dezembro 01, 2021

A manipulação de Gottschall

Não posso chamar livro a algo que não passa de um emaranhado de ideias e frases coladas juntas para manipular quem lê "The Story Paradox" (2021). Nem sequer posso dizer que Jonathan Gottschall conte uma história, porque contar uma história implica coesão e unidade discursiva, e aqui temos tudo menos isso. Gottschall agarra em tudo de todo o lado — diversas áreas científicas, tecnológicas e culturais — que possam de algum modo suportar as suas premissas, e monta um castelo de cartas para vender as sua ideias. Só esqueceu que a retórica para funcionar precisa de Ethos, não chega lógica e emoção. É quase doloroso ver Gottschall, alguém que ensina no ensino superior, usar trabalhos de múltiplos colegas, que estão relacionados com questões concretas, que ele cita distorcendo ou convocando os resultados para o que lhe interessa, apenas para oferecer prova de autoridade ao discurso que constrói. A isto chamamos discurso manipulativo, sem qualquer respeito pelos leitores. Se no seu livro anterior, "The Storytelling Animal" (análise VI), já se sentia muito disto, e que na altura considerei como "abordagem absolutista", neste novo livro além de não vir acrescentar nada, a abordagem resvala para a tentativa de inculcar o medo e o pânico esperando com isso atrair as luzes para a venda de mais livro.

novembro 28, 2021

Universo sem sentimento

Perder o marido, ficando viúva com dois filhos, é uma experiência trágica com claros efeitos pós-traumáticos, mas usando a abordagem que a autora tanto gosta, a estatística, não é uma experiência nada incomum, nem agora, nem em toda a história da nossa espécie. Por outro lado, ser-se uma cientista de topo, premiada com uma bolsa MacArthur, a chamada "Bolsa dos Génios" no domínio da busca de inteligência fora da Terra, ou surgindo na capa da New York Times Magazine, com o título: "A Mulher Que Pode Encontrar-nos Outra Terra", é algo muito pouco comum, reservado a um número muito restrito de pessoas. Neste sentido, juntar as duas coisas poderia ter funcionado, poderia ter sido um memoir distinto. O problema acontece quando de frente batem e chocam espetacularmente a emocionalidade e as relações humanas de uma família com a racionalidade e abstração do mundo das ciências exatas. Ou seja, Sara Seager é uma cientista brilhante e com certeza teria sido muito interessante ouvi-la falar do seu trabalho e das complexidades da sua ciência, mas ouvi-la expor enormes incongruências de ser esposa e mãe, não tendo sequer noção destas é doloroso. Se no final nos diz que descobriu, apenas quase aos 50, que  era autista, a verdade é que não usou o livro, em parte alguma, para apresentar qualquer visão crítica das peculiaridades do seu comportamento. O seu discurso auto-centrado manteve-se igual, Seager é exatamente a mesma pessoa no final e no início do livro, nada mudou, e nesse sentido pergunta-se qual o interesse de um livro que não tem nada para dizer. Deixo alguns excerto de suporte a esta minha crítica:

novembro 27, 2021

"Encruzilhadas" (2021)

"Encruzilhadas" de Jonathan Franzen surge seis anos após o seu último romance, e só por isso torna-se imediatamente digno da nossa atenção e interesse. Tenho muita dificuldade em seguir autores — literatura ou cinema — que lançam obras novas todos os anos, não por não conseguir acompanhar, mas porque não acredito que alguém tenha algo de novo, com substância, para dizer todos os anos. O real requer contemplação, indagação, questionamento e maturação. Escrever por escrever, produzir texto, pode servir para distrair os leitores, mas dificilmente oferece mais do que isso. Nesse campo concreto, "Encruzilhadas" não desilude, e mostra Franzen ao seu melhor nível.

novembro 22, 2021

Divertindo-nos até à Morte

"Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business" é um livro de 1985, considerado um clássico dos estudos dos média, tendo servido para elevar Neil Postman ao nível de McLuhan, ambos visionários e profetas dos média. Por esse lado, tendo a concordar, a abordagem é próxima, ainda que Postman seja mais organizado e regrado, ambos tendem para uma escrita que tem mais de épico e menos de académico. Mas se a capacidade de criar boas metáforas é importante, porque ajuda à compreensão do complexo por um maior número de pessoas, não é condição suficiente de análise e criação de conhecimento. Por isso, não admira que os legados maiores de ambos sejam os títulos dos seus livros.

novembro 20, 2021

Flores para Algernon

"Flowers for Algernon" é um clássico consagrado da FC, escrito por Daniel Keyes em 1966, a partir de um conto seu escrito em 1959. As questões centrais são excelentes: tanto no domínio da medicina — cirurgias de otimização das funções cognitivas — para as quais ainda não temos respostas; como no domínio dos seus efeitos no campo psicologia social — o impacto do QI na relação dos indivíduos com a sociedade. Mas se as questões científicas são trabalhadas a um nível elevado, a narrativa fica bastante aquém, diga-se que seguindo a tradição de muita FC dos anos 1950. Por exemplo, apesar de entrarem vários outros personagens, nomeadamente pais e irmã, todos parecem estar ali meramente como adereços no suporte ao protagonista, tornando tudo menos real e menos humano. De qualquer forma, é um livro pequeno, que se lê muito rapidamente e que nos provoca a reflexão.

novembro 14, 2021

Céu e Inferno, por Bart D. Ehrman

A leitura de “Heaven and Hell: A History of the Afterlife” (2020) fez-me perceber que o Céu e o Inferno não é fábula, ou histórias, é jogo, mecânicas básicas de recompensa e punição. Como tal, percebi que o fundamento da discussão do além-vida prende-se menos com uma significação e mais com uma quantificação. Ao longo dos séculos, a definição do além-vida foi pouco além da proposta de uma linearidade com dois polos, o alto e o baixo, em que quanto mais alto melhor. É irrelevante o significado, uma vez que o ponto atingido é para todo o sempre, tornando-se assim apenas importante a quantidade de sofrimento ou contentamento obtida.

novembro 13, 2021

Teatro filmado romeno

"O Segredo da Felicidade" (2018), de Vlad Zamfirescu, é teatro filmado no seu melhor, ao nível de "Carnage" de Polanski ou "Who's Afraid of Virginia Woolf?" de Mike Nichols, não tanto na cinematografia, mas no guião que é soberbo. Dois amigos e a esposa de um deles, com a esposa do outro fora do quadro por se encontrar em casa a dormir. Todos convocados para discutir uma hipótese de swing após a traição de um dos pares. Começa tudo de forma muito leve, quase irrelevante, e vai crescendo, cada vez prendendo mais a nossa atenção até às distintas revelações que deixam de impactar os envolvidos para abalar tudo aquilo que pensávamos já ter compreendido. No final, ficamos ali a olhar para aquele magnífico balcão-pátio de um grande prédio de luxo, a pensar nos tais segredos da felicidade.


novembro 12, 2021

200 anos de Dostoiévski

Ontem foi o dia do aniversário dos 200 anos de Fiódor Dostoiévski que nasceu a 11 novembro de 1821, e por isso queria ler algo dele que ainda não tivesse lido, mas algo curto. Acabei por encontrar o que queria no Goodreads através da Sara, que partilhou a leitura de um conto que desconhecia, este "O Sonho de um Homem Ridículo" (1877). Li as primeiras páginas e senti-me atirado para “Memórias do Subterrâneo” (1864) sentindo uma imediata vontade de ler todas aquelas palavras, como se o autor ainda estive entre nós. E no entanto, todo o conto acaba discutindo isso mesmo, o estar no meio de nós, como e porquê, questionando quem determina até quando. 

Desenho de Joseph Charlemagne, ao qual adicionei o nome e datas.

novembro 07, 2021

As histórias podem ser tão ou mais importantes

"Uma Ofuscante Ausência de Luz" (2001) é um livro do escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, baseado no testemunho de um sobrevivente da prisão de Tazmamart, uma prisão secreta marroquina construída no meio do deserto, exclusiva para presos políticos, dotada de condições particularmente extremas. Os presos eram mantidos em celas subterrâneas, com menos de um metro e meio de altura, 24/24, podendo passar anos completos sem nunca ver qualquer luz. O testemunho usado por Jelloun é de um prisioneiro que ali sobreviveu por 18 anos, de 1973 a 1991. A expectativa que uma história destas gera no leitor é enorme, mas o livro coloca-nos no devido lugar, não nos oferece emoção fácil, faz-nos caminhar os degraus devagar, até ao topo, deixando para o final a compreensão do sentir completo. O livro recebeu o Prémio Literário Internacional de Dublin em 2004.