Em "Elizabeth Costello" (2001) Coetzee cria uma nova abordagem ao romance usando ensaios seus, textos escritos e previamente publicados de não-ficção, que coloca na boca de uma personagem ficcional, que depois é obrigada defender-se da crítica. Parece uma forma de auto-questionamento, como se Coetzee quisesse por à prova as suas próprias ideias e crenças recorrendo ao romance como arena de debate virtual, usando as suas propriedades de simulador de realidade para se confrontar consigo mesmo. O resultado é muito impressivo, com um ritmo balanceado entre a racionalização e a sensorialidade, oferecendo conclusões muito atuais sobre a certeza e a verdade.
São 8 capítulos que debitam 8 conferências da escritora Elizabeth Costello, não são 8 temas, por que algumas conferências ampliam e oferencem diferentes perspectivas, do mesmo modo que nem todas as 8 foram alvo de publicação prévia de ensaio de Coetzee, as últimas 2 não foram. De entre os temas, temos:
1. A importância da literatura e seu criador, e ainda o fim inevitável da nossa passagem por esta vida.
Começa de forma muito racional, fica-se com a ideia de que o livro vai ser uma espécie de discussão meta-literária, interessante, mas desligada emocionalmente.
2. As propriedades e distinções do romance africano, nomeadamente os fatores da oralidade
Começamos a sentir Costello, começamos a perceber que é mais do que um ser racional, que sente e se sente, nomeadamente quando discorda.
3 e 4. Os direitos dos animais e o Holocausto
Aqui atinge-se um primeiro clímax, o racional fica para trás, é tudo força emotiva, é tudo dureza e violência verbal, somos levados a questionar-nos, quase mesmo a parar de ler de tão horrível o que estamos a imaginar.
Mas é aqui que Coetzee usa de forma mais extensiva a arena virtual, já que segue para uma segunda parte onde questiona tudo o que disse em defesa dos animais, colocando em causa ou em debate os extremos, e os dedos acusatórios.
5. Ataque às Humanidades pela Teologia
Neste ponto parece que mudamos totalmente, e voltamos à racionalização completa, mas é aqui que Coetzee nos surpreende, nos apanha de surpresa e nos tira o tapete. Antes de entrar aí, dizer como este capítulo me atirou de volta à leitura de
“Incompletude” de Goldstein, pelo oposto desse livro. Em Incompletude é de ciência exata que se trata, de certezas absolutas, mas as humanidades não lidam com certezas absolutas, e de repente isso serve de mote à teologia para as questionar, e nós com ela, mesmo sabendo que não existe ali qualquer razão, porque a razão aqui não se aplica. É um momento brutal de ataques e contra-ataques entre duas personagens ficcionais, que facilmente poderão ter surgido na vivência de Coetzee enquanto professor universitário das humanidades.
O empenho na discussão sobre o valor das humanidades é tão grande que quase sentimos um choque elétrico quando entra a sensorialidade em bruto. Coetzee joga claramente nesse choque, sabendo que elevou o discurso a um nível de desapego emocional, de repente reenquadra toda a cena, e por meio de um simples flashback coloca-nos no lugar de voyeur, enquanto sentimos o arrepio que faz o livro tocar-nos bem dentro.
6. A descrição do Mal
Este é o ponto menos conseguido, talvez porque estando a aproximar-se dos questionamentos finais, Coetzee opte por começar a baixar o tom, ou porque a metáfora sensorial usada, apesar de imensamente poderosa, e que me fez engolir em seco, não se aproxime da metáfora velada de que se vai falando mas nunca se descrevem a propósito das torturas nazis. Mas a discussão que traz é profunda, e é algo com que me debato há tantos e tantos anos, e fica clara nesta simples frase:
“Se o que escrevemos tem o poder de nos tornar pessoas melhores, certamente tem também o poder de nos tornar piores.” diz Elizabeth Costello, em jeito de questionamento
Todas as semanas me questiono sobre isto a propósito da literatura, cinema e jogos. Se nos fazem bem, poderão também fazer-nos mal?
7 e 8. Últimos dois capítulos
São estranhos, muito racionalizados à mistura com absurdo místico e existencialista. O primeiro com um debate em redor dos deuses gregos e suas relações sexuais com humanos. O último que surge tal qual um tribunal kafkiano na chegada ao purgatório de Elizabeth Costello.
Conclusões
Vários críticos tentaram encontrar uma interpretação que respondesse pela soma dos temas e discussões realizadas (ex.
James Wood). Não concordei com o que fui lendo, porque não encontrei essa interpretação, mesmo depois de forçada por esses críticos. Porque no final senti que estava perante um Coetzee que tinha lutado de forma extraordinária pelo aprofundamento das suas certezas, mas que terminava apenas com mais dúvidas ainda.
Julgo que a grande conclusão, e isso faz parte da matriz das Humanidades, é que o mundo e toda a sua complexidade não é explicável por meras racionalizações. Tudo aquilo de que temos certeza, só a temos no momento em que olhamos para tal pela perspetiva que nos conduziu a essa certeza. Quando mudamos o ângulo, quando vemos a questão de outra perspectiva, de imediato nos assaltam as dúvidas sobre algo que até ali eram apenas certezas. Claro que isto é questionável quando entramos numa modelação orientada pelas ciências exatas, mas esse é um debate diferente, ainda que nesse ponto existam também todas as questões levantadas pelos teoremos de Godel.
No fundo, Coetzee escreveu um livro que plasma de forma frontal toda a teorização pós-moderna que nos diz que o mundo em que hoje vivemos está montado sobre fragmentos de ideias que não passam de ilusões de verdade. Porque não há verdade, não há certezas, não há finalidades, tudo é e não é. Vivemos em ilhas de realidade cada vez mais reduzidas, cada vez mais individualizadas, quando vez mais sozinhos. E por isso a leitura termina com um travo forte de tristeza, porque é difícil não nos questionarmos se foi para isto que elevámos tanto as nossas capacidades de compreensão do real... e isto sente-se claramente naquele capítulo final, kafkiano, absurdo... como se fosse inevitável aportar ali...
Nota quantitativa no
GoodReads.