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junho 25, 2020

A casa que confere a Liberdade

“A Casa de Mr Biswas” (1961) parece, à primeira vista, uma regular saga familiar que extrapoladas as devidas distâncias culturais podemos aproximar do quadro criado por Mann com “Buddenbrooks” (1901), acrescendo o facto de ambas as obras se inspirarem em dados autobiográficos. A escrita de Naipaul difere bastante de Mann, menos rebuscada e bela, mas mais eficiente. Dito assim pode parecer que se ganhará com esta leitura apenas o acesso a um historial de costumes situado numa geografia distinta, Trindade e Tobago, contudo existe aqui algo mais. A longa tradição familiar, sustentáculo do romance de Mann, sofre aqui um enorme revés pelo enquadramento histórico da emigração que suporta as famílias do romance de Naipaul e dá conta do seu desenraizamento. 
A capital de Trindade e Tobago, Port of Spain, nos anos 1940

Trindade e Tobago é um país formado por duas pequenas ilhas — Trindade, a maior, e Tobago — ao largo da costa da Venezuela. Com pouco mais de um milhão de habitantes, mas detentora de petróleo, apresenta hoje um nível de vida, em termos de PIB per capita, três vezes superior à Venezuela, sendo mesmo ligeiramente superior a Portugal. A ilha foi descoberta por Colombo no século XVI tendo estado sob controlo Espanhol até ao século XVIII quando passou para as mãos de Inglaterra. Mais importante para a compreensão do cenário da obra de Naipaul é o facto de em 1831 ter sido abolida a escravatura na ilha, libertando os escravos provenientes de África que acabariam por abandonar a agricultura. Para dar resposta ao problema, os ingleses lançaram um sistema de incentivo à emigração de habitantes da Índia para Trindade que duraria até 1917, consistindo na introdução de cerca de 150 mil indianos na ilha. VS Naipaul era descente dessa corrente migratória, que representa hoje cerca de 50% do total do país. Este enquadramento não surge no livro, mas é requerido para o contextualizar.
Seepersad Naipaul (1906–1953), com o seu Ford Perfect, pai de VS Naipaul e que serviu de base para criar Mr. Biswas.

Naipaul abre o romance de forma a criar uma elipse narrativa, dando conta do facto de Mr. Biswas, personagem principal, estar com 46 anos e a 10 semanas do dia da sua morte. Viajamos depois até ao dia do seu nascimento, para ao longo das mais de 500 páginas o acompanhar a si, à sua família, a da esposa e depois os seus filhos. A saga inicia-se com um tom humorístico forte, inclinado à ironia e sarcasmo, mas vai evoluindo, como que amadurecendo, para se tornar cada vez mais melancólica. Tal como o próprio título indica o foco é a casa, mas essa só aparecerá no final, até lá Mr. Biswas terá de penar, chegando a viver com toda a sua família — mulher e 4 filhos — enfiados num único quarto.

Mas a casa serve mais do que isso, ela é a alegoria da emancipação, da libertação final. Ao longo de todo o livro vemos Mr. Biswas progredir mas sempre debaixo da alçada de alguém, nomeadamente a partir do momento em que casa e entra no seio de uma família alargada, com algumas posses e que preserva tradições do país de origem, a Índia. Mr. Biswas vive dependente, buscando as mais diversas formas de fazer frente à opressão de que é alvo pela família da mulher. Tudo parece resumir-se sempre às casas onde vai vivendo, sempre sob os comandos da família da esposa, nas quais se torna difícil compreender quantas pessoas lá vivem e como cabem lá. O excesso de pessoas confere dinâmica, mas confere também um sentido de caos. As tradições pairam, mas apenas isso, o caos é dominante e tudo é volátil, faltam âncoras, tudo é demais e esgota quem ali vive. A possibilidade de viver em casa própria, com a família, é miragem libertadora mas vão ser precisas várias tentativas goradas para lá chegar. Aliás, podemos ver estas tentativas de libertação metáfora dos contratos que os ingleses faziam com as famílias da índia que os obrigavam a trabalhar durante anos em Trindade e Tobago para pagar as viagens e os alugueres dos espaços em que moravam quando chegavam.
A casa que serviu de base à Hanuman House onde vivia a família da esposa de Mr. Biswas com todas as suas irmãs.
A família Capildeo que serviu de base à família Tulsi, as 9 irmãs e os dois "deuses", da mulher de Mr. Biswas

Mas o que é mais interessante é o modo como Naipaul consegue levar-nos a sentir essa mesma libertação no final. Após centenas de páginas de andar para frente e para trás, de felicidade misturada com tristezas, de parecer impossível sair do mesmo lugar, e quando se sai apesar da casa não ser nenhuma cama de ouro, mas sendo deles, sendo daquela família que claramente a merece, é chegada a hora do fim de Mr Biswas. Batemos no início do livro e sentimos as páginas fecharem-se, como se nenhum outro final fosse possível. A casa e a libertação de Mr Biswas não representam apenas o crescimento, o deixar para trás, mas representam a criação de um verdadeiro porto seguro que provém de um sentimento telúrico que se liga intimamente com a responsabilidade de velar pela família. É por isso que Mr Biswas pode finalmente partir, é esse reconhecimento que produz em nós a sensação de libertação pelo dever cumprido, de luta encerrada.


Vale a pena ler também, de VS Naipaul, "A Curva do Rio" (1979).

junho 14, 2020

Da melancolia polar

Per Peterson é norueguês e aquilo que escreve vem impregnado de um sentimento distintamente melancólico, típico dos países próximos dos pólos. A leitura do seu mais conhecido livro, "Cavalos Roubados" (2003) fez-me voltar a um sentir que já conhecia, mas de outro meridiano, o Alasca de David Vann. O livro não é perfeito, tem altos e baixos, mesclas de universos menos interessantes, algumas repetições, mas o sentimento percorre todo o livro, impregna todas as suas dimensões, e é ele que fica, como se o autor nos transportasse para dentro da sua cúpula emocional.
O modo como Peterson consegue criar esta cúpula sensorial também se aproxima de David Vann, no sentido que ambos tratam tragédias humanas, mas fazem-no com imensa subtileza. Não usam a tragédia para produzir lágrimas fáceis, não usam a dor para nos deitar abaixo, antes trabalham numa linha fina entre a emoção e a cognição. Dão-nos a conhecer, ou levam-nos a trabalhar para compreender o que aconteceu, mas fica do nosso lado produzir a emocionalidade a partir daquilo que compreendermos. 

Para o leitor mais desatento pode até parecer que o autor não dá a importância devida, ou não explica, pode até parecer desprovido de sentido que não se aprofunde a tragédia, que não se dê mais explicações, e mesmo até não nos permita, enquanto leitores, “usufruir” daquele sofrimento. Mas é isto mesmo aquilo que distingue este sentir mais polar, no qual existe uma certa distância humana. Em que se sofre, em que se procura o fim de tudo, mas não se culpa ninguém, nem nenhuma situação por isso. Como se se pairasse por cima das tragédias, elas nos dissessem respeito, mas fizessem parte da realidade que vivemos, inevitáveis, mas ainda assim dolorosas, muito dolorosas...

Só descobri no final do livro aquilo que aconteceu ao autor em 1990, e ainda bem. Ajudou-me a compreender melhor parte do sentimento que trespassa o livro. Continuo sentir que existe ali muito do traço emocional emanado da polaridade geográfica, mas claro que as vidas pessoais de quem escreve têm inevitavelmente o seu impacto.

Esqueçam o título, esqueçam a capa.

junho 11, 2020

Auto-de-Fé (1935)

Mais um livro que encosto. Estive para o fazer por volta da página 60, mas insisti. Novamente na página 100, mas insisti. Perto da página 200 dei por mim a ler na diagonal, por isso achei que não valia a pena. Lê-se nalgumas recensões que a escrita é complexa, que não é, se comparado a outros clássicos é até bem acessível. Sim, existem algumas partes com fluxos de consciências mescladas, mas nada que Woolf já não nos tivesse dado a ver. Ou seja, por aí nada de novo. Nas ideias temos ainda menos, já que somos brindados com uma única ideia que se repete sem fim ao longo de todo o livro.
Sobre a escrita, não só não é complexa, como é pouco atrativa. Aliás, o caso que Canetti teve com Iris Murdoch e que tem servido para muita discussão sobre o comportamento de cada um, fez-me lembrar a beleza da escrita dela que se eleva muitos patamares acima de Canetti. Canetti além de escrever frases muito curtas para não ser perder ou não perder o leitor, está continuamente a repetir ideias e a explicar o que aconteceu uma e outra vez. É verdade que este foi o seu único romance, como tal o primeiro, por isso o meu ataque não é tanto ao autor, mas a quem diz que a escrita de Canetti estava repleta de qualidades. Não li os seus livros seguintes de não-ficção, nomeadamente "Massa e Poder" (1960) por isso não posso dizer nada sobre o Nobel.

No campo das ideias, pode-se dizer que existem ali imagens simbólicas, tenho lido relações com o pré-Grande Guerra, com o que levaria à produção dessa mesma segunda guerra em termos comportamentais. Contudo isso parece-me um exagero. O livro foi publicado em 1935, Canetti tinha 30 anos, e do que sabemos o livro baseou-se mais num acontecimento político relacionado com uma Revolta de 1927 em Viena, nomeadamente as fogueiras de livros. Aliás, diz-se mesmo que se terá baseado na reação das pessoas, percepcionada por si, como mais preocupadas com os livros que ardiam do que as pessoas que morriam.

No computo final, o texto acaba por se transformar num chorrilho de repetições que ainda por cima se limitam a dar conta de comportamentos absurdos. Tudo bem que podem servir para demonstrar o absurdo de algumas personagens das nossas sociedades e como estas conduzem a comportamentos desviantes destas sociedades. Contudo se lutamos para não ter de conviver com elas, por que havemos de suportar centenas e centenas de páginas falando sobre elas, apenas do ponto de vista delas? Mais ainda, páginas que não aprofundam a sua psicologia, mas se limitam a repetir os mesmos traços uma e outra vez, provavelmente para gáudio de alguns leitores. Confesso que o humor não é o meu género preferido, menos ainda a sátira, e isso terá contribuído para a minha impaciência.

junho 07, 2020

"A Origem" de Graça Pina de Morais

“A Origem” é considerado um dos livros mais ingratamente esquecidos da nossa literatura, escrito em 1958 pela médica cardiologista e escritora, Graça Pina de Morais, foi reeditado pela Antígona em 1991 e desde então mantido em publicação pela editora de Luis Oliveira. Nas linhas que se seguem procurarei dar conta da importância do livro e também de algumas das suas potenciais fragilidades.
Vista da casa em que Graça Pina de Morais viveu com a família e que serviu de inspiração a este romance

Quando se inicia a leitura na primeira página o impacto é imediato, percebemos que estamos perante um texto particularmente dotado. A escrita apresenta elevada erudição e fabrico. Denota toda uma bagagem de leituras que serve minuciosamente a elaboração discursiva que a autora procura manter sempre num registo acessível. Trabalha com grande fluidez e detalhe as descrições, usando a ação para dar conta dos espaços e das pessoas, evitando assim as imagens descritivas estáticas tão comuns noutros autores nacionais desta época. Existe um conhecimento sobre a psicologia humana que sustenta a forma como vai dando a conhecer e trazendo para a proximidade do leitor cada um dos personagens. A autora trabalha uma galeria alargada de personagens no entanto consegue ilustrar bem cada um destes, usando a especificidade dos seus comportamentos para os individualizar.
Assim, se toda a linha narrativa é apresentada num modo perfeitamente linear, próximo do romance realista do início do século, a galeria de personagens é marcada pela ausência de um protagonista evidente, o que mostra uma estrutura bem menos clássica. Ou seja, o romance linear tendia a agarrar-se ao personagem que tudo atravessa para formular o arco narrativo, dando conta do chamado coming-of-age. Aqui não temos protagonista, podemos indicar pelo menos 3 ou 4 que o poderiam ser, para Pina de Morais todos os seres parecem ter o mesmo valor, nenhum vale mais do que o outro. Fica a dúvida se isso se deve a uma vontade estrutural do romance, ou um sentir ideológico. Vejamos alguns dados.  

A edição que hoje podemos ler foi editada por Luís Oliveira a conselho de Herberto Helder, que nos conta [1] como para uma editora jovem no início dos anos 1990, tinha pouco para oferecer. Contudo a autora não colocou qualquer entrave ao interesse do editor e ofereceu-lhe mesmo o manuscrito, em 1991, não querendo qualquer compensação ou direitos. Aliás, Graça de Morais tinha já recusado um prémio nos anos 1960, por este lhe ser ofertado pelo Estado Novo [1]. Assim como durante anos ofereceu consultas médicas às pessoas da região da casa da família, onde ia de férias para escrever. Estes factos e mais algumas descrições dão conta de uma pessoa que apesar de não ter passado propriamente dificuldades, atendeu particularmente a uma vida simples e frugal [3].

A Casa das Quintans
Pequeno escritório da casa onde escrevia, sem qualquer vista para o Douro

Podemos juntar ainda a estes factos os relacionados com a casa onde decorre toda a ação. A Casa surge sempre grafada com maiúscula, sendo a primeira parte intitulada em sua homenagem, mantendo forte relevância ao longo de todo o romance. À medida que vai progredindo a narrativa, ela vai passando a fundo, mas a sua presença enquanto envolvência é permanente, transformando-se em espaço, direi mesmo em realidade alternativa, desligada das regras e leis naturais. Sente-se que a autora foge do detalhar de certos comportamentos assim como partes da casa, deixando no ar ideias, como se não houvesse palavras para descrever o não descritível. E é quando recorremos à história real da Casa das Quintãs [2] que percebemos melhor aquilo que paira na mente de Graça Morais. A casa foi comprada pelos avôs maternos de Graça Morais Pina, comerciantes de vinho, numa hasta pública. O anterior proprietário tinha perdido a casa por dívidas de jogo, tendo tentado ali, sem sucesso, suicidar-se, deixando ainda marcas na casa como salas inteiramente pintadas de preto [1]. Temos aqui o pano de fundo para “A Origem”, com a autora a usar a liberdade do romance em busca de respostas, tentando dar sentido à Casa e a quem a tinha habitado, à Origem. 

O interior da casa das Quintans

"O ser humano é sujeito, por vezes, a sensações de pavor e angústia que surgem momentâneas e lancinantes, não por um facto real que deveras aterrorize, mas por algo de irreal que não pode discernir, nem concretizar." A Origem, (1958:24)

Sobre a proximidade autobiográfica, a autora dizia em entrevista:

“O romance que me deu mais prazer a escrever foi A Origem. Passava noites acordada, encadeando ideias. Sentia-me uma iluminada. Contava a História da minha própria família absolutamente deformada pela imaginação.” A autora em entrevista [4]

Acrescente-se ainda que nesta mesma casa, que é parte do roteiro dos Escritores do Norte [5] viveram 4 escritores todos ligados a Graça Pina de Morais (1925 - 1992), o seu tio Domingos Monteiro (1903 – 1980), o seu pai João Pina de Morais (1889 – 1953), e a sua irmã Elisa Pina de Morais (1926 – 2001). Os homens têm obra novelística mas são claramente recordados pelo seu envolvimento político, e a irmã por obra no campo do direito. A relação com a casa parece surgir apenas nesta obra de Graça de Morais, contudo surge com tanta força e evidência que acaba por se tornar ela própria na personagem, secundarizando os reais personagens do lugar. A determinada altura, e depois de muito me ter interrogado sobre a postura do narrador, que desgostei, e já explicarei, comecei a sentir que o narrador seria a própria casa, o que explicaria muitos dos problemas desse narrador, mas serviria por outro lado para elevar ainda mais o relevo e alcance do romance.
Temos então um trabalho escrito na terceira-pessoa com um narrador clássico omnisciente, com todos os problemas que daí advém [6] e que aqui se tornam por demais evidentes. Desde a estranha sensação de que o narrador é e não é o autor, de que ele sabe, sem saber, conhece sem conhecer, sem se apresentar. Isto torna-se ainda mais problemático quando esse narrador desata a atacar todos os personagens de que nos dá conta. Não existe uma única personagem em todo o livro que seja inteligente, culta ou dotada, quando tal se diz, passadas poucas páginas é contradito. Apesar da autora ser mulher, a crítica às capacidades femininas é vil. Ao mesmo tempo, não raras vezes se redundam significados, dando a mão ao leitor, parecendo existir receio da sua fraca compreensão. Tudo serve na verdade para aumentar a sensação de grande estranheza. Deixo apenas três exemplos:

"Ana Joaquina não a entendia; a linguagem da senhora era muito elevada para os seus modestos recursos." A Origem (1958:59)

"Não era estúpida como ela própria imaginava. Tinha uma inteligência mediana. Era só excessivamente feminina e todos os assuntos do exame estavam longe dela." A Origem, (1958:149)

"João tinha um total desconhecimento da vida e das suas bases práticas. Nunca abandonara a casa, onde gente perturbada e ilógica vivia." A Origem, (1958:236)

Este dar a mão, por meio de explicações diretas de algo que a autora quer apenas deixar subentendido é particularmente estranho. Parece que a autora sentia a necessidade de reforçar o que queria dizer como se não o tivesse conseguido. Contudo essas explicações não podem deixar de ser encaradas como provindo de um outro personagem daquele mundo. Não faz sentido atribuí-las à autora, já que o comportamento destoa totalmente daquele expresso e reconhecido por muitos na sua pessoa. Por isso resta-nos interpretar o narrador como a Casa, aquela que conheceu todas aquelas pessoas, que as qualificava segundo uma ordem de inteligência, esperteza e poder, sem receios nem pudores. Aquela que determinava a particularidade daquele lugar, fazendo leis próprias que obrigavam a quem ali habitava a servir e a seguir determinados modelos e propósitos.

Não me parece que fosse intenção da autora discutir grandes ideias, propor grandes visões, existe um foco no mal, na sua origem, mas não é algo trabalhado em suficiente profundidade. Contudo vejo um mundo criado por Graça de Morais intenso e real na sua irrealidade. Não é só a boa escrita da autora que nos agarra, é também a construção do mundo-história sólido que nos alberga enquanto leitores e clama por nós sempre que fechamos o livro. Apesar de se referir que o esquecimento da obra de Graça de Morais se deve ao facto de ser mulher, não posso deixar de evocar aqui “O Sino” de Iris Murdoch escrito em Inglaterra em 1958, e “A Sibila” de Agustina Bessa-Luís de 1954. Duas obras, estruturalmente superiores a “A Origem”, mas com as quais Graça de Morais ombreia de igual para igual no domínio da erudição escrita. A autora só escreveria mais um romance, mais de 10 anos depois, “Jerónimo e Eulália” (1969), o que provavelmente impediu o seu crescimento enquanto criadora e pode ter ditado algum do esquecimento referido no início.


Referências

[1] Graça Pina de Morais, a mulher que estava presa à liberdade, in Série Escritoras Esquecidas, Jornal de Negócios, 4 outubro 2019

[2] Casa Museu Quinta das Quintans, Facebook 

[3] Jesus, Isabel Henriques de. (2015). Estrangeiras: Mulheres em Jerónimo e Eulália de Graça Pina de Morais. Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, (33), 23-35. Recuperado em 07 de junho de 2020, de 


[5] Casa de Quintans, Escritores a Norte, Online

[6] "A Mecânica da Ficção" (2008) de James Wood

Descobri que a autora deu uma entrevista a Manuel Poppe mas que esta nunca passou na televisão. Entretanto Poppe terá transcrito a mesma para um livro de memórias que terá servido a muitos dos que trabalham a obra de Graça Pina de Morais.

maio 30, 2020

"I Will Never See the World Again" (2019)

Ahmet Altan foi preso em 2016, a seguir ao golpe de estado falhado na Turquia. Altan tinha um historial, enquanto jornalista, de escrever artigos proibidos, por serem alegadamente contra a Turquia, falando do direito à autodeterminação dos povos curdos e arménios que vivem sob a opressão da Turquia. Por isso foi listado na longa lista de intelectuais, académicos, militares e magistrados que foram presos como forma de purga do sistema turco. Várias associações internacionais, como o PEN Internacional e a Amnistia Internacional, iniciaram em 2017 um pedido de apoios e manifestos pela sua libertação juntando nomes como Neil Gaiman, Ali Smith, Salman Rushdie, Margaret Atwood e Joanne Harris que de nada valeu, já que um ano depois seria sentenciado a prisão perpétua. Dias depois dessa sentença, surgiu uma carta aberta no The Guardian assinada por 38 prémios Nobel, contando do domínio da literatura com Svetlana Alexievich, JM Coetzee, Kazuo Ishiguro, Herta Müller, VS Naipaul, Wole Soyinka e Mario Vargas Llosa. Um ano meio depois, Ahmet Altan veria a pena reduzida para 10 anos. Por ter já cumprido 3 anos, seria libertado para grande regozijo internacional, mas menos de uma semana depois, a pedido do procurador, voltaria a ser preso. Altan escreveu na semana passada um artigo sobre os efeitos do COVID-19 na prisão em que ainda se encontra para o Washinton Post.
O livro de memórias "I Will Never See the World Again" foi escrito durante os primeiros tempos de prisão, relata o momento de prisão, a espera, os julgamentos e a estadia na prisão. É um livro muito curto, focado num breve momento de vida, mas é um livro pleno de fôlego. Não existem aqui dedos em riste, acusações, existe um escritor que analisa o que sente, o que vê e como isso altera o seu interior. É uma verdadeira viagem pelo interior de alguém a quem foi retirada a liberdade, a autonomia. Altan, sem acesso a internet nem biblioteca, cita autores e frases completas de memória, dos clássicos com que vai convivendo no seu mundo interior, interagindo com autores como Dante, Homero, Tolstói ou Saramago.
Altan cita de memória Saramago — "There is no consolation, my sad friend, humans are inconsolable creatures" — a partir do livro "Jangada de Pedra" (1986:60)

O livro está escrito como momentos que se dividem em capítulos, alguns dedicados ao sentimento da prisão, injustiça e esperança outros dedicados à arte e literatura. Num desses capítulos Altan disserta sobre diferença entre os escritores do século XIX — Tolstói, Balzac, Flaubert e Dostoiévski — que qualifica de centrados nos personagens e suas emoções e os escritores do século XX —Musil, Céline ou Joyce — focados apenas nas ideias. Diz algo com que concordo, os personagens dos primeiros são mais importantes do que os seus autores, enquanto para os segundos apenas lhes interessa falar de si mesmos, servindo os seus personagens apenas de veículos.

A escrita, bagagem e visão do mundo apresentada nestas poucas linhas atraíram-me a ponto de ter começado a procurar o próximo livro do autor para ler.


maio 24, 2020

“Quando Tudo se Desmorona” (1958)

“Quando Tudo se Desmorona” fala de uma tribo em África algures no passado, dando conta dos costumes, hábitos e comportamentos sociais instituídos. Para o leitor Europeu de hoje os costumes apresentados — de governo, de casamento, relações pais e filhos, doenças, etc. — parecem toscos e nalguns casos apresentam-se mesmo como hediondos. Contudo, enquanto lemos, e pela forma quase neutra como tudo vai sendo apresentado, parecemos estar perante uma sociedade com um largo conjunto de regras que formam uma civilização, tal como a nossa já terá sido. É inevitável não parar a tentar compreender porque determinada regra foi instituída, ainda que algumas tenham à mistura algumas incógnitas proporcionadas pelos oráculos, deuses e magias, mas na generalidade é possível extrair as causas e razões da instituição das regras. Os homens mais fortes com as suas tarefas e deveres, as mulheres menos fortes com as suas tarefas e obrigações, e quem não se encaixa no perfilado é ostracizado. Tudo acaba sendo menos violento porque a própria natureza consegue ser ainda mais severa ao permitir que homens e mulheres que dão à luz a uma dezena de filhos os possam perder todos. Por isso, percebe-se que a realidade ali não é a realidade que nós hoje vivemos, as condições ditam, inevitavelmente, os modos de ser da nossa espécie. É no tempo, pela aprendizagem com tudo aquilo que os que vieram antes de nós nos legam que podemos tentar enfrentar e sobreviver com menos dor. O respeito pelos mais velhos, pela experiência passada faz-se relevante e serve de lei, mesmo quando dela duvidamos.


A chegada dos missionários (não é dito, mas foram os portugueses quem primeiro contactou com as tribos Igbo e iniciou o processo de cristianização e ao mesmo tempo de rapto de escravos) abre um olhar novo sobre aquelas vivências, inevitavelmente nos vemos ali representados, compreendendo, mas não aceitando. Porque hoje compreendemos algo que os nossos próprios antepassados não compreendiam, que a cultura dos outros não é pior do que a nossa apenas por ser diferente. Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para o que fazíamos pela frente — evangelizar — enquanto por detrás torturávamos, violentávamos, matávamos e raptávamos. Achebe não o diz, mantém sempre a neutralidade, tal como manteve no relato dos costumes mais bárbaros das tribos, com a perspetiva fixa nos personagens de cada tribo que não compreendem quem somos e porque estamos ali. Mas custa muito ler e imaginar como tanto sucedeu durante séculos.

A edição portuguesa foi publicada pela Mercado de Letras

O livro foi primeiramente escrito em inglês porque a Nigéria se tornou numa colónia britânica no século XIX, e esteve debaixo do seu domínio até 1960, sendo um livro obrigatório nas escolas britânicas e em muitos lugares de África. Contudo, considero que deveria ser obrigatório também em Portugal. Temos obrigação de ter muito mais consciência do que fizemos, é difícil pensar hoje que o nosso país chegou a deter o monopólio do transporte de escravos. Claro que tal como não devo condenar os costumes das tribos, mesmo os mais macabros, também não posso condenar um país por erros cometidos há 500 anos.

“Quando Tudo se Desmorona” é um dos maiores legados da literatura africana, mas também do nosso tempo, aproveitemos o conhecimento e experiência proporcionada por Chinua Achebe para nos conhecermos melhor a nós mesmos.

maio 23, 2020

O Sino (1958)

Iris Murdoch é para mim uma escritora muito particular por ser capaz de produzir uma escrita carregada de erudição e ao mesmo tempo imensamente acessível. Apresenta enorme densidade em elaboradas construções frásicas que funcionam como belos descritivos de ação e pensamento que nunca cansam. Por outro lado, consegue fazer tudo isso mantendo um fio de enredo imensamente intenso, com um sucedâneo de eventos que captam o nosso interesse, e nos levam a questionar sobre o que vai acontecer a seguir, enquanto nos deliciamos com os interiores de cada personagem.
O “Sino” não está muito distante do “O Mar, o Mar” (1978), temos uma pequena comunidade de pessoas, cada uma com as suas particularidades, mas unidas por um mesmo desejo, encontrar-se, perceber o que podem ainda fazer das suas vidas que os faça sentir melhor consigo próprios e com os outros. Temos espiritualidade pelo meio, com um convento vizinho, mas o centro é mesmo a quinta para onde se retiram na ânsia por, através do afastamento da realidade corriqueira cheia de prazeres e culpas, encontrar a transcendência que lhes permita redimir tudo o que para trás ficou.

O “Sino”, apesar de aqui apelidado de Gabriel (o anjo mensageiro de Deus), acaba por não entregar as mensagens que todos esperam, criando uma conclusão anti-climática, mas ao mesmo tempo realista, porque de acordo com os resultados destes retiros que tantos de nós prezamos e passamos tempos a imaginar que podiam por nós, pelo interior, fazer milagres. Relembre-se “Walden” (1854) de Thoreau, hino ao escape e retiro, que acaba por colocar a nu o quanto tudo não passa de mero luxo inventado pela burguesia, birra em jeito de confronto das regras instituídas para viver em sociedade.

Mas o que me fica desta leitura é muito mais o mundo criado, a densidade humana povoado pelo interior de cada personagem, as suas relações, rejeições, ânsias e medos. Murdoch enreda belissimamente o que tem para contar, e transporta-nos para o universo por si criado, fazendo-nos sentir bem no seu mundo.

maio 01, 2020

Teoria Geral do Esquecimento

É um livro curto, mas se se lê numa tarde deve mais às brilhantes competências do autor no contar de histórias. Com uma premissa digna do género fantástico — uma agorafóbica que se empareda dentro de um apartamento no topo de um prédio de luxo em Angola durante os tumultos da transição para a independência e aí permanece por 30 anos sozinha — as parcas 250 páginas parecem voar na nossa frente, tecendo ficção e História de vários povos e especialmente de um continente. No final, respira-se África, respira-se humanidade, sente-se uma enorme leveza, apesar do Esquecimento, a dignidade nunca foi perdida.
Foi o primeiro livro de Agualusa que li, tendo-me apanhado totalmente de surpresa. Aproximei-me por causa da premissa, após a tomada de conhecimento da mesma numa lista de romances africanos, mas assim que abri a primeira página só consegui parar para almoçar e depois no virar da última página, o que dá bem conta do virtuosismo de Agualusa. Tenho de dizer que me ajudou imensamente o enquadramento do momento da independência de Angola escrito por Kapuściński — "Mais um dia de Vida" (1975) —, já que foi como voltar a esse a livro, e partir daí para uma outra história, que acabaria por se revelar muito mais do que isso.


[Muito breve interpretação com possível spoiler]

Não querendo revelar completamente o sentido da metáfora, aquilo que Agualusa procura dizer está centrado no título, sendo a personagem de Ludo quem encerra o livro questionando-se a si mesma sobre o porquê de todos aqueles anos perdidos, o porquê de se ter votado a todo aquele esquecimento, o que inevitavelmente nos obriga a pensar no continente, e no eterno esquecimento de si e por todos nós. No meio do conceito, acabamos por começar a criar uma teia mais alargada de sentidos desde logo a mais simbólica criada pelos animais-personagens — o cão albino Fantasma, o macaco Che Guevara, o hipopótamo Fofo e o pombo-correio Amor, mas também as origens da fobia de Ludo com base num evento na Costa Nova. Tudo é trespassado por uma teia narrativa que cruza sacos de diamantes com amantes, pais, protetores e condenados próprios do melhor que o realismo mágico nos tem dado.
O livro é curto, mas o fôlego é enorme, oferecendo profunda inspiração. O mundo do Esquecimento agarra-se a nós e preenche toda a nossa vontade de sonhar. Por várias horas não conseguimos desligar daquele universo, sentindo apenas que é ali que queremos estar, naquele mundo que produz, por entre a melancolia, uma visão de alcance sem fim graças à luz límpida de África que nos preenche de esperança.


Nota quantitativa no GoodReads.

abril 27, 2020

O Enigma de Nabokov

Li vários livros de Nabokov, li sobre a sua pessoa, os seus gostos, preferências e aversões, fui visitar a sua casa de infância e juventude quando estive em São Petersburgo, no entanto nunca compreendi muito bem porque era um autor que eu amava sem conseguir amar completamente a sua obra. “Lolita” deslumbrou-me totalmente em termos formais, contudo, nenhum outro livro seu alguma vez se aproximou. Ao mesmo tempo, não conseguia compreender o seu total desprezo por Dostoiévski, chocava-me ler o que dizia sobre ele, não muito diferente do que me choca ler o que diz Lobo Antunes sobre Fernando Pessoa. E agora, depois de ler "Fala Memória" (1951), julgo ter finalmente compreendido o enigma, sobre o que me deterei nas próximas linhas.
Nabokov teve uma infância digna da monarquia, mas com pais profundamente preocupados com a sua formação, tendo ele, por inclinação própria, sabido bem aproveitar tudo o que lhe foi oferecido. Antes de ter sido exilado, em fuga da Revolução Russa, para Cambridge em 1919, onde foi fazer o seu curso com cerca de 20 anos, tinha já viajado por quase toda a Europa. Aprendeu inglês antes do russo, falava e escrevia fluentemente além destas o francês e o alemão. O seu pai era profundo amante de literatura e ofereceu-lhe todo um mundo de leituras desde a mais tenra idade. Nabokov teve todas as condições para aceder ao melhor de tudo o que ser humano tinha criado até então nas artes literárias. Além disso, começou a prática de escrita desde muito cedo. Juntando a inclinação própria e diga-se alguma sorte pela particularidade oferecida pela sinestesia e o ambiente apropriado, Nabokov iria tornar-se num maestro das letras. A sua prosa evoluiria, o poético ganharia enorme densidade, e isso serviria para impulsionar intensamente a sua arte. Contudo, sinto que Nabokov seria sempre mais artesão do que artista.

Sempre considerei estranhos os dois papéis mais reconhecidos em Nabokov, escritor e colecionador de borboletas, por qualquer razão nunca senti que combinassem. No entanto, a relacioná-los colocava a beleza. A beleza das suas frases e a beleza dos padrões das borboletas. Foi agora, ao ler as suas memórias que compreendi o quão essas duas partes se aproximam, e como definiam a própria escrita de Nabokov. Desde logo, essa relação é evidente no modo distante e frio como fala da sua infância e família, como se tivesse estado sempre a janela vendo os eventos passar. Perto do final, demonstra para meu maior espanto, o prazer que retirava da criação de problemas de xadrez (estes problemas consistiam em montar uma jogada no tabuleiro e definir um número máximo de jogadas permitidas para fazer xeque-mate). O gosto por jogar xadrez não é per se qualquer motivo de surpresa, mas obter profundo prazer na conceção e resolução de problemas formais é um marcador indissipável da psicologia de um criador.

Esta análise que faço está naturalmente imbuída do trabalho que tenho vindo a desenvolver no campo dos perfis psicológicos e do modo como estes definem a nossa curiosidade e motivação, no modo como nos predispõem para o envolvimento com a realidade. Tendo eu definido três perfis — Abstracionista, Experimentador, Dramatista —, Nabokov parece não se encaixar em nenhum, ou encaixar nos dois mais opostos. Em favor do abstracionista, Nabokov apresenta o seu lado colecionista obsessivo e a resolução de problemas. Para o lado dramatista, Nabokov apresentava naturalmente a sua literatura e os seus romances. Contudo, da análise da sua literatura e relação com as qualidades de cada perfil, a conclusão a que chego é que Nabokov foi muito mais abstracionista do que dramatista, ou seja, foi alguém focado em sistemas e estruturas, pouco interessado em pessoas e nos seus dramas, algo que espero demonstrar nos pontos seguintes:


1 – Nabokov não gostava de Dostoiévski porque não compreendia a dramatização da psicologia humana colocada em cena por este. Para Nabokov a escrita era fraca, os enredos repetitivos, faltava beleza formal. Mas Nabokov na verdade não compreendia o que se passava efetivamente no interior de Raskólnikov, e menos ainda daqueles que o liam.

2 – Do mesmo modo Nabokov ridicularizava Stendhal, Balzac, Mann, Faulkner, Camus ou Roth, escritores que muito fizeram pelo avanço do psicologismo no romance, em choque frontal com a larga maioria dos escritores e críticos e de forma ostensiva. Na verdade, Nabokov não conseguia chegar a certos tipos de escrita, não por não ser capaz, mas porque não lhe tocavam, não lhe falavam.

3 - Durante alguns anos admirei Nabokov por ser frontal e falar abertamente contra Sigmund Freud, contudo só agora compreendi que aquilo que o incomodava nada tinha que ver com os seus métodos muito pouco científicos, mas apenas e só com o facto deste trabalhar a psicologia humana.

4 – A curiosidade de que Nabokov terá visitado os 46 estados americanos, referido neste livro mais de uma vez, em busca de borboletas, é mais do que isso, é um elemento central para compreendermos o seu comportamento obsessivo. Nada o faria impedir de ir atrás das suas metas e objetivos, eles foram sempre o seu norte.

5 – Do mesmo modo, os ataques a Boris Pasternak e Alexander Solzhenitsyn, os dois russos a ganhar o Nobel (1958 e 1970) quando Nabokov já era considerado um génio das letras, têm mais que ver com o competitivo inato em Nabokov do que com qualidades desses autores ou até mesmo inveja. O Nobel é um prémio, apesar da competição ser algo exótico no domínio da narrativa, das histórias e das letras, mas era isso apenas que interessava a Nabokov, atingir os objetivos.

6 — Um dos seus livros mais estudados é um poema, mas não é um poema qualquer. “Pale Fire” é um conjunto de significados escondidos por debaixo da capa e forma de um poema, mas “Pale Fire” não é nenhum poema, porque antes de o ser é um puzzle. Os críticos deslumbram-se com as intrincadas métricas que perfazem o poema de exatas  999 linhas, e o modo como os cantos podem ser lidos em série ou paralelo, abrindo caminho ao chamado hipertexto e cibertexto. “Pale Fire” é um problema textual criado por Nabokov, tal como os problemas que adorava criar para xadrez.


Tudo o que elenquei não diz que Nabokov não era escritor, nem que não era dotado de génio na escrita, mas diz-nos que Nabokov era fraco contador de histórias e que na verdade tinha pouco para dizer. O seu foco foram eram coisas e objetos, os humanos eram para si secundários, não relevantes, tal como diz o próprio George Steiner:
"O caso de Nabokov parece envolver uma desumanidade profunda, ou, mais precisamente, uma desumanização. Há compaixão em Nabokov, mas é superada em muito pelo desdém elevado, sombrio." George Steiner, Grandmaster, The New Yorker, December 10, 1990, pp. 153-157.
Para alguém que se considerava a si mesmo um génio e que prezava a arte acima de tudo, parece parco. Porque se admitimos a um cientista que se foque nos objetos em vez das pessoas é porque o seu trabalho contribui para o avanço do conhecimento humano que por sua vez servirá a todos. Já quando um artista se foca apenas na sua arte, no virtuosismo da mesma desligada de tudo e todos, é apenas a si mesmo que serve. No final de cada livro seu, fico sempre encantado com a forma, com a estrutura, com o virtuosismo, mas o que retiro verdadeiramente da leitura sabe a pouco. O único livro em que a forma me bastou, talvez porque tinha de bastar para compensar a abjeção da história contada foi “Lolita”, e é falando sobre esse que quero terminar, porque acredito que o enigma aqui desvelado nos pode ajudar a compreender um pouco melhor essa obra.

“Lolita” apresenta uma escrita absolutamente singular. Não é mera poesia, é toda a textura textual que cria um sentimento de espanto e surpresa no modo como o universo nos vai sendo oferecido, do ritmo do texto às metáforas ricas. Por sua vez, toda essa beleza é contraposta à descrição do mais profundo horror. Esse horror continua, até hoje, a não ser compreendido por quem o lê, gerando interrogações e dúvida sobre o que verdadeiramente está em questão na história que se conta. Contudo, a partir do que discuti acima, parece-me que a explicação está no perfil psicológico de Nabokov, alguém profundamente focado em coisas, não em pessoas. O seu foco era o livro, a obsessão pelo texto perfeito era total, já os personagens e os eventos eram apenas mais uma história, igual a tantas outras. O enigma emerge assim pela falta de empatia de Nabokov, pelo modo como se alheava completamente da relação emocional criada pelos personagens das suas obras com os seus leitores. O abjeto e nojo são por demais evidentes em “Lolita”, contudo Nabokov não parece apresentar nunca consciência de tal ao longo de todo o livro. Claro que se podem evocar sentidos escondidos na relação entre a beleza do texto e a beleza da ninfeta, contudo nada dessas interpretações poderá esconder o negrume do que se apresenta. Ou mais facilmente poderíamos dizer que pessoas más não fazem más histórias, para o que bastaria evocar Raskólnikov, mas para tal o escritor não poderia "esquecer-se" de evidenciar de que lado estava.

abril 12, 2020

Literatura como arena de debate

Em "Elizabeth Costello" (2001) Coetzee cria uma nova abordagem ao romance usando ensaios seus, textos escritos e previamente publicados de não-ficção, que coloca na boca de uma personagem ficcional, que depois é obrigada defender-se da crítica. Parece uma forma de auto-questionamento, como se Coetzee quisesse por à prova as suas próprias ideias e crenças recorrendo ao romance como arena de debate virtual, usando as suas propriedades de simulador de realidade para se confrontar consigo mesmo. O resultado é muito impressivo, com um ritmo balanceado entre a racionalização e a sensorialidade, oferecendo conclusões muito atuais sobre a certeza e a verdade.
São 8 capítulos que debitam 8 conferências da escritora Elizabeth Costello, não são 8 temas, por que algumas conferências ampliam e oferencem diferentes perspectivas, do mesmo modo que nem todas as 8 foram alvo de publicação prévia de ensaio de Coetzee, as últimas 2 não foram. De entre os temas, temos:

1. A importância da literatura e seu criador, e ainda o fim inevitável da nossa passagem por esta vida.
Começa de forma muito racional, fica-se com a ideia de que o livro vai ser uma espécie de discussão meta-literária, interessante, mas desligada emocionalmente.

2. As propriedades e distinções do romance africano, nomeadamente os fatores da oralidade
Começamos a sentir Costello, começamos a perceber que é mais do que um ser racional, que sente e se sente, nomeadamente quando discorda.

3 e 4. Os direitos dos animais e o Holocausto
Aqui atinge-se um primeiro clímax, o racional fica para trás, é tudo força emotiva, é tudo dureza e violência verbal, somos levados a questionar-nos, quase mesmo a parar de ler de tão horrível o que estamos a imaginar.

Mas é aqui que Coetzee usa de forma mais extensiva a arena virtual, já que segue para uma segunda parte onde questiona tudo o que disse em defesa dos animais, colocando em causa ou em debate os extremos, e os dedos acusatórios.

5. Ataque às Humanidades pela Teologia
Neste ponto parece que mudamos totalmente, e voltamos à racionalização completa, mas é aqui que Coetzee nos surpreende, nos apanha de surpresa e nos tira o tapete. Antes de entrar aí, dizer como este capítulo me atirou de volta à leitura de “Incompletude” de Goldstein, pelo oposto desse livro. Em Incompletude é de ciência exata que se trata, de certezas absolutas, mas as humanidades não lidam com certezas absolutas, e de repente isso serve de mote à teologia para as questionar, e nós com ela, mesmo sabendo que não existe ali qualquer razão, porque a razão aqui não se aplica. É um momento brutal de ataques e contra-ataques entre duas personagens ficcionais, que facilmente poderão ter surgido na vivência de Coetzee enquanto professor universitário das humanidades.

O empenho na discussão sobre o valor das humanidades é tão grande que quase sentimos um choque elétrico quando entra a sensorialidade em bruto. Coetzee joga claramente nesse choque, sabendo que elevou o discurso a um nível de desapego emocional, de repente reenquadra toda a cena, e por meio de um simples flashback coloca-nos no lugar de voyeur, enquanto sentimos o arrepio que faz o livro tocar-nos bem dentro.

6. A descrição do Mal
Este é o ponto menos conseguido, talvez porque estando a aproximar-se dos questionamentos finais, Coetzee opte por começar a baixar o tom, ou porque a metáfora sensorial usada, apesar de imensamente poderosa, e que me fez engolir em seco, não se aproxime da metáfora velada de que se vai falando mas nunca se descrevem a propósito das torturas nazis. Mas a discussão que traz é profunda, e é algo com que me debato há tantos e tantos anos, e fica clara nesta simples frase:
“Se o que escrevemos tem o poder de nos tornar pessoas melhores, certamente tem também o poder de nos tornar piores.” diz Elizabeth Costello, em jeito de questionamento
Todas as semanas me questiono sobre isto a propósito da literatura, cinema e jogos. Se nos fazem bem, poderão também fazer-nos mal?

7 e 8. Últimos dois capítulos 
São estranhos, muito racionalizados à mistura com absurdo místico e existencialista. O primeiro com um debate em redor dos deuses gregos e suas relações sexuais com humanos. O último que surge tal qual um tribunal kafkiano na chegada ao purgatório de Elizabeth Costello.

Conclusões

Vários críticos tentaram encontrar uma interpretação que respondesse pela soma dos temas e discussões realizadas (ex. James Wood). Não concordei com o que fui lendo, porque não encontrei essa interpretação, mesmo depois de forçada por esses críticos. Porque no final senti que estava perante um Coetzee que tinha lutado de forma extraordinária pelo aprofundamento das suas certezas, mas que terminava apenas com mais dúvidas ainda.

Julgo que a grande conclusão, e isso faz parte da matriz das Humanidades, é que o mundo e toda a sua complexidade não é explicável por meras racionalizações. Tudo aquilo de que temos certeza, só a temos no momento em que olhamos para tal pela perspetiva que nos conduziu a essa certeza. Quando mudamos o ângulo, quando vemos a questão de outra perspectiva, de imediato nos assaltam as dúvidas sobre algo que até ali eram apenas certezas. Claro que isto é questionável quando entramos numa modelação orientada pelas ciências exatas, mas esse é um debate diferente, ainda que nesse ponto existam também todas as questões levantadas pelos teoremos de Godel.

No fundo, Coetzee escreveu um livro que plasma de forma frontal toda a teorização pós-moderna que nos diz que o mundo em que hoje vivemos está montado sobre fragmentos de ideias que não passam de ilusões de verdade. Porque não há verdade, não há certezas, não há finalidades, tudo é e não é. Vivemos em ilhas de realidade cada vez mais reduzidas, cada vez mais individualizadas, quando vez mais sozinhos. E por isso a leitura termina com um travo forte de tristeza, porque é difícil não nos questionarmos se foi para isto que elevámos tanto as nossas capacidades de compreensão do real... e isto sente-se claramente naquele capítulo final, kafkiano, absurdo... como se fosse inevitável aportar ali...


Nota quantitativa no GoodReads.

março 24, 2020

“O Mar, o Mar” de Iris Murdoch

“O Mar, o Mar” (1978) é um romance feito de múltiplas camadas concebidas num entrosamento de modos, o explícito, ocupado com as necessidades narrativas de manter a história viva e apelativa ao longo de centenas de páginas, e o implícito, de questionamento reflexivo inerente à veia filosófica da autora. Murdoch foi professora de filosofia na Universidade de Oxford, sendo reconhecida tanto pela sua ficção como pelo seu trabalho filosófico. Dito isto, o livro não é nenhum tratado de filosofia, mas não deixa de ser uma obra imensamente densa, talvez até mais pela profundidade descritiva do que propriamente pelas argumentações. Nesse sentido, a escrita de Murdoch recorda Proust através do modo como descreve cenas interiores, pensamentos e memórias, na sua miríade de detalhes, como avança e recua dentro dos personagens, pondo a nu a diferença liminar entre o real exterior e alegadamente objetivo, e o mundo subjetivo criado na cabeça de cada um de nós.
O protagonista é um encenador de teatro, célebre, que na entrada da idade de reforma se retira de Londres para habitar sozinho, numa casa à beira-mar completamente isolada, sem eletricidade nem água. Apesar de desejar estar sozinho, Charles Arrowby acaba por encontrar muitos dos principais personagens da sua vida, tanto recente, como da sua infância, o que vai provocar enormes tumultos interiores, que tornarão evidente o tipo de pessoa que temos em cena, dando a entender que existe ali pouco que se possa qualificar de boa pessoa, mas no entanto vamos avançando e compreendendo que má pessoa também não é, porque no fundo é apenas um humano. Murdoch penetra pelo pensamento de Arrowby adentro e dá-nos a ver e a sentir o mundo da indecisão, da incerteza, da dúvida, do questionamento e ao mesmo tempo o da certeza, do autoritarismo, do desprezo e da discriminação. A leitura senta-nos no ombro do personagem e deixa-nos ouvir e sentir tudo o que ele pensa, o que acaba por inevitavelmente se colar a nós, às nossas próprias incertezas e desejos. Não admira que Murdoch seja comparada a Dostoiévski ou Tolstói, ou nutra grande amor por Shakespeare.

A escrita apesar de apresentar um vocabulário acessível é bastante densa, mas é exatamente por meio dessa densidade que se produz uma aura reflexiva que nos transporta continuamente para o domínio do pensar. Apesar de toda a ação se passar numa casa junto a uma praia de rochedos em que os personagens podem banhar-se, passamos a maior parte do tempo dentro de ideias, quase desligados da realidade espacial-temporal, com muitas cenas a fazer-nos recordar os mundos-história dos filmes de Ingmar Bergman.

Existem algumas partes que me parecem interessantes reter, nomeadamente o modo como olham para a arte, no caso particular do teatro, mas também como discutem a nossa ilusão de realidade, ou ainda como nos introduz à discussão dos nossos anseios e desejos. Aliás, para mim, todo o livro acaba sendo isso, uma introdução aos problemas da crença no desejo de Ser. Porque passamos vidas inteiras em busca do nosso próprio eu, de uma suposta felicidade, sem considerar que essa mesma busca, ou essa mesma felicidade, pode não corresponder àquilo que verdadeiramente queremos, mas apenas àquilo que nos parece que verdadeiramente desejamos. É daqui que emergem as maiores incertezas sobre nós mesmos, somos alguém, mas não sabemos que alguém é esse que somos, temos intuições, fazemos inferências e lançamos suspeitas, mas ao longo das nossas vidas vamos aprendendo que muito daquilo porque tanto ansiámos e acabámos por conseguir afinal não era assim tão importante...

Deixo alguns excertos em inglês, a única versão digital que tenho, apesar de ter lido o livro na edição da Relógio d'Água numa tradução para português de José Miguel Silva.

Sobre o teatro:
“The theatre is an attack on mankind carried on by magic: to victimize an audience every night, to make them laugh and cry and suffer and miss their trains. Of course actors regard audiences as enemies, to be deceived, drugged, incarcerated, stupefied. This is partly because the audience is also a court against which there is no appeal. Art’s relation with its client is here at its closest and most immediate. Drama must create a factitious spell-binding present moment and imprison the spectator in it. The theatre apes the profound truth that we are extended beings who yet can only exist in the present. It is a factitious present because it lacks the free aura of personal reflection and contains its own secret limits and conclusions. Thus life is comic, but though it may be terrible it is not tragic: tragedy belongs to the cunning of the stage. Of course most theatre is gross ephemeral rot; and only plays by great poets can be read, except as directors’ notes. I say ‘great poets’ but I suppose I really mean Shakespeare. It is a paradox that the most essentially frivolous and rootless of all the serious arts has produced the greatest of all writers.”
Nós e a realidade
“We are such inward secret creatures, that inwardness is the most amazing thing about us, even more amazing than our reason. But we cannot just walk into the cavern and look around. Most of what we think we know about our minds is pseudo-knowledge. We are all such shocking poseurs, so good at inflating the importance of what we think we value.”
“Time can divorce us from the reality of people, it can separate us from people and turn them into ghosts. Or rather it is we who turn them into ghosts or demons. Some kinds of fruitless preoccupations with the past can create such simulacra, and they can exercise power, like those heroes at Troy fighting for a phantom Helen.”
“in a few weeks or a few months you’ll have run through it all, looked at it all again and felt it all again and got rid of it. It’s not an eternal thing, nothing human is eternal. For us, eternity is an illusion. It’s like in a fairy tale. When the clock strikes twelve it will all crumble to pieces and vanish.”
“The worshipper endows the worshipped object with power, real power not imaginary power, that is the sense of the ontological proof, one of the most ambiguous ideas clever men ever thought of. But this power is dreadful stuff. Our lusts and attachments compose our god. And when one attachment is cast off another arrives by way of consolation. We never give up a pleasure absolutely, we only barter it for another.”

Nota quantitativa no GoodReads.

fevereiro 01, 2020

"Leviathan" de Auster

Um dos maiores problemas de consumir muitas histórias num meio — seja literatura, cinema ou jogos — é que começamos a ver as estruturas narrativas na nossa frente enquanto devíamos estar plenamente absorvidos pelo mundo e personagens das histórias. Diga-se que isso é mais evidente quando a história é mediana, mas a estrutura é muito boa, investindo nós mais tempo na apreciação do invólucro do que do seu conteúdo. Esse é o caso de “Leviathan” (1992), em que Auster embrulha múltiplas personagens numa trama de bombas para nos manter agarrados ao longo da descida em espiral pelo interior do personagem que narra a história, que é também escritor e serve perfeitamente de alter-ego a autor.
O livro abre com uma morte por explosão, da qual quase nada resta para identificar o corpo, daí somos levados por uma história que atravessa 15 anos de um mundo e uns EUA em convulsão — meio dos anos 1970 até ao início dos anos 1990 — para descobrir quem e porque explodiu essa pessoa. Auster dá-nos a ver de perto quase uma dezena de personagens que se vão entrelaçando e abrindo umas às outras por meio de pontas soltas, mentiras, e também muitas coincidências. O thriller parece ser a base, mas Auster não desiste de ser romance e por isso ora se aprofunda a psicologia dos personagens, ora se faz mover todo o mundo em alta velocidade por meio de eventos inesperados, tais como acidentes, mortes e mais coincidências. Temos direito a algumas cenas mais quentes, para adocicar os momentos que menos concorrem por atenção, mas diga-se, muito menos interessantes do que a castidade moral encenada no interior dos dois principais personagens masculinos, tal como a contraposição com a libertinagem das personagens femininas.

Do Leviatã fica-se na dúvida, ou talvez não, se Auster se refere ao interior que nos consome a todos, sem sabermos porquê, nem como, ou se é menos figurativo e mais ilustrativo, ficando-se pela insanidade que consome apenas aqueles que se deixam cair nas suas malhas, e se deixam levar por histórias — ideologias políticas — que passam a controlar todos os seus passos. Não tendo sentido a história de modo suficientemente intenso, acabei não sentindo a necessidade de atribuir um significado concreto ao texto e isso talvez tenha acabado por determinar um certo dissabor que senti ao chegar ao fim. Reconhecendo a excelência estrutural, faltou-me história, faltou-me empatia.


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janeiro 22, 2020

"My Year of Rest and Relaxation" (2018)

Nunca tinha ouvido falar de Otessa Moshfegh, vi este seu livro numa das muitas listas de livros da década ou dos anos da década e fui procurar mais. Encontrei referências a um prémio PEN/Hemingway e finalista do Booker e do National Book para o seu livro anterior, soube ainda que tem escrito contos para a Granta e para Paris Review. Apesar de americana é filha de pai iraniano e mãe croata. Além disto, aqui e ali dizia-se ser uma autora com traço peculiar e subversiva. Por outro lado, as recensões críticas deste seu novo livro estavam longe da unanimidade. Por isso interessou-me, mas nada disto me preparou para ficar agarrado logo na primeira página e continuar na segunda e assim ficar até ao fechar do livro.
Em “My Year of Rest and Relaxation” encontramos uma personagem feminina nova e bonita, recém-licenciada, vivendo em Nova Iorque no final do milénio passado. Quando entrou para a Universidade perdeu ambos os pais e teve de se desenrascar sozinha, conquanto estes lhe terem deixado meios para continuar a ter casa, comida e fazer o que quisesse sem preocupações financeiras. Prossegue licenciando-se em História de Arte, mas pouco depois de terminar, que é quando a encontramos, parece ser quando tudo finalmente se abate dentro de si. O seu único desejo é dormir, passar o máximo de tempo possível a dormir. Para o efeito recorre a uma psiquiatra alucinada que lhe vai passando drogas cada vez mais fortes para dormir, até começarem a produzir vários efeitos secundários.
Illustração de Dori Liou

No início, ficamos colados a tentar perceber o que leva alguém a querer dormir ininterruptamente, porque em última instância parece uma espécie de suicídio mas sem o problema da irreversibilidade, e talvez tenha sido isso que mais me atraiu. Embora, e tendo em conta as doses de medicamentos usadas, pudesse ser visto como mero entorpecimento por drogas, para esquecer o mundo, que é aquilo que acaba por acontecer com os toxicodependentes. Mas existe algo que descarta essa hipótese que é a consciência da realidade e vontade férrea de conseguir levar o seu projeto de dormir o máximo possível avante.

Se tudo isto é interessante pela estranheza, o enredo e as competências de Moshfegh não são menos já que passamos todo o tempo em casa com a protagonista que vai falando com outros personagens, mas poucos, o que demonstra a grande capacidade de contar e manter-nos interessados da autora. Num livro que atravessa pouco mais de um ano, esse ano é passado numa luta para conseguir dormir mais e mais, dentro de quatro paredes. Nada se faz, nada mais se pretende ou objetiva além de dormir, e no entanto ali estamos a seguir, interessados e focados, a tentar compreender a psique da personagem, a tentar perceber o que se passa na sua cabeça. É impressionante como tudo parece tão banal e natural e no entanto se pensarmos no que vai sendo representado em cada página, no modo como se vão criando mundo e ação de personagens, existe aqui uma capacidade expositiva excepcional atuando para nos manter focados no que irá acontecer a seguir, mesmo sabendo que pouco ou nada se espera que aconteça.

É provável que a escrita na primeira-pessoa e em jeito de memórias ajude, conferindo uma espécie de véu de verdade, mas isso é apenas parte da técnica Moshfegh. Acredito que é também responsável o humor negro utilizado para analisar e depreciar a realidade, as relações humanas, e mostrar o mundo a partir de um olhar distinto, desprendido das necessidades diárias — dinheiro, comida, amor — que nos dá a sentir um mundo em parte decadente, mas ao mesmo tempo liberto de pressões que parece querer conduzir-nos a uma compreensão mais cabal do que representa tudo isto e aquilo que costumamos definir como nós, ou Eu. Tendo em conta o cenário, defini-o como existencialismo naif, uma espécie de preocupação, simultaneamente despreocupada, com aquilo que somos e valemos.

O final é expectável, é impossível ler um livro passado naquelas datas, naquela cidade e não esperar que desemboque naquele fatídico dia, 11 setembro. No entanto ao bater naquela última página não consegui deixar de sentir intensamente o momento que fez com que aquela personagem rodasse integralmente na minha frente, passando em revista os vários momentos vividos com ela ao longo da leitura do livro. Porque querendo ou não, é um momento que recoloca de novo tudo em causa... Pode-se dizer que é uma manobra de Ottessa Moshfegh para garantir um murro emocional, mas repare-se que ela poderia ter gerado todo um turbilhão com o fechar desse dia, no entanto opta por uma descrição sintética, sem grandes divagações, e mais, ao longo das páginas anteriores vai pré-anunciando o evento, retirando-lhe a carga que poderia ter preservado para jogar sobre nós nesse final. Claro que se tivesse usado o evento dessa forma não teria como escapar à acusação acima. Por isso, estamos na presença de alguém muito consciente do que é a literatura, com um domínio magistral não apenas da técnica de escrita, como da compreensão dos leitores e da receção dos textos. Quanto às interpretações, cada um fará as suas.

Nota quantitativa no GoodReads.

janeiro 17, 2020

Bonjour Tristesse (1954)

É um pequeno livro, com uma história simples e banal, mas capaz de criar o seu mundo e transportar-nos para ele. Honestamente, tive de ir procurar as razões que fizeram deste livro um sucesso e um clássico, pois detendo-me sobre o texto apenas não as encontrei. Mas do que acabei lendo sobre o livro, também pouco ou nada me convenceu ou satisfez.
O livro conta a história de Cecile, 17 anos, que viaja de Paris para Saint-Tropez com o seu pai, para aí passar as férias de verão. O seu pai leva atrelado uma jovem namorada que a meio das férias resolve trocar por outra. Entretanto Cecile encontra um namorado de verão. Mas ao longo de praticamente todo o livro, pouco ou nada acontece. Existe um twist final, esse sim responsável pelo título, mas que não surpreende.

O livro terá surtido forte efeito por dar conta de uma jovem, aparentemente, libertina(!). A rapariga tem relações com um rapaz quase 10 anos mais velho, em plenas férias de verão. Mas o seu pai não parece muito preocupado. Aliás, se fossemos ficar chocados com ela, o que dizer do pai, que troca de namorada semana a semana, e em plenas férias manda vir uma outra mulher passar as férias consigo e com a filha, enquanto descarta a que inicialmente tinham vindo com eles?

Não sei. A mim a história nada diz, hoje ou em 1954. A literatura está cheia de histórias destas, não apenas depois, mas mesmo séculos antes. Por outro lado, não faltariam historietas de cordel com bastante mais picante nessa altura. Falar do livro como motor da revolução sexual parece-me um exagero. Por isso aquilo que existe aqui que me surpreende é apenas a idade de quem escreve. 17 anos e uma obra cosida desta forma, é obra.

O francês é acessível, nada de muito rebuscado no vocabulário, mas o encadeamento de ideias, a estrutura da narrativa e a construção de mundo ficcional, está tudo muito bem conseguido. Contudo, parece que era mesmo só técnica, já que Françoise Sagan escreveu imensos livros depois desta primeira obra, e nunca mais conseguiu repetir o feito. Pensando bem, "Bonjour Tristesse" mais do que uma história de ficção é um relato autobiográfico, um desfiar em modo novelesco de um conjunto de peripécias, que acabou encontrando o seu público, nada mais. E por isso é estranho, ou mesmo tonto, ver o Le Monde colocar um livro destes na lista das 100 obras mais importantes do século XX, mesmo que esta tenha tido, ou se pense que teve, grande impacto na sociedade francesa e europeia.

dezembro 22, 2019

Explicação dos Pássaros (1981)

Confesso que comecei com grande entusiasmo, sentindo uma intensa admiração por cada linha nos seus saltos temporais e nas mudanças inusitadas de narradores, surpreendendo-me com a originalidade de cada metáfora e a acutilância das descrições intensamente poéticas, mas a meio do livro comecei a sentir um certo cansaço, no final já só o queria fechar. Explicações?
Rui S. é assistente universitário, num Portugal recentemente saído de uma ditadura e da Revolução. Filho de famílias da elite, deseja abraçar o outro lado, o do povo. O que consegue é ser recusado por todos. Do pai e irmãs, à primeira mulher, da elite, e filhos, assim como a segunda mulher, revolucionária comunista, e seus camaradas. Rui sente-se um espécime, um pássaro a quem abrem a barriga para estudar, catalogar e depois arrecadar numa qualquer gaveta, como fazia o seu pai com a sua estranha coleção. Arrecadado e incapaz de escapar às imposições sociais, ou ausente de vontade e motivação para o fazer, entrega-se aos “pássaros”.
O enredo é profundamente dramático, e em vários momentos acompanhamos o protagonista sentindo a tragédia com ele, mas na maior parte do tempo somos brindados com sarcasmo e sátira moldados na forma de ataques, do autor, contra as elites assim como contra o suposto proletariado, o que retira força à leitura e interpretação do personagem, desgastando-nos. A nossa expectativa assenta no encontrar de uma explicação final, completa, capaz de dar conta de todo o sofrimento apresentada, mas ALA recusa-se a tal.

ALA dá conta do modo como as vidas humanas são feitas de relações e interações que não têm de ter explicações nem sustentações muito claras. Tudo é assim, mas tudo podia ser de outro modo, e tudo o que parece pode simplesmente não o ser. Cada instante é fruto de muitos instantes anteriores, mas mais importante, é fruto da interpretação e catalogação que lhe atribuímos que depende do contexto de cada um desses instantes. As descrições e amostras de cada personagem e eventos lançados no texto por ALA seguem o modo como pensamos e sintetizamos a realidade, os outros e tudo aquilo que representam para nós. Tendemos a construir o mundo como histórias — lógicas com princípio, meio e fim — mas aos poucos vamos percebendo que essas histórias, explicações do mundo, não passam de ilusões construídas por nós para nos podermos apresentar e facilitar aos outros a nossa catalogação.

O final do livro, com o modo Circo, é no fundo a grande explicação de ALA, que demonstra como somos atores e espetadores de primeira fila das nossas próprias vidas. Ainda que o cenário seja profundamente satírico, não fosse um circo. Contudo penso que esta foi a opção de ALA para não cair no melodrama, para não lançar mão da tragédia assente nas eternas questões existenciais. Ou então, porque simplesmente faz parte do modo como ALA prefere olhar o mundo, não aceitando a excessiva seriedade com que tendemos a filosofar sobre aquilo que somos.

dezembro 18, 2019

"Época de Migração para Norte" (1966)

O maior impacto da leitura desta obra é a lucidez do autor, a luz imaculada que joga sobre diferentes eventos e conceitos para criar acesso a um mundo destilado, perfeitamente transparente. Temos o choque entre civilizações — letrada e iletrada — entre continentes — África e Europa —, mas aquilo que conduz a escrita de Tayeb Salih não são as diferenças, antes as semelhanças entre humanos, pertençam estes ao lugar que pertencerem, tenham eles evoluído e civilizado-se, nunca deixam de ser humanos, presos a padrões culturais e costumes.
"Sim, há camponeses, assim como há de tudo o resto», respondi eu. «Há, entre eles, operários, médicos, camponeses, professores — precisamente como nós.» E preferi não mencionar o que me ocorreu, nesse momento: precisamente como nós, nascem e morrem, transportando consigo sonhos, do berço à sepultura. E, destes, alguns são os que se realizam, gorando-se outros. Temem o desconhecido, buscam o amor e procuram a serenidade junto da mulher e dos filhos. Alguns são fortes, outros são miseráveis; a vida concedeu a alguns mais do que mereciam, consignando outros à privação. No entanto, as diferenças dissiparam-se e a maioria dos fracos deixou de sê-lo." (p.15)
É um livro apenas possível graças ao percurso de vida de Salih que teve oportunidade de sair do Sudão para estudar e trabalhar em Inglaterra e França, numa época de pós-colonialismo que o obrigaria a refletir sobre os contrastes entre o seu país de origem e os países colonizadores. Contudo Salih não se deixa seduzir pelos contrastes, o que seria o mais evidente e expectável, no fundo simples, acaba por se deter no aprofundamento das proximidades e semelhanças, sem esquecer as distâncias, o que acaba a garantir a enorme riqueza do seu texto. Ou seja, não se trata de um mero texto que aponta o dedo aos europeus ou aos africanos, antes coloca em choque de um lado e do outro as incoerências e fá-lo de um modo tão direto e límpido, como se nos permitisse ver a realidade pelos olhos de alguém completamente externo e sem partido. Como se Salih nos conduzisse através da representação do humano, nas suas diferentes fações, mostrando o bom e o mau, não como bom e mau, mas como essência do que é ser-se humano em cada lugar.

A escrita é belíssima.

novembro 30, 2019

O ridículo da casta britânica

O caso raro da série de televisão que além de conseguir ser melhor que o filme é também melhor do que o livro. “Brideshead Revisited” (1945) tornou-se uma referência clássica e popular da literatura com a série homónima criada pela BBC em 1981, a mesma que nos deu a conhecer Jeremy Irons. A série recorre ao cenário apresentado no livro, mas injeta nele a vida e o mundo que faltava. Os cenários bucólicos e a música de sentimento intensamente nostálgico de Geoffrey Burgon criam um mundo idílico, que de certa forma Waugh parece querer apresentar no livro, mas sem sucesso. Pode-se dizer que o texto no inglês original é bastante mais poético do que a tradução portuguesa, e que a forma serviria esse ideal, mas se senti que Italo Svevo não era Proust, Waugh está ainda mais distante desse virtuosismo para nos poder oferecer esse mundo meramente pela forma.
Quando entramos na história, no livro, os personagens surgem todos como patéticos, sem sequer cómicos chegarem a ser. São de um vazio ostracizante, desde o narrador supostamente distinto da família aristocrática que tanto admira, a todos os personagens dessa família que vivem no mundo das nuvens, sem qualquer sentido de responsabilidade, tendo como único orientador social a religião, ainda que de forma completamente ligeira. A série acaba por resolver muito melhor a questão porque a dupla protagonista, Charles e Sebastian, sendo representada por Jeremy Irons e Anthony Andrews, ganha uma densidade bastante impressiva. Irons segue a estrutura do personagem criado por Waugh mas impregna-o de forma, linguagem corporal, que nos permite aproximar do mesmo, compreende-lo, aceitá-lo e até com ele empatizar, enquanto no livro os personagens nunca vão além de caricaturas, de vazios pomposos, absolutos de arrogância.
Jeremy Irons e Anthony Andrews como Charles e Sebastian na série homónima da BBC, 1981

Quase todas as resenhas falam da questão religiosa como cerne evocativo da profundidade do romance, talvez porque a religião seja a única parte em que se sente o escritor a ser verdadeiramente jocoso. Ainda assim, é um tema que surge menos de meia-dúzia de vezes, e sempre com pouca ou nenhuma profundidade. Acredito que existe quem queira ali ver muito mais, mas parece-me estarmos no reino da mera ultra-interpretação. Aliás, quando terminei o livro as únicas palavras que me vieram à cabeça foi: superficialidade da profundidade.

Do mesmo modo o tema da homossexualidade me parece mais uma enfatização interpretativa de algo que não está no texto. Aqueles personagens vivem numa realidade distante dos problemas dos comuns mortais, olhar para as suas superficialidades e veleidades como traços de homossexualidade serve apenas para menosprezar essa homossexualidade. Quantos de nós tivemos amigos homens a sério na faculdade, com quem partilharíamos este mundo e o outro, sem que isso apresentasse o menor traço de sexualidade. Tal como a religião, vejo aqui identificações forçadas por parte dos recetores. Isto acontece, simplesmente porque os personagens, as suas intenções e fundações, são apresentados de forma minimal, deixando muito espaço à imaginação do leitor. Por outro lado, a série sim enfatiza essa proximidade, com trejeitos e abordagens corporais que obrigam a essas leituras.

Na imagem a "casa" em que vivia a família protagonista, tal como representada na série, com a música encantatória de Geoffrey Burgon

Claro que fico a questionar-me o quanto tudo neste livro nada me diz por retratar uma realidade tão distante e tão pouco apreciada. Os protagonistas frequentam Oxford, não porque querem aprender, mas apenas porque frequentar um colégio como Eton faz parte do seu status, é o lugar para onde a elite inglesa vai. Isso diga-se não mudou desde que o livro foi escrito, o atual primeiro-ministro de Inglaterra é um ex-aluno do Eton, como foram 20 anteriores primeiro-ministros e isso diz muito do tipo de mentalidade e mundo que estamos aqui a falar. O Der Spiegel, a propósito de Boris Johnson, fez todo um artigo definindo o tipo de pessoas — "pseudo-adultos" — que saem desta escola, que produz "um sistema no qual a elite permanece entre si e deixa de ver os problemas dos outros", criando pessoas que "valorizam mais o poder do que a compaixão" diz o The Guardian.