julho 01, 2018

Coetzee com Dostoiévski

Cheguei a "O Mestre de Petersburgo" (1994) quando procurava livros sobre São Petersburgo, tendo-me surpreendendo imenso com a descoberta, pois um livro sobre um dos maiores expoentes da literatura escrito por outro grande escritor, entretanto nobilizado, só poderia ser uma grande obra. Não posso dizer que tenha ido além do que conhecia de ambos, mas também não desiludiu propriamente. Senti mais Dostoiévski, apesar de escrito por Coetzee em jeito expiatório, mas isso provavelmente deve-se mais ao facto de conhecer melhor a obra de Dostoiévski.


O texto fala-nos de um Dostoiévski que volta a São Petersburgo, estando a viver em Dresden, para dar conta do funeral do seu enteado, Pavel (enteado verdadeiro). A morte do enteado acaba por estar ligada (imaginado por Coetzee) a alguns personagens revolucionários reais (Sergey Nechayev), conhecidos da história da Rússia e dos livros de Dostoiévski (principalmente "Demónios"). Passamos assim algumas semanas na companhia do escritor enquanto este deambula pela cidade na tentativa de compreender o que terá acontecido ao seu enteado ao mesmo tempo que vai lidando com os seus demónios internos.

Este resumo da trama torna-se imensamente relevante já que ele responde à resposta porque Coetzee (1940) escreveu este livro. O seu filho Nicholas, morreu com 23 anos (1989), aproximadamente a idade do enteado (no livro) de Dostoiévski, 5 anos antes da publicação deste livro. Ou seja, temos Coetzee claramente à procura de respostas dentro de si mesmo, a escrutinar-se, a tentar compreender o que sente, porque sente, como responder a tão grave tragédia, aquela porque nenhum pai deveria passar. Por outro lado, Dostoiévski (1821-1881) não perdeu o enteado, mas perdeu dois filhos, Sonya à nascença (1868), e Alexey com 3 anos (1878) que muito o fez sofrer e o fez mesmo passar algum tempo num convento em busca de respostas. Mais razões pelas quais Coetzee se interessaria por Dostoiévski não são fáceis de descortinar, até porque Coetzee raramente fala, e menos ainda explica as suas obras, mas existe uma nota de uma entrevista que é central para compreender este livro:
“Toda autobiografia é um contar de histórias, toda a escrita é autobiografia. [A escrita autobiográfica é] um tipo de auto-escrita em que nos sentimos obrigados a respeitar os factos da nossa história. Mas quais factos? Todos os factos? Não ... Escolhemos os factos na medida em que eles se encaixam no nosso propósito evolutivo.”  (Coetzee, 1992, fonte)
Por outro lado, a razão porque Coetzee escolhe para pano de fundo o cerne da obra "Demónios" (1872) é bastante menos clara, e menos ainda a razão porque se foca no capítulo censurado da obra, que podemos ler na edição portuguesa, da Editorial Presença, ainda que como anexo. Para mim resulta claro que Coetzee está a tentar entrar na mente do maior psicólogo da literatura em busca de algum tipo de autoterapia, mas pergunto: porquê de forma desviante? Existirá uma sede de mal quando o mal nos bate a porta?

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