faz o livro descer ao nível de texto de opinião de jornal regional.

Frases e problemas como estes são mais do que muitos, e não vale a pena sequer tentar aqui elencar os mesmos. Cada um de nós tem as suas teorias próprias sobre o que acontece dentro de si quando lê, ouve, vê um filme, ou passa por um evento real complexo, mas isso não faz de nós especialistas em linguagem ou neuropsicologia. Mendelsund limita-se a usar do conhecimento disciplinar em Design que possui, diga-se meramente aplicado, para tentar responder ao que acontece dentro das nossas mentes, o que não é muito diferente de alguém tentar retirar uma rolha de cortiça de uma garrafa de vinho com um abre-latas ou abre-cápsulas. Repare-se como invariavelmente Mendelsund vai saltitando entre tópicos altamente complexos e díspares como: memória; cognição; emoção; atenção; imaginação; linguagem; comunicação; a relação entre imagens mentais e imagens físicas; os sons e os cheiros; os filmes, os videojogos e os livros; a narração, a dramatização e a descrição; etc.

O livro parece mais um conjunto de ideias, que não sendo desinteressantes, não vão além da superfície do que se discute. Como se o autor tivesse lido alguns livros sobre o tema, e quisesse converter em texto algumas das ideias que o têm assombrado. E se não tenho nada contra a que cada um o possa fazer, já tenho contra quando o texto tende a tentar passar-se por Estudo ou Investigação, com gráficos supostamente científicos (ver imagem abaixo) ou sendo referido como tal em elogios. Porque nada do que nos diz Mendelsund é novo, ou não foi discutido imensamente, mas mais importante do que isso, não foi verdadeiramente investigado, nomeadamente nas últimas duas décadas com as neurociências e na linguística. Não faltam referências de estudos e trabalhos sobre o tema, e quantos cita ou refere Mendelsund, zero. As únicas referências que Mendelsund vai fazendo, para além dos clássicos da literatura, são a meia dúzia de filósofos. E no final rotula tudo como um estudo fenomenológico e já está. Pois não está, isto é nada. E menos ainda é dar isto a ler aos adolescentes sem os colocar de sobre-aviso sobre o facto disto não ser ciência, disto não passar de uma conversa de café interessante. Mais preocupante ainda quando a editora vai buscar epítetos de um conjunto de amigos do autor e os cola na contra-capa atribuindo uma relevância muito além daquela que o texto merece.

O resultado do suposto estudo de Mendelsund em que este pretende comparar parâmetros como agência e vivacidade das imagens criadas a partir de experiências como: sonho, alucinação, perceção real e imaginação da leitura. Colo-as aqui, apenas para chamar a atenção que estas não possuem qualquer validade.

Para quem realmente quiser saber o que se passa nas nossas mentes quando lemos, deixo aqui algumas leituras, não que existam certezas, mas exatamente por isso é que não podemos simplesmente brincar com ideias como se tudo valesse o mesmo, como se meras opiniões fossem tão relevantes como a ciência, para não falar do desprezo pelo trabalho de tantas e tantos investigadores. Deixo apenas alguns livros de divulgação científica, por ordem de acessibilidade e relevância para o tema, não fazendo sequer menção às centenas de artigos científicos existentes na área.


Bergen, B. K. (2012). Louder than words: The new science of how the mind makes meaning. Basic Books (AZ).

Damasio, A. R. (1994). Descartes’ error: Emotion, rationality and the human brain.

Pinker, Steven (1994). The Language Instinct: How the Mind Creates Language. Perennial.

Damasio, A. R. (2018). The Strange Order of Things: Life, Feeling, and the Making of Cultures. Pantheon.

Eco, U. (1989). Opera aperta. Harvard University Press.

Ahlsén, Elisabeth (2006). Introduction to Neurolinguistics. John Benjamins Publishing Company

Chomsky, Noam (2000). The Architecture of Language. Oxford: Oxford University Press.

Lakoff, G., & Johnson, M. (2008). Metaphors we live by. University of Chicago press.

Bordwell, D. (1991). Making meaning: Inference and rhetoric in the interpretation of cinema. Harvard University Press.