abril 09, 2022

Direitos da Revolução Francesa

 A Revolução Francesa (RF) é um dos eventos mais marcantes da História da Europa, em grande parte responsável pelo desenho societal que ainda hoje vigora no continente. Por isso, e porque tenho vindo a ler cada vez mais ficção histórica, foi com alguma pena que percebi que os livros passados na RF não são tantos como se esperaria. Ainda assim, tendo encontrado uma obra escrita pela notável Hilary Mantel — "A Place of Greater Safety" (1992) — fez-me acreditar que o assunto estava resolvido. Mas não estava. Pouco depois de o começar, sentindo a falta de contexto, acabei por ir atrás de suporte, acabando a ler simultaneamente "A Revolução Francesa 1789-1799" (1992) de Michel Vovelle, "Citizens: A Chronicle of the French Revolution" (1989) de Simon Schama, e ainda o mais recente, "A New World Begins: The History of the French Revolution" (2019) de Jeremy D. Popkin. 

Confesso que foi excessivo, no final o tema da RF acabou por me saturar, talvez também porque tinha expectativas algo desmedidas sobre a imensidão do que teria acontecido, tendo no geral revelado-se menos, posso dizer, espetacular, antes bastante mais orgânica, ou natural. Se a RF depende do momento em que acontece, esse momento parece quase inevitavelmente precipitado por tudo o que a rodeia, nomeadamente o avanço da educação, ciência e fatores geopolíticos.

Em essência, a RF funciona como exemplar na demonstração de hipóteses teóricas sobre transformações sociais que vinham sendo discutidas (ex. Jean-Jaques Rousseau) que quando levadas à experimentação prática tiveram de se reformar a partir do embate com a realidade, num processo de que duraria décadas, se não mais de um século tendo em conta as múltiplas visões. A RF mudaria radicalmente a sociedade, até ali assente no privilégio de nascimento, para uma sociedade em que todos nascem iguais, independentemente da família em que nascem, e por isso todos podem sonhar, estando apenas à mercê do mérito que nivela o acesso às mesmas oportunidades. Naturalmente, tudo isto revelou também os seus problemas (ver "A Tirania do Mérito" de Sandel ou "O Capital no Século XXI" de Thomas Piketty), mas face ao mundo que tínhamos não foi um avanço, foi antes um salto gigante que permitiu a sociedade quase recomeçar do zero.  

Mantel aborda então a RF por via da seleção de três personagens-chave — Maximilien Robespierre, Camille Desmoulins e Georges-Jacques Danton — e a partir das suas histórias individuais e interações, e dado o seu posicionamento no coração da RF, dá-nos a ver como surgiu, eclodiu e acabou terminando o primeiro grande momento da RF. Gostaria de dizer que se fica a conhecer muito melhor as três pessoas, mas muito menos do que seria de esperar. Mantel usa uma abordagem próxima daquela que viria a implementar 20 anos mais tarde em "Wolf Hall", mas muito menos conseguida. A narrativa está pejada de saltos que nos fazem ao longo de todo o livro perder o norte, quase que assumindo que conhecemos no mais ínfimo detalhe o histórico completo dos eventos da RF. Por isso mesmo senti necessidade de ler as outras obras, pois não raras vezes lia página atrás de página sem perceber o que estava a acontecer. Não ajudou a falta de uma tradução atual para português de Portugal. Ainda que a tradução em português do Brasil soe bastante bem, e a versão original em inglês dê conta da riqueza discursiva, a verdade é que mesmo lendo ambas as versões, para poder comparar frases e secções, nunca deixei de me sentir perdido, sem perceber o quanto se devia à tradução ou à minha falta de conhecimento do inglês. A falha do método de Mantel acontece aqui também diferente, do que acontece na saga de Cromwell, porque esta raramente aproveita os arcos dramáticos que vai expondo, como se preferisse manter tudo num contínuo anti-climax. No final, ficaram os traços gerais das vivências nessa época, e do modo como se comportaram estes três nomes ao longo desses eventos, mas pouco mais.

Assim, para me contextualizar comecei logo a ler os livros de Vovelle e Schama, ficando com boa impressão de ambos, mas insuficiente para me agarrarem até ao fim. Vovelle assina um livro tipicamente descritivo, sem força narrativa, agarrado à listagem de factos, que para quem tiver paciência pode servir para uma rápida compreensão da cronologia dos eventos. Schama, por outro lado, vai além da descrição, expõe com grande qualidade, o problema aqui é o excesso de detalhe, nomeadamente o quanto ele convoca para sustentar cada perspetiva sobre a RF. De todas as obras, é sem dúvida a mais impressionante pela erudição e vastidão de conhecimentos. Se tiverem de trabalhar o tema da RF, sem dúvida que este é o livro a usar. Mas se o quiserem ler apenas para ganhar um conhecimento geral, não, porque se torna muito denso. Schama faz um trabalho de levantamento histórico circundanta às datas e eventos com um alcance imenso, contextualizando os mais infímos detalhes de uma enorme paisagem, mas não raras vezes dava por mim a questionar o quanto do que Schama apresentava poderia não passar de conjetura, que sendo interessante pelo transporte para a época, poderia ter baixa relação com o surgimento da RF.

Chegando à obra de Jeremy D. Popkin, tenho de dizer que se revelou a mais equilibrada, não sei se pelo facto de ser a única escrita já em pleno século XXI. Popkin apresenta um trabalho imensamente coeso, indo muito além da descrição e da exposição, narrando o sucedido, contando efetivamente a história dos factos vividos e sentidos. Para o efeito, abre o livro de forma belíssima ao comparar a vida quotidiana do jovem Louis XVI com a de um simples jovem vidraceiro. Este efeito é conseguido graças a um recurso escrito apenas descoberto em 1982, o diário “Journal de Ma Vie” de Jacques-Louis Ménétra. Neste, Ménétra conta a sua história situada em 1764, momento em chega a Paris depois de ter passeado pela província, e resolve escrever sobre tudo aquilo que viu e conheceu. Assim, enquanto Ménétra escreve sobre a vida das pessoas que foi conhecendo, os seus hábitos, comportamentos, pensamentos, costumes, Louis XVI dono também de um diário, escreve de forma obsessiva, apenas e só, o número exato de peças de caça que vai abatendo em cada caçada!

A Bastilha original, em 1420

Popkin faz um excelente trabalho no modo como dá conta dos grandes problemas que conduziram à RF, desde a influência da Revolução Americana, tanto no imaginário francês (ver Estátua da Liberdade ou Marquis de Lafayette) como no modo como a França ao associar-se a essa luta, que tinha do outro lado a eterna rival Inglaterra, acabaria a delapidar os seus próprios cofres. Por outro lado, o modo como apresenta os três estados — Clero, Nobres e Burguesia — permite-nos compreender como a transformação social nasce da ciência e da educação que permitiriam o surgimento de conhecimento social e autoconhecimento nos corpos que formavam o terceiro estado (burguesia), tornando este dotado de competências críticas para exigir o lugar dos outros dois estados. Claro que se tudo acaba precipitando-se é porque faltam condições económicas. As crises económicas são férteis na criação do sentimento de que não há nada a perder, e quando esse se instala dificilmente se pode parar. Com a tomada da Bastilha inicia-se então uma revolução que vai atravessar uma série de convulsões até ao século XIX com o aparecimento de Napoleão e as suas tentativas de controlar a força motriz dessa revolução. 

Tela em que se pode ler os 17 artigos da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, pintada por Jean-Jacques-François Le Barbier em 1789

Tudo somado, a RF, ou o seu início, serve-nos ainda hoje, passados mais de 200 anos, como marco da transformação societal e afirmação dos valores que continuam a nortear as sociedades ocidentais, inscritos na célebre Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, constituída por 17 artigos que deixo aqui abaixo:


Preâmbulo

Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, para que essa declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente os seus direitos e deveres; para que os actos do poder legislativo e do poder executivo, podendo ser, a todo o momento, comparados como objectivo de qualquer instituição política, sejam por isso mais respeitados; para que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, estejam sempre voltadas para a preservação da Constituição e para a felicidade  geral.

Por conseguinte, a Assembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob a égide do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão: 

 

Art.1.º - Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ter como fundamento a utilidade comum.

Art. 2.º - A finalidade de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.

Art. 3.º - O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.

Art. 4.º - A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei.

Art. 5.º - A lei não proíbe senão as acções nocivas à sociedade. Tudo o que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.

Art. 6.º - A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais aos seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.

Art. 7.º - Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário torna-se culpado de resistência.

Art. 8.º - A lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada.

Art. 9.º - Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, caso seja considerado indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.

Art. 10.º - Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.

Art. 11.º - A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos dessa liberdade nos termos previstos na lei.

Art. 12.º - A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; essa força é portanto instituída para benefício de todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada.

Art. 13.º - Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas possibilidades.

Art. 14.º - Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si mesmos ou pelos seus representantes, a necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a colecta, a cobrança e a duração.

Art. 15.º - A sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente público pela sua administração.

Art. 16.º - A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.

Art. 17.º - Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de uma justa e prévia indemnização.


5 comentários:

  1. Que post tão bom ;) a RF é um evento tão extraordinário, em boa parte pelos seus mentores, uma vez que já no tempo de Cromwell se desafia a monarquia decapitando-se o Rei e a própria Revolução Americana foi (ironicamente) financiada pela monarquia francesa. Benjamin Franklin era presente assídua na corte francesa. Estou a ler o do Schama. Não estou ainda muito presa... esperava que fosse mais cativante como aquele sobre "os olhos de Remenrandt", acho que esperava encontrar aqui "Robespierre's eyes" :D

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    1. Descobri sobre Benjamin Franklin e a RF no livro do Schama, que me surpreendeu por nunca ter ouvido falar da relação. O Schama é muito bom na apresentação de informação nova ou menos conhecida, mas é um pouco como digo, a determinada altura começamos a questionar se as narrativas que ele vai criando têm todas plena sustentação :)

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    2. Sobre a decapitação do Rei, foi uma das minhas deceções porque todos parecem passar um pouco ao lado do evento, esvaziando-o, talvez porque quando acontece Louis XVI já tem muito pouco poder. Mas esperava, pelo menos na ficção, alguma atenção mais ao momento, tal como da Marie Antoinette. Sinto que há uma tentativa de fugir ao assunto, também talvez por representarem a tal época do terror que se procura de algum modo evitar.

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  2. Sorry publiquei duas vezes o mesmo comentário :)

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