Consegui finalmente ver The Boy in the Striped Pyjamas (2008), e ficar estarrecido pela história. Raramente aqui trago filmes pela história apenas, mas este é demasiado bom nesse campo para não o fazer. Tenho de começar por confessar que os filmes sobre Nazis e 2ª Grande Guerra já me dizem muito pouco, já tudo foi tão explorado... Porque é diferente The Boy in the Striped Pyjamas?
Essencialmente porque nos traz a guerra vista da perspectiva de uma criança totalmente inocente. Já tínhamos visto isso no belíssimo Life is Beautiful (1997), a diferença é que aqui a perspectiva não é dada por alguém dentro de um campo, mas antes por um miúdo de 8 anos filho de um importante comandante de um campo de concentração, e que está a tentar compreender o que se está a passar à sua volta. Por sua vez este tenta digerir a lógica do regime imposto pela ideologia vigente, enquanto a confronta com a amizade que estabeleceu com outra criança da mesma idade e que encontrou numa clareira de um campo de concentração.
Existem várias nuances de excelência na história, uma das mais importantes é exatamente fazer-nos perceber como foi possível um regime ideológico daquela natureza implantar-se. Como reagiram as pessoas, como foram treinadas as crianças. Ver que as pessoas se questionaram, mas que foram incapazes de fazer frente ao regime. Perceber que um regime destes pode voltar a acontecer, não haja qualquer dúvida que pode, porque aquilo que temos aqui, é um contorcionismo dos ideais humanos que de tanto se impor, converte as pessoas, e as leva a cometer atrocidades que estas seriam totalmente incapazes de realizar se tivessem verdadeira liberdade para pensar por si próprias. O que esta história mostra a nu, é que um sistema de valores distorcido pode tudo corroer, e não precisamos de Nazis, o sistema atual de crescimento e lucro contínuo que destruiu milhões de vidas com a crise de 2008 continua aí a dar cartas, agora pelas mãos da chamada austeridade. A ideologia implanta-se e quem é comandado, segue friamente, acreditando piamente que está a fazer o melhor pela sua nação...
Enquanto objecto cinematográfico o filme é satisfatório, mas fica muito aquém de tudo o que poderia ter sido. Temos um história fabulosa, que sai um pouco mal tratada em quase todas as dimensões fílmicas, exceptuando o casting dos rapazes (Bruno é Asa Butterfield que fez de Hugo Cabret em Hugo (2011) de Scorsese) e o seu tratamento narrativo. A relação entre Bruno e Shmuel é um verdadeiro pequeno tesouro, porque por momentos somos levados por caminhos de aventura, tal como nos livros que Bruno gosta tanto de ler. E ao longo do filme a sua relação fortalece-se e quando no final decidem levar a sua amizade mais longe, a aventura eleva-se e o drama acontece com uma força trágica muito forte.
Isto tudo é ajudado pela matriz narrativa, que nos conduz à empatização com Bruno, que nos consegue levar a ver e a sentir o mundo a partir dos seus inocentes olhos, mas a uma determinada altura, somos levados para o lado dos pais, e começamos a empatizar com estes, a compreender que estas pessoas são bem mais complexas piscologicamente do que inicialmente nos quiseram fazer parecer. Este jogo de empatização ora com o Bruno ora com os seus pais, carrega-nos ao longo do filme, e constrói o caminho para a tragédia se poder desfilar com toda a sua força e significância.
Um filme pedagógico, trágico, e que dificilmente se esquece.
novembro 16, 2012
um esboço da interacção humana
About Elly (2009) deveria ser um filme obrigatório em qualquer disciplina de narrativa
cinematográfica, mas não só, também nas cadeiras de teoria de design de
videojogos, no ponto sobre a narrativa. O filme foi realizado por Asghar
Farhadi o realizador iraniano de A
Separation (2011) ganhador do Oscar para melhor filme estrangeiro deste ano, e do
Urso de Ouro em Berlim. Ainda não vi A Separation, mas a julgar por About Elly,
promete. [Atualização: análise de A Separation entretanto visto]
About Elly é todo ele emoção, mas emoção criada pela matriz narrativa, não pela história, pelo que diz. Não depende dos núcleos nem catalisadores para forçar o sentimento no espectador, o espectador é antes enredado num conjunto de laços e redes sociais, que geram um puzzle humano poderoso capaz de nos deixar à deriva em busca de razões explicativas sobre aquilo que somos enquanto pessoas, enquanto parte de uma família, de um grupo, de uma comunidade.
Tenho visto algumas comparações com algum cinema Europeu, mas em termos comparativos, poderia dizer que About Elly, seria como pedir a Michael Haneke para fazer a sua versão de L’Avventura (1960) de Antonioni. O nó principal assemelha-se a L’Avventura e o modo como é contextualizado em parte também (o lugar isolado), mas a força dos dilemas humanos apresentados é trabalhado num sentido muito mais profundo em termos plásticos. Antonioni é minimal, gosta de sugerir, mas Farhadi é muito mais directo forçando o questionamento, mas não só sobre as relações humanas, é como se ele entrasse adentro delas, e as mostrasse de dentro para fora, algo que Haneke tão bem sabe fazer.
About Elly é um poderoso drama psicológico, um verdadeiro esboço das relações humanas. Mesmo que os costumes do Irão, nomeadamente no campo da relação homem-mulher, nos possam parecer algo distantes, tudo o resto é-nos tão familiar, tão próximo, tão sensível que nos impede de sentir indiferença. O intrincado jogo de interações humanas, parece quase um laboratório de análise social, à espera de ser desmontado e sentido pelo espectador.
About Elly é todo ele emoção, mas emoção criada pela matriz narrativa, não pela história, pelo que diz. Não depende dos núcleos nem catalisadores para forçar o sentimento no espectador, o espectador é antes enredado num conjunto de laços e redes sociais, que geram um puzzle humano poderoso capaz de nos deixar à deriva em busca de razões explicativas sobre aquilo que somos enquanto pessoas, enquanto parte de uma família, de um grupo, de uma comunidade.
Tenho visto algumas comparações com algum cinema Europeu, mas em termos comparativos, poderia dizer que About Elly, seria como pedir a Michael Haneke para fazer a sua versão de L’Avventura (1960) de Antonioni. O nó principal assemelha-se a L’Avventura e o modo como é contextualizado em parte também (o lugar isolado), mas a força dos dilemas humanos apresentados é trabalhado num sentido muito mais profundo em termos plásticos. Antonioni é minimal, gosta de sugerir, mas Farhadi é muito mais directo forçando o questionamento, mas não só sobre as relações humanas, é como se ele entrasse adentro delas, e as mostrasse de dentro para fora, algo que Haneke tão bem sabe fazer.
About Elly é um poderoso drama psicológico, um verdadeiro esboço das relações humanas. Mesmo que os costumes do Irão, nomeadamente no campo da relação homem-mulher, nos possam parecer algo distantes, tudo o resto é-nos tão familiar, tão próximo, tão sensível que nos impede de sentir indiferença. O intrincado jogo de interações humanas, parece quase um laboratório de análise social, à espera de ser desmontado e sentido pelo espectador.
novembro 15, 2012
Sublime "Swimmer" [filme completo]
Swimmer (2012) de Lynne Ramsay faz parte de um conjunto de quatro curtas comissionadas pela BBC Films, Films 4 e Jogos Olímpicos para serem exibidos durante as actividades culturais dos jogo 2012 em Londres. Os restantes três filmes foram: A Running Jump by Mike Leigh; What If de Max Giwa e Dania Pasquini; e Odyssey de Asif Kapadia.
Vi apenas Swimmer, mas a julgar pelo que li e pelo trailer das quatro curtas, será o mais elaborado na forma, e por isso claramente o que mais me interessa aqui. Aliás, só o facto de ser um trabalho da Lynne Ramsay torna o filme de imediato obrigatório. Foi quem nos trouxe Ratcatcher (1999), Morvern Callar (2002) ou o mais recente We Need to Talk About Kevin (2011).
Como é típico no trabalho de Ramsay estamos perante uma obra minimalista, aqui mais ainda do que nas suas longas. O filme constrói-se a partir de um nadador que atravessa diferentes zonas geográficas a nado, enquanto a câmara o segue, vamos ouvindo ao fundo algumas vozes que dão pequenas pistas sobre o que está a ser a apresentado. Mas a grande magia de todo o filme assenta no brilhantismo da fotografia que é absolutamente arrebatadora, sendo que o design de som não lhe fica propriamente atrás. A curta é toda ela forma, arte e estética pouco diz linearmente, procura antes de mais fazer-nos sentir, colocar-nos num estado emocional preciso, tocar-nos e deixar-nos a reflectir sobre aquele mundo que acabámos de visitar.
Podemos dizer que a fotografia de Natasha Braier é de um enorme extremismo, porque leva o chiaroescuro a um patamar técnico que eu julgo nunca ter visto antes. Não estamos apenas perante o contraste entre o escuro e o claro, mas entre o verdadeiramente preto e um branco imensamente brilhante. Impressiona, os nossos olhos colam-se nos brilhos das gotas de água translúcidas que voam em redor da pele do corpo do nadador, e por momentos parecemos incapazes de dali retirar o olhar. Se gostaram, percam-se pelo sítio da directora de fotografia.
O filme passou em várias salas em Inglaterra e depois na BBC, contudo ainda não está disponível para adquirir em lugar algum. Consegui apenas ver uma cópia gravada da BBC. A Natasha Braier, a directora de fotografia, colocou entretanto um excerto de 5 minutos do filme no Vimeo, mas foi obrigada a reduzir o excerto para 2 minutos (o filme tem uma duração total de 16 minutos). Diz-nos que o filme deverá sair no início do próximo ano em DVD e diz ainda, para quem tiver ficado encantado como eu com a fotografia, que a revista American Cinematographer trará um artigo dedicado ao filme já em dezembro.
ACTUALIZAÇÃO 13.12.2012
Saiu o artigo na American Cinematographer escrito pela Jean Oppenheimer que conversou com Natasha Braier e nos dá mais detalhes sobre as câmaras utilizadas, filme, e locais. Deixo um excerto do artigo, que podem encontrar na edição de Dezembro da revista.
ACTUALIZAÇÃO 19.11.2018
O filme completo pode ser visto online, aqui abaixo.
Vi apenas Swimmer, mas a julgar pelo que li e pelo trailer das quatro curtas, será o mais elaborado na forma, e por isso claramente o que mais me interessa aqui. Aliás, só o facto de ser um trabalho da Lynne Ramsay torna o filme de imediato obrigatório. Foi quem nos trouxe Ratcatcher (1999), Morvern Callar (2002) ou o mais recente We Need to Talk About Kevin (2011).
Como é típico no trabalho de Ramsay estamos perante uma obra minimalista, aqui mais ainda do que nas suas longas. O filme constrói-se a partir de um nadador que atravessa diferentes zonas geográficas a nado, enquanto a câmara o segue, vamos ouvindo ao fundo algumas vozes que dão pequenas pistas sobre o que está a ser a apresentado. Mas a grande magia de todo o filme assenta no brilhantismo da fotografia que é absolutamente arrebatadora, sendo que o design de som não lhe fica propriamente atrás. A curta é toda ela forma, arte e estética pouco diz linearmente, procura antes de mais fazer-nos sentir, colocar-nos num estado emocional preciso, tocar-nos e deixar-nos a reflectir sobre aquele mundo que acabámos de visitar.
Podemos dizer que a fotografia de Natasha Braier é de um enorme extremismo, porque leva o chiaroescuro a um patamar técnico que eu julgo nunca ter visto antes. Não estamos apenas perante o contraste entre o escuro e o claro, mas entre o verdadeiramente preto e um branco imensamente brilhante. Impressiona, os nossos olhos colam-se nos brilhos das gotas de água translúcidas que voam em redor da pele do corpo do nadador, e por momentos parecemos incapazes de dali retirar o olhar. Se gostaram, percam-se pelo sítio da directora de fotografia.
O filme passou em várias salas em Inglaterra e depois na BBC, contudo ainda não está disponível para adquirir em lugar algum. Consegui apenas ver uma cópia gravada da BBC. A Natasha Braier, a directora de fotografia, colocou entretanto um excerto de 5 minutos do filme no Vimeo, mas foi obrigada a reduzir o excerto para 2 minutos (o filme tem uma duração total de 16 minutos). Diz-nos que o filme deverá sair no início do próximo ano em DVD e diz ainda, para quem tiver ficado encantado como eu com a fotografia, que a revista American Cinematographer trará um artigo dedicado ao filme já em dezembro.
Swimmer (2012) de Lynne Ramsay
ACTUALIZAÇÃO 13.12.2012
Saiu o artigo na American Cinematographer escrito pela Jean Oppenheimer que conversou com Natasha Braier e nos dá mais detalhes sobre as câmaras utilizadas, filme, e locais. Deixo um excerto do artigo, que podem encontrar na edição de Dezembro da revista.
ACTUALIZAÇÃO 19.11.2018
O filme completo pode ser visto online, aqui abaixo.
novembro 14, 2012
A Invenção de Morel
A Invenção de Morel (1940) é um livro com mais de 70 anos, mas que é hoje, num mundo cada vez mais hiper-realista (seguindo Baudrillard), mais
atual e relevante que nunca. A sua premissa nasceu muito provavelmente do
contexto vivido face à forte sedução que o cinema causava nas pessoas na
primeira metade do século passado. Hoje esta sedução reduziu-se, existem
muitas outras atracções, criámos ambientes de realidade virtual, desenhámos
videojogos 3d com interactividade e feedback constante, o cinema tornou-se em
apenas uma das muitas janelas que temos à disposição para olhar para lá da suposta realidade.
Adolfo Bioy Casares foi um escritor argentino que conheceu o sucesso com
esta novela de fantástico. Nesta edição podemos ler um prólogo de alguém que
não nos surpreende tendo em conta a temática do livro, Jorge Luis Borges, por
sinal também Argentino. Pelo que percebi entretanto Bioy e Borges ainda escreveram vários contos e guiões para filmes juntos. Borges não é comedido no seu prólogo e fecha o texto
afirmando simplesmente,
“Discuti com o seu autor os pormenores do enredo e reli-o; não me parece uma imprecisão ou uma hipérbole classificá-lo como perfeito.”
Concordo, mas é complicado explicar porquê. O livro é pequeno, cerca de 100 páginas, mas não é por isso que é difícil
falar dele, é que o conceito central da sua história é a chave de todo o conto.
Tentar discutir o livro, sem falar do núcleo da narrativa não faz o menor sentido.
Podemos contudo discutir que o seio da história trabalha sob o desígnio da
realidade e do valor da imagem enquanto representação. Além disso o narrador
fala através de um diário, como se estivesse a falar diretamente connosco, interrogando-se por vezes no mesmo sentido em que nos interroga a nós leitores. Um
exemplo fantástico desta construção narrativa, pode ser visto neste trecho,
“Contarei fielmente os factos que presenciei entre a tarde de ontem e a manhã de hoje, factos inverosímeis, que a realidade não terá podido produzir sem trabalho... Agora a verdadeira situação parece não ser a descrita nas páginas anteriores; a situação que vivo não é a que julgo viver.”
L'Année dernière à Marienbad (1961)
Noto ainda que a conceptualização intertextual que levou Thomas Beltzer a dizer que Alain Resnais se teria
baseado em Invenção de Morel para criar L'Année dernière à Marienbad (1961) me
parece imensamente acertada. Aliás essa ligação entre as duas obras levou-me
assim de repente a compreender Marienbad sob toda uma nova luz, permitindo que
o filme tivesse ganho dentro das minhas memórias novas camadas de leitura, mais
intensas e relevantes.
Sawyer lendo A Invenção de Morel em Lost, s04.e04
Uma outra obra recente em que Morel aparece é exatamente a série Lost. Sawyer aparece no quarto episódio da quarta temporada a ler uma edição americana do livro. E aqui é ainda mais forte a colagem do que em Marienbad. Aqui temos uma ilha, e acontecimentos e visitantes estranhos, tal como na ilha de Morel. Lost pode também ser visto de uma forma completamente nova depois de ler este pequeno livro.
novembro 13, 2012
Vídeo, Alemanha e Educação
Trabalhando há décadas em audiovisual não posso deixar de falar sobre o vídeo, Ich Bin Ein Berliner (2012), que acendeu os corações de muitos, contra e a favor, em Portugal, na Alemanha e noutros países. Deste modo resolvi fazer uma análise em três dimensões distintas: Forma, Conteúdo, e Racionalidade.
FORMA
O problema não está na forma, que tem coisas más, mas também tem coisas boas.
Bom: a ideia de um plano corrido e em sequência dá força à ideia central que se quer passar, constrói o argumento e solidifica-o, porque nunca o deixa sair de plano. Além de que constrói um sentido base muito importante na mensagem do vídeo, a ideia de grupo, comunidade, colectivo e união.
Mau: A incapacidade de comunicar com as imagens, ou seja de as tornar expressivas. O vídeo vive do texto, não do que mostra, é pobre na capacidade para induzir pensamento através da sua componente visual e sonora. E quando assim é, devemos usar outras formas de comunicação que não o vídeo, é isto que ensinamos todos os dias nas aulas de linguagem audiovisual. Aquilo que aqui temos é um texto escrito por Marcelo Rebelo de Sousa , que foi adaptado à pressa e sem recursos para vídeo, resultando inevitavelmente num artefacto bem instruído textualmente mas totalmente deficiente na sua componente audiovisual. (Actualização: parece que o texto não terá sido escrito por MRS, este terá apenas sugerido a ideia)
CONTEÚDO
Se fosse apenas isto, diríamos, assim seja, o objectivo é político, e até pode passar uma certa ideia de autenticidade por via da ingenuidade da forma. Mas o próprio guião apresenta problemas, e nesse sentido temos também coisas boas, e coisas más.
Bom: Dizer que nós fizemos muitas coisas nos últimos 50 anos é bom. Dizer que sempre defendemos a União e nunca reclamámos quando os outros procuraram melhorar o seu estado à custa dessa união, é também muito bom.
Mau: Dizer apenas parte da realidade, é manipulação. E este vídeo é altamente manipulativo. Fala em Plano Marschal mas não fala nos vários planos comunitários em que recebemos financiamento, muito dele vindo da Alemanha, ao longo dos últimos quase 30 anos!
RACIONALIDADE
Aqui é que para mim surgem os verdadeiros problemas do filme, ao suportar a sua essência argumentativa na base da culpabilização dos alemães, por estes nos terem vendido, aquilo que fomos nós próprios incapazes de produzir: carros, redes elétricas, submarinos, e muita outra coisa que aqui não aparece. E é aqui que mexe comigo o filme, porque passados mais de 40 anos depois de Salazar continuamos a não perceber a essência do problema português. Continuamos a desprezar a razão pela qual temos uma produtividade tão baixa. As razões são múltiplas, mas deixemo-nos de lirismos, quando é que vamos perceber que temos um problema de Educação nacional?
Apesar de tudo, parece que o Ministro Crato resolveu finalmente acordar. Durante anos em Portugal só se ouviu falar do modelo Finlandês, e finalmente alguém começou a procurar noutras paragens. Acho no entanto irónico que o modelo que agora se procura, seja exatamente o da Alemanha. Mais irónico porque o venho defendendo há décadas, talvez por ter nascido num sistema similar, embora não tenha feito a minha formação depois no sistema e tenha vindo para Portugal. Assim, repesco parte de algo que disse no ano passado, também em Novembro.
E porque é que o Ensino alemão é bom? Escrevi sobre isso ainda há poucos meses, em Agosto, num post no Facebook em conversa com o Prof. Dias Figueiredo e a Prof. Teresa Pombo,
O que é que acontece neste modelo alemão? Acontece algo que difere muito de uma aprendizagem baseada numa simples sala com quatro paredes, porque vai para além das fronteiras dessas paredes. É um formato que recorre, à Situated Cognition e Embodied Cognition do lado da Psicologia. Ou à User Experience do lado do Design. Ou ainda aos Contextos como defende Prof. Dias Figueiredo no campo da Educação. O formato alemão é aquele que melhor garante, o embodiement, a experiência e o contexto para a aprendizagem. Não se fica pela simulação de contextos com gráficos numa lousa, nem em vídeos ou textos ditados, mas antes se sente, se vive, e se experiencia.
Mas não tenhamos ilusões, não existem modelos definitivos, e 100% perfeitos. A própria Alemanha fez há pouquíssimo tempo uma enorme revolução neste tipo de escolas, nomeadamente nas mais Profissionais (Hauptschule), com pouca componente teórica. Espero que Portugal analise bem essas alterações, e as perceba. Pelo menos numa coisa já fiquei satisfeito ao ouvir o Ministro ontem, é que por cá não faremos disto caminhos de menorização das possibilidade educativas de cada um. Um aluno que faz qualquer caminho de ensino, deve mais tarde poder fazer os exames e seguir a Universidade se assim o desejar. Algo que na Alemanha e França não está previsto. Não gosto, e nem me parece que seja motivador para quem segue outros percursos, sentir que está em percursos secundários, menos relevantes que os seus colegas. E já agora também não gosto da demagogia dos nosso sindicatos, para quem tudo aquilo que um Ministro faça, é mau.
Dito tudo isto, acho que falhámos com os nossos propósitos de procurar apenas e só criar alunos para a Universidade. Com isto fomos incapazes de criar técnicos em número suficiente para alimentar um processo de industrialização de qualidade. Não fomos capazes de criar empresas que pudessem produzir aquilo que os Alemães produziram e nos venderam em todos este anos, e continuam a vender. Temos uma falha enorme nos milhões de pessoas que ficaram pelo caminho no 9º ano. Mas temos uma falha ainda maior nas pessoas que investiram para fazer o 12º ano, tendo perdido literalmente anos de vida, que geraram pouquíssimo retorno, tanto para elas como para o país. Assim que dizer que a culpa da nossa crise é dos alemães que nos venderam aquilo que nós fomos incapazes de aprender a fazer, faz-me apenas pensar no mais elementar que aprendi na Escola Primária, por sinal portuguesa,
“Não deem dinheiro. Deem uma cana de pesca, e ensinem a pescar”
Ich Bin Ein Berliner (2012)
FORMA
O problema não está na forma, que tem coisas más, mas também tem coisas boas.
Bom: a ideia de um plano corrido e em sequência dá força à ideia central que se quer passar, constrói o argumento e solidifica-o, porque nunca o deixa sair de plano. Além de que constrói um sentido base muito importante na mensagem do vídeo, a ideia de grupo, comunidade, colectivo e união.
Mau: A incapacidade de comunicar com as imagens, ou seja de as tornar expressivas. O vídeo vive do texto, não do que mostra, é pobre na capacidade para induzir pensamento através da sua componente visual e sonora. E quando assim é, devemos usar outras formas de comunicação que não o vídeo, é isto que ensinamos todos os dias nas aulas de linguagem audiovisual. Aquilo que aqui temos é um texto escrito por Marcelo Rebelo de Sousa , que foi adaptado à pressa e sem recursos para vídeo, resultando inevitavelmente num artefacto bem instruído textualmente mas totalmente deficiente na sua componente audiovisual. (Actualização: parece que o texto não terá sido escrito por MRS, este terá apenas sugerido a ideia)
CONTEÚDO
Se fosse apenas isto, diríamos, assim seja, o objectivo é político, e até pode passar uma certa ideia de autenticidade por via da ingenuidade da forma. Mas o próprio guião apresenta problemas, e nesse sentido temos também coisas boas, e coisas más.
Bom: Dizer que nós fizemos muitas coisas nos últimos 50 anos é bom. Dizer que sempre defendemos a União e nunca reclamámos quando os outros procuraram melhorar o seu estado à custa dessa união, é também muito bom.
Mau: Dizer apenas parte da realidade, é manipulação. E este vídeo é altamente manipulativo. Fala em Plano Marschal mas não fala nos vários planos comunitários em que recebemos financiamento, muito dele vindo da Alemanha, ao longo dos últimos quase 30 anos!
Para quem ainda não viu, vejam antes de ler o que se segue.
RACIONALIDADE
Aqui é que para mim surgem os verdadeiros problemas do filme, ao suportar a sua essência argumentativa na base da culpabilização dos alemães, por estes nos terem vendido, aquilo que fomos nós próprios incapazes de produzir: carros, redes elétricas, submarinos, e muita outra coisa que aqui não aparece. E é aqui que mexe comigo o filme, porque passados mais de 40 anos depois de Salazar continuamos a não perceber a essência do problema português. Continuamos a desprezar a razão pela qual temos uma produtividade tão baixa. As razões são múltiplas, mas deixemo-nos de lirismos, quando é que vamos perceber que temos um problema de Educação nacional?
Apesar de tudo, parece que o Ministro Crato resolveu finalmente acordar. Durante anos em Portugal só se ouviu falar do modelo Finlandês, e finalmente alguém começou a procurar noutras paragens. Acho no entanto irónico que o modelo que agora se procura, seja exatamente o da Alemanha. Mais irónico porque o venho defendendo há décadas, talvez por ter nascido num sistema similar, embora não tenha feito a minha formação depois no sistema e tenha vindo para Portugal. Assim, repesco parte de algo que disse no ano passado, também em Novembro.
“O problema é que para Portugal criar uma marca de eletrónica ou de carros, não chega ter 14% de licenciados, de todo. Mas em cima disso e talvez mais grave, precisávamos de muitas mais pessoas com qualificações ao nível do 12º ano, não chega ter mais outros 14%. De preferência técnicos qualificados em Metalomecânica, em Mecânica, em Eletrónica, em Informática, em Gestão, em Secretariado. De que me adianta ter milhares de miúdos com 18 anos que sabem muito de Português ou Matemática, mas não sabem fazer nada de concreto! Mas pior é mesmo que a grande massa, 72%, não vai além do ensino básico do 9º ano. Com essa escolaridade não servem a nenhuma empresa que precise de competir internacionalmente.”Este parágrafo resume o essencial daquilo que temos no vídeo. Que se reflete na própria qualidade do vídeo. Somos um país pobre, não em recursos e nem sequer em engenho ou criatividade. Somos um país pobre em Educação técnica e de alto-nível. Por isso precisamos desesperadamente de trabalhar isto. Mas não é apenas injectando dinheiro nas escolas, é preciso mudar mentalidades. Continuamos a ter em Portugal muito quem acredite que a escola não serve para nada. E enquanto assim for, veremos o nosso PIB pelas ruas da amargura. E não me venham falar de EAD ou de MOOCs, que até podem ser modelos interessantes para sociedades com avançada literacia, que está longe de ser o nosso caso (vejam o gráfico na Imagem 1).
E porque é que o Ensino alemão é bom? Escrevi sobre isso ainda há poucos meses, em Agosto, num post no Facebook em conversa com o Prof. Dias Figueiredo e a Prof. Teresa Pombo,
“Eu sou grande defensor das escolas técnico-profissionalizantes. E a ligação com a indústria no secundário é a grande força da indústria alemã, e que já começou nos anos 1950.”A verdade é que quando comparamos um produto alemão com o de outros países, percebemos muito rapidamente que a qualidade de construção tem pouca concorrência. Diria que alguma produção americana, e a japonesa consegue igualar. Falo aqui de mecânica e electrónica essencialmente, mas isso reflecte-se em muita outra produção. O que acontece, é que os técnicos destas fábricas, andaram na escola, mas não isolados do mundo real. Nas escolas profissionais alemãs, os técnicos das fábricas, vão às escolas dar aulas. E os alunos passam temporadas nas fábricas a aprender. Ou seja o aluno é totalmente envolvido no processo de real aprendizagem desde cedo, e de um modo totalmente orientado e suportado. Algo que conhecemos desde a Idade Média, na figura de mestre e aprendiz, mas fomos abandonando à medida que o ensino se foi massificando, dada a impossibilidade de manter uma relação baixa no rácio professor/aluno.
O que é que acontece neste modelo alemão? Acontece algo que difere muito de uma aprendizagem baseada numa simples sala com quatro paredes, porque vai para além das fronteiras dessas paredes. É um formato que recorre, à Situated Cognition e Embodied Cognition do lado da Psicologia. Ou à User Experience do lado do Design. Ou ainda aos Contextos como defende Prof. Dias Figueiredo no campo da Educação. O formato alemão é aquele que melhor garante, o embodiement, a experiência e o contexto para a aprendizagem. Não se fica pela simulação de contextos com gráficos numa lousa, nem em vídeos ou textos ditados, mas antes se sente, se vive, e se experiencia.
Mas não tenhamos ilusões, não existem modelos definitivos, e 100% perfeitos. A própria Alemanha fez há pouquíssimo tempo uma enorme revolução neste tipo de escolas, nomeadamente nas mais Profissionais (Hauptschule), com pouca componente teórica. Espero que Portugal analise bem essas alterações, e as perceba. Pelo menos numa coisa já fiquei satisfeito ao ouvir o Ministro ontem, é que por cá não faremos disto caminhos de menorização das possibilidade educativas de cada um. Um aluno que faz qualquer caminho de ensino, deve mais tarde poder fazer os exames e seguir a Universidade se assim o desejar. Algo que na Alemanha e França não está previsto. Não gosto, e nem me parece que seja motivador para quem segue outros percursos, sentir que está em percursos secundários, menos relevantes que os seus colegas. E já agora também não gosto da demagogia dos nosso sindicatos, para quem tudo aquilo que um Ministro faça, é mau.
Dito tudo isto, acho que falhámos com os nossos propósitos de procurar apenas e só criar alunos para a Universidade. Com isto fomos incapazes de criar técnicos em número suficiente para alimentar um processo de industrialização de qualidade. Não fomos capazes de criar empresas que pudessem produzir aquilo que os Alemães produziram e nos venderam em todos este anos, e continuam a vender. Temos uma falha enorme nos milhões de pessoas que ficaram pelo caminho no 9º ano. Mas temos uma falha ainda maior nas pessoas que investiram para fazer o 12º ano, tendo perdido literalmente anos de vida, que geraram pouquíssimo retorno, tanto para elas como para o país. Assim que dizer que a culpa da nossa crise é dos alemães que nos venderam aquilo que nós fomos incapazes de aprender a fazer, faz-me apenas pensar no mais elementar que aprendi na Escola Primária, por sinal portuguesa,
“Não deem dinheiro. Deem uma cana de pesca, e ensinem a pescar”
novembro 12, 2012
Entrevista sobre festival "Caminhos do Cinema Português"
Na semana passada o jornal universitário de Coimbra, A Cabra, enviou-me um entrevista por e-mail sobre o festival Caminhos do Cinema Português que decorre em Coimbra há várias décadas e que entra agora na sua XIX edição. O interesse prendia-se com o facto de eu ter participado na re-fundação do festival em 1997. Entretanto o artigo foi publicado no sítio do jornal, mas muito do que disse ficou naturalmente de fora da peça, e por isso aqui publico as minhas respostas integrais. Os filmes apresentados em imagens ao longo do texto estiveram todos presentes no festival desse ano de 1997.
1 - Como foi o processo de reativação do festival, depois do interregno de sete anos?
:: Foi complicado e muito duro porque tinham passado já alguns anos depois da última edição, e já não existiam ligações às instituições nem pessoas, tendo sido preciso fazer tudo do zero como se a mostra nunca tivesse existido. Estou a falar do ICA (na altura tinha a designação de IPACA) e do TAGV, mas também dos apoios de financiamento necessários e vitais para garantir um festival desta natureza, assim como dos realizadores, dos atores, dos produtores, diretores de fotografia, entre muitos outros.
Foi um ano completo a trabalhar, com vários dos elementos da comissão executiva a trabalhar full-time no evento, deixando os cursos de lado, deixando tudo de lado para que o evento se tornasse real. Foi uma luta até ao último dia, mas conseguiu-se recriar um evento que é fundamental em Portugal e que muito me agrada que se tenha mantido até hoje, e esperemos que continue por muito mais tempo.
2 - Quantas pessoas estiveram envolvidas nesse processo?
:: Estiveram envolvidas diretamente e ao longo de toda a produção oito pessoas: Nelson Zagalo, Manuel Nunes, Jaime Rodrigues, Bruno Dias, Carlos Pinto, Sara Seabra, Osvaldo Mota e Adelino Rocha. Tudo elementos que pertenciam nessa altura à direção do CEC. É claro que estiveram envolvidas muitas mais pessoas, desde os sócios a elementos de outras secções culturais, da DG/AAC, do TAGV, da UC o que no total deverá ter ultrapassado as 40.
3 - Quais foram as novidades que essa edição trouxe relativamente às mostras realizadas antigamente?
:: A primeira e mais evidente, foi a transformação de um evento que era uma Mostra, num Festival o que implicou várias dimensões além do mero ciclo de filmes, como mesas redondas, workshops, prémios, convidados, filmes de abertura e encerramento, etc. Uma das grandes atrações desta reedição foi tentar trazer filmes que tinham sido financiados com dinheiros públicos mas ainda não tinham sido estreados em Portugal, algo que era comum nos anos 1990. No campo das curtas tivemos linhas dedicadas: à Escola Superior de Teatro e Cinema; à Animação nacional; à Video Arte; e ainda uma extensão da Mostra de Vídeo Português Contemporâneo da Videoteca de Lisboa. Além disso criámos o primeiro prémio dedicado a uma figura de relevo cinematográfico nacional e não mediática, o Ardenter Imagine. Foi também neste ano que conseguimos que o evento fosse reconhecido pelo Ministério da Cultura como sendo de “Manifesto Interesse Cultural”.
4 - Nesse ano, quais foram os principais destaques cinematográficos?
:: Abrimos o Festival com a estreia de Mortinho por Chegar a Casa (1996) de Carlos Silva e George Sluizer, contando com a presença do Carlos Silva. E depois fizemos o encerramento com Kilas, o Mau da Fita (1980) que se tornou num dos grandes momentos desse festival.
5 - Qual foi o feedback que tiveram? Houve incentivos para que ficassem motivados a continuar?
:: Sim, sem dúvida, sentimos no final, nomeadamente da parte da comunidade nacional cinematográfica um carinho especial por aquilo que se tinha conseguido fazer ali, e muita vontade de continuar a colaborar para que o evento se tornasse num evento central do cinema nacional.
6 - Ficou na organização do festival durante quanto tempo?
:: Fiquei apenas nesse ano, era já o meu segundo ano na direcção do CEC. Como expliquei acima foi esgotante, mas não só, não se pode pedir que festivais com esta magnitude sejam feitos em mero regime de voluntariado. Era preciso retomar os estudos.
7 - Que histórias guarda deste festival? Algum episódio caricato que tenha acontecido em alguma edição que queira partilhar...
:: Muitas histórias, muitos momentos que ficaram nas nossas memórias, de angústias e alegrias passadas em conjunto com as pessoas que formaram aquele fantástico grupo que levou este projeto de uma simples ideia e desejo ao evento em que ele se tornou.
Ao revisitar o catálogo dessa edição, relembrei o episódio de renderização e impressão do cartaz que serviria para espalhar pelos "mupis" de várias cidades nacionais (a imagem que está no topo deste texto). Foi uma aventura que passei com o autor do cartaz, o David Miguel Coimbra, um dia e uma noite completa à volta do 3d Studio em casa deste no Porto, para conseguir renderizar com os textos correctos, e conseguir chegar a horas a gráfica do Porto a tempo de poder ser imprimido e enviado às Câmaras. Passámos a noite a olhar para a barra de render em total desespero, só conseguindo terminar no dia seguinte quando era já quase meio-dia. O mesmo se passou com o catálogo, mas aqui quase sozinho, em que passei mais de 24h seguidas colado numa cadeira a terminar detalhes para depois fazer seguir para a gráfica, parece que ainda me lembro da cadeira em que estava sentado.
8 - Alguma exibição que o tenha marcado, seja enquanto espetador ou membro da organização?
:: Sim quando voltei ao festival como Júri passados alguns anos, em 2001, adorei ver a curta-metragem de Sandro Aguilar, Sem Movimento (2000), nunca mais a esqueci, apesar de nunca mais a ter conseguido rever. O seu trabalho de movimento visual nesta curta é magistral. Pena que como acontece como muito outro cinema português, as obras fiquem inacessíveis. Daí que festivais como os Caminhos adquiram uma ainda maior importância.
9 - Hoje ainda colabora com o CEC?
:: Apenas pontualmente. Por acaso encontro-me neste momento a colaborar com a segunda edição de Cinemalogia.
10 - O que pensa do facto de existir apenas um festival exclusivo de cinema rodado em português?
:: Penso que é fundamental, que deve ser preservado, apoiado e acarinhado por todos. É um dos poucos momentos em que o amor à cultura cinematográfica nacional se abre sem rodeios e sem complexos.
Cartaz e capa do catálogo da reedição de 1997
1 - Como foi o processo de reativação do festival, depois do interregno de sete anos?
:: Foi complicado e muito duro porque tinham passado já alguns anos depois da última edição, e já não existiam ligações às instituições nem pessoas, tendo sido preciso fazer tudo do zero como se a mostra nunca tivesse existido. Estou a falar do ICA (na altura tinha a designação de IPACA) e do TAGV, mas também dos apoios de financiamento necessários e vitais para garantir um festival desta natureza, assim como dos realizadores, dos atores, dos produtores, diretores de fotografia, entre muitos outros.
Foi um ano completo a trabalhar, com vários dos elementos da comissão executiva a trabalhar full-time no evento, deixando os cursos de lado, deixando tudo de lado para que o evento se tornasse real. Foi uma luta até ao último dia, mas conseguiu-se recriar um evento que é fundamental em Portugal e que muito me agrada que se tenha mantido até hoje, e esperemos que continue por muito mais tempo.
TAGV (foto de Pedro Medeiros)
2 - Quantas pessoas estiveram envolvidas nesse processo?
:: Estiveram envolvidas diretamente e ao longo de toda a produção oito pessoas: Nelson Zagalo, Manuel Nunes, Jaime Rodrigues, Bruno Dias, Carlos Pinto, Sara Seabra, Osvaldo Mota e Adelino Rocha. Tudo elementos que pertenciam nessa altura à direção do CEC. É claro que estiveram envolvidas muitas mais pessoas, desde os sócios a elementos de outras secções culturais, da DG/AAC, do TAGV, da UC o que no total deverá ter ultrapassado as 40.
Má Sina (1996) de Saguenail
3 - Quais foram as novidades que essa edição trouxe relativamente às mostras realizadas antigamente?
:: A primeira e mais evidente, foi a transformação de um evento que era uma Mostra, num Festival o que implicou várias dimensões além do mero ciclo de filmes, como mesas redondas, workshops, prémios, convidados, filmes de abertura e encerramento, etc. Uma das grandes atrações desta reedição foi tentar trazer filmes que tinham sido financiados com dinheiros públicos mas ainda não tinham sido estreados em Portugal, algo que era comum nos anos 1990. No campo das curtas tivemos linhas dedicadas: à Escola Superior de Teatro e Cinema; à Animação nacional; à Video Arte; e ainda uma extensão da Mostra de Vídeo Português Contemporâneo da Videoteca de Lisboa. Além disso criámos o primeiro prémio dedicado a uma figura de relevo cinematográfico nacional e não mediática, o Ardenter Imagine. Foi também neste ano que conseguimos que o evento fosse reconhecido pelo Ministério da Cultura como sendo de “Manifesto Interesse Cultural”.
Kilas, O Mau da Fita (1980) de José Fonseca e Costa
4 - Nesse ano, quais foram os principais destaques cinematográficos?
:: Abrimos o Festival com a estreia de Mortinho por Chegar a Casa (1996) de Carlos Silva e George Sluizer, contando com a presença do Carlos Silva. E depois fizemos o encerramento com Kilas, o Mau da Fita (1980) que se tornou num dos grandes momentos desse festival.
Mortinho por Chegar a Casa (1996) de Carlos Silva e George Sluizer
5 - Qual foi o feedback que tiveram? Houve incentivos para que ficassem motivados a continuar?
:: Sim, sem dúvida, sentimos no final, nomeadamente da parte da comunidade nacional cinematográfica um carinho especial por aquilo que se tinha conseguido fazer ali, e muita vontade de continuar a colaborar para que o evento se tornasse num evento central do cinema nacional.
Três Irmãos (1994) de Teresa Villaverde
6 - Ficou na organização do festival durante quanto tempo?
:: Fiquei apenas nesse ano, era já o meu segundo ano na direcção do CEC. Como expliquei acima foi esgotante, mas não só, não se pode pedir que festivais com esta magnitude sejam feitos em mero regime de voluntariado. Era preciso retomar os estudos.
O Fim do Mundo (1993) de João Mário Grilo
7 - Que histórias guarda deste festival? Algum episódio caricato que tenha acontecido em alguma edição que queira partilhar...
:: Muitas histórias, muitos momentos que ficaram nas nossas memórias, de angústias e alegrias passadas em conjunto com as pessoas que formaram aquele fantástico grupo que levou este projeto de uma simples ideia e desejo ao evento em que ele se tornou.
Ao revisitar o catálogo dessa edição, relembrei o episódio de renderização e impressão do cartaz que serviria para espalhar pelos "mupis" de várias cidades nacionais (a imagem que está no topo deste texto). Foi uma aventura que passei com o autor do cartaz, o David Miguel Coimbra, um dia e uma noite completa à volta do 3d Studio em casa deste no Porto, para conseguir renderizar com os textos correctos, e conseguir chegar a horas a gráfica do Porto a tempo de poder ser imprimido e enviado às Câmaras. Passámos a noite a olhar para a barra de render em total desespero, só conseguindo terminar no dia seguinte quando era já quase meio-dia. O mesmo se passou com o catálogo, mas aqui quase sozinho, em que passei mais de 24h seguidas colado numa cadeira a terminar detalhes para depois fazer seguir para a gráfica, parece que ainda me lembro da cadeira em que estava sentado.
Oxalá (1980) de António Pedro Vasconcelos [excerto]
8 - Alguma exibição que o tenha marcado, seja enquanto espetador ou membro da organização?
:: Sim quando voltei ao festival como Júri passados alguns anos, em 2001, adorei ver a curta-metragem de Sandro Aguilar, Sem Movimento (2000), nunca mais a esqueci, apesar de nunca mais a ter conseguido rever. O seu trabalho de movimento visual nesta curta é magistral. Pena que como acontece como muito outro cinema português, as obras fiquem inacessíveis. Daí que festivais como os Caminhos adquiram uma ainda maior importância.
Passagem por Lisboa (1993) de Eduardo Geada
9 - Hoje ainda colabora com o CEC?
:: Apenas pontualmente. Por acaso encontro-me neste momento a colaborar com a segunda edição de Cinemalogia.
Cartaz da XIX Edição, 9 a 17 de Novembro 2012
10 - O que pensa do facto de existir apenas um festival exclusivo de cinema rodado em português?
:: Penso que é fundamental, que deve ser preservado, apoiado e acarinhado por todos. É um dos poucos momentos em que o amor à cultura cinematográfica nacional se abre sem rodeios e sem complexos.
ritmo e surrealismo
Heart (2010) de Erick Ho é um trabalho de uma enorme grandiosidade experimental a roçar o surrealismo daliniano. São 8 minutos de acção visual com uma narrativa desestruturada, mas capaz de nos fazer sentir o crescendo. Heart é o resultado da tese de mestrado em Digital Media de Erick Ho na UCLA School of Theater Film and Television, depois disso foi trabalhar para a Pixar.
Erick Ho procura neste pequeno filme testar os limites da narrativa no âmbito da animação, e para isso socorre-se de um forte leimotiv, o coração, que todos conhecemos e ao qual atribuímos imensos potenciais significados. O filme decorre com base numa luta constante pela posse do dito coração, sem que nós possamos compreender exactamente porquê, embora tratemos de inferir imensos sentidos e possibilidades explicativas. Mas o que é relevante aqui é entrar, imergir na atmosfera do filme de Erick Ho, que por vezes parece um autêntico trabalho orquestral, no sentido em que o som serve de condutor ao movimento gráfico. O ritmo é assim perfeito porque fruto de um trabalho de mestria na combinação entre montagem, som, música e animação.
Não é um filme sobre o qual possamos escrever muito, porque é um trabalho experimental, que como tal precisa de ser experienciado para ser compreendido. Fala-nos numa linguagem particular, não assimilável por comuns cânones da análise filmográfica. O filme foi apresentado numa imensidão de festivais, tendo ganho vários prémios, e está agora disponível na internet.
Erick Ho procura neste pequeno filme testar os limites da narrativa no âmbito da animação, e para isso socorre-se de um forte leimotiv, o coração, que todos conhecemos e ao qual atribuímos imensos potenciais significados. O filme decorre com base numa luta constante pela posse do dito coração, sem que nós possamos compreender exactamente porquê, embora tratemos de inferir imensos sentidos e possibilidades explicativas. Mas o que é relevante aqui é entrar, imergir na atmosfera do filme de Erick Ho, que por vezes parece um autêntico trabalho orquestral, no sentido em que o som serve de condutor ao movimento gráfico. O ritmo é assim perfeito porque fruto de um trabalho de mestria na combinação entre montagem, som, música e animação.
Não é um filme sobre o qual possamos escrever muito, porque é um trabalho experimental, que como tal precisa de ser experienciado para ser compreendido. Fala-nos numa linguagem particular, não assimilável por comuns cânones da análise filmográfica. O filme foi apresentado numa imensidão de festivais, tendo ganho vários prémios, e está agora disponível na internet.
An exploration of transcendence. HEART presents questions through abstract metaphors and symbols, illustrated by the human heart.
novembro 10, 2012
à deriva
Adrift (2012) é mais um experimento interactivo do que um jogo, criado por Tom Campbel para o Mini Ludum Dare #37, apesar disso responde plenamente aos objectivos traçados para o MiniLD, ser um not-game e ao mesmo tempo basear a interacção no uso do tempo real.
Tom Campbell é um jovem de apenas 22 anos, da Nova Zelândia, formado em Media Design na especialidade de desenvolvimento de jogos, apresentando-se como um apaixonado pela arte 3d. Na verdade é a sua paixão pelo 3d que mais sobressai neste trabalho, a beleza gráfica inebria-nos, deixa-nos "adrift". Neste não-jogo entramos num mundo que é constituído por apenas um barco à deriva em alto-mar e do qual não podemos sair, podemos apenas deambular entre a traseira e o interior do mesmo.
O jogo foi desenvolvido em Unity tendo o mar sido criado com recurso ao plugin Ocean Unity, e o céu com o plugin UniStorm. Deste modo tudo foi criado em 48 horas.
O interesse do jogo acaba por se revestir na forma como nos obriga a contemplar o mundo apresentado, sendo que dependendo da hora em que entramos no jogo, a atmosfera é distinta, podendo o jogador experienciar desde o nascer do sol ao pôr do mesmo, experienciando chuva e relâmpagos pelo meio, apreciando as estrelas. É uma experiência minimal, como tal cada um sentirá o jogo de diferentes formas .
Recomendo. Podem jogar directamente online ou descarregar para PC/Mac no sítio do autor.
Tom Campbell é um jovem de apenas 22 anos, da Nova Zelândia, formado em Media Design na especialidade de desenvolvimento de jogos, apresentando-se como um apaixonado pela arte 3d. Na verdade é a sua paixão pelo 3d que mais sobressai neste trabalho, a beleza gráfica inebria-nos, deixa-nos "adrift". Neste não-jogo entramos num mundo que é constituído por apenas um barco à deriva em alto-mar e do qual não podemos sair, podemos apenas deambular entre a traseira e o interior do mesmo.
O jogo foi desenvolvido em Unity tendo o mar sido criado com recurso ao plugin Ocean Unity, e o céu com o plugin UniStorm. Deste modo tudo foi criado em 48 horas.
O interesse do jogo acaba por se revestir na forma como nos obriga a contemplar o mundo apresentado, sendo que dependendo da hora em que entramos no jogo, a atmosfera é distinta, podendo o jogador experienciar desde o nascer do sol ao pôr do mesmo, experienciando chuva e relâmpagos pelo meio, apreciando as estrelas. É uma experiência minimal, como tal cada um sentirá o jogo de diferentes formas .
Recomendo. Podem jogar directamente online ou descarregar para PC/Mac no sítio do autor.
paciência e perseverança
Origami (2012) é mais um belíssimo trabalho da ESMA (École Supérieure des Métiers Artistiques) realizado pelos alunos Joanne Smithies, Eric De Melo Bueno, Michael Moreno, Hugo Bailly Desmarchelier e Camille Turon.
Origami é brilhante porque apesar de se focar sobre a arte do origami aborda duas qualidades essenciais à própria arte da Animação - a paciência e a perseverança. São duas características que qualquer animador sabe serem essenciais, mas invisíveis para quem vê de fora. Todos os anos em que dou a cadeira de Animação falo nelas no início do semestre, mas os alunos só as percebem quando chega a altura de desenvolver os seus projectos e começam a sentir a dureza do esforço necessário à concepção do que imaginaram nas suas cabeças.
Este pequeno filme metaforiza muito bem o processo de luta interna que ocorre quando temos de ser perseverantes para continuar a trabalhar, a experimentar, a criar até conseguir desenvolver aquilo que imaginámos e desejámos criar. A metáfora mostra como o medo de não conseguir se apodera de nós, como experimentando com elementos mais simples vamos conseguindo escapar dessa perseguição, com a paciência e a preseverância vamos evoluindo na arte e vamos assim escapando da escuridão que é a incapacidade de fazer. O brilho que vemos ao longo dessa perseguição não é mais do que a compensação interior por termos alcançado os objectivos, como se esses servissem para iluminar o nosso caminho na concepção de projectos cada vez mais arrojados.
Sem dúvida, uma obra de grande valor, e que no campo formal não fica em nada atrás. Adoro as texturas, não gostei inicialmente do design dos personagens, mas ao longo do filme acabamos por nos apaixonar por eles. Por sua vez o controlo da iluminação e composição musical contribuem cabalmente para construir a atmosfera perceptiva necessária à interiorização dos dois conceitos.
Origami é brilhante porque apesar de se focar sobre a arte do origami aborda duas qualidades essenciais à própria arte da Animação - a paciência e a perseverança. São duas características que qualquer animador sabe serem essenciais, mas invisíveis para quem vê de fora. Todos os anos em que dou a cadeira de Animação falo nelas no início do semestre, mas os alunos só as percebem quando chega a altura de desenvolver os seus projectos e começam a sentir a dureza do esforço necessário à concepção do que imaginaram nas suas cabeças.
Este pequeno filme metaforiza muito bem o processo de luta interna que ocorre quando temos de ser perseverantes para continuar a trabalhar, a experimentar, a criar até conseguir desenvolver aquilo que imaginámos e desejámos criar. A metáfora mostra como o medo de não conseguir se apodera de nós, como experimentando com elementos mais simples vamos conseguindo escapar dessa perseguição, com a paciência e a preseverância vamos evoluindo na arte e vamos assim escapando da escuridão que é a incapacidade de fazer. O brilho que vemos ao longo dessa perseguição não é mais do que a compensação interior por termos alcançado os objectivos, como se esses servissem para iluminar o nosso caminho na concepção de projectos cada vez mais arrojados.
Sem dúvida, uma obra de grande valor, e que no campo formal não fica em nada atrás. Adoro as texturas, não gostei inicialmente do design dos personagens, mas ao longo do filme acabamos por nos apaixonar por eles. Por sua vez o controlo da iluminação e composição musical contribuem cabalmente para construir a atmosfera perceptiva necessária à interiorização dos dois conceitos.
Origami (2012)
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