"De Olhos Pousados em Deus" é uma obra de 1937, e a principal ficção de Zora Neale Hurston, uma autora hoje reconhecida pelo seu legado humanista. Formou-se pelas Universidades de Howard, Barnard e Columbia, onde realizou estudos graduados e pós-graduados em Antropologia, ao lado de Margaret Mead. Hurston tornou-se numa força cultural pelo modo como usava a etnografia para compreender a comunidade afro-americana e depois trasladava esse conhecimento para a sua produção criativa e ativismo cultural, transformando-se no rosto de vários movimentos, nomeadamente o Harlem Renaissance.
"De Olhos Pousados em Deus" apresenta claras evidências da formação de Hurston, desde logo pelo modo cativante como usa a linguagem efetiva das comunidades negras da Flórida. O livro é curto, mas o suficiente para em poucas cenas se traçarem as vivências das comunidades, famílias e principalmente das mulheres. O foco assenta assim não apenas na análise da cor de pele, mas essencialmente do papel da mulher. Neste sentido, Hurston cria um grande livro do feminismo, ao ilustrar a vida de uma regular mulher negra que decide atravessar a vida em busca do prazer interior. Hurston expõe as forças pesadas da tradição e crença que oprimem o ser-humano, e dá conta da energia necessária para ultrapassar essas forças.
O mais impressionante deste registo é que dando conta de uma personagem que luta contra o status quo, não a apresenta como típica heroína, como personagem sobredotada que vê o que os outros não vêem. A protagonista é como toda e qualquer mulher, que simplesmente rejeita dar-se por vencida, rejeita cruzar os braços, disponibilizando-se sempre para continuar a seguir novos caminhos, por mais cautelas e medos que lhe sejam apresentados. Não é o típico espírito inquebrantável e desafiador, é antes o espírito humano que nos imbui a todos, mas que a maior parte de nós acaba por optar por auto-reprimir. É inevitável ler na protagonista traços e ideais que nortearam a vida da própria Hurston.
Em termos formais, o texto apresenta alguns problema, nomeadamente porque os diálogos estão imensamente bem conseguidos, nota máxima para o coloquialismo a roçar o dialecto. Contudo, a componente do narrador, com a tentativa de produzir algum lirismo, acaba por ser um contraponto muito fraco, capaz de cortar a nossa imersão por breves momentos, não admirando algumas críticas mais fortes na época.
Documentário recomendado: "Zora Neale Hurston: Claiming a Space" (2023), PBS
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