outubro 29, 2022

O foco desfocado

Cheguei a "Stolen Focus: Why You Can't Pay Attention- and How to Think Deeply Again" (2022) por meio de um excerto do mesmo que discutia as questões do multitasking, tendo logo ganho o meu interesse pelos resultados dos estudos que citava. Quando procurei mais pelo autor, percebi que vinha atrelado a acusações de plágio e consequente despedimento de um jornal britânico. Acreditando que as pessoas têm direito a reabilitação, decidi avançar para a leitura do livro, ainda que munido de algumas cautelas extra. A experiência final não foi das melhores, mas ainda me interrogo se foi por causa do seu passado, ou pela sua incapacidade de manter o foco, exatamente aquilo que no título diz pretender explicar a quem o lê. 

Do escurecimento provocado pelo cristianismo

Tivesse eu lido este livro há alguns anos, teria ficado chocado com o que aqui se escreve sobre a vasta destruição dos pagãos pelos cristãos. Contudo, nada disto pode ser apresentado desta forma leve, desde logo porque a destruição apresentada ocorreu ao longo de séculos, sendo aqui apresentada como uma sucessão narrativa de causas e efeitos imediatos, o que retira alguma credibilidade ao relato. Os clássicos têm dois mil anos, as evidências que temos do que aconteceu são fragmentos de fragmentos. Não podemos a partir dos mesmos, pegar em momentos avulso no tempo, escolhidos pela sua intensidade, e criar um fio condutor que explica tudo com uma única dimensão ou causalidade. Claro que num pequeno livro, tal como num documentário, sobre assuntos complexos, não se pode entrar pelo detalhe dos múltiplos pontos-de-vista, arriscando a fragmentar o discurso, perdendo o foco e a atenção do leitor/espectador. Mas a simplificação do complexo, por mais ressalvas de imparcialidade que se façam, tende demasiadas vezes a criar viéses marcados pelo que se escolhe apresentar e não apresentar.

outubro 23, 2022

"Cadernos da Água" de João Reis

A escrita muito direta, sem floreados nem simbolismos, mas elaborada e centrada no que está a acontecer, torna a leitura de "Cadernos da Água" (2022) próxima da experiência audiovisual. O mundo apresentado é distópico. Sofrem-se os efeitos das alterações climáticas que obrigam populações a deslocarem-se para zonas onde ainda existem recursos hídricos. O tom imprimido é particular, cruza a ação americana com a frieza escandinava, colocando-nos no lugar de portugueses refugiados fugidos de um país que já não existe. A particularidade da experiência estética criada só tem par em "Station Eleven" (2014) de Emily St. John Mandel.

setembro 19, 2022

Facebook e a Saúde Mental

O estudo, "Social Media and Mental Health" (2022) (publicado em preprint na SSRN, em breve disponível no American Economic Review) que retrata os efeitos do Facebook na saúde mental dos seus utilizadores foi tornado público por estes dias e os dados são pouco animadores. O estudo foi feito a partir de dados empíricos de: a) momento em que o Facebook foi tornado a acessível em cada universidade americana no ano de 2014, que permitiu perceber o exato momento em que cada aluno começou a aceder à ferramenta; e b) os questionários semi-anuais da National College Health Assessment, que chegam a mais de 430,000 respondentes, inquirindo sobre saúde mental e bem-estar nas universidades americanas. Os resultados: a introdução do Facebook nas universidades levou a um aumento da depressão grave em 7% e do distúrbio da ansiedade em 20%. Para além destes resultados, uma percentagem de estudantes iniciaram tratamento com psicoterapia e/ou antidepressivos. "O efeito negativo do Facebook é comparável, em magnitude, a cerca de 22% do efeito da perda de emprego na saúde mental". Os investigadores apontam como principal razão o facto do Facebook promover "comparações sociais desfavoráveis".

setembro 18, 2022

Uma Breve História da Igualdade

Se como eu já quiseram ler Piketty mas tiveram receio de se abalançar aos seus anteriores livros pela densidade de dados económicos ou pela enormidade de alguns com as suas mais de mil páginas, então são o público-alvo deste seu novo livro, "Uma Breve História da Igualdade" (2021/2022). Piketty resume em 300 páginas mais de 20 anos da sua investigação e as principais ideias que tem vindo a defender para uma nova era de igualdade, numa escrita imensamente acessível, sempre suportada por dados e gráficos. Confesso que me surpreendeu no discurso, pela enorme amplitude de ciências sociais que convoca desde a Sociologia à História, passando pela ciência política, o direito e a filosofia. Piketty usa dados económicos, mas acima de tudo trabalha, investiga e interpreta esses dados usando o conhecimento mais atual de cada uma das ciências envolvidas. Por isso, não se estranhe que a discussão vá das guerras e revoluções ao reformismo e alterações climáticas, mas assuma também como fundamentais a discussão do pós-colonialismo, racismo e feminismo. Contudo, para quem espera encontrar aqui um crítico das grandes desigualdades do mundo em que vivemos, Piketty é muito claro ao afirmar que nos últimos 200 anos a desigualdade diminuiu fortemente, sendo a partir desse ponto que projeta as suas ideias, apresentando-as como estímulos à manutenção e intensificação dessa tendência.

setembro 17, 2022

Da psicologia de uma herança

O livro, "Herança" de Vigdis Hjorth, abre com um casal, nos seus 80, que resolve proceder às partilhas, deixando as duas casas de verão às duas filhas mais novas, criando assim a impressão clara de favoritismo nos dois filhos mais velhos. A partir daqui, enquanto leitores, só queremos saber porquê, e isso mantém-nos agarrados a virar páginas. Mas se fosse só isto, seria apenas uma história interessante. O que temos é a narrativa em primeira-pessoa a partir da filha mais velha, que nos dá acesso ao seu mundo interior, e como a partir desse concebe o tear de relações e implicações familiares para construir sentido desta decisão. 

"Herança" publicado em 2016 na Noruega, traduzido para português em 2021

setembro 07, 2022

Uma Internet na sua Cabeça

Daniel Graham é professor de Psicologia, especializado no estudo do cérebro humano e mamífero. Neste livro, "An Internet in Your Head: A New Paradigm for How the Brain Works" (2021), apresenta uma nova metáfora para a compreendermos o cérebro: e se este funcionasse como a internet? Graham propõe uma autêntica revolução na compreensão do funcionamento do nosso cérebro que até aqui se tem servido do computador como metáfora, deixando para trás a ideia do funcionamento cerebral como um processo de Computação, para passar a interpretar o mesmo como um processo de Comunicação. A ideia base passa por interpretar menos o cérebro como um processador central de informação, e mais como uma estrutura de interconexões entre secções especializadas, usando protocolos de roteamento partilhados. Ou seja, assumir o cérebro menos como um sistema de computação rígido, e mais como uma estrutura flexível e dinâmica, capaz de se adaptar e transformar ao que se lhe vai exigindo.

setembro 04, 2022

O lago existencial

"Lake" (2021) é um videojogo despretensioso sobre questões existenciais, em particular a relação entre a ambição material e a felicidade pessoal. Jogamos na pele de Kate, uma programadora de topo, 44 anos, nos anos 1980, que decide voltar por duas semanas à vila em que cresceu, o que a vai obrigar a questionar-se sobre tudo o que conseguiu, assim como tudo o que perdeu. Tudo é feito usando a linguagem dos videojogos, sem recurso a grandes monólogos interiores ou filmes explicativos. Durante 15 dias, somos a carteira da vila, em substituição do pai, e temos de distribuir o correio todos os dias, reencontrando assim as pessoas que deixámos para trás. Tudo isto acontece num lugar sereno, junto da natureza e um belíssimo grande lago que contribui para a criação da atmosfera propícia à reflexão na meia-idade.


"Lake" foi desenvolvido, em Unity, pela empresa holandesa Gamious

setembro 01, 2022

O reino de narciso

Cheguei a "O Reino" (2014), não por ter sido um enorme sucesso em França quando saiu, mas por ser apresentado como um ficcionar dos primeiros anos do cristianismo, focado nas vidas de Paulo e Lucas. Tenho-me interessado cada vez mais pelos chamados romances históricos, pelo modo como facilitam o nosso acesso ao conhecimento da História. Mas não foi nada disso que aqui encontrei. Carrère reconta e parafraseia a partir de dezenas de textos históricos e teológicos, oferecendo-nos a sua interpretação sobre os mesmos. Existe ficção nessa sua interpretação, na interpretação das ideias, mas não existe propriamente dramatização, ou seja, recriação das ações dos personagens. Carrère segue um discurso colado ao registo dos documentários de televisão, em que vai comentando os escritos e teorias, algo que poderia até funcionar como não-ficção, mas que se esfuma porque muito do que vai dizendo é pura especulação. Por isso, perde também aquilo que afirma ser a sua forma de escrever quando nos diz que nunca conseguiu acabar de ler as “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar, por não se rever no ato de ficcionar, dada a impossibilidade de imparcialidade das histórias. Mas estes seu discurso, mesmo estando sempre colado ao real, com reparos de dúvida constante, é o da sua pessoa e das suas memórias, por isso mesmo não deixa de estar pejado dessa parcialidade. Mais, não há aqui qualquer método para tentar diminuir esse viés, existe antes uma aceitação tácita que, segundo ele, lhe dá liberdade para dizer o que quiser, alardeando que o que diz pode mesmo ter acontecido assim, em certa medida colocando-se no lugar dos autores dos próprios Evangelhos.