novembro 12, 2021

200 anos de Dostoiévski

Ontem foi o dia do aniversário dos 200 anos de Fiódor Dostoiévski que nasceu a 11 novembro de 1821, e por isso queria ler algo dele que ainda não tivesse lido, mas algo curto. Acabei por encontrar o que queria no Goodreads através da Sara, que partilhou a leitura de um conto que desconhecia, este "O Sonho de um Homem Ridículo" (1877). Li as primeiras páginas e senti-me atirado para “Memórias do Subterrâneo” (1864) sentindo uma imediata vontade de ler todas aquelas palavras, como se o autor ainda estive entre nós. E no entanto, todo o conto acaba discutindo isso mesmo, o estar no meio de nós, como e porquê, questionando quem determina até quando. 

Desenho de Joseph Charlemagne, ao qual adicionei o nome e datas.

novembro 07, 2021

As histórias podem ser tão ou mais importantes

"Uma Ofuscante Ausência de Luz" (2001) é um livro do escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, baseado no testemunho de um sobrevivente da prisão de Tazmamart, uma prisão secreta marroquina construída no meio do deserto, exclusiva para presos políticos, dotada de condições particularmente extremas. Os presos eram mantidos em celas subterrâneas, com menos de um metro e meio de altura, 24/24, podendo passar anos completos sem nunca ver qualquer luz. O testemunho usado por Jelloun é de um prisioneiro que ali sobreviveu por 18 anos, de 1973 a 1991. A expectativa que uma história destas gera no leitor é enorme, mas o livro coloca-nos no devido lugar, não nos oferece emoção fácil, faz-nos caminhar os degraus devagar, até ao topo, deixando para o final a compreensão do sentir completo. O livro recebeu o Prémio Literário Internacional de Dublin em 2004. 

novembro 06, 2021

Um Estado Policial Perfeito: Uma Odisseia pela Sinistra Distopia Vigilante da China

"The Perfect Police State: An Undercover Odyssey into China's Terrifying Surveillance Dystopia of the Future" (2021) foi um dos livros mais angustiantes que li nos últimos anos e não foi pelo relato de genocídio, que se pode ler noutras obras sobre povos perseguidos, desde os judeus aos curdos passando por regiões inteiras como os balcãs — Sérvia, Croácia, Eslovénia, Macedónia, Montenegro, Bósnia, — ou o Cáucaso — Arménia, Geórgia, Abecássia, Ossétia do Sul, Chéchenia. O que incomoda particularmente no relato sobre os Uigurs, povo do noroeste da China que faz fronteira com a Turquia, é o facto de ser algo que está a acontecer no momento presente. Mas não só, é algo que está a ser perpetrado por um governo do qual não podemos, como aconteceu com outros, arvorar ideias de distância ou desconhecimento, pois somos seus grandes parceiros comerciais. Desde a eletricidade que nos entra em casa, até ao fabrico de uma larga maioria de produtos que utilizamos no dia-a-dia, dos gadgets eletrónicos aos brinquedos que oferecemos às nossas crianças pelo Natal, a relação da Europa com a China é íntima. No entanto, quando se fala do genocídio que a China e as suas empresas tecnológicas, tais como a Huawei, estão a realizar naquela região, a tendência política, mas também dos nossos povos, tem-se manifestado por uma estrondosa indiferença. Mas tal não acontece por falta de evidências, vários órgãos internacionais, da ONU ao Papa, têm feito menção do problema, existem mesmo demonstrações de que temos obrigação legal de intervir! Contudo, nós, todos os que vivemos boas vidas neste velho continente, à custa da mão-de-obra barata da China, viramos a cara para o lado. Diga-se que não muito diferentemente do que fizemos durante a total aniquilação da cultura nativa das Américas, a que juntámos depois a exploração de escravos, de África, para garantir os níveis de produção de riqueza necessários ao sustento dos nossos luxos. Mas os Uigurs não são um povo do passado, o genocídio brutal que afeta uma população com 11 milhões, dos quais mais de 1 milhão se encontram presos nos mais de 200 campos de concentração, não aconteceu há 500 anos, está a acontecer agora, com relatos que remontam pelo menos a 2017, e a ser feito por alguém com quem nos sentamos à mesa todos os dias. Para não olhar apenas ao lado negativo, fazendo aqui mero auto-flagelo, deixo a nota imensamente positiva da primeira viagem de uma delegação da União Europeia a Taiwan ocorrida esta semana e na qual foi dito, de forma bastante sonora, “Vocês não estão Sozinhos”. Sabendo que Taiwan está na lista como próximo alvo a abater pela China, depois do périplo iniciado em Hong-Kong, esperemos que este seja o início de uma mudança profunda da relação da Europa com a China

outubro 30, 2021

Nação de Dopamina (2021)

Anna Lembke é psiquiatra e diretora da Clínica de Medicina em Dependências da Universidade de Stanford. Uma especialista no vício em ópio, sobre o que escreveu um livro em 2016, "Drug Dealer, MD: How Doctors Were Duped, Patients Got Hooked, and Why It's So Hard to Stop". Neste seu novo livro, "Dopamine Nation: Finding Balance in the Age of Indulgence" (2021), fala-nos do vício em geral, mas dedica-se à discussão do que tem vindo a ser discutido como "vício comportamental", visto por vezes como menos relevante que o vício em substâncias, as chamadas drogas. A abordagem realizada começa pelo próprio título que dá conta de uma nova era que Anna Lembke designa por "idade da indulgência" e que tem conduzido a própria sociedade aceitar desvios comportamentais com vícios como "comida, notícias, jogos de azar, compras, jogos digitais, mensagens de texto, sexting, facebooking, instagramming, youtubing, tweeting" como algo natural. A sua abordagem não é meramente crítica, mas construtiva, procurando essencialmente contribuir para a tomada de consciência do problema, expondo-se a si mesma, e desse modo, ainda que paradoxalmente, tornando a própria leitura do livro quase compulsiva!

outubro 27, 2021

Pátria ou tapeçaria humana

"Pátria" de Fernando Aramburu é um trabalho impressionante, não tanto pelo seu tema, os efeitos da ETA na sociedade Basca, mas mais pela forma escultural oferecida ao texto que consegue transpor um mundo tremendamente fluído e veloz de oralidade e pensamento para o discurso escrito. Para este efeito contribuem duas grandes abordagens: a variação de voz, entre primeira e terceira-pessoa, que acontece a todo e qualquer momento, dando conta da relação entre os pensamentos interior e público dos personagens; e a variação temporal, presente e múltiplos passados, com o discurso a variar no tempo em função de cada personagem, podendo ser 30 ou 5 anos ou meses, obrigando o leitor a ir atrás, contextualizando, mas contribuindo para a ideia de uma tapeçaria humana que se forma a partir de tiras de vidas. Tendo em conta este labor de Aramburu, e tendo eu acedido à versão portuguesa e espanhola, tenho de dizer que em Português se perde muito do seu efeito. 

outubro 23, 2021

Kentucky Route Zero (2020)

Escondido sob a capa do surrealismo, corrente estética em que a causalidade é desconsiderada conduzindo a consideráveis violações estruturais da história, "Kentucky Route Zero" (KRZ) constrói todo um universo de referências desconectas que obrigam o jogador a ir atrás. Nada disto é original no mundo dos jogos — basta pensar em "The Beginner's Guide", "Everybody's Gone to the Rapture", "Inside". O que é aqui claramente distinto é o uso, diria abuso, do suporte texto. KRZ é muito mais ficção interativa do que jogo de aventura gráfica. A experiência prolonga-se por cerca de 10 horas, tendo sido publicado em 5 episódios entre 2013 e 2020, o que foi permitindo análises distintas no tempo, nomeadamente porque se inicia de forma imensamente promissora, pela inovação na narrativa interativa, mas termina num limbo quase-ausente de interação.

outubro 17, 2021

Abelardo e Heloísa

Pedro Abelardo foi um filósofo francês que ficou conhecido pela tragédia proporcionada a partir do seu romance com a erudita Heloísa de Argenteuil. O seu legado é maior, teve grande impacto na filosofia e teologia da época medieval e influenciou o ensino tendo tido influência no surgimento da própria Universidade enquanto instituição. Ousado e muito à frente do seu tempo, muito deve, segundo ele, ao castigo que lhe foi infligido. O tio de Heloísa, após descobrir o casamento em segredo de ambos, mandou castrá-lo. Como legado pessoal, ficaram as cartas que escreveram um ao outro, numa época posterior e que podemos ler nesta obra. O texto das mesmas é bastante direto, expondo de forma clara o impacto dos acontecimentos sobre a pessoa de cada um deles.

Catalisadores de mudança comportamental

"The Catalyst: How to Change Anyone's Mind" (2020) é o segundo livro de Jonah Berger que leio, longe de ser tão bom como o primeiro — “Contagious: Why Things Catch On” (análise VI) — não deixa de ser imensamente interessante. O livro é pequeno e apresenta um modelo de intervenção persuasiva, por meio do acrónimo REDUCE que resume 5 princípios — "Reactance - Endowment - Distance - Uncertainty - Corroborating Evidence "— que são discutidos, um por capítulo, e suportados com exemplos relevantes, ainda que por vezes acabem roçando o anedótico.

outubro 16, 2021

A vida de Thomas Mann (2021)

"The Magician", publicado no passado dia 7 de setembro, não foi o livro que esperava ler sobre Thomas Mann. A meio senti mesmo uma enorme desilusão, senti falta do que tinha imaginado que este livro seria. Tinha criado expectativas muito concretas. Mas Colm Tóibín surpreendeu-me. A partir desse meio, por via de toda a construção até ali, comecei a sentir cada vez mais Mann e o seu mundo. Continuo a sentir falta daquilo que eram as minhas expectativas, mas tenho de conceder que Tóibín criou uma obra admirável. Mann foi uma pessoa que viveu intensamente, mas interiormente, a ponto de nem a si mesmo (nos seus diários) se revelar. Alguém que passou pela vida, procurando sempre não perturbar nada nem ninguém, porque muito determinado em seguir o seu próprio caminho. Esta forma de estar levanta muitas objeções morais, mais ainda quando passou pela vida, mesmo nos momentos mais terríveis da guerra, com grande conforto. Mas o retrato oferecido por Tóibín é feito sem julgamentos nem endeusamentos, e talvez por isso mesmo, capaz de nos aproximar do que terá sido conviver com Mann.