junho 11, 2020

Auto-de-Fé (1935)

Mais um livro que encosto. Estive para o fazer por volta da página 60, mas insisti. Novamente na página 100, mas insisti. Perto da página 200 dei por mim a ler na diagonal, por isso achei que não valia a pena. Lê-se nalgumas recensões que a escrita é complexa, que não é, se comparado a outros clássicos é até bem acessível. Sim, existem algumas partes com fluxos de consciências mescladas, mas nada que Woolf já não nos tivesse dado a ver. Ou seja, por aí nada de novo. Nas ideias temos ainda menos, já que somos brindados com uma única ideia que se repete sem fim ao longo de todo o livro.
Sobre a escrita, não só não é complexa, como é pouco atrativa. Aliás, o caso que Canetti teve com Iris Murdoch e que tem servido para muita discussão sobre o comportamento de cada um, fez-me lembrar a beleza da escrita dela que se eleva muitos patamares acima de Canetti. Canetti além de escrever frases muito curtas para não ser perder ou não perder o leitor, está continuamente a repetir ideias e a explicar o que aconteceu uma e outra vez. É verdade que este foi o seu único romance, como tal o primeiro, por isso o meu ataque não é tanto ao autor, mas a quem diz que a escrita de Canetti estava repleta de qualidades. Não li os seus livros seguintes de não-ficção, nomeadamente "Massa e Poder" (1960) por isso não posso dizer nada sobre o Nobel.

No campo das ideias, pode-se dizer que existem ali imagens simbólicas, tenho lido relações com o pré-Grande Guerra, com o que levaria à produção dessa mesma segunda guerra em termos comportamentais. Contudo isso parece-me um exagero. O livro foi publicado em 1935, Canetti tinha 30 anos, e do que sabemos o livro baseou-se mais num acontecimento político relacionado com uma Revolta de 1927 em Viena, nomeadamente as fogueiras de livros. Aliás, diz-se mesmo que se terá baseado na reação das pessoas, percepcionada por si, como mais preocupadas com os livros que ardiam do que as pessoas que morriam.

No computo final, o texto acaba por se transformar num chorrilho de repetições que ainda por cima se limitam a dar conta de comportamentos absurdos. Tudo bem que podem servir para demonstrar o absurdo de algumas personagens das nossas sociedades e como estas conduzem a comportamentos desviantes destas sociedades. Contudo se lutamos para não ter de conviver com elas, por que havemos de suportar centenas e centenas de páginas falando sobre elas, apenas do ponto de vista delas? Mais ainda, páginas que não aprofundam a sua psicologia, mas se limitam a repetir os mesmos traços uma e outra vez, provavelmente para gáudio de alguns leitores. Confesso que o humor não é o meu género preferido, menos ainda a sátira, e isso terá contribuído para a minha impaciência.

junho 07, 2020

"A Origem" de Graça Pina de Morais

“A Origem” é considerado um dos livros mais ingratamente esquecidos da nossa literatura, escrito em 1958 pela médica cardiologista e escritora, Graça Pina de Morais, foi reeditado pela Antígona em 1991 e desde então mantido em publicação pela editora de Luis Oliveira. Nas linhas que se seguem procurarei dar conta da importância do livro e também de algumas das suas potenciais fragilidades.
Vista da casa em que Graça Pina de Morais viveu com a família e que serviu de inspiração a este romance

Quando se inicia a leitura na primeira página o impacto é imediato, percebemos que estamos perante um texto particularmente dotado. A escrita apresenta elevada erudição e fabrico. Denota toda uma bagagem de leituras que serve minuciosamente a elaboração discursiva que a autora procura manter sempre num registo acessível. Trabalha com grande fluidez e detalhe as descrições, usando a ação para dar conta dos espaços e das pessoas, evitando assim as imagens descritivas estáticas tão comuns noutros autores nacionais desta época. Existe um conhecimento sobre a psicologia humana que sustenta a forma como vai dando a conhecer e trazendo para a proximidade do leitor cada um dos personagens. A autora trabalha uma galeria alargada de personagens no entanto consegue ilustrar bem cada um destes, usando a especificidade dos seus comportamentos para os individualizar.
Assim, se toda a linha narrativa é apresentada num modo perfeitamente linear, próximo do romance realista do início do século, a galeria de personagens é marcada pela ausência de um protagonista evidente, o que mostra uma estrutura bem menos clássica. Ou seja, o romance linear tendia a agarrar-se ao personagem que tudo atravessa para formular o arco narrativo, dando conta do chamado coming-of-age. Aqui não temos protagonista, podemos indicar pelo menos 3 ou 4 que o poderiam ser, para Pina de Morais todos os seres parecem ter o mesmo valor, nenhum vale mais do que o outro. Fica a dúvida se isso se deve a uma vontade estrutural do romance, ou um sentir ideológico. Vejamos alguns dados.  

A edição que hoje podemos ler foi editada por Luís Oliveira a conselho de Herberto Helder, que nos conta [1] como para uma editora jovem no início dos anos 1990, tinha pouco para oferecer. Contudo a autora não colocou qualquer entrave ao interesse do editor e ofereceu-lhe mesmo o manuscrito, em 1991, não querendo qualquer compensação ou direitos. Aliás, Graça de Morais tinha já recusado um prémio nos anos 1960, por este lhe ser ofertado pelo Estado Novo [1]. Assim como durante anos ofereceu consultas médicas às pessoas da região da casa da família, onde ia de férias para escrever. Estes factos e mais algumas descrições dão conta de uma pessoa que apesar de não ter passado propriamente dificuldades, atendeu particularmente a uma vida simples e frugal [3].

A Casa das Quintans
Pequeno escritório da casa onde escrevia, sem qualquer vista para o Douro

Podemos juntar ainda a estes factos os relacionados com a casa onde decorre toda a ação. A Casa surge sempre grafada com maiúscula, sendo a primeira parte intitulada em sua homenagem, mantendo forte relevância ao longo de todo o romance. À medida que vai progredindo a narrativa, ela vai passando a fundo, mas a sua presença enquanto envolvência é permanente, transformando-se em espaço, direi mesmo em realidade alternativa, desligada das regras e leis naturais. Sente-se que a autora foge do detalhar de certos comportamentos assim como partes da casa, deixando no ar ideias, como se não houvesse palavras para descrever o não descritível. E é quando recorremos à história real da Casa das Quintãs [2] que percebemos melhor aquilo que paira na mente de Graça Morais. A casa foi comprada pelos avôs maternos de Graça Morais Pina, comerciantes de vinho, numa hasta pública. O anterior proprietário tinha perdido a casa por dívidas de jogo, tendo tentado ali, sem sucesso, suicidar-se, deixando ainda marcas na casa como salas inteiramente pintadas de preto [1]. Temos aqui o pano de fundo para “A Origem”, com a autora a usar a liberdade do romance em busca de respostas, tentando dar sentido à Casa e a quem a tinha habitado, à Origem. 

O interior da casa das Quintans

"O ser humano é sujeito, por vezes, a sensações de pavor e angústia que surgem momentâneas e lancinantes, não por um facto real que deveras aterrorize, mas por algo de irreal que não pode discernir, nem concretizar." A Origem, (1958:24)

Sobre a proximidade autobiográfica, a autora dizia em entrevista:

“O romance que me deu mais prazer a escrever foi A Origem. Passava noites acordada, encadeando ideias. Sentia-me uma iluminada. Contava a História da minha própria família absolutamente deformada pela imaginação.” A autora em entrevista [4]

Acrescente-se ainda que nesta mesma casa, que é parte do roteiro dos Escritores do Norte [5] viveram 4 escritores todos ligados a Graça Pina de Morais (1925 - 1992), o seu tio Domingos Monteiro (1903 – 1980), o seu pai João Pina de Morais (1889 – 1953), e a sua irmã Elisa Pina de Morais (1926 – 2001). Os homens têm obra novelística mas são claramente recordados pelo seu envolvimento político, e a irmã por obra no campo do direito. A relação com a casa parece surgir apenas nesta obra de Graça de Morais, contudo surge com tanta força e evidência que acaba por se tornar ela própria na personagem, secundarizando os reais personagens do lugar. A determinada altura, e depois de muito me ter interrogado sobre a postura do narrador, que desgostei, e já explicarei, comecei a sentir que o narrador seria a própria casa, o que explicaria muitos dos problemas desse narrador, mas serviria por outro lado para elevar ainda mais o relevo e alcance do romance.
Temos então um trabalho escrito na terceira-pessoa com um narrador clássico omnisciente, com todos os problemas que daí advém [6] e que aqui se tornam por demais evidentes. Desde a estranha sensação de que o narrador é e não é o autor, de que ele sabe, sem saber, conhece sem conhecer, sem se apresentar. Isto torna-se ainda mais problemático quando esse narrador desata a atacar todos os personagens de que nos dá conta. Não existe uma única personagem em todo o livro que seja inteligente, culta ou dotada, quando tal se diz, passadas poucas páginas é contradito. Apesar da autora ser mulher, a crítica às capacidades femininas é vil. Ao mesmo tempo, não raras vezes se redundam significados, dando a mão ao leitor, parecendo existir receio da sua fraca compreensão. Tudo serve na verdade para aumentar a sensação de grande estranheza. Deixo apenas três exemplos:

"Ana Joaquina não a entendia; a linguagem da senhora era muito elevada para os seus modestos recursos." A Origem (1958:59)

"Não era estúpida como ela própria imaginava. Tinha uma inteligência mediana. Era só excessivamente feminina e todos os assuntos do exame estavam longe dela." A Origem, (1958:149)

"João tinha um total desconhecimento da vida e das suas bases práticas. Nunca abandonara a casa, onde gente perturbada e ilógica vivia." A Origem, (1958:236)

Este dar a mão, por meio de explicações diretas de algo que a autora quer apenas deixar subentendido é particularmente estranho. Parece que a autora sentia a necessidade de reforçar o que queria dizer como se não o tivesse conseguido. Contudo essas explicações não podem deixar de ser encaradas como provindo de um outro personagem daquele mundo. Não faz sentido atribuí-las à autora, já que o comportamento destoa totalmente daquele expresso e reconhecido por muitos na sua pessoa. Por isso resta-nos interpretar o narrador como a Casa, aquela que conheceu todas aquelas pessoas, que as qualificava segundo uma ordem de inteligência, esperteza e poder, sem receios nem pudores. Aquela que determinava a particularidade daquele lugar, fazendo leis próprias que obrigavam a quem ali habitava a servir e a seguir determinados modelos e propósitos.

Não me parece que fosse intenção da autora discutir grandes ideias, propor grandes visões, existe um foco no mal, na sua origem, mas não é algo trabalhado em suficiente profundidade. Contudo vejo um mundo criado por Graça de Morais intenso e real na sua irrealidade. Não é só a boa escrita da autora que nos agarra, é também a construção do mundo-história sólido que nos alberga enquanto leitores e clama por nós sempre que fechamos o livro. Apesar de se referir que o esquecimento da obra de Graça de Morais se deve ao facto de ser mulher, não posso deixar de evocar aqui “O Sino” de Iris Murdoch escrito em Inglaterra em 1958, e “A Sibila” de Agustina Bessa-Luís de 1954. Duas obras, estruturalmente superiores a “A Origem”, mas com as quais Graça de Morais ombreia de igual para igual no domínio da erudição escrita. A autora só escreveria mais um romance, mais de 10 anos depois, “Jerónimo e Eulália” (1969), o que provavelmente impediu o seu crescimento enquanto criadora e pode ter ditado algum do esquecimento referido no início.


Referências

[1] Graça Pina de Morais, a mulher que estava presa à liberdade, in Série Escritoras Esquecidas, Jornal de Negócios, 4 outubro 2019

[2] Casa Museu Quinta das Quintans, Facebook 

[3] Jesus, Isabel Henriques de. (2015). Estrangeiras: Mulheres em Jerónimo e Eulália de Graça Pina de Morais. Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, (33), 23-35. Recuperado em 07 de junho de 2020, de 


[5] Casa de Quintans, Escritores a Norte, Online

[6] "A Mecânica da Ficção" (2008) de James Wood

Descobri que a autora deu uma entrevista a Manuel Poppe mas que esta nunca passou na televisão. Entretanto Poppe terá transcrito a mesma para um livro de memórias que terá servido a muitos dos que trabalham a obra de Graça Pina de Morais.

maio 31, 2020

Design de Experiência através do “Power of Moments”

“The Power of Moments: Why Certain Experiences Have Extraordinary Impact” (2017) é o terceiro livro que leio dos irmãos Heath depois de “Made to Stick: Why Some Ideas Survive and Others Die” (2006) e “Switch: How to Change Things When Change Is Hard” (2010). Direi que este “Power of Moments” se aproxima bastante de “Made to Stick” pela estrutura, mas em termos de objetivos congrega os dois anteriores. Em “Made to Stick” tínhamos o modo como podíamos desenhar experiências que permanecessem na memória das pessoas. Em “Switch” tínhamos o modo como poderíamos contornar as dificuldades que se colocam à mudança. Em “Power of Moments” juntam-se ambos e temos então a discussão sobre o modo como o design de experiências pode contribuir para a transformação de pessoas. Percebe-se que é o mais ambicioso dos três, mas apesar de algumas boas ideias dificilmente entrega o que promete, principalmente pela dimensão da ambição. Ainda assim vale a leitura para quem trabalha na área.

maio 30, 2020

"I Will Never See the World Again" (2019)

Ahmet Altan foi preso em 2016, a seguir ao golpe de estado falhado na Turquia. Altan tinha um historial, enquanto jornalista, de escrever artigos proibidos, por serem alegadamente contra a Turquia, falando do direito à autodeterminação dos povos curdos e arménios que vivem sob a opressão da Turquia. Por isso foi listado na longa lista de intelectuais, académicos, militares e magistrados que foram presos como forma de purga do sistema turco. Várias associações internacionais, como o PEN Internacional e a Amnistia Internacional, iniciaram em 2017 um pedido de apoios e manifestos pela sua libertação juntando nomes como Neil Gaiman, Ali Smith, Salman Rushdie, Margaret Atwood e Joanne Harris que de nada valeu, já que um ano depois seria sentenciado a prisão perpétua. Dias depois dessa sentença, surgiu uma carta aberta no The Guardian assinada por 38 prémios Nobel, contando do domínio da literatura com Svetlana Alexievich, JM Coetzee, Kazuo Ishiguro, Herta Müller, VS Naipaul, Wole Soyinka e Mario Vargas Llosa. Um ano meio depois, Ahmet Altan veria a pena reduzida para 10 anos. Por ter já cumprido 3 anos, seria libertado para grande regozijo internacional, mas menos de uma semana depois, a pedido do procurador, voltaria a ser preso. Altan escreveu na semana passada um artigo sobre os efeitos do COVID-19 na prisão em que ainda se encontra para o Washinton Post.
O livro de memórias "I Will Never See the World Again" foi escrito durante os primeiros tempos de prisão, relata o momento de prisão, a espera, os julgamentos e a estadia na prisão. É um livro muito curto, focado num breve momento de vida, mas é um livro pleno de fôlego. Não existem aqui dedos em riste, acusações, existe um escritor que analisa o que sente, o que vê e como isso altera o seu interior. É uma verdadeira viagem pelo interior de alguém a quem foi retirada a liberdade, a autonomia. Altan, sem acesso a internet nem biblioteca, cita autores e frases completas de memória, dos clássicos com que vai convivendo no seu mundo interior, interagindo com autores como Dante, Homero, Tolstói ou Saramago.
Altan cita de memória Saramago — "There is no consolation, my sad friend, humans are inconsolable creatures" — a partir do livro "Jangada de Pedra" (1986:60)

O livro está escrito como momentos que se dividem em capítulos, alguns dedicados ao sentimento da prisão, injustiça e esperança outros dedicados à arte e literatura. Num desses capítulos Altan disserta sobre diferença entre os escritores do século XIX — Tolstói, Balzac, Flaubert e Dostoiévski — que qualifica de centrados nos personagens e suas emoções e os escritores do século XX —Musil, Céline ou Joyce — focados apenas nas ideias. Diz algo com que concordo, os personagens dos primeiros são mais importantes do que os seus autores, enquanto para os segundos apenas lhes interessa falar de si mesmos, servindo os seus personagens apenas de veículos.

A escrita, bagagem e visão do mundo apresentada nestas poucas linhas atraíram-me a ponto de ter começado a procurar o próximo livro do autor para ler.


maio 24, 2020

“Quando Tudo se Desmorona” (1958)

“Quando Tudo se Desmorona” fala de uma tribo em África algures no passado, dando conta dos costumes, hábitos e comportamentos sociais instituídos. Para o leitor Europeu de hoje os costumes apresentados — de governo, de casamento, relações pais e filhos, doenças, etc. — parecem toscos e nalguns casos apresentam-se mesmo como hediondos. Contudo, enquanto lemos, e pela forma quase neutra como tudo vai sendo apresentado, parecemos estar perante uma sociedade com um largo conjunto de regras que formam uma civilização, tal como a nossa já terá sido. É inevitável não parar a tentar compreender porque determinada regra foi instituída, ainda que algumas tenham à mistura algumas incógnitas proporcionadas pelos oráculos, deuses e magias, mas na generalidade é possível extrair as causas e razões da instituição das regras. Os homens mais fortes com as suas tarefas e deveres, as mulheres menos fortes com as suas tarefas e obrigações, e quem não se encaixa no perfilado é ostracizado. Tudo acaba sendo menos violento porque a própria natureza consegue ser ainda mais severa ao permitir que homens e mulheres que dão à luz a uma dezena de filhos os possam perder todos. Por isso, percebe-se que a realidade ali não é a realidade que nós hoje vivemos, as condições ditam, inevitavelmente, os modos de ser da nossa espécie. É no tempo, pela aprendizagem com tudo aquilo que os que vieram antes de nós nos legam que podemos tentar enfrentar e sobreviver com menos dor. O respeito pelos mais velhos, pela experiência passada faz-se relevante e serve de lei, mesmo quando dela duvidamos.


A chegada dos missionários (não é dito, mas foram os portugueses quem primeiro contactou com as tribos Igbo e iniciou o processo de cristianização e ao mesmo tempo de rapto de escravos) abre um olhar novo sobre aquelas vivências, inevitavelmente nos vemos ali representados, compreendendo, mas não aceitando. Porque hoje compreendemos algo que os nossos próprios antepassados não compreendiam, que a cultura dos outros não é pior do que a nossa apenas por ser diferente. Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para o que fazíamos pela frente — evangelizar — enquanto por detrás torturávamos, violentávamos, matávamos e raptávamos. Achebe não o diz, mantém sempre a neutralidade, tal como manteve no relato dos costumes mais bárbaros das tribos, com a perspetiva fixa nos personagens de cada tribo que não compreendem quem somos e porque estamos ali. Mas custa muito ler e imaginar como tanto sucedeu durante séculos.

A edição portuguesa foi publicada pela Mercado de Letras

O livro foi primeiramente escrito em inglês porque a Nigéria se tornou numa colónia britânica no século XIX, e esteve debaixo do seu domínio até 1960, sendo um livro obrigatório nas escolas britânicas e em muitos lugares de África. Contudo, considero que deveria ser obrigatório também em Portugal. Temos obrigação de ter muito mais consciência do que fizemos, é difícil pensar hoje que o nosso país chegou a deter o monopólio do transporte de escravos. Claro que tal como não devo condenar os costumes das tribos, mesmo os mais macabros, também não posso condenar um país por erros cometidos há 500 anos.

“Quando Tudo se Desmorona” é um dos maiores legados da literatura africana, mas também do nosso tempo, aproveitemos o conhecimento e experiência proporcionada por Chinua Achebe para nos conhecermos melhor a nós mesmos.

maio 23, 2020

O Sino (1958)

Iris Murdoch é para mim uma escritora muito particular por ser capaz de produzir uma escrita carregada de erudição e ao mesmo tempo imensamente acessível. Apresenta enorme densidade em elaboradas construções frásicas que funcionam como belos descritivos de ação e pensamento que nunca cansam. Por outro lado, consegue fazer tudo isso mantendo um fio de enredo imensamente intenso, com um sucedâneo de eventos que captam o nosso interesse, e nos levam a questionar sobre o que vai acontecer a seguir, enquanto nos deliciamos com os interiores de cada personagem.
O “Sino” não está muito distante do “O Mar, o Mar” (1978), temos uma pequena comunidade de pessoas, cada uma com as suas particularidades, mas unidas por um mesmo desejo, encontrar-se, perceber o que podem ainda fazer das suas vidas que os faça sentir melhor consigo próprios e com os outros. Temos espiritualidade pelo meio, com um convento vizinho, mas o centro é mesmo a quinta para onde se retiram na ânsia por, através do afastamento da realidade corriqueira cheia de prazeres e culpas, encontrar a transcendência que lhes permita redimir tudo o que para trás ficou.

O “Sino”, apesar de aqui apelidado de Gabriel (o anjo mensageiro de Deus), acaba por não entregar as mensagens que todos esperam, criando uma conclusão anti-climática, mas ao mesmo tempo realista, porque de acordo com os resultados destes retiros que tantos de nós prezamos e passamos tempos a imaginar que podiam por nós, pelo interior, fazer milagres. Relembre-se “Walden” (1854) de Thoreau, hino ao escape e retiro, que acaba por colocar a nu o quanto tudo não passa de mero luxo inventado pela burguesia, birra em jeito de confronto das regras instituídas para viver em sociedade.

Mas o que me fica desta leitura é muito mais o mundo criado, a densidade humana povoado pelo interior de cada personagem, as suas relações, rejeições, ânsias e medos. Murdoch enreda belissimamente o que tem para contar, e transporta-nos para o universo por si criado, fazendo-nos sentir bem no seu mundo.

maio 01, 2020

Teoria Geral do Esquecimento

É um livro curto, mas se se lê numa tarde deve mais às brilhantes competências do autor no contar de histórias. Com uma premissa digna do género fantástico — uma agorafóbica que se empareda dentro de um apartamento no topo de um prédio de luxo em Angola durante os tumultos da transição para a independência e aí permanece por 30 anos sozinha — as parcas 250 páginas parecem voar na nossa frente, tecendo ficção e História de vários povos e especialmente de um continente. No final, respira-se África, respira-se humanidade, sente-se uma enorme leveza, apesar do Esquecimento, a dignidade nunca foi perdida.
Foi o primeiro livro de Agualusa que li, tendo-me apanhado totalmente de surpresa. Aproximei-me por causa da premissa, após a tomada de conhecimento da mesma numa lista de romances africanos, mas assim que abri a primeira página só consegui parar para almoçar e depois no virar da última página, o que dá bem conta do virtuosismo de Agualusa. Tenho de dizer que me ajudou imensamente o enquadramento do momento da independência de Angola escrito por Kapuściński — "Mais um dia de Vida" (1975) —, já que foi como voltar a esse a livro, e partir daí para uma outra história, que acabaria por se revelar muito mais do que isso.


[Muito breve interpretação com possível spoiler]

Não querendo revelar completamente o sentido da metáfora, aquilo que Agualusa procura dizer está centrado no título, sendo a personagem de Ludo quem encerra o livro questionando-se a si mesma sobre o porquê de todos aqueles anos perdidos, o porquê de se ter votado a todo aquele esquecimento, o que inevitavelmente nos obriga a pensar no continente, e no eterno esquecimento de si e por todos nós. No meio do conceito, acabamos por começar a criar uma teia mais alargada de sentidos desde logo a mais simbólica criada pelos animais-personagens — o cão albino Fantasma, o macaco Che Guevara, o hipopótamo Fofo e o pombo-correio Amor, mas também as origens da fobia de Ludo com base num evento na Costa Nova. Tudo é trespassado por uma teia narrativa que cruza sacos de diamantes com amantes, pais, protetores e condenados próprios do melhor que o realismo mágico nos tem dado.
O livro é curto, mas o fôlego é enorme, oferecendo profunda inspiração. O mundo do Esquecimento agarra-se a nós e preenche toda a nossa vontade de sonhar. Por várias horas não conseguimos desligar daquele universo, sentindo apenas que é ali que queremos estar, naquele mundo que produz, por entre a melancolia, uma visão de alcance sem fim graças à luz límpida de África que nos preenche de esperança.


Nota quantitativa no GoodReads.

abril 27, 2020

O Enigma de Nabokov

Li vários livros de Nabokov, li sobre a sua pessoa, os seus gostos, preferências e aversões, fui visitar a sua casa de infância e juventude quando estive em São Petersburgo, no entanto nunca compreendi muito bem porque era um autor que eu amava sem conseguir amar completamente a sua obra. “Lolita” deslumbrou-me totalmente em termos formais, contudo, nenhum outro livro seu alguma vez se aproximou. Ao mesmo tempo, não conseguia compreender o seu total desprezo por Dostoiévski, chocava-me ler o que dizia sobre ele, não muito diferente do que me choca ler o que diz Lobo Antunes sobre Fernando Pessoa. E agora, depois de ler "Fala Memória" (1951), julgo ter finalmente compreendido o enigma, sobre o que me deterei nas próximas linhas.
Nabokov teve uma infância digna da monarquia, mas com pais profundamente preocupados com a sua formação, tendo ele, por inclinação própria, sabido bem aproveitar tudo o que lhe foi oferecido. Antes de ter sido exilado, em fuga da Revolução Russa, para Cambridge em 1919, onde foi fazer o seu curso com cerca de 20 anos, tinha já viajado por quase toda a Europa. Aprendeu inglês antes do russo, falava e escrevia fluentemente além destas o francês e o alemão. O seu pai era profundo amante de literatura e ofereceu-lhe todo um mundo de leituras desde a mais tenra idade. Nabokov teve todas as condições para aceder ao melhor de tudo o que ser humano tinha criado até então nas artes literárias. Além disso, começou a prática de escrita desde muito cedo. Juntando a inclinação própria e diga-se alguma sorte pela particularidade oferecida pela sinestesia e o ambiente apropriado, Nabokov iria tornar-se num maestro das letras. A sua prosa evoluiria, o poético ganharia enorme densidade, e isso serviria para impulsionar intensamente a sua arte. Contudo, sinto que Nabokov seria sempre mais artesão do que artista.

Sempre considerei estranhos os dois papéis mais reconhecidos em Nabokov, escritor e colecionador de borboletas, por qualquer razão nunca senti que combinassem. No entanto, a relacioná-los colocava a beleza. A beleza das suas frases e a beleza dos padrões das borboletas. Foi agora, ao ler as suas memórias que compreendi o quão essas duas partes se aproximam, e como definiam a própria escrita de Nabokov. Desde logo, essa relação é evidente no modo distante e frio como fala da sua infância e família, como se tivesse estado sempre a janela vendo os eventos passar. Perto do final, demonstra para meu maior espanto, o prazer que retirava da criação de problemas de xadrez (estes problemas consistiam em montar uma jogada no tabuleiro e definir um número máximo de jogadas permitidas para fazer xeque-mate). O gosto por jogar xadrez não é per se qualquer motivo de surpresa, mas obter profundo prazer na conceção e resolução de problemas formais é um marcador indissipável da psicologia de um criador.

Esta análise que faço está naturalmente imbuída do trabalho que tenho vindo a desenvolver no campo dos perfis psicológicos e do modo como estes definem a nossa curiosidade e motivação, no modo como nos predispõem para o envolvimento com a realidade. Tendo eu definido três perfis — Abstracionista, Experimentador, Dramatista —, Nabokov parece não se encaixar em nenhum, ou encaixar nos dois mais opostos. Em favor do abstracionista, Nabokov apresenta o seu lado colecionista obsessivo e a resolução de problemas. Para o lado dramatista, Nabokov apresentava naturalmente a sua literatura e os seus romances. Contudo, da análise da sua literatura e relação com as qualidades de cada perfil, a conclusão a que chego é que Nabokov foi muito mais abstracionista do que dramatista, ou seja, foi alguém focado em sistemas e estruturas, pouco interessado em pessoas e nos seus dramas, algo que espero demonstrar nos pontos seguintes:


1 – Nabokov não gostava de Dostoiévski porque não compreendia a dramatização da psicologia humana colocada em cena por este. Para Nabokov a escrita era fraca, os enredos repetitivos, faltava beleza formal. Mas Nabokov na verdade não compreendia o que se passava efetivamente no interior de Raskólnikov, e menos ainda daqueles que o liam.

2 – Do mesmo modo Nabokov ridicularizava Stendhal, Balzac, Mann, Faulkner, Camus ou Roth, escritores que muito fizeram pelo avanço do psicologismo no romance, em choque frontal com a larga maioria dos escritores e críticos e de forma ostensiva. Na verdade, Nabokov não conseguia chegar a certos tipos de escrita, não por não ser capaz, mas porque não lhe tocavam, não lhe falavam.

3 - Durante alguns anos admirei Nabokov por ser frontal e falar abertamente contra Sigmund Freud, contudo só agora compreendi que aquilo que o incomodava nada tinha que ver com os seus métodos muito pouco científicos, mas apenas e só com o facto deste trabalhar a psicologia humana.

4 – A curiosidade de que Nabokov terá visitado os 46 estados americanos, referido neste livro mais de uma vez, em busca de borboletas, é mais do que isso, é um elemento central para compreendermos o seu comportamento obsessivo. Nada o faria impedir de ir atrás das suas metas e objetivos, eles foram sempre o seu norte.

5 – Do mesmo modo, os ataques a Boris Pasternak e Alexander Solzhenitsyn, os dois russos a ganhar o Nobel (1958 e 1970) quando Nabokov já era considerado um génio das letras, têm mais que ver com o competitivo inato em Nabokov do que com qualidades desses autores ou até mesmo inveja. O Nobel é um prémio, apesar da competição ser algo exótico no domínio da narrativa, das histórias e das letras, mas era isso apenas que interessava a Nabokov, atingir os objetivos.

6 — Um dos seus livros mais estudados é um poema, mas não é um poema qualquer. “Pale Fire” é um conjunto de significados escondidos por debaixo da capa e forma de um poema, mas “Pale Fire” não é nenhum poema, porque antes de o ser é um puzzle. Os críticos deslumbram-se com as intrincadas métricas que perfazem o poema de exatas  999 linhas, e o modo como os cantos podem ser lidos em série ou paralelo, abrindo caminho ao chamado hipertexto e cibertexto. “Pale Fire” é um problema textual criado por Nabokov, tal como os problemas que adorava criar para xadrez.


Tudo o que elenquei não diz que Nabokov não era escritor, nem que não era dotado de génio na escrita, mas diz-nos que Nabokov era fraco contador de histórias e que na verdade tinha pouco para dizer. O seu foco foram eram coisas e objetos, os humanos eram para si secundários, não relevantes, tal como diz o próprio George Steiner:
"O caso de Nabokov parece envolver uma desumanidade profunda, ou, mais precisamente, uma desumanização. Há compaixão em Nabokov, mas é superada em muito pelo desdém elevado, sombrio." George Steiner, Grandmaster, The New Yorker, December 10, 1990, pp. 153-157.
Para alguém que se considerava a si mesmo um génio e que prezava a arte acima de tudo, parece parco. Porque se admitimos a um cientista que se foque nos objetos em vez das pessoas é porque o seu trabalho contribui para o avanço do conhecimento humano que por sua vez servirá a todos. Já quando um artista se foca apenas na sua arte, no virtuosismo da mesma desligada de tudo e todos, é apenas a si mesmo que serve. No final de cada livro seu, fico sempre encantado com a forma, com a estrutura, com o virtuosismo, mas o que retiro verdadeiramente da leitura sabe a pouco. O único livro em que a forma me bastou, talvez porque tinha de bastar para compensar a abjeção da história contada foi “Lolita”, e é falando sobre esse que quero terminar, porque acredito que o enigma aqui desvelado nos pode ajudar a compreender um pouco melhor essa obra.

“Lolita” apresenta uma escrita absolutamente singular. Não é mera poesia, é toda a textura textual que cria um sentimento de espanto e surpresa no modo como o universo nos vai sendo oferecido, do ritmo do texto às metáforas ricas. Por sua vez, toda essa beleza é contraposta à descrição do mais profundo horror. Esse horror continua, até hoje, a não ser compreendido por quem o lê, gerando interrogações e dúvida sobre o que verdadeiramente está em questão na história que se conta. Contudo, a partir do que discuti acima, parece-me que a explicação está no perfil psicológico de Nabokov, alguém profundamente focado em coisas, não em pessoas. O seu foco era o livro, a obsessão pelo texto perfeito era total, já os personagens e os eventos eram apenas mais uma história, igual a tantas outras. O enigma emerge assim pela falta de empatia de Nabokov, pelo modo como se alheava completamente da relação emocional criada pelos personagens das suas obras com os seus leitores. O abjeto e nojo são por demais evidentes em “Lolita”, contudo Nabokov não parece apresentar nunca consciência de tal ao longo de todo o livro. Claro que se podem evocar sentidos escondidos na relação entre a beleza do texto e a beleza da ninfeta, contudo nada dessas interpretações poderá esconder o negrume do que se apresenta. Ou mais facilmente poderíamos dizer que pessoas más não fazem más histórias, para o que bastaria evocar Raskólnikov, mas para tal o escritor não poderia "esquecer-se" de evidenciar de que lado estava.

abril 25, 2020

Problemas do Estoicismo, de Seneca a Epictetus

Passei os últimos meses à volta de vários livros de Seneca (4 a.C. — 65 d.C) — “De brevitate vitae” e “Epistulae morales ad Lucilium” — e Epictetus (55—135) — "Enchiridon” e “Discursos”. A razão pelo que fiz este investimento tem que ver com um certo encantamento pelo Estoicismo que me perseguia há décadas e que acabaria por aumentar ainda mais com a leitura de “Meditações” de Marcus Aurelius (121—180). Contudo, ao chegar a este ponto, pós-leitura dos textos originais, dos dizeres de cada um, tenho de dizer que o encantamento se desfez. Nem Seneca nem Epictetus me convenceram, antes pelo contrário ditaram o fim da minha procura. Apesar de tal, continuo a reconhecer qualidades em ambos, mas separo-os de Marcus Aurelius, e espero conseguir explicar porquê ao longo das próximas linhas.

Epictetus e Seneca


Mais Religião do que Filosofia
O estoicismo tem sido, do meu ponto de vista, definido erradamente como corrente filosófica. Na verdade, o estoicismo é mais uma religião, e é aqui que reside o seu principal problema. Porque, de uma forma simples, o estoicismo nunca esteve preocupado em estudar e compreender a realidade, a existência, ou sequer as morais. O estoicismo, objetivou muito mais à determinação do que era certo e do que era errado. O pensar sobre ou a reflexão aprofundada sobre causas e motivações pressupõe uma evolução contínua das dinâmicas que sustentam a realidade que não se coaduna com a determinação de certos e errados, de deveres e direitos. Isto faz sentido no âmbito de uma religião, sem qualquer carga pejorativa, já que ela serve na determinação de caminhos de pertença a grupos: “é certo isto, é errado aquilo, és igual a nós porque aceitas o certo e condenas o errado” se “acreditares no mesmo que nós, serás verdadeiramente feliz”, de outro modo “a infelicidade irá perseguir-te para todo o sempre”.

Repare-se como Seneca não está preocupado em discutir o que cria a sensação de passagem de tempo, ou porque sentimos que o tempo passa rápido ou lento, ele tem apenas certezas, e é isso que oferece a quem o quiser ouvir:
“Não é que tenhamos um curto espaço de tempo, mas que desperdiçamos muito dele. A vida é longa o suficiente e foi dada em medida suficientemente generosa para permitir a realização das maiores coisas, se a totalidade dela for bem investida.” In “Da Brevidade da Vida”
Todo o seu discurso assenta na ideia de estar na posse da verdade e de a poder demonstrar, mesmo quando aquilo que diz vai contra aquilo que fazia. Seneca foi um dos principais conselheiros das artimanhas políticas do Imperador Nero e também um dos homens mais ricos de Roma, repare-se nalgumas das frases do “Epistulae morales ad Lucilium”:
“De longe mais importante será viver como se estivéssemos sempre perante o olhar de algum homem de bem; eu já me darei por satisfeito se tu agires sempre como se estivesse a ser observado, uma vez que a solidão é conselheira de todos os vícios.” LIVRO 3, CARTA 25
“Faz o que te digo, pede conselho à filosofia, e ela te convencerá a não te importares com as contas! É esse então o teu problema, é por isso que adias a tua formação:  para não teres de recear a pobreza! E não será a pobreza desejável?” LIVRO 2, CARTA 17
Muitos de nós procuram na religião respostas, pressionados por um desespero criado pela ausência dessas. O melhor exemplo do verdadeiro filósofo foi e continua a ser Sócrates, conhecido pelo homem que fazia perguntas para as quais não tinha respostas. O mundo e nós, continua tudo a ser uma incógnita: de onde viemos e porque estamos aqui? O problema são os nossos receios e fantasmas internos, por sua vez alimentados pela nossa intrínseca necessidade de viver em comunidade. Não podemos viver sozinhos, precisamos dos outros, por isso é mais fácil encaixar no pensamento de um grupo e prosseguir. Porque o pensamento precisa de um corpo biológico para estar vivo, sem corpo não existe pensamento, logo o corpo e as suas necessidades sobrepõem-se inevitavelmente aos desejos existenciais. Assim torna-se preferível atirar para o fundo do nosso interior existencial a voz que clama por repostas, tapando a dúvida com verdades redondas e aceites por todos, concluindo que “viver na ignorância é uma bênção”.

Seneca e Epictetus não pretenderam oferecer respostas à razão por que estamos aqui, nesse sentido nunca quiseram tornar-se gurus religiosos. Ambos reconheceram a complexidade da realidade, e a nossa incapacidade para alcançar a compreensão do todo. Existem alguns princípios enunciados por ambos que servem de guia ao resto do seu trabalho, mas de uma forma geral, ambos se focaram muito mais na moral e comportamento. E se isto nos obriga a reconhecer que de algum modo foram mais do que simples religiosos, quando analisados em detalhe, parecem-nos ainda menos, talvez não menos, mas igualmente pouco relevantes.

Tenho de confessar que o meu primeiro choque com a possibilidade do Estoicismo na ser nada daquilo que eu entendia ser, me chegou tarde e apenas por via da leitura de “A History of Western Philosophy” de Bertrand, não tanto pela forma como ele destrói por completo a Ética de Aristóteles, mas primeiramente pela forma como ignora totalmente Seneca. Bertrand na pequena sumula dedicada ao estoicismo fala quase apenas dos pensadores gregos, dedicando pouco à vertente romana, e nessa falando quase exclusivamente das perspetivas de Epictetus e Marcus Aurelius. A principal razão prende-se com o facto de os romanos em nada terem avançado a filosofia proposta, e terem apenas se dedicado à discussão da moral, ainda que sustentados na base filosófica grega. Vejamos então essa base.

Fatalismo, a base da Contradição Estoica
O principal ataque às ideias dos estoicos surge normalmente por causa do determinismo. Os seus primeiros proponentes, os gregos Zenão (333 — 263 a.C.) e Crísipo (280 —208 a.C.), enredaram-se num conjunto de ideias que numa primeira linha parecem imensamente atrativas mas quando escrutinadas desembocam em paradoxos.

Zenão, o impulsionador da doutrina, defendeu a felicidade humana com base no abandono da emoção — emergente das paixões e posses —, contudo para garantir esse abandono era preciso uma recompensa lógica, para o que se agarrou a ideia de que tudo é comandado pelo destino, nada do que façamos alterará o percurso das coisas. Quando se acredita na ausência de esperança, na ausência de possibilidade de se atuar sobre as condicionantes, não é apenas a resignação que se instala, com esta emerge algo poderoso, a perda do medo, que acaba por oferecer uma força tremenda para continuar a sonhar interiormente.

A base teórica é típica de um helenismo ligado ainda ao misticismo, oferecendo a perspetiva de um mundo feito de elementos — fogo, ar, água, terra — que tudo condicionavam em ciclos. Assim tudo vinha do fogo e tudo voltava ao fogo. O mundo que vivemos é um ciclo eterno, de construção e destruição, não adianta lutar contra isso. De algum modo isto liga-se aos ciclos da vida do Budismo e às suas noções do carma. Mas podemos ligar aqui o próprio cristianismo, apesar de não se apresentar como ciclo, porque recorre à perspetiva narrativa — uma história com princípio, meio e fim — com o paraíso onde tudo termina! O budismo e o estoicismo só em aparência diferem, já que o ciclo continuado é mera fuga à questão do: “e depois do paraíso?”

Crísipo, sucessor de Zenão, foi mais longe. Sendo, de todos os personagens do Estoicismo, aquele que mais se preocupou em criar pensamento estruturado e capaz de ligar todas as esferas da realidade numa corrente filosófica, acabaria sendo o que mais longe levaria a questão do determinismo, exatamente pela necessidade de sustentar a argumentação. Assim para Crísipo, segundo Cícero:
“Se houver algum movimento sem uma causa, nem toda proposição será verdadeira ou falsa. Pois aquilo que não tem causas eficientes não é verdadeiro nem falso. Mas toda a proposição é verdadeira ou falsa. Portanto, não há movimento sem uma causa. E se é assim, todos os efeitos devem a sua existência a causas anteriores. E se é assim, todas as coisas acontecem pelo destino. Segue-se, portanto, que o que quer que aconteça, acontece pelo destino.” In “Tratado do Destino” (44 a.C.)
Se tiverem curiosidade em aprofundar esta ideia, recomendo vivamente a série de televisão “DEVS” (2020) de Alex Garland que usa exatamente este princípio para estruturar toda a epistemologia de suporte ao universo da série.
Mais tarde Epictetus proporia uma variação deste determinismo no seu Manual do Estoicismo (Enchiridion), dividindo o mundo em duas metades, logo na primeira regra:
“Todas as coisas existentes se dividem da seguinte forma: as que estão sob o nosso poder, e as que não estão.
Em nosso poder estão o pensamento, o impulso, a vontade de adquirir e a vontade de evitar e, resumidamente, tudo que resulta das nossas ações.
As coisas que não estão sob nosso poder incluem o corpo, a propriedade, a reputação, o cargo e, resumidamente, tudo aquilo que não resulta das nossas ações.
As coisas sob nosso poder são, por natureza, livres, não encontram obstáculos à sua frente, não são por nada limitadas; já as coisas que não estão sob nosso poder são fracas, servis, sujeitas a limitações, dependentes de outros fatores.”
In Enchiridion (135)
E aqui as coisas tornam-se mais complicadas, já que se coloca em convívio aparente, o determinismo e o livre-arbítrio, ou seja a essência do paradoxo do Estoicismo, como diz Bertrand Russell:
“Por um lado, o universo é um todo rigidamente determinístico, no qual tudo o que acontece é resultado de causas anteriores. Por outro lado, a vontade individual é completamente autónoma e nenhum homem pode ser forçado a pecar por causas externas.” In “A History of Western Philosophy” (1945)
No entanto, é aqui mesmo que que reside muito do interesse atual no Estoicismo, nesta conexão entre a inevitabilidade e a liberdade interior, já que a ausência de esperança no exterior, induz à perda de medo interior, e desse modo aumenta tremendamente a resiliência. Isto é tanto mais relevante quanto mais dura for a realidade vivida. Podemos ver isto mesmo em ação na terapia psicológica — Logoterapia — proposta por Viktor Frankl para lidar com o horror da vivência no campo de concentração de Auschwitz, que propõe:
“em que mesmo tudo nos sendo retirado, continuamos a ter a última liberdade humana: a escolha da atitude em cada momento.” Em Busca de Sentido (1946)
Para este efeito, Frankl usa a divisão de proposta por Epictetus, entre o exterior e o interior. Em que podemos estar condenados por esse exterior, mas só nós podemos decidir sobre o interior. Assim, Frankl acaba a demonstrar que o paradoxo aparente do Estoicismo faz sentido em termos psicológicos, já que a ausência de medo faz nascer uma nova esperança:
“O prisioneiro que perdeu a fé no futuro — o seu futuro — estava condenado. Com a sua perda de crença no futuro, perdia também o seu domínio espiritual; deixava-se declinar e ficava sujeito à decadência mental e física.” in "Em Busca de Sentido" (1946)
Ou seja, e para terminar esta parte, nem tudo é menosprezável, e não é por acaso que o estoicismo serviria na definição do cristianismo, e o próprio cristianismo acabaria a durar séculos. Na verdade, em face da adversidade, estas abordagens ajudam, consolam, mantém-nos despertos para a possibilidade de algo melhor. O problema é que estas abordagens requerem a manutenção dessa adversidade, e se a vida é feita de adversidades, ela pode ser mais do que isso, por isso não se estranhe todo o caráter opressivo que a Igreja Católica soube tão bem imprimir no universo — desde o salvador torturado e preso numa cruz à imponência da sua arquitetura e claro, talvez o mais importante de tudo, a definição detalhada do Inferno e Purgatório — pois sem isso a teorização que a suporta não teria qualquer adesão.


A Psicologia da Ética e Modelos
Já acima falei do problema de Seneca, do “olha para o que eu digo, não para o que eu faço”, algo que não se aplica a Epictetus, este que nasceu como escravo, e teve de fugir de Roma por ordem do Imperador Domiciano que proscreveu todos os filósofos por volta de 93 d.C. Contudo, ambos se apresentam como portadores de verdade, e a questão nem sequer é saber se dizem ou não a verdade, a questão é saber se importa.

Vejamos aquilo que nos diz a psicologia sobre o modo como aprendemos a lidar com o mundo. A principal base da nossa ação constrói-se pela imitação. Tendemos a imitar os comportamentos daqueles que reconhecemos como gratificantes. Ou seja, se vir alguém roubar e viver uma boa vida sem nunca ser punido, enquanto ser humano tenderei a seguir esse caminho. Por outro lado, se vir que esse comportamento é efémero, que tarde ou cedo se é apanhado e punido, compreendo que é um comportamento que não devo seguir. O mesmo acontece quando vejo alguém que estuda e faz uma licenciatura, e depois tem um bom emprego, versus quem desiste de estudar e é depois fracamente recompensado.

Isto difere da venda de ideias sobre o que é certo ou errado, já que o certo e errado surge apenas pela avaliação das consequências, não da autoridade de quem fala. Que importa que os pais ou os governos digam que é importante estudar e fazer uma licenciatura, se depois as pessoas conseguem empregos piores, ou nem sequer emprego conseguem? Ou de que serve o pai dizer para não roubar ou não bater, e depois bater na mãe?

É por isso que é estranha a ideia dos gurus de auto-ajuda, dos pregadores de qualquer tipo, que pregam ideias que não praticam. Repare-se no paradoxo de termos um guru que vive dos rendimentos dos livros que escreve e das conferências que faz, que lhe permitem viver numa bela casa, com um bom carro, acesso a médicos e férias em bons hotéis e que depois vem clamar junto de pessoas na miséria, sem empregos, ou empregos precários, pessoas sozinhas sem família, ou com famílias disfuncionais, como se devem comportar para serem felizes. De que servem essas indicações? Essas pessoas e famílias precisam de saber como se comportar para serem felizes ou precisam de oportunidades para conseguirem sair da situação em que estão? Essas pessoas não precisam que lhes digam que a felicidade está dentro delas, precisam antes que lhes mostrem como sair da situação, que lhes proporcionem oportunidades para o efeito, e não serem usadas como coitadinhos a quem o guru explica o que é o mundo.

No entanto os gurus sobrevivem, porque produzem um discurso retórico que une os membros de uma comunidade e os faz sentir que estão todos no mesmo barco, ainda que cada um tenha de se desenrascar como puder. Reparem como as seitas e religiões emergem, não é graças ao pregador, elas vão buscar pessoas à comunidade que oferecem como exemplos de cura ou de ultrapassagem de problemas. Porque efetivamente, as pessoas não se deixam convencer por simples pregadores, sejam eles quem forem, as pessoas são convencidas pelo grupo que segue o pregador, “se os outros fazem?”, “se os outros continuam a ir atrás?”, “devem ter visto algo que eu ainda não vi”, “sabem algo que ainda não sei”, ou ainda, “não me interessa nada disto, não acredito, mas se sair deixarão de me falar, fico sozinho”. Isto não é uma questão de professor-aluno, o pregador não está a ensinar as suas audiências a tornarem-se pregadores. O que ele supostamente ensina, ou a razão por que as pessoas o vão ouvir, é porque ele detém, segundo a comunidade, um segredo, uma formula para a felicidade.

Na verdade, questões éticas e morais, não podem ser ensinadas por decreto, precisamos de as praticar e exemplificar, e sendo algo prático, mudam no tempo. Os decretos tendem a manter-se em registo para todo o sempre, as práticas e comportamentos evoluem, variam em função das condições de cada local e cada momento. Aquilo que era certo ou errado no tempo de Seneca é distinto do que é certo ou errado hoje, basta pensar na condição dos escravos ou da mulher nesses tempos.


Para finalizar, quero voltar a Marcus Aurelius, e a "Meditações", que é um livro diferente dos textos de Seneca ou de Epictetus. O livro de Aurelius foi escrito como registo diário íntimo, representa o seu pensamento em ebulição e evolução. Aurelius debateu-se com as teorias do estoicismo, defende-as porque quer acreditar nelas, mas debate-se com elas exatamente pela posição que ocupava tanto como general, como político e claro Imperador. Marcus Aurelius não pregou para que seguissem o que ele pensava, os seus escritos foram o escape que encontrou para lidar com aquilo que sabia estar errado em muito do que sentia. A escrita era a forma de lidar com a realidade bastante mais complexa do que a teoria. O seu papel enquanto modelo de moral servirá na medida daquilo que fez enquanto imperador, não daquilo que escreveu.



Nota: Não sou formado em filosofia. Estas notas dizem apenas respeito às leituras que fui fazendo e ao modo como as interpreto face ao restante conhecimento que detenho em distintos campos do saber. Deste modo assumo desconhecer grande parte da discussão filosófica em redor do Estoicismo. As ideias apresentadas dizem respeito a uma leitura de obras muito restrita.