“A Casa de Mr Biswas” (1961) parece, à primeira vista, uma regular saga familiar que extrapoladas as devidas distâncias culturais podemos aproximar do quadro criado por Mann com “Buddenbrooks” (1901), acrescendo o facto de ambas as obras se inspirarem em dados autobiográficos. A escrita de Naipaul difere bastante de Mann, menos rebuscada e bela, mas mais eficiente. Dito assim pode parecer que se ganhará com esta leitura apenas o acesso a um historial de costumes situado numa geografia distinta, Trindade e Tobago, contudo existe aqui algo mais. A longa tradição familiar, sustentáculo do romance de Mann, sofre aqui um enorme revés pelo enquadramento histórico da emigração que suporta as famílias do romance de Naipaul e dá conta do seu desenraizamento.
A capital de Trindade e Tobago, Port of Spain, nos anos 1940
Trindade e Tobago é um país formado por duas pequenas ilhas — Trindade, a maior, e Tobago — ao largo da costa da Venezuela. Com pouco mais de um milhão de habitantes, mas detentora de petróleo, apresenta hoje um nível de vida, em termos de PIB per capita, três vezes superior à Venezuela, sendo mesmo ligeiramente superior a Portugal. A ilha foi descoberta por Colombo no século XVI tendo estado sob controlo Espanhol até ao século XVIII quando passou para as mãos de Inglaterra. Mais importante para a compreensão do cenário da obra de Naipaul é o facto de em 1831 ter sido abolida a escravatura na ilha, libertando os escravos provenientes de África que acabariam por abandonar a agricultura. Para dar resposta ao problema, os ingleses lançaram um sistema de incentivo à emigração de habitantes da Índia para Trindade que duraria até 1917, consistindo na introdução de cerca de 150 mil indianos na ilha. VS Naipaul era descente dessa corrente migratória, que representa hoje cerca de 50% do total do país. Este enquadramento não surge no livro, mas é requerido para o contextualizar.
Seepersad Naipaul (1906–1953), com o seu Ford Perfect, pai de VS Naipaul e que serviu de base para criar Mr. Biswas.
Naipaul abre o romance de forma a criar uma elipse narrativa, dando conta do facto de Mr. Biswas, personagem principal, estar com 46 anos e a 10 semanas do dia da sua morte. Viajamos depois até ao dia do seu nascimento, para ao longo das mais de 500 páginas o acompanhar a si, à sua família, a da esposa e depois os seus filhos. A saga inicia-se com um tom humorístico forte, inclinado à ironia e sarcasmo, mas vai evoluindo, como que amadurecendo, para se tornar cada vez mais melancólica. Tal como o próprio título indica o foco é a casa, mas essa só aparecerá no final, até lá Mr. Biswas terá de penar, chegando a viver com toda a sua família — mulher e 4 filhos — enfiados num único quarto.
Mas a casa serve mais do que isso, ela é a alegoria da emancipação, da libertação final. Ao longo de todo o livro vemos Mr. Biswas progredir mas sempre debaixo da alçada de alguém, nomeadamente a partir do momento em que casa e entra no seio de uma família alargada, com algumas posses e que preserva tradições do país de origem, a Índia. Mr. Biswas vive dependente, buscando as mais diversas formas de fazer frente à opressão de que é alvo pela família da mulher. Tudo parece resumir-se sempre às casas onde vai vivendo, sempre sob os comandos da família da esposa, nas quais se torna difícil compreender quantas pessoas lá vivem e como cabem lá. O excesso de pessoas confere dinâmica, mas confere também um sentido de caos. As tradições pairam, mas apenas isso, o caos é dominante e tudo é volátil, faltam âncoras, tudo é demais e esgota quem ali vive. A possibilidade de viver em casa própria, com a família, é miragem libertadora mas vão ser precisas várias tentativas goradas para lá chegar. Aliás, podemos ver estas tentativas de libertação metáfora dos contratos que os ingleses faziam com as famílias da índia que os obrigavam a trabalhar durante anos em Trindade e Tobago para pagar as viagens e os alugueres dos espaços em que moravam quando chegavam.
A casa que serviu de base à Hanuman House onde vivia a família da esposa de Mr. Biswas com todas as suas irmãs.
A família Capildeo que serviu de base à família Tulsi, as 9 irmãs e os dois "deuses", da mulher de Mr. Biswas
Mas o que é mais interessante é o modo como Naipaul consegue levar-nos a sentir essa mesma libertação no final. Após centenas de páginas de andar para frente e para trás, de felicidade misturada com tristezas, de parecer impossível sair do mesmo lugar, e quando se sai apesar da casa não ser nenhuma cama de ouro, mas sendo deles, sendo daquela família que claramente a merece, é chegada a hora do fim de Mr Biswas. Batemos no início do livro e sentimos as páginas fecharem-se, como se nenhum outro final fosse possível. A casa e a libertação de Mr Biswas não representam apenas o crescimento, o deixar para trás, mas representam a criação de um verdadeiro porto seguro que provém de um sentimento telúrico que se liga intimamente com a responsabilidade de velar pela família. É por isso que Mr Biswas pode finalmente partir, é esse reconhecimento que produz em nós a sensação de libertação pelo dever cumprido, de luta encerrada.