dezembro 06, 2020

Do logro narrativo

Tenho notado um cada vez maior uso do logro narrativo, que se qualifica por um tipo de entretenimento altamente manipulativo, criado pelos contadores de histórias contemporâneas, talvez com maior incidência no domínio da ficção científica e do thriller. Cria-se todo um mundo-história altamente credível, no qual se apresenta uma premissa extremamente instigante que serve para manter os recetores completamente engajados, mas no final nada há para entregar. Ou seja, passam-se as páginas, passam-se os episódios, e a trama vai rodando sobre si, criando a ideia de que a saída está ao virar da esquina, mas o ciclo está fechado porque os criadores não sabem como sair dele. 

O mais recente exemplo aconteceu-me com "Autoridade", o segundo livro da série "Aniquilação" de Vandermeer. No primeiro tomo não são dadas respostas, mas a trama evolui, ficamos a saber muito mais sobre o quê e o quem. No segundo livro, começamos muito bem, rente à análise que está a ser feita às pessoas que voltaram da última expedição, mas assim como começa, assim continua e assim acaba, sem dali sairmos. Vandermeer escreve como se tudo fosse muito importante, como se cada personagem, cada espaço, cada detalhe fosse oferecer explicações, respostas, avanços, mas nada, nada serve nada. Sentimos Vandermeer a escrever linhas atrás de linhas, abrindo ruas e avenidas, para mostrar coisas que não são relevantes para o que se pretende efetivamente descobrir, conseguindo assim encher páginas e páginas sem nunca ter de chegar a vias de facto. No final, dá um salto com o personagem, literalmente, e com isso abre o desejo para a leitura do terceiro livro, mas convenhamos que só com muita ingenuidade acreditaríamos que ele teria verdadeiramente algo para oferecer depois de nos ter enrolado um livro inteiro e oferecido uma mão cheia de nada. 

Tinha sentido exatamente isto na segunda temporada do brilhante “The Leftovers”, assim como no sucessor do impressionante "Dark Matter" de Blake Crouch, “Recursion” (2019), que seguem o exemplo mais emblemático deste logro, o inesquecível “Lost”. Aliás, este é um assunto que já aqui tinha discutido a propósito do livro “The Lost Symbol” (2010) de Dan Brown, mas na altura peguei no mesmo por outra perspetiva, a do “objeto último” ou “inatingível”, e que define bem o mecanismo através do qual os criadores produzem o logro.

Em suma, todos estes criadores têm de apresentar trabalho. Precisam de produzir para ganhar a vida, e por isso debitar linhas, páginas, horas de televisão e de jogo é essencial. Não interessa sobre o quê, desde que os leitores e espetadores se mantenham fiéis e continuem a pagar. Só isso interessa. No fundo, estamos a falar de conteúdo literário e audiovisual enlatado, produzido em linhas de montagem, para cumprir a função de mero apaziguamento psicológico dos recetores, ou melhor, de adormecimento das suas funções cognitivas, fazendo-os esquecer mais um pedaço de tempo em que estiveram vivos. Nunca como agora tivemos tantas séries, tantas partes — 2, 3.. 6, 7 —e temporadas sem fim, e por isso nunca como agora tivemos tanta produção criada apenas porque é preciso criar, é preciso manter a máquina a funcionar. Esquece-se aqui a essência do processo criativo: liberdade para transcender não para entorpecer.

dezembro 05, 2020

A política por detrás da Universidade que mata a Curiosidade

Trago um conjunto de reflexões que me foram proporcionadas pela interação de argumentos apresentados por três livros: "The Professor's House" (1925) de Willa Cather, "Leonardo Da Vinci" (2017) de Walter Isaacson, e "A Mind at Play" (2017) uma biografia de Claude Shannon. Porque continuamos a lutar todos os dias? Porque nos sacrificamos? Porquê ter desejo, sentir dor e prazer. Porquê? Para quê? Para quê avançar na educação e construir uma sociedade altamente educada, capaz de proporcionar a si mesma grande conforto, quando tarde ou cedo acabará por colapsar, por razões internas ou externas, mas reduzida a escombros de onde outras terão de voltar a emergir quase do zero?


A resposta parece apontar para a desistência, um niilismo, dada a insustentabilidade de qualquer dos argumentos. Mas se isto nos toca no fundo, e agita o que pensamos e repensamos diariamente, sabemos que a resposta não pode ser o NADA. Algo em nós anseia por mais do que o nada, e procuramos conhecer o que existe para além desse nada. A resposta, parece estar na análise dos nossos antepassados, pessoas que encontraram respostas contra esse nada e que viveram segundo essas mesmas respostas.

Neste sentido, e por fruto do mero acaso, calhou ler "Professor's House" durante o tempo em que andava a refletir sobre a biografia de Leonardo Da Vinci, daí que tenha concluído que na nossa história nenhuma outra pessoa poderia ser melhor antídoto para o nada. Não porque deu respostas aos "porquês", mas exatamente porque quando olhamos para a sua vida percebemos que essa pergunta não faz sentido. Leonardo nunca se questionou porquê, passou toda a sua vida, até à morte, a questionar-se sobre o como. A sua curiosidade por saber como o mundo funcionava era infinita. Foi por isso mesmo que acabei concluindo que Leonardo não era um artista, mas um designer. A arte foca-se excessivamente nos porquês, enquanto o design está totalmente focado nos como. Esta mesma ideia é apadrinhada pela leitura da biografia de Claude Shannon, um engenheiro por natureza, com um espírito de "tinkerer", muito próximo do designer Leonardo, sempre em busca de respostas aos como.

Por outro lado, Willa Cather traz ainda para a discussão a pressão constante a que a Universidade está sujeita pela sociedade e seus políticos, no sentido de apresentar resultados quantificáveis e medíveis, justificadores do investimento público (repare-se que o texto é de 1925). Contudo ao colocarem esta pressão sobre quem investiga, retiram-lhe a essência, destroem-lhe a curiosidade e o engenho. O sujeito investigador, passa a questionar-se sobre o porquê de fazer o que faz, para quê? Sabe que é para melhorar a sociedade, mas sabe que isso é parte de um formalismo político. Dentro  de si, existe um sujeito, um indivíduo, e trabalhar para o suposto bem comum é relevante, mas não chega para apaziguar a constante interrogação interna. 
“Both, with all their might, had resisted the new commercialism, the aim to “show results” that was undermining and vulgarizing education. The State Legislature and the board of regents seemed determined to make a trade school of the university. Candidates for the degree of Bachelor of Arts were allowed credits for commercial studies; courses in bookkeeping, experimental farming, domestic science, dress-making, and what not. Every year the regents tried to diminish the number of credits required in science and the humanities. The liberal appropriations, the promotions and increases in salary, all went to the professors who worked with the regents to abolish the purely cultural studies. Out of a faculty of sixty, there were perhaps twenty men who made any serious stand for scholar (..) They were, moreover, the only two men on the faculty who were doing research work of an uncommercial nature, and they occasionally dropped in on one another to exchange ideas.” Willa Cather, (1925). “The Professor’s House”
Leonardo é hoje imensamente reconhecido pelas suas obras de arte, e no entanto aquilo que o manteve vivo toda a sua vida foram os seus cadernos, a sua investigação sobre o design do mundo — da água à anatomia, do voar aos engenhos militares. Nada do que fez nesses ramos teve qualquer valor para a sociedade, porque nada disso foi publicado em forma ou tempo útil, obrigando aos que o sucederam a terem de redescobrir tudo. Mas se olharmos ao caso de Claude Shannon, o responsável por todo o pensamento que sustenta aquilo que hoje designamos por Sociedade da Informação e Comunicação, nada do que fez alguma vez foi feito com o intuito de criar a Informática ou a Internet. Ambos, Leonardo e Shannon, moveram-se apenas e só pela mais pura e absoluta curiosidade, um é hoje imensamente admirado, o outro mudou o mundo.

Se continuarmos a obrigar os professores-investigadores universitários a focarem-se na produção de artigos em massa e na angariação de projetos apenas em função do retorno financeiro, por mais científicos que sejam, não só conduziremos estes professores-investidadores para o niilismo, matando a sua curiosidade, como os seus resultados não passarão de produtos em série, conduzindo a Universidade ao estatuto de simples fábrica, condenando-a, tarde ou cedo, ao colapso.

dezembro 04, 2020

Animação: Smashing Pumpkins "In Ashes"

Saiu hoje o último episódio da a série de animação"In Ashes" (2020), com a música "Purple Blood" dos Smashing Pumpkins. Em tempos de pandemia, e na impossibilidade de filmar telediscos, a banda resolveu produzir toda uma série de animação em cinco episódios para o lançamento do novo álbum "Cyr". A série trabalha um mundo de ficção-científica e é apresentada em 2D, ainda que se sirva de um conjunto de outros suportes, tais como o 3D, mas mantendo o efeito de ilustração analógica. Esta relação particular com a arte fílmica não é novidade nesta banda, pois em 1995 já nos tinham oferecido um revisitar do filme "A Viagem à Lua" de Méliès, na forma de teledisco de "Tonight, Tonight". 

Billy Corgan escreveu a história e disse que "embora seja (na sua maioria) alegre, 'In Ashes' aborda muitas coisas que enfrentamos todos os dias, e se vivemos numa distopia, no paraíso, ou em ambos, a escolha, dizem alguns, é tua; e pode até mesmo ser uma mera questão quântica." A história da série serve de mote para o tom pretendido para o álbum que segundo Corgan se caracteriza como “a dystopic folly”.
Podem encontrar mais informação sobre o desenvolvimento técnico no AWN

Cada um dos episódios serve uma música do álbum, mas a animação não funciona como ilustração musical, antes a série funciona como filme completo, funcionando muito bem em sucessão. Tecnicamente a animação não é muito detalhada, mas a ilustração e a música compensam, criando uma belíssima experiência. Fica o último episódio, e abaixo a lista com links para os 5 episódios.

dezembro 03, 2020

"O Som da Montanha" (1954)

De Kawabata ainda só tinha lido "Terra de Neve" (1948), e se tinha gostado não me tinha deslumbrado, dadas as expectativas colocadas por qualquer autor recipiente de um Nobel. Decidi continuar com "O Som da Montanha" (1954) por ser o livro escolhido pelo Instituto Norueguês do Nobel para figurar na lista das 100 Obras Literárias do Mundo. Posso dizer que as obras se aproximam, ainda assim, em termos de mundo-história e sentimento imprimido, prefiro Terra de Neve, por sinal, o seu livro com mais edições e resenhas no GoodReads.

Estamos em 1954, pouco tempo após o final da Segunda Grande Guerra, a cultura é japonesa clássica, mas o foco de Kawabata parece ser exatamente a viragem que estava a acontecer nos costumes mais tradicionais do Japão, nomeadamente as relações entre casais, o divórcio e o adultério, e especialmente o modo como as gerações mais velhas lidavam com a transformação dos costumes que estava a ser operada pelos filhos.

É uma obra dramática, mas sem tragédia, o olhar japonês mais dado à reflexão tranquila impede esse caminho. Mas percebemos, ainda que à superfície, que as personagens sofrem, mais por não saber como lidar com o diferente do que propriamente por considerarem esse diferente errado. 

Mas, como disse a propósito de "Terra de Neve", é difícil para nós ocidentais e em pleno século XXI, descortinar a interpretação esperada por Kawabata na escrita e delinear dos comportamentos dos seus personagens. Não temos certezas das linhas vermelhas que estão ou não a ser ultrapassadas, por isso lemos tudo como se de uma realidade, um tanto indiferente, se tratasse, apesar de compreendermos, ou melhor sentirmos que de pessoas reais se trata.

dezembro 01, 2020

Gramáticas da Criação (2001)

É um livro denso, com muita argumentação e contra-argumentação que requer uma contextualização que não é muito clara por se limitar a dizer que o livro surgiu das suas Gifford Lectures de 1990. Mas as Gifford Lectures não são umas quaisquer lições académicas, são seminários sujeitos a uma temática concreta: a Teologia Natural. Aliás foi nestas que William James apresentou também o seu famoso livro "As Variedades da Experiência Religiosa" em 1902. Ora a Teologia Natural procura provar a existência de Deus por meio filosófico, sem recurso ao sobrenatural. Assim compreende-se que aquilo que está em questão, em toda a discussão apresentada, não são os processos criativos artístico e científico convocados por Steiner, mas explicitamente a criação da existência humana.

Todo o livro é uma deambulação pelas ciências da linguagem, das humanidades e artes indo até às ciências naturais e exatas, para dar conta daquilo que é, ou podem ser, os processos de: Descoberta, Invenção e Criação. Tenho de dizer que em muitos momentos fiquei ali imerso, seguindo o seu pensamento, tentando captar, apreender e aprender. Contudo, quanto mais avançava no livro, mais certo estava de que nada daquilo conduziria a lado algum. Steiner dedica-se apenas e só a aprofundar ideias, a escavar conceitos em todas as dimensões possíveis, apresentando teias de possibilidades, mas nunca se chega à frente para tomar um caminho, para decidir o que quer realmente de tudo aquilo. 

“The Latin invenire would appear to pre-suppose that which is to be “found,” to be “come upon.” As if, to invoke the question underlying this study, the universe had already been “there,” had been extant for the Deity to find, perhaps to stumble upon. Turned to haughty paradox, this invenire is implicit in Picasso’s: “I do not search, I only find.” The tenor of discovery attaches to the Latinate verb when it first enters the English language towards the close of the fifteenth century (invention is thus a late-comer). Yet very quickly, the overlap between “finding” and “producing” or “contriving” becomes evident. After the 1540s, invenire can pertain to the composition, to the production of a work of art or of literature.”

(...)

“The aura of “feigning,” of “fabrication”—itself a term in the highest degree ambiguous—of “contrivance,” modulating into falsehood, is audible after the early 1530s. As the term ripens into currency, both spheres are present: that of origination, production and first devising on the one hand, that of possible mendacity and fiction on the other. ”

(...)

“As I noted, something within the deep structures of our sensibility balks at the phrasing and concept: “God invented the universe.” We speak of a major artist as a “creator,” not as an “inventor.”

(...)

“I have already cited the taboo on the “making of images” in Judaism and Islam. To create such images is to “invent,” it is to “fictionalize” in the cause of a virtual reality, scenes, real presences beyond human perception or rivalry (“I know not ‘seeming,’” says Hamlet in his rage for truth). Time and again, we will meet up with the artist’s sense of himself as “counter-creator,” as competing with the primal fiat or “let there be” on ground at once exultant and blasphemous. Is the lack of humour, so marked in the Hebraic-Christian delineations of a revealed God, instinct with the seriousness of creation? Invention is often thoroughly humorous. It surprises. Whereas creation, in the sense of the Greek term which generates all philosophy, thaumazein, amazes, astonishes us as does thunder or the blaze of northern lights.”

(...)

The taboo, always only partial and often circumvented, on the representation of the human person attaches to a uniquely subtle aesthetic of the ornament, of the mathematical logic and beauty of the geometric. Persian and Arab calligraphy are more than suggestive of algebra (itself, of course, partly of Islamic origin). Centrally, the strain of iconoclasm in Islamic sensibility and architectural practice underlines the paradox latent in any serious aesthetics after the Mosaic prohibition on the making of images and after the Platonic critique of the mimetic. A malaise lies near the heart of re-presentation. Why “double” the natural substance and beauty of the given world? Why induce illusion in the place of truthful vision (Freud’s “reality principle”)? Non-figurative, abstract art is in no way a modern Western device. As ancillary to the reception of the figural prodigality of the natural world, it has long been crucial to Islam. In its formalized borrowings from the shape of plants, from the geometries of live water, the Islamic ornamental motif is simultaneously an aid to disciplined observation of the created and an act of thanks. To borrow a key phrase: the aesthetics of Islam are indeed a “grammar of assent.”

(...)

“There is explicit engagement with transcendence in an Aeschylus, a Dante, a Bach, or a Dostoevski. It is at work with unspecified force in a Rembrandt portrait or on the night of Bergotte’s death in Proust’s Recherche. The wing-beat of the unknown has been at the heart of poiesis. Can there, will there be major philosophy, literature, music, and art of an atheist provenance?”

Eu concordo com Steiner quando ele diz que os físicos não se podem recusar a discutir o que existiu antes do Big Bang, mas não chega dizer que o rei vai nu, menos ainda com isso mesmo limitar-se a levantar a véu do retorno da ideia de um Criador de tudo. Desde logo, porque não concordo com o seu remate de que criadores ateus dificilmente poderão criar obras tão ou mais transcendentes que as de Michelangelo ou Dostoiévski. A declaração de Nietzsche de que "Deus está Morto" é mera constatação do processo desvelado por Darwin, o que não tem de ser nenhum niilismo, menos ainda um "desperançoso" "zero negro" como Steiner parece querer constatar no fecho da sua lição. 

Por outro lado, toda a viagem por entre o virtuosismo referencial de múltiplas ciências e artes é vertiginosa e por isso não supreende a admiração que Steiner sempre manteve na academia. Esta obra é talvez um dos seus maiores legados, representativo da sua mestria e capacidade intelectual.


Nota: lido em inglês em audiobook, acompanhado pela versão portuguesa editada pela Relógio d'Água com tradução de Miguel Serras Pereira.

novembro 30, 2020

"Hiroshima" de John Hersey

Ao chegar a Hiroshima, em Maio de 1946, o jornalista John Hersey deparou-se com um cenário que já tinha sido amplamente noticiado, a destruição maciça da paisagem urbana, causada pelo lançamento da primeira bomba nuclear sobre uma cidade habitada, a 6 de agosto de 1945. A sua abordagem seria diferente de qualquer outra reportagem feita até então, sobre este ou qualquer outro caso. Hersey entrevistaria múltiplas pessoas, escolheria aprofundar a vida de seis delas, com o que enceteria a escrita da primeira novela documental. Assim, "Hiroshima" lê-se como um drama literário, reportando factos, eventos e notícias como se de uma novela se tratasse.

Em temos sensoriais, "Hiroshima" fica bastante atrás de "Vozes de Chernobyl", contudo o contexto que suporta a descrição é muito mais violento, tornando a sua leitura muito mais dramática. Hersey escreveu nos anos 1940, uma época em que os media eram bastante contidos em termos gráficos, não descreve os horrores que lhe contaram nem que viu, dá indícios, apresenta alguns laivos, mas um pouco à distância. No entanto, o impacto do que escreveu, à data foi enorme. Para nós, hoje, o pouco que diz ganha uma dimensão abrasadora pelo contexto, ou seja, o primeiro lugar densamente habitado a sofrer uma detonação nuclear de forma premeditada e no desconhecimento de todos os que lá viviam. Os relatos da tentativa de adivinhar que tipo de bomba teria sido lançada impressionam fortemente porque nada é pior do que o desconhecido. O cabelo cai, a pele cai, os órgãos deixam de conseguir reproduzir, mas se não soubermos porquê o terror aumenta.

Antes e depois da detonação da bomba baseada em urânio que produziu um impacto equivalente a 15 mil toneladas de TNT, tendo morto imediatamente cerca de 90 mil pessoas, e nos meses subsequentes mais cerca de 50 mil.
3 anos após a detonação, em 1948, as crianças ainda usavam máscara em Hiroshima para alegadamente se protegerem da radiação.

Ou seja, o registo apesar de leve oferece-nos uma "fotografia" bastante aproximada da vida naquele lugar nos dias imediatamente a seguir à explosão e é insubstituível. Aliás, não é por acaso que as obras de Svetlana Alexievich são tão relevantes, as vozes de quem passa pelas tragédias conseguem aportar uma dimensão humana que é impossível de transmitir por meio de terceiros ou mesmo de registos audiovisuais.

Este número da New Yorker foi publicado com um texto único, este de John Hersey

Esta reportagem, que a New Yorker continua a manter completa e acessível online, foi ainda importante, porque naquela altura tanto o governo americano como o japonês procuraram ocultar o que tinha verdadeiramente acontecido em Hiroshima e Nagasaki. Para saber mais sobre este livro, a sua origem e a sua publicação pela New Yorker, aconselho a leitura do texto “Hiroshima”: a reportagem do horror é a reportagem do século" publicada no Expresso de 31 de agosto de 2016.

novembro 28, 2020

Porque nos atraem as distopias (“The Last of Us 2”)

Nos últimos anos temos sido servidos por distopias em tudo quanto é meio narrativo, da literatura ao cinema, passando pelos videojogos, a televisão e a banda desenhada, não existe espaço de criação cultural e de imaginário que não tenha exemplos férteis de cenários apocalípticos, do fim de tudo e de todos. Muito se tem falado sobre o seu caráter de antevisão, não faltando profecias sobre o tema, algo a que o fim do milénio não será também alheio, mas parece-me existir aqui algo distinto, algo de que me dei conta ao jogar “The Last of Us 2” (2020) de Neil Druckmann enquanto lia “Hiroshima” (1946) de John Hersey.

novembro 26, 2020

O conflito no drama

A peça "Oleanna", de David Mamet, foi escrita e encenada em 1992, mas quem não souber acreditaria facilmente se lhe dissessem que tinha sido escrita e encenada em 2018, no auge do movimento #MeToo e todas as discussões satélite à volta do poder, tradição, censura, homem branco, igualdade de género, politicamente correto e a enorme polarização política. Lemos Mamet e não queremos acreditar que as preocupações centrais em termos de autoridade mudaram muito pouco em 30 anos. O mundo mudou, mas o modo como olhamos para ele é que parece continuar igual, com o conflito longe de qualquer resolução.
Sinopse: "Um professor universitário recebe no seu gabinete uma aluna para apreciação de um trabalho. O diálogo inicial transforma-se num violento confronto de ideias sobre as finalidades da educação e do ensino, o lugar do indivíduo na sociedade, as relações entre os sexos e os limites da liberdade."
Mamet não sai em defesa de nenhum dos lados, aliás, ele usa o melhor que o teatro oferece, a dramatização do conflito humano, para nos colocar dentro de um ringue verbal, sem vencedor escolhido, obrigando-nos a mudar de campo amiúdas vezes ao longo da leitura. Quem é quem? Quem julga ser Quem? Não sabemos, e a peça acaba sendo um exercício brutal de retirada contínua do tapete que conforta as nossas certezas.

Se o conteúdo da peça se vier a tornar irrelevante, que duvido, a forma continuará a ser um dos mais brilhantes exercícios de escrita dramática.

Todas as resenhas no GoodReads

novembro 22, 2020

a mecânica da ficção

"A Mecânica da Ficção", ou "How Fiction Works" (2008) de James Wood, não é um livro sobre escrita, nem sobre os processos de criação ficcional, é antes um livro sobre elementos da escrita que despoletam mundos de ficção, pelo que devemos partir para a leitura percebendo que a ficção acontece na interação entre o texto e a imaginação de quem lê. Assim, o que Wood faz é uma discussão sobre aquilo que o leitor e crítico leem, veem e sentem quando tornam em ficção as palavras presentes numa folha de papel. Não é uma obra sobre os processo psicológicos de criação dessa ficção porque se cinge ao que está escrito, ao que vem no papel, não elaborando sobre os processos pelo meio dos quais, nós leitores, efabulamos a ficção. Dito isto, é um texto sobre estética, ou seja, a experiência da obra de arte, na sua assunção direta, na interpretação do que vemos, lemos e sentimos, sem procurar compreender o como, ou seja, a psicologia do autor, no modo como ele age e cria a escrita, e do leitor, no modo como ele infere e cria o imaginário. Funciona como boa introdução à análise literária, mas não deve ser visto como compêndio de técnicas de escrita nem de percepção narrativa.

Exposto o alerta, o texto de Wood é excelente para quem deseja compreender melhor a análise da ficção, nomeadamente da ficção criada por meio de texto. A sua leitura ajuda-nos a entender porque certas obras são consideradas melhores do que outras, além de nos ajudar a compreender a evolução histórica da arte literária, assim como o modo como se processa essa evolução. 

Deixo alguns excertos que considero excecionais e nos ajudam a ser melhor leitores. Apesar de ter lido a versão portuguesa da Quetzal, numa tradução do Rogério Casanova, os excertos provêm da edição digital brasileira da SESI-SP, com tradução de Denise Bottman.


Narração e estilo indireto livre

“A casa da ficção tem muitas janelas, mas só duas ou três portas. Posso contar uma história na primeira ou na terceira pessoa, e talvez na segunda pessoa do singular e na primeira do plural, mesmo sendo raríssimos os exemplos de casos que deram certo. E é só. Qualquer outra coisa não vai parecer muito uma narração, e pode estar mais perto da poesia ou do poema em prosa. (...) Na verdade, estamos presos à narração em primeira e terceira pessoa. A ideia comum é de que existe um contraste entre a narração confiável (a onisciência da terceira pessoa) e a narração não confiável (o narrador não confiável na primeira pessoa, que sabe menos de si do que o leitor acaba sabendo).” (cap. 1)

“Uma vez W. G. Sebald me disse: “Para mim, a literatura que não admite a incerteza do narrador é uma forma de impostura muito, muito difícil de tolerar. Acho meio inaceitável qualquer forma de escrita em que o narrador se estabelece como operário, diretor, juiz e testamenteiro. Não aguento ler esse tipo de livro”.”

“A chamada onisciência é quase impossível. Na mesma hora em que alguém conta uma história sobre um personagem, a narrativa parece querer se concentrar em volta daquele personagem, parece querer se fundir com ele, assumir seu modo de pensar e de falar. A onisciência de um romancista logo se torna algo como compartilhar segredos; isso se chama estilo indireto livre, expressão que possui diversos apelidos entre os romancistas − “terceira pessoa íntima” ou “entrar no personagem”"

Graças ao estilo indireto livre, vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciência e a parcialidade. Abre-se uma lacuna entre autor e personagem, e a ponte entre eles − que é o próprio estilo indireto livre − fecha essa lacuna, ao mesmo tempo que chama atenção para a distância."

"Esta é apenas outra definição da ironia dramática: ver através dos olhos de um personagem enquanto somos incentivados a ver mais do que ele mesmo consegue ver (uma não confiabilidade idêntica à do narrador não confiável em primeira pessoa).”


Flaubert, a revolução da forma e do detalhe

“Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à primavera: tudo começa com ele. Realmente existe um antes e um depois de Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende como narrativa realista moderna, e sua influência é tão grande que se faz quase invisível. Quando falamos de uma boa prosa, raramente comentamos que ela realça o detalhe expressivo e brilhante; que privilegia um alto grau de percepção visual; que mantém uma compostura não sentimental e que se abstém, qual bom criado, de comentários supérfluos; que é neutra ao julgar o bem e o mal; que procura a verdade, mesmo que seja sórdida; e que traz em si as marcas do autor, que, embora perceptíveis, paradoxalmente não se deixam ver. ” (cap. 29)

De início, não notamos o cuidado com que Flaubert escolhe os detalhes, porque ele se esforça em nos ocultar esse trabalho, e é zeloso em esconder a questão sobre quem está notando todas essas coisas: Flaubert ou Frédéric? Flaubert foi muito claro a respeito. Ele queria que o leitor ficasse diante do que chamava de parede lisa de prosa aparentemente impessoal, os detalhes apenas se acumulando, como na vida. “Um autor em sua obra deve ser como Deus no universo, presente em toda parte e visível em parte alguma”, disse numa frase famosa numa carta de 1852. “Como a arte é uma segunda natureza, o criador dessa natureza deve operar com procedimentos semelhantes: que se sinta em cada átomo, em cada aspecto, uma impassibilidade oculta, infinita. O efeito no espectador deve ser uma espécie de assombro. Como surgiu tudo isso!” (cap .30)

Flaubert baseia esse novo estilo realista no uso do olhar − o olhar do autor e o olhar do personagem (...) Essa figura é, em essência, um substituto do autor, é seu explorador permeável, irremediavelmente transbordando de impressões (...) O surgimento do explorador permeável está intimamente ligado ao surgimento do urbanismo, ao fato de que imensas aglomerações de seres humanos lançam ao escritor − ou ao substituto designado para isso − quantidades imensas e atordoantes de detalhes variados. Jane Austen é, basicamente, uma romancista rural” (cap. 33)

Se podemos narrar a história do romance como o desenvolvimento do estilo indireto livre, também podemos narrá-la como o surgimento do detalhe. É até difícil dizer por quanto tempo a narrativa de ficção foi escrava dos ideais neoclássicos, que preferiam a fórmula e a imitação ao individual e à originalidade.” (cap. 49)

Podemos ler Dom Quixote, Tom Jones ou os romances de Austen e encontrar pouquíssimos daqueles detalhes recomendados por Flaubert. Austen não nos dá nada dos aparatos visuais que encontramos em Balzac ou Joyce e quase nunca se detém em descrever sequer o rosto de um personagem. Roupa, clima, interior, tudo está comprimido e afinado com elegância. Os personagens secundários em Cervantes, Fielding e Austen são teatrais, muitas vezes estereotipados, e passam quase desapercebidos no sentido visual.” (cap. 50)

“Como ocorre tantas vezes, a herança flaubertiana é uma bênção ambígua. Surgem de novo aquele estranho peso da “seletividade” que sentimos nos detalhes de Flaubert e a consequência dessa seletividade para os personagens do romancista − nossa sensação de que a escolha do detalhe se tornou o tormento obsessivo de um poeta, e não a leve alegria de um romancista.” (cap. 50)

“Assim, durante o século XIX, o romance se tornou mais pictórico.” (cap. 51)

“Não podemos escrever sobre ritmo sem falar de Flaubert, e assim, mais uma vez, como alguém que vive relendo as velhas cartas de um antigo amor, volto a ele. Claro que, antes de Flaubert, outros autores se mortificaram com o estilo. Mas nenhum romancista se preocupou tanto ou tão publicamente, nenhum romancista fez da poética “da frase” um fetiche no mesmo grau que ele, nenhum romancista levou a tais extremos a potencial separação entre forma e conteúdo (Flaubert sonhava em escrever, como dizia, um “livro sobre nada”). E, antes dele, nenhum romancista se compenetrou tanto em refletir sobre questões técnicas. Com Flaubert, a literatura se tornou “essencialmente problemática”, como definiu um estudioso. Ou apenas moderna?” (cap. 103)

“E o que Flaubert entendia por estilo, por musicalidade de uma frase? Esta é de Madame Bovary − Charles se sente estupidamente orgulhoso por ter engravidado Emma: “L’idée d’avoir engendré le délectait”. Tão compacta, tão precisa, tão rítmica. A tradução literal é: “A ideia de ter engendrado deliciava-o”. Geoffrey Wall, em sua tradução para a Penguin, escreve assim: “The thought of having impregnated her was delectable to him” [O pensamento de tê-la engravidado lhe era deleitável]. Isso é bom, mas coitado do pobre tradutor. Pois o inglês é um primo pobre do francês.” (cap. 103)


Metáfora

“A metáfora é análoga à ficção porque sugere uma realidade rival. É o processo imaginativo inteiro numa única ação. (...) “Estou lhes pedindo que imaginem outra dimensão, que concebam uma semelhança. Toda metáfora ou símile é uma pequena explosão de ficção dentro da ficção maior do conto ou do romance. (...) E é claro que essa explosão da ficção-dentro-da-ficção não é exclusivamente visual, assim como nenhum detalhe na literatura é exclusivamente visual.” (cap. 107)

“O tipo de metáfora que mais me agrada, porém, como as citadas sobre o fogo, é aquela que cria um estranhamento e logo em seguida faz uma conexão, e, ao fazer tão bem esta última, oculta o primeiro. O resultado é um pequeno choque de surpresa, seguido por uma sensação de inevitabilidade. Em Rumo ao farol, a sra. Ramsay dá boa-noite aos filhos e fecha cuidadosamente a porta do quarto, deixando "a língua da porta se estender devagar na fechadura”. A metáfora nessa frase não consiste tanto na “língua”, que é bastante convencional (pois as pessoas falam nas linguetas das fechaduras), mas está secretamente enterrada no verbo “estender”. Esse verbo estende o procedimento inteiro: não é a melhor descrição que vocês já leram de alguém virando muito devagar a maçaneta da porta para não acordar as crianças? ” (cap. 108)


Se comecei este texto por dizer que o livro tratava a análise literária e não a escrita, foi porque muito daquilo que aqui se descreve não está presente, pelo menos de forma consciente, na mente de quem escreve. O processo criativo, seja na escrita, pintura ou outra arte qualquer não se compadece de formulas nem guiões, a não ser quando se trabalha por encomenda. O modo como escolhemos as palavras, ou a palete de cores, em cada momento é determinado pelo imenso turbilhão de desejos e tensões que ocupam o nosso não-consciente na interação com o consciente. O criador, cria algo novo, porque se deixa levar pelo processo, e não porque se senta dizendo: "hoje vou criar uma metáfora capaz de..." ou "vou colocar o narrador depois do autor e antes do personagem". Se assim fosse, nada fluiria, apenas estruturas e mapas emergiriam em resposta à vontade predeterminada de criar. Isto é algo que se sente muito ao longo da leitura do texto, em que por vezes parece que Wood faz o criador ter a intenção de, quando na verdade, o criador é levado pelo próprio processo criativo. Nós, na análise é que podemos depois depurar o quê e o como, mas isto não serve a quem cria, apenas a quem analisa.

Isto é tanto mais evidente em dois capitulos que considerei mais fracos, "Personagens" e "Diálogo", porque Wood se deixa levar inteiramente pela subjectividade da sua experiência sem perceber que aquilo que interpretamos num texto, não é igual para todos. Ou seja, se o criador segue um processo interno próprio, o leitor não deixa também de o seguir. A imagimação criada na minha mente, a partir de uma frase lida num livro, não depende tanto daquilo que Wood aqui desconstrói, mas bem mais do meu processo de inferência, um processo completamente dependente da minha história experiencial enquanto dono de uma consciência humana. Por isso, ser um leitor europeu ou americano (mais nova-iorquino), com formação superior, vivendo no século XXI, com a leitura do cânone ocidental clássico realizada, permite-nos chegar muito mais próximo da Ficção imaginada por Wood do que falhando qualquer um destes elementos definidores do leitor.

Uma nota final sobre Flaubert. Agradeço a Wood todo esta desconstrução literária e análise histórica do impacto do trabalho de Flaubert, sem o que eu teria tido dificuldade em compreender o porquê de tantos grandes nomes da literatura se curvarem perante o mesmo. Compreendi e passei a respeitar muito mais Flaubert e a sua obra, ainda que julgue que tal não altere, em profundidade, ambas as interpretações que fiz dos dois livros seus que li"Madame Bovary" (1857) e "Educação Sentimental" (1869). Em ambos, foquei-me quase exclusivamente no conteúdo, a história, por me faltar este enquadramento histórico-literário apresentado por Wood. Mas como fiquei a saber por Wood, Flaubert era um formalista, à semelhança de Hitchcock, ambos sempre desprezaram o que se contava, interessava-lhes apenas a forma como se contava.

Wood termina com um capítulo intitulado "Verdade, convenção, realismo", no qual se dedica ao mais velho problema da arte — ilusão ou realidade; verdade ou viés. É uma questão cíclica, e ainda que sempre instigante, mas na verdade apenas relevante quando se analisa a estética desprendida da psicologia.