agosto 28, 2017

Desgraça (1999)

Conhecia o filme homónimo mas não conhecia a escrita de Coetzee, por isso foi uma surpresa total esta leitura, tinha-a evitado durante anos por julgar que nada de novo aqui me aguardava. Sendo a história similar, ganha-se com a leitura porque a escrita é exemplar, e porque naturalmente o cinema não consegue dar a ver o que sente interiormente cada personagem na forma detalhada como Coetzee o faz. Embora tenha de dizer também que ganhei porque se passaram quase 10 anos desde a estreia do filme, tendo o meu mundo mudado e contribuído para enriquecer a minha compreensão da história criada por Coetzee.


Começando pela escrita, esta destaca-se por uma aparente simplicidade que no evoluir da leitura vamos percebendo ser fundamental para a narração neutral procurada pelo autor. Coetzee escreve de modo muito direto o que pensa e faz cada personagem, assumindo uma postura de brevidade, evitando adjetivação, evitando juízos. Ou seja, temos uma forma minimal e seca que funde escrita e narração, para nunca se abster de dizer o que está acontecer, abstendo-se apenas de dizer porque está a acontecer. Deste modo, e apesar de poder criar algum sentimento de perda de orientação no leitor, em essência o que Coetzee busca é que seja o leitor a criar os seus juízos. Assim, em termos estruturais, a obra é imensamente conseguida, unindo forma e conteúdo num discurso imensamente coerente.


Podemos dizer que Coetzee surge aqui nas antípodas de Victor Hugo (ler análise recente realizada a "Os Miseráveis"), o que é reconhecido pelo próprio Coetzee ao citar Hugo quase no final do livro. Apesar de ambos os autores estarem fortemente empenhados na luta social: Hugo usa e abusa do sentimento para manipular os leitores e os convencer da existência de um único caminho verdadeiro e correto; já Coetzee põe a nu as problemáticas por meio de conflitos que se opõem, mas não dá respostas sobre como as resolver, obriga os leitores a procurar as suas próprias respostas. Ou seja, Hugo é mais político, está mais preocupado em conduzir, enquanto Coetzee é filósofo, mais preocupado em fazer refletir. Se Hugo foi bem sucedido ganhando relevância política, Coetzee granjeou enorme resposta crítica e prémios literários.

Mas de que fala afinal “Desgraça”? Tenho de dizer que não é fácil sintetizar tudo o que é dito, aliás esse é um dos paradoxos mais interessantes da arte minimalista, quanto menos diz mais quer dizer. Não esquecendo que este é um livro com parcas 200 páginas, Coetzee ataca várias fantasmas sociais, desde logo o Pós-Apartheid, não fosse esta uma obra do fim do século XX escrita na África do Sul, mas não se fica por aí: fala de forma perfurante sobre os direitos da mulher; põe a nu os problemas da comunicação humana; dos efeitos do envelhecimento e seu existencialismo; dos direitos dos animais; do desejo sexual visto pela natureza versus cultura; e vários outros temas que vão surgindo colados a estes.

Não é imediato o acesso ao tema dos problemas da comunicação humana, mesmo quando Coetzee procura tornar isso implícito ao fazer de Lurie um professor universitário de Comunicação. Mas a verdade é que a essência do Apartheid nasceu da incapacidade de comunicar. Pode parecer ao lado, já que o racismo surge na frente e a comunicação é comumente vista como mero ato de transmissão de informação. Mas se olharmos àquilo que define a comunicação humana, e compreendermos que ela responde pelo ato de colocar em comum, ou seja, de conduzir os sujeitos num ato de comunicação a comungar uma mesma ideia, compreendemos melhor porque surjem os diferentes "apartheids" no mundo.

Nesta obra, Coetzee torna este ponto central, não apenas pelas desgraças que acontecem ao professor diretamente mas mais ainda indiretamente, por via da sua filha, Lucy, e da sua relação com o vizinho, Petrus. No diálogo que se vai construindo entre Lurie e Petrus, vai-se percebendo como ambos vivem em mundos de costumes muito mais distantes do que a simples cor da pele, e como só com enorme esforço e cedência se pode aprender a viver num mesmo mundo. De certa forma, o trauma da filha coloca este mesmo ponto em evidência, mas pelo lado dos direitos das mulheres. Porque se no caso de Petrus o que tolda a comunicação é a cor da pele, no caso de Lucy é o facto de ser mulher.

O mais impactante de tudo acaba sendo o quão difícil é para nós leitores ocidentais aceitar tudo isto. O facto de Coetzee lançar os dados e não criar guias de orientação, deixa-nos perdidos e sem respostas. Porque é que Petrus é assim? E Lucy, como pode ela continuar ali, aceitando? Terão algum problema, estes dois? Mas se em vez de procurarmos o problema neles o procurarmos em nós, como acaba fazendo Lurie, quando conseguimos chegar a comungar, então acabamos a compreender.

Não posso dizer muito mais, correndo o risco de estragar completamente o efeito surpresa da história para quem ainda não leu. Mas é disto que se faz a arte, de obras que nos obrigam a ir além da redoma do que somos feitos, que não se limitam a confirmar o mundo como desejamos e acreditamos ser. Que sendo difíceis e nos colocando em situações desconfortáveis, o fazem com um claro objetivo, o de nos enriquecer enquanto seres humanos.

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