Durante anos foi-se vendendo a ilusão do Software Livre como se fosse a coisa mais óbvia e natural, partindo da ingenuidade redutora — se não custa a copiar, não se deve vender — como se o software uma vez criado não precisasse de contínua Manutenção, ao que se acrescentam necessariamente custos ainda mais elevados de Inovação. A manutenção é inevitável porque o software funciona num ambiente altamente dinâmico, seja o sistema operativo ou a internet, e é preciso continuamente adaptar o mesmo. A inovação, porque o modo de fazer hoje, está sempre limitado ao mundo que conhecemos hoje, com o passar do tempo aprendemos a fazer de formas diferentes, e o software ou reflete isso ou torna-se irrelevante. Mas a verdade está cada vez mais à vista.
Esta semana iniciámos mais um Laboratório com os alunos, no qual este têm de criar um Blog e mantê-lo ativo durante 14 semanas, e de repente tenho vários alunos a chamar-me porque o Wordpress não é gratuito!!! Incrédulo, lá estive a explorar, e acabei percebendo que o continuava sendo, mas a forma de criar um novo blog gratuito tinha deixado de ser o principal modo presente na interface. Ou seja, depois de iniciar o processo, o Wordpress volta a trazer o utilizador ao ecrã inicial em que se mostram os planos de pagamento, ficando no topo um pequeno botão com um texto nada claro, e por baixo botões enormes, um com a menção "Pessoal" e que sendo o primeiro parece inevitável, e um segundo que surge destacado e com a menção "Popular", o que com certeza acaba a induzir muitos em erro e a pagar. A sensação foi estranha, durante mais de uma década a ouvir os meus colegas dizerem-me que não usavam Blogger, como eu continuo a utilizar, porque o Wordpress é que era verdadeiro software livre.
Mas surpreso não fiquei. Para a organização da Videojogos 2019, estou a utilizar a plataforma gratuita EasyChair. Quando criei a conta este ano, senti a linguagem e algumas chamadas de atenção estranhas, claramente no sentido de exercer controlo sobre a nossa ação. Pouco depois percebi que existiam duas versões, uma gratuita e uma paga, com claras diferenças, mas sem grande impacto para uma conferência pequena como a nossa, mas se esta fosse um pouco maior já se tornaria quase inutilizável sem pagamento. Mesmo no nosso caso, não raras vezes dou por mim a pedir informação ou a querer fazer coisas que a plataforma me diz estarem apenas acessíveis a quem paga o Premium.
Como disse acima, isto é normal porque para este software existir têm de existir dezenas ou centenas de profissionais por detrás a mantê-lo e a inová-lo. Mas o que não é normal é durante décadas se ter propagandeado e alardeado a importância do Software Livre, do Open Source, da Informação que quer ser Livre, da severa crítica online contra os Jornais que fechavam os conteúdos, das editoras que exigiam dinheiro pela música e filmes, etc. etc. Aqui dentro também se inclui os jornais académicos ditos "free", que de grátis não têm nada, pois vivem à custa do esforço de cada um dos editores que deixa de fazer o trabalho para que lhe pagam para editar esses jornais (não defendendo com isto os modelos gananciosos das grandes editoras).
O que vamos vendo hoje é quase todo o jornalismo a fechar-se e a exigir pagamento, assim como muitos dos produtos que eram Free a tornarem-se Freemium ou Free to Play, usando da manipulação e persuasão para levar os utilizadores a comprar e a pagar, por vezes de formas bastante abusivas como vem acontecendo nalguns videojogos com as chamadas Loot Boxes. As alternativas existem apenas quando existe outro alguém que pague, como acontece com a Google que faz tanto dinheiro em publicidade que pode disponibilizar um dos serviços mais caros de toda a internet o YouTube. Ou então instituições que se suportam em verbas oferecidas pela comunidade como a Wikipedia. Ou ainda em conjuntos de instituições que se juntam para suportar as aplicações, como acontece com Universidades, Institutos, ou Empresas. No fundo, o grátis nunca existiu, nunca ninguém teve direito a almoços grátis.
Contudo, parece-me que estamos finalmente a chegar a um ponto em que a internet e o virtual assumiram a mesma importância do objeto físico, porque as pessoas necessitam dela e dos seus objetos, já não podem fazer as suas vidas sem estes, e por isso pagar tornou-se menos penoso. Se aquilo que faço requer aquele produto, e ele me traz benefício, aceito mais facilmente pagar. Mas talvez mais importante seja o facto destes objetos virtuais — ferramenta, informação ou jogo — terem deixado de ser meros substitutos ou complementos de objetos físicos que já temos ou podemos ter nas nossas mãos, como acontecia anteriormente com o jornal, os CDs, os filmes, etc. etc.
setembro 22, 2019
A melhor cultura do século XXI
O jornal The Guardian fez ao longo das últimas semanas um balanço destas primeiras duas décadas do século XXI em termos da cultura criada no domínio específico das artes e entretenimento — em 11 áreas: Livros, Filmes, Videojogos, Teatro, Programas/Séries TV, Arte, Dança, Álbuns, Obras de Música Clássica, Comediantes e Arquitetura. Para apresentar esse balanço, recorreu ao comum meio de listas ordenadas que são sempre responsáveis por gerar celeuma, mas continuam a ser o melhor método para efeitos de catalogação. O melhor, não pela sua natureza avaliativa, algo que em cultura e artes deixa sempre muito a desejar, mas pelo modo como apresenta à sociedade um apanhado daquilo que um conjunto de especialistas considera ser digno de continuar experienciar, e que é imensamente relevante porque é destas listas que se geram os cânones, sem os quais nos perderíamos na imensidão de produção que o globo que habitamos produz num único dia. Estas vão servindo ainda para manipular o viés internacional cultural que está hoje completamente inquinado pelos EUA e UK, não apenas por causa do inglês, mas também porque a sua cultura mais competitiva tende a privilegiar a produção continuada destas listas. Diga-se que não é um trabalho fácil, e nos tempos que correm e num jornal aberto e gratuito, absolutamente impressionante.
Começar pelo todo das áreas escolhidas, percebe-se um enfoque na arte e na narrativa, notando-se a inclusão de duas áreas que apenas recentemente começaram a ganhar projeção: os Programas de TV e os Comediantes. Os primeiros claramente pela enorme força das séries de televisão que se têm vindo a transformar no grande meio de cultura de massas, lugar que já tinha pertencido à televisão, passou para o cinema, e agora parece estar a voltar à televisão. Interessante recapitular como os videojogos tinham sido anunciados como o meio do século XXI, mas até ao momento ainda não conseguiu nada que se aproxime das demografias das séries de televisão. Os comediantes sendo também uma novidade, surgem também pela força da televisão, seja por cabo ou stream ou simplesmente na rede, eles surgem enquanto programa de televisão. E ainda que possam encher teatros e auditórios, a sua força de atração e relevância social é emanado por esses programas, o que nos alerta para mais uma das muitas visões que os futuristas nos deram no passado, o fim da televisão.
Ainda no campo das áreas, e apesar de serem já bastantes, e nem saber se o Guardian não irá continuar a publicar mais listas, estranha-se a não presença de Banda Desenhada, ainda que alguns livros surjam no meio da lista de Livros, e podíamos dizer o mesmo da Pintura ou Escultura que desapareceram no meio das Artes, engolidas pela Arte Contemporânea, assim como a Animação e as Curtas-metragens. Ainda assim notamos também a falta de uma maior atenção às obras Multimédia — Webdocs, Filmes Interativos, Realidade Virtual e Aumentada, Instalações, Transmedia — que parece quase sempre existir por via dos videojogos, pela simples razão do dinheiro que movimentam.
Sobre as listas, comento apenas 3 — Filmes, Livros e Videojogos — por serem aquelas que sigo com maior proximidade a produção de cânone. Não discordando de nenhuma das primeiras obras de cada lista, estranhei o facto de discordar bastante do resto dos Top 5, nomeadamente todos apresentam pelo menos 2 obras que não figurariam no meu Top 50 ou mesmo 100. No cinema — "12 Years a Slave" e "Under the Skin". No caso dos jogos — "Legend of Zelda: Breath of the Wild" e "Dark Souls". No caso dos livros, "Gilead" e "Never Let Me Go". Estranhei esta minha reação, algo visceral, porque como disse acima os cânones são importantes, e por isso sentir-me em desacordo tão profundo deverá querer dizer algo. Talvez a única explicação seja apenas e só que estou a ficar velho, e desfasado do tempo em que as modas são definidas. Não é a primeira vez que o sinto, já o senti antes ainda que seja algo mais recente. Como se nós fossemos envelhecendo e os mais novos fossem tomando o nosso lugar no domínio das correntes culturais e de entretenimento e os gostos gerais fossem naturalmente sendo atualizados.
Como criticar é sempre mais fácil do que fazer, e porque fazer listas limitadas apenas ao século XXI no caso da literatura é altamente complicado pelo que não pode ser equacionado pela data de produção, e no caso dos videojogos porque praticamente tudo cai dentro deste período. Deixo assim as minhas três lista de 5 obras em cada uma das áreas:
LIVROS
1. A Mancha Humana, Philip Roth, 2000, EUA
2. Liberdade, Jonathan Franzen, 2010, EUA
3. Os Dias do Abandono, Elena Ferrante, 2002, Itália
4. Uma Questão de Beleza, Zadie Smith, 2005, UK
5. A Estrada, Cormac McCarthy, 2007, EUA
FILMES
1. In the Mood for Love, Wong Kar-Wai, 2000, China
2. The Turin Horse, Béla Tarr, 2011, Hungria
3. A Separation, Asghar Farhadi, 2011, Irão
4. The Return, Andrey Zvyagintsev, 2003, Rússia
5. Three Monkeys, Nuri Bilge Ceylan, 2008, Turquia
VIDEOJOGOS
1. Ico, Fumito Ueda, 2001, Japão
2. The Last of Us, Bruce Straley & Neil Druckmann, 2013, EUA
3. Papers, Please, Lucas Pope, 2013, EUA
4. Her Story, Sam Barlow, 2015, EUA
5. Brothers: A Tale of Two Sons, Josef Fares, 2013, Suécia
Como disse, os grandes videojogos foram todos feitos já neste século, por isso é muito difícil fazer uma mera lista de 5. Adiciono aqui mais alguns que podiam ter entrado: The Witcher 3: Wild Hunt (2015), Max Payne (2001), Mass Effect Trilogy (2007-2012), The Stanley Parable (2013), Soma (2015), Inside (2016), The Sims (2000), Gris (2018), This War of Mine (2014), Gone Home (2013), The Walking Dead (2012), Thomas Was Alone (2012), Life is Strange (2015), Minecraft (2009), entre outros. Já agora, reparo que tenho 3 jogos de 2013 nos 5, mais 2 referenciados neste lista alargada, algo para analisar e refletir posteriormente.
Começar pelo todo das áreas escolhidas, percebe-se um enfoque na arte e na narrativa, notando-se a inclusão de duas áreas que apenas recentemente começaram a ganhar projeção: os Programas de TV e os Comediantes. Os primeiros claramente pela enorme força das séries de televisão que se têm vindo a transformar no grande meio de cultura de massas, lugar que já tinha pertencido à televisão, passou para o cinema, e agora parece estar a voltar à televisão. Interessante recapitular como os videojogos tinham sido anunciados como o meio do século XXI, mas até ao momento ainda não conseguiu nada que se aproxime das demografias das séries de televisão. Os comediantes sendo também uma novidade, surgem também pela força da televisão, seja por cabo ou stream ou simplesmente na rede, eles surgem enquanto programa de televisão. E ainda que possam encher teatros e auditórios, a sua força de atração e relevância social é emanado por esses programas, o que nos alerta para mais uma das muitas visões que os futuristas nos deram no passado, o fim da televisão.
Ainda no campo das áreas, e apesar de serem já bastantes, e nem saber se o Guardian não irá continuar a publicar mais listas, estranha-se a não presença de Banda Desenhada, ainda que alguns livros surjam no meio da lista de Livros, e podíamos dizer o mesmo da Pintura ou Escultura que desapareceram no meio das Artes, engolidas pela Arte Contemporânea, assim como a Animação e as Curtas-metragens. Ainda assim notamos também a falta de uma maior atenção às obras Multimédia — Webdocs, Filmes Interativos, Realidade Virtual e Aumentada, Instalações, Transmedia — que parece quase sempre existir por via dos videojogos, pela simples razão do dinheiro que movimentam.
Sobre as listas, comento apenas 3 — Filmes, Livros e Videojogos — por serem aquelas que sigo com maior proximidade a produção de cânone. Não discordando de nenhuma das primeiras obras de cada lista, estranhei o facto de discordar bastante do resto dos Top 5, nomeadamente todos apresentam pelo menos 2 obras que não figurariam no meu Top 50 ou mesmo 100. No cinema — "12 Years a Slave" e "Under the Skin". No caso dos jogos — "Legend of Zelda: Breath of the Wild" e "Dark Souls". No caso dos livros, "Gilead" e "Never Let Me Go". Estranhei esta minha reação, algo visceral, porque como disse acima os cânones são importantes, e por isso sentir-me em desacordo tão profundo deverá querer dizer algo. Talvez a única explicação seja apenas e só que estou a ficar velho, e desfasado do tempo em que as modas são definidas. Não é a primeira vez que o sinto, já o senti antes ainda que seja algo mais recente. Como se nós fossemos envelhecendo e os mais novos fossem tomando o nosso lugar no domínio das correntes culturais e de entretenimento e os gostos gerais fossem naturalmente sendo atualizados.
Como criticar é sempre mais fácil do que fazer, e porque fazer listas limitadas apenas ao século XXI no caso da literatura é altamente complicado pelo que não pode ser equacionado pela data de produção, e no caso dos videojogos porque praticamente tudo cai dentro deste período. Deixo assim as minhas três lista de 5 obras em cada uma das áreas:
LIVROS
1. A Mancha Humana, Philip Roth, 2000, EUA
2. Liberdade, Jonathan Franzen, 2010, EUA
3. Os Dias do Abandono, Elena Ferrante, 2002, Itália
4. Uma Questão de Beleza, Zadie Smith, 2005, UK
5. A Estrada, Cormac McCarthy, 2007, EUA
FILMES
1. In the Mood for Love, Wong Kar-Wai, 2000, China
2. The Turin Horse, Béla Tarr, 2011, Hungria
3. A Separation, Asghar Farhadi, 2011, Irão
4. The Return, Andrey Zvyagintsev, 2003, Rússia
5. Three Monkeys, Nuri Bilge Ceylan, 2008, Turquia
VIDEOJOGOS
1. Ico, Fumito Ueda, 2001, Japão
2. The Last of Us, Bruce Straley & Neil Druckmann, 2013, EUA
3. Papers, Please, Lucas Pope, 2013, EUA
4. Her Story, Sam Barlow, 2015, EUA
5. Brothers: A Tale of Two Sons, Josef Fares, 2013, Suécia
Como disse, os grandes videojogos foram todos feitos já neste século, por isso é muito difícil fazer uma mera lista de 5. Adiciono aqui mais alguns que podiam ter entrado: The Witcher 3: Wild Hunt (2015), Max Payne (2001), Mass Effect Trilogy (2007-2012), The Stanley Parable (2013), Soma (2015), Inside (2016), The Sims (2000), Gris (2018), This War of Mine (2014), Gone Home (2013), The Walking Dead (2012), Thomas Was Alone (2012), Life is Strange (2015), Minecraft (2009), entre outros. Já agora, reparo que tenho 3 jogos de 2013 nos 5, mais 2 referenciados neste lista alargada, algo para analisar e refletir posteriormente.
setembro 14, 2019
Uma Obra Enternecedora de Assombroso Génio
Não é um texto de génio, mas por vezes parece, no essencial é uma obra que demonstra uma assombrosa autoconsciência social, emocional e literária. Eggers conhece muito bem o mundo da literatura, tão bem como conhece as relações sociais humanas, e aproveita-se disso para brincar e romancear o centro da sua narrativa autobiográfica tornando-a mais digestível, porque assenta na morte de ambos os pais de cancro, tendo ficado o autor com 21 anos e responsável pelo irmão mais novo, Toph de 8 anos. Existem vários momentos em que esquecemos que estamos a ler as memórias do autor, tal o distanciamento que ele consegue criar na análise que faz do que aconteceu, antes e depois, especialmente pela intensidade da autocrítica que parece impossível de ser dita por alguém sobre si e sobre os seus, e num tom de brincadeira. Sobre tudo isto existe ainda o facto de ser um livro de memórias de alguém com apenas 29 anos, o que diga-se poderá ter contribuído para essa capacidade de alheamento cómico.
Dito isto, percebe-se melhor o título. Eggers sabe que tem uma história poderosa em mãos, e que facilmente poderia sacar lágrimas de quem o lê, mas não era isso que queria e por isso deu o mote logo no título, gozando consigo mesmo. Cabe ao leitor aceitar o repto do autor, ou não. A escrita é muito boa, Eggers vem munido de grande bagagem literária, não raras vezes damos por nós a parar para avaliar o que foi dito, o modo como foi dito, o que é que aquilo diz sobre o autor, mas também sobre nós, os humanos. Por outro lado, também muitas outra vezes damos por nós a desesperar e a querer avançar na diagonal, porque Eggers resolve engrenar numa variação qualquer que pouco ou nada tem que ver com o enredo geral. Na verdade, o livro é demasiado grande (450), 2/3 teria sido suficiente.
Como nota final, Eggers contribui de algum modo para o atenuar da nossa visão dos problemas num tom pessimista e negro. Por mais mal que estejamos, existe sempre quem estará pior e tem de conseguir encontrar forma de lidar com tal. Ainda que Eggers se recuse a fazer o papel de condutor do leitor pela via do sofrimento, torna-se inevitável olhar para tal e considerar a relação de identificação que criamos com o autor. Sofrer é uma condição inevitável pela qual todos os seres humanos têm de passar, mas podemos optar por usar a nossa consciência desses sofrimento para o tornar menos penoso.
Dito isto, percebe-se melhor o título. Eggers sabe que tem uma história poderosa em mãos, e que facilmente poderia sacar lágrimas de quem o lê, mas não era isso que queria e por isso deu o mote logo no título, gozando consigo mesmo. Cabe ao leitor aceitar o repto do autor, ou não. A escrita é muito boa, Eggers vem munido de grande bagagem literária, não raras vezes damos por nós a parar para avaliar o que foi dito, o modo como foi dito, o que é que aquilo diz sobre o autor, mas também sobre nós, os humanos. Por outro lado, também muitas outra vezes damos por nós a desesperar e a querer avançar na diagonal, porque Eggers resolve engrenar numa variação qualquer que pouco ou nada tem que ver com o enredo geral. Na verdade, o livro é demasiado grande (450), 2/3 teria sido suficiente.
Como nota final, Eggers contribui de algum modo para o atenuar da nossa visão dos problemas num tom pessimista e negro. Por mais mal que estejamos, existe sempre quem estará pior e tem de conseguir encontrar forma de lidar com tal. Ainda que Eggers se recuse a fazer o papel de condutor do leitor pela via do sofrimento, torna-se inevitável olhar para tal e considerar a relação de identificação que criamos com o autor. Sofrer é uma condição inevitável pela qual todos os seres humanos têm de passar, mas podemos optar por usar a nossa consciência desses sofrimento para o tornar menos penoso.
setembro 08, 2019
Para evitar a Crise Existencial evitem a Narrativa
Kieran Setiya é professor de filosofia no MIT e escreveu o livro “Midlife: A Philosophical Guide” (2017) que se tornou uma espécie bestseller no tema das crises existenciais da meia-idade. Li o artigo que deu origem ao livro (passei depois os olhos pelo livro mas acrescentava pouco mais) e deixo aqui as linhas principais defendidas pelo autor, sendo que a razão que me levou a realizar esta partilha é de que a conclusão maior vai contra tudo aquilo que tenho feito e estudado nas última décadas. E o pior é que conhecendo tão bem como conheço o modo de organização da vida no formato narrativo, tendo a dar a razão a Setiya. Diz-nos ele que não podemos resolver a crise se continuarmos a tentar construir histórias sobre aquilo que fomos, somos ou queremos ser. Para Setiya, o problema assenta na diferença entre os valor atribuído ao que fazemos, entre o télico e atélico, ou seja, entre "ter um fim" ou ser simplesmente "interminável".
Como surge a crise existencial de meia-idade:
Preparando a resposta:
A explicação:
Como proceder:
A demonstração final da irrelevância da narrativa:
E assim temos a Filosofia a tentar responder a algo que a Psicologia continua a ter problemas em desvendar. Por outro lado, demonstra que estudar filosofia, que estudar a cultura que nos transforma todos os dias naquilo que somos, ainda tem muito a dar a sociedade, ao contrário daquilo que os colegas das exatas teimam em propagandear.
Como surge a crise existencial de meia-idade:
“As we have seen, what elicits the crisis, for many, is a confrontation with mortality. Something about the fact that we will eventually die, that life is finite, makes us feel that everything we do is empty or futile. It is essential to the experience I have in mind, however, that this sense of emptiness or futility is not an apprehension that nothing matters: that there is no reason to do one thing instead of another. Even in the grip of the crisis, I know that there is reason to care for those I love, read the books and watch the movies I admire, do my job well, if I can, be responsible, help and not do harm. It does not seem worthless to prevent the suffering of others, or impossible to justify action. Yet somehow the succession of projects and accomplishments, each one rational in itself, falls short.”Isto levaria a pensar que o problema é a falta de narrativa:
"What is missing is narrative unity: a story of development and progress over time, not just of repetition. "Mas Setiya diz-nos:
“Imagine someone who accepts the underived value of intellectual progress. It matters in itself, according to her, whether we answer scientific questions and solve mathematical problems. These things are worth doing apart from their relation to anything else. As she sees it, the value of discovering truths and proving theorems does not derive from their technological applications. It does not even derive from the prior value of knowing. What matters most fundamentally is finding out. Her days are dedicated to pure science, replete with activities of these kinds.”
“There are problems involved in living an episodic life, a life devoted to consecutive, limited projects, but the answer does not lie in the construction of a larger story into which the episodes fit. My description of the scientist anticipates this point, since it does not rest on the absence of an over- arching narrative. Even if she has a consuming goal, the search for a grand theory of widgets, and she is convinced that the search has underived value, the scientist may wonder what, in the end, she will have achieved. Suppose she has the final theory. Now what?”
Preparando a resposta:
A) Telic: “What I will call a “telic activity” includes in its nature a terminal point, the point at which it will be finished and thus exhausted. The scientist’s activities are telic in this sense. They are finished, and exhausted, when she has proved the theorem, discovered the truth, solved the scientific problem. Walking home tonight is a telic activity, since it aims at getting home. So is writing this essay, since it is over when the essay is done. Almost anything we would be inclined to call a “project” will be telic: buying a house, starting a family, earning a promotion, getting a job. These are all things one can finish doing or complete.”
B) Atelic: “Importantly, however, not all activities are like this. Some do not aim at a point of termination or exhaustion: a final state in which they have been achieved and there is no more to do. For instance, as well as walking home, getting from A to B, you can go for a walk with no particular destination. Going for a walk is an “atelic” activity. The same is true of hanging out with friends or family, of studying philosophy, of living a decent life. You can stop doing these things, and you eventually will, but you cannot finish or complete them in the relevant sense. It is not just that you can repeat them, as you could repeatedly walk home, but that they do not have a telic character. There is no outcome whose achievement exhausts them. They are not in that way limited.”
A explicação:
“This is what disturbed the scientist: not that her ends had only derivative value, but that they were projects she would complete, one after another. Hence the feeling of repetition and futility. Again and again, her engagement with what she cares about removes it from her life, as a completed task, and she is forced to start over. (..) [the] work is devoted to destroying its own purpose. It is not a mistake to have ends like this. But it is a mistake for them to dominate one’s life.”
“the appeal to telic ends explains the connection between death and the midlife crisis. Pausing in the midst of the life, in the rush of demands and deadlines, I know that I am half-way through. Death is not imminent. I am not afraid that I will not finish the projects I am engaged in right now. But the best I can hope for is another forty years. In the end, my works, whatever they count for, will be numbered. This is distinctive of telic ends. One asks how many, not how much. How many essays published? How many books? How many students taught? To think about the finitude of life in the face of death is to see that one’s ends are telic, if they are. It is in this mood that I imagine looking back, counting my achievements and failures, wondering “What do they add up to, after all?”
"If the problem is that our ends are telic, we can see why death elicits the crisis and why immortality does not help. Gaining infinite duration does not affect the nature of our projects. It does not change how we engage with them; nor does it give us atelic ends. Unlike the diagnosis in terms of derivative value, this argument explains how the midlife crisis involves our relation to time (..) So long as your new ambitions are telic, however, they will at most distract you from the structural defect in your life. Fast cars and wild affairs are not the answer.”
Como proceder:
“You can resolve the midlife crisis, or prevent it, by investing more deeply in atelic ends. Among the activities that matter most to you, the ones that give meaning to your life, must be activities that have no terminal point. Since they cannot be completed, your engagement with atelic ends will not exhaust or destroy them.”
“Instead of studying Aristotle in order to write an essay, which is a telic end, one writes an essay in order to study Aristotle (..) Do not work only to solve this problem or discover that truth, as if the tasks you complete are all that matter; solve the problem or seek the truth in order to be at work. When you relate to it in this way, your life is not a mere succession of deeds. There is no pressure to feel that the activities you care about are done with, one by one, and so to ask, repeatedly, what next? The projects you value may end but the process of pursuing them does not.”
A demonstração final da irrelevância da narrativa:
“If this is the answer to the midlife crisis, it is clear why narrative is not the point. The defect of the episodic life is not that the episodes do not fit into a larger structure of development and growth, but that their temporal structure is telic. The remedy is to engage in them for the sake of atelic ends, in a life that need not have variety, suspense, or drama. The contemplative life may be quite dull from a novelist’s point of view. But if it is shaped by a concern for contemplation that is not purely instrumental, it is not subject to the sense of exhaustion and emptiness that marks the critical phase.”
“A focus on atelic ends, which have no future goals, may even conflict with the desire for narrative. Stories differ in many ways, and I have no theory of narrative to propose. But it tends towards closure: beginnings, middles, and ends. If what you care about most of all is that your life have a certain arc, then in travelling along that arc you are moving towards a point at which the arc is complete and your purpose is lost. If you are telling the story of your life, and you hope to avoid the midlife crisis, better not to tell a story of this kind.”
E assim temos a Filosofia a tentar responder a algo que a Psicologia continua a ter problemas em desvendar. Por outro lado, demonstra que estudar filosofia, que estudar a cultura que nos transforma todos os dias naquilo que somos, ainda tem muito a dar a sociedade, ao contrário daquilo que os colegas das exatas teimam em propagandear.
setembro 07, 2019
O mundo-história de "Aniquilação"
É a imaginação, é da imaginação que brota toda a criatividade, lugar do brincar cognitivo. Foi por acaso, enquanto olhava para o perfil de Vandermeer, que descobri que além de autor de ficção-científica era também o autor de “Wonderbook” (2013), um dos meus livros preferidos sobre ficção criativa, inspirador da primeira à última página. E só assim comecei a compreender porque me tinha apaixonado pelo livro, e filme homónimo, “Aniquilação” (2014) (2018). O cerne está no mundo-história criado.
Assim, e se o filme foi criado pelo brilhante Alex Garland, com um guião seu adaptado do livro de Vandermeer e com imensas variações sobre a história, é o universo imaginado e populado por Vandermeer que nos apaixona. Do ponto de vista estético, o filme é muito superior ao livro, Garland é muito mais dotado no manejo técnico das ferramentas de expressão cinematográfica. Vandermeer não é mau, mas não vai além do suficiente em termos de escrita. Mas nada disto importa muito porque aquilo que é relevante é o mundo imaginado por Vandermeer.
À primeira vista, esse mundo pode parecer apenas uma variação dos universos de Stephen King, tais como “A Cupula”, um recorte da realidade com condições particulares criadas por uma força ou identidade desconhecida. Mas é mais, bastante mais. Vandermeer cria um mundo alternativo através de uma fusão entre arte e ciência. Socorre-se fundamentalmente da Biologia, mas recorre à Linguística, Antropologia e Topografia (estas são as quatro áreas de especialidade das mulheres que acompanhamos na expedição à Área X) para conceber e desenhar um conjunto de variações no espaço e natureza.
É dada supremacia à biologia, pela sua vertente orgânica, o que em termos de criação de mundo pode ser vista como base plástica — visual e sonora. Tendo em conta que a realidade na Terra é já de si natural, orgânica, o que Vandermeer faz é ampliar o poder e efeito do orgânico. Uma espécie de reclamação do mundo por parte da natureza. Podemos dizer que o mundo de Vandermeer apresenta uma evolução sobre os mundos pós-apocalípticos mais recentes do tipo “The Last of Us” (2013) ou daquilo em que Chernobyl se transformou, em que o verde toma conta das estruturas criadas pelo humano. Por outro lado, podemos ver também um regresso a alguma ideologia dos anos 50 e 60, da transformação da natureza por via nuclear, dando origem aos mundos estranhos dotados de particulares bizarras, que alguns exploraram com os super-heróis, outros com o terror, e que Chernobyl acabou demonstrando fazer pouco sentido.
Talvez por isto mesmo, as alterações biológicas em Aniquilação não sejam nunca vistas como algo fruto de intervenção humana, mas antes alienígena. Como se os extraterrestres finalmente tomassem as formas propostas por Carl Sagan, não dotados de formas reconhecíveis, menos ainda hominídeas. Uma entidade que toma conta do espaço que dialoga com ele, amplia as suas capacidades, intervém, altera e transforma, mesclando e fusionando. E quando o humano intervém é introduzido em todas essas transformações como apenas mais um elemento da natureza do planeta. Em certos momentos, fez-me recordar “Solaris” de Tarkovsky (1972) e Lem (1961), a entidade-planeta que pensa e cria mundos-ilusão com o que os humanos se vão deparando, uma entidade que interage connosco não pela ação física ou forma, mas pela relação mental, cognitiva e emocional.
Não posso dizer que o trabalho de Vandermeer seja eminentemente cerebral, existe alguma ação à lá Hollywood, mas claramente quis mais do que isso e conseguiu-o por via do mundo que criou, o modo como o ambientou e ainda a escolha dos intervenientes alienígenas e humanos. Só tenho pena que a Linguística não tenha tido mais espaço, ela é importante mas acaba sendo de certo modo secundarizada, poderia ter aberto outros caminhos como fez Villeneuve em "Arrival" (2016) com a hipótese de Sapir-Whorf.
É a primeira vez que compro um livro que vem com 3 capas, a original (à direita) e duas sobre-capas, uma do filme, e outra dos 20 anos da Fnac.
Assim, e se o filme foi criado pelo brilhante Alex Garland, com um guião seu adaptado do livro de Vandermeer e com imensas variações sobre a história, é o universo imaginado e populado por Vandermeer que nos apaixona. Do ponto de vista estético, o filme é muito superior ao livro, Garland é muito mais dotado no manejo técnico das ferramentas de expressão cinematográfica. Vandermeer não é mau, mas não vai além do suficiente em termos de escrita. Mas nada disto importa muito porque aquilo que é relevante é o mundo imaginado por Vandermeer.
Imagens do filme homónimo (2018) de Alex Garland
À primeira vista, esse mundo pode parecer apenas uma variação dos universos de Stephen King, tais como “A Cupula”, um recorte da realidade com condições particulares criadas por uma força ou identidade desconhecida. Mas é mais, bastante mais. Vandermeer cria um mundo alternativo através de uma fusão entre arte e ciência. Socorre-se fundamentalmente da Biologia, mas recorre à Linguística, Antropologia e Topografia (estas são as quatro áreas de especialidade das mulheres que acompanhamos na expedição à Área X) para conceber e desenhar um conjunto de variações no espaço e natureza.
Páginas do “Wonderbook” (2013)
É dada supremacia à biologia, pela sua vertente orgânica, o que em termos de criação de mundo pode ser vista como base plástica — visual e sonora. Tendo em conta que a realidade na Terra é já de si natural, orgânica, o que Vandermeer faz é ampliar o poder e efeito do orgânico. Uma espécie de reclamação do mundo por parte da natureza. Podemos dizer que o mundo de Vandermeer apresenta uma evolução sobre os mundos pós-apocalípticos mais recentes do tipo “The Last of Us” (2013) ou daquilo em que Chernobyl se transformou, em que o verde toma conta das estruturas criadas pelo humano. Por outro lado, podemos ver também um regresso a alguma ideologia dos anos 50 e 60, da transformação da natureza por via nuclear, dando origem aos mundos estranhos dotados de particulares bizarras, que alguns exploraram com os super-heróis, outros com o terror, e que Chernobyl acabou demonstrando fazer pouco sentido.
Talvez por isto mesmo, as alterações biológicas em Aniquilação não sejam nunca vistas como algo fruto de intervenção humana, mas antes alienígena. Como se os extraterrestres finalmente tomassem as formas propostas por Carl Sagan, não dotados de formas reconhecíveis, menos ainda hominídeas. Uma entidade que toma conta do espaço que dialoga com ele, amplia as suas capacidades, intervém, altera e transforma, mesclando e fusionando. E quando o humano intervém é introduzido em todas essas transformações como apenas mais um elemento da natureza do planeta. Em certos momentos, fez-me recordar “Solaris” de Tarkovsky (1972) e Lem (1961), a entidade-planeta que pensa e cria mundos-ilusão com o que os humanos se vão deparando, uma entidade que interage connosco não pela ação física ou forma, mas pela relação mental, cognitiva e emocional.
Não posso dizer que o trabalho de Vandermeer seja eminentemente cerebral, existe alguma ação à lá Hollywood, mas claramente quis mais do que isso e conseguiu-o por via do mundo que criou, o modo como o ambientou e ainda a escolha dos intervenientes alienígenas e humanos. Só tenho pena que a Linguística não tenha tido mais espaço, ela é importante mas acaba sendo de certo modo secundarizada, poderia ter aberto outros caminhos como fez Villeneuve em "Arrival" (2016) com a hipótese de Sapir-Whorf.
setembro 02, 2019
A física da natureza
Trago um dos mais impressionantes experimentos de Física que já encontrei na rede, a "máquina de ondas" ou "ondas de pêndulo", e que consiste num pêndulo constituído de várias bolas, todas lançadas ao mesmo tempo, visualizadas a partir de um ponto lateral. O efeito pendular acionado pela força da gravidade gera ressonância na frequência, que se distingue pelos tamanhos dos fios de cada bola, e produz variação sinusoidal harmónica o que acaba produzindo efeitos visuais deslumbrantes.
Visualmente é deslumbrante, não apenas pela beleza do aparente ciclo caos-ordem, mas acima de tudo pelo modo como parece traduzir a sensação motora da vida no planeta. Como se as forças da natureza atuassem sobre os corpos, transformando-os continuamente, produzindo o orgânico, o eterno e perfeito arredondadamento de todas as formas naturais, das células às órbitas dos planetas. Por outro lado, ver o modo como o movimento vai produzindo formas reconhecíveis obriga-nos também a refletir sobre o quanto daquilo que vemos, das formas visuais, ao que ouvimos, formas sonoras, não passam de ilusões, de momentos recortados da realidade que aparentam apenas comportar-se de forma distinta, seguindo simetrias.
O experimento no vídeo surge sem autor, contudo o mesmo experimento pode ser observado noutro vídeo, "Pendulum Waves", criado por Nils Sorensen da Universidade de Harvard. A primeira vez que o experimento terá sido criado foi em Praga, por Ernst Mach, Professor de Física Experimental na Charles University, em 1867, tendo ficado conhecido como "Wavemachine of Mach".
Visualmente é deslumbrante, não apenas pela beleza do aparente ciclo caos-ordem, mas acima de tudo pelo modo como parece traduzir a sensação motora da vida no planeta. Como se as forças da natureza atuassem sobre os corpos, transformando-os continuamente, produzindo o orgânico, o eterno e perfeito arredondadamento de todas as formas naturais, das células às órbitas dos planetas. Por outro lado, ver o modo como o movimento vai produzindo formas reconhecíveis obriga-nos também a refletir sobre o quanto daquilo que vemos, das formas visuais, ao que ouvimos, formas sonoras, não passam de ilusões, de momentos recortados da realidade que aparentam apenas comportar-se de forma distinta, seguindo simetrias.
Um pêndulo feito com 15 bolas de bilhar.
O experimento no vídeo surge sem autor, contudo o mesmo experimento pode ser observado noutro vídeo, "Pendulum Waves", criado por Nils Sorensen da Universidade de Harvard. A primeira vez que o experimento terá sido criado foi em Praga, por Ernst Mach, Professor de Física Experimental na Charles University, em 1867, tendo ficado conhecido como "Wavemachine of Mach".
agosto 28, 2019
A Máquina por Levi
Tenho pouco a acrescentar às imensas leituras que já foram feitas de “Se Isto é um Homem” (1947). Já Primo Levi, e Viktor Frankl em “Em Busca de Sentido” (1946), diziam ambos nada terem para acrescentar ao horror já conhecido dos campos de extermínio Nazi, mas isso não era verdade. As suas palavras foram importantes, e tenderão a ser cada vez mais importantes. À medida que vamos avançando no tempo, a tendência será para esquecer, como se vai vendo (ex. relato de viagem à Polónia de um grupo de judeus americanos em 2017). Estas obras devem figurar como leitura obrigatória, nem que seja parcial, nas escolas de toda a Europa.
Frankl e Levi escreveram as primeiras memórias publicadas de Auschwitz, com tons totalmente diferentes. Não por um ser austríaco e outro italiano, mas por um ser psicólogo e o outro engenheiro químico. O modo como olham o mundo, os detalhes em que se fixam, que analisam e escolhem discutir vai de encontro aos modos epistemológicos com que avaliam o real. Frankl, é só humano, só emoção e sentimento, tentativa de compreender a si e aos outros. Levi, é só estrutura, só análise e detalhe, tentativa de dar conta do funcionamento do sistema que regulava os campos internamente. Diferentes, mas imensamente relevantes, porque se complementam completamente.
Já li e vi muita coisa sobre os campos de concentração, mas ao ler Levi, percebi que ainda não tinha compreendido nada sobre a realidade dos campos de concentração Nazi, e mesmo sobre a governação Nazi. Pode parecer fastidioso o detalhe apresentado — sobre as regras, os hábitos, rotinas, afazeres, limitações, diferenças, imposições, condições, repetições, esperas, etc. — mas é esse mesmo detalhe que nos faz entrar pelo campo adentro e vê-lo, senti-lo como ele foi. Não porque me interesse senti-lo, mas porque esta descrição de Levi me mostra de forma efetiva a “Máquina” e o “Método” alemães. Neste registo não se fala dos fornos, nem das câmaras de gás, fala-se do funcionamento específico de um campo de concentração, do seu dia-a-dia, das divisórias sociais internas e da organização sistemática de tudo.
Aquilo que distingue o Holocausto de outros genocídios é o método. Nunca antes, nem depois, o ser humano construiu uma tal “máquina” de matar, e isso só foi possível pela força do método imposto ao estado, governo e militares. A ideia de raça pura e perfeita terá servido para conduzir os governantes alemães à obsessão com o método, tudo em busca da organização perfeita, impermeável a falhas, impermeável ao acaso e ao orgânico. Tudo era controlado, tudo era repetidamente controlado, para que nada falhasse. A organização era feita por humanos, mas de humano nada existia ali, apenas máquina, apenas sistema salvaguardado com redundância para eliminar o erro. Perfeitamente implementado, uma transposição perfeita do papel para o terreno. Insanamente perfeita.
Existia ainda um outro factor, responsável pela elevação da “máquina” a níveis de matança inauditos, o Ódio. Levi disse mais tarde, quando compararam a sua obra com o “Arquipélago Gulag” de Solzhenitsyn, que este se diferenciava do Lager de Auschwitz pela percentagem de mortos, 30% contra 90-98%. Esta diferença deve à máquina montada, sem dúvida, mas essa precisava de ser alimentada para chegar a estas percentagens, e a única forma de o fazer foi pelo ódio. Era preciso manter todos os envolvidos na estrutura motivados, com objetivos claros e concretos, com sensação de progresso e de contributo para o bem dos seus. Para tal todas as diferenças fisiológicas e culturais foram usadas como armas de lavagem cerebral — pelo cinema, jornais, livros, panfletos, às mãos de um dos mais maquiavélicos Ministros da Propaganda de sempre, Goebbels — para gerar o mais profundo Ódio aos judeus. Criou-se na mente dos militares e cidadãos a visão de estarem acima na escala social, e de os outros nem sequer pertencerem a tal escala. Por isso, havia um trabalho a fazer, e cada um precisava de dar o seu melhor para o levar até ao Final...
Frankl e Levi escreveram as primeiras memórias publicadas de Auschwitz, com tons totalmente diferentes. Não por um ser austríaco e outro italiano, mas por um ser psicólogo e o outro engenheiro químico. O modo como olham o mundo, os detalhes em que se fixam, que analisam e escolhem discutir vai de encontro aos modos epistemológicos com que avaliam o real. Frankl, é só humano, só emoção e sentimento, tentativa de compreender a si e aos outros. Levi, é só estrutura, só análise e detalhe, tentativa de dar conta do funcionamento do sistema que regulava os campos internamente. Diferentes, mas imensamente relevantes, porque se complementam completamente.
Já li e vi muita coisa sobre os campos de concentração, mas ao ler Levi, percebi que ainda não tinha compreendido nada sobre a realidade dos campos de concentração Nazi, e mesmo sobre a governação Nazi. Pode parecer fastidioso o detalhe apresentado — sobre as regras, os hábitos, rotinas, afazeres, limitações, diferenças, imposições, condições, repetições, esperas, etc. — mas é esse mesmo detalhe que nos faz entrar pelo campo adentro e vê-lo, senti-lo como ele foi. Não porque me interesse senti-lo, mas porque esta descrição de Levi me mostra de forma efetiva a “Máquina” e o “Método” alemães. Neste registo não se fala dos fornos, nem das câmaras de gás, fala-se do funcionamento específico de um campo de concentração, do seu dia-a-dia, das divisórias sociais internas e da organização sistemática de tudo.
Aquilo que distingue o Holocausto de outros genocídios é o método. Nunca antes, nem depois, o ser humano construiu uma tal “máquina” de matar, e isso só foi possível pela força do método imposto ao estado, governo e militares. A ideia de raça pura e perfeita terá servido para conduzir os governantes alemães à obsessão com o método, tudo em busca da organização perfeita, impermeável a falhas, impermeável ao acaso e ao orgânico. Tudo era controlado, tudo era repetidamente controlado, para que nada falhasse. A organização era feita por humanos, mas de humano nada existia ali, apenas máquina, apenas sistema salvaguardado com redundância para eliminar o erro. Perfeitamente implementado, uma transposição perfeita do papel para o terreno. Insanamente perfeita.
Existia ainda um outro factor, responsável pela elevação da “máquina” a níveis de matança inauditos, o Ódio. Levi disse mais tarde, quando compararam a sua obra com o “Arquipélago Gulag” de Solzhenitsyn, que este se diferenciava do Lager de Auschwitz pela percentagem de mortos, 30% contra 90-98%. Esta diferença deve à máquina montada, sem dúvida, mas essa precisava de ser alimentada para chegar a estas percentagens, e a única forma de o fazer foi pelo ódio. Era preciso manter todos os envolvidos na estrutura motivados, com objetivos claros e concretos, com sensação de progresso e de contributo para o bem dos seus. Para tal todas as diferenças fisiológicas e culturais foram usadas como armas de lavagem cerebral — pelo cinema, jornais, livros, panfletos, às mãos de um dos mais maquiavélicos Ministros da Propaganda de sempre, Goebbels — para gerar o mais profundo Ódio aos judeus. Criou-se na mente dos militares e cidadãos a visão de estarem acima na escala social, e de os outros nem sequer pertencerem a tal escala. Por isso, havia um trabalho a fazer, e cada um precisava de dar o seu melhor para o levar até ao Final...
agosto 26, 2019
Como Começou a Linguagem: a História da Maior Invenção da Humanidade
Começar por dizer que não sou de Linguística, embora trabalhe no domínio da Comunicação que opera alguns níveis acima na relação com o humano, e por isso possui relação com o conhecimento produzido pela linguística. Dizer que tendemos a conhecer mais Chomsky pelo seu ativismo político do que propriamente pelos seus contributos científicos. No entanto, tendo em conta a envergadura do seu reconhecimento é sempre complicado defender posições antagónicas, contudo, é isso que Daniel L. Everett faz neste livro, “How Language Began: The Story of Humanity's Greatest Invention” (2017). Everett doutorou-se com uma tese em linguística, baseada no seu trabalho de campo com tribos da Amazónia nos anos 1970, um trabalho que continuou sempre a evoluir e lhe permitiu chegar a esta afirmação que surpreende muitos linguistas: “Eu nego aqui que a linguagem seja um instinto de qualquer tipo, assim como nego também que seja inata”.
Sendo um livro sobre a génese da linguagem humana, precisamos de partir da base comum e aceite pela generalidade dos académicos linguistas, sobre o modo como criamos linguagem e que na área dá pela designação de “Gramática Generativa” ou “Gramática Universal”. Esta designação foi criada por Chomsky nos anos 1960 e pretendia identificar um conjunto de regras base de organização mental que permitiriam o surgimento e desenvolvimento da linguagem. Chomsky e colegas determinaram que esta organização terá surgido há cerca de 50 mil anos, tendo alterado completamente o nosso desenvolvimento cognitivo e social, distinguindo-nos dos animais. Deste modo, Chomsky afirma existir uma linguagem universal inata, que mais tarde Fodor e Pinker denominariam de “linguagem do pensamento” ou “mentalese”. Confesso que a primeira vez que li sobre esta teorização não me atraiu. O meu treino em comunicação faz-me trabalhar a realidade do humano como algo altamente variável culturalmente (o que é amplamente suportado por evidências empíricas), daí que aceitar a hipótese da existência de uma espécie de código universal a este nível, imbuído em todos de forma igual, me pareceu sempre extemporâneo.
Ora o que Everett faz neste livro é exatamente desmontar essa ideia de linguagem universal. Como disse, não é o primeiro, basta fazer uma pesquisa no Google Scholar para encontrar estudos e artigos em oposição. O meu primeiro choque surgiu com a leitura de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) no qual Bergen apresenta a Hipótese da Simulação Corpórea com a qual sinto grande afinidade (não vou aqui detalhar, basta seguir o link para a discussão do livro). Mas talvez o maior choque, e só agora ao ler Everett me apercebi de tal, tenha sido com o livro de Tomasello “Origins of Human Communication” (2008), no qual o autor realiza um trabalho brilhante demonstrando o surgimento da comunicação a partir do gesto. Ou seja, a comunicação assente na expressão corporal, e na relação sistémica com o outro, e não a partir de um qualquer sistema inato interno.
Everett pega exatamente na questão dos gestos e na questão da comunicação, para demonstrar a origem evolucionária e socio-cultural da linguagem (apesar de só no final do livro sugerir a leitura de Tomasello). Não é muito difícil perceber esta posição se compreendermos a espécie-humana como formação de atores sociais altamente interdependentes. Ou seja, a linguagem, como muito daquilo que faz de nós pessoas, e não meros humanos, é emanada dessas relações, alterando-se a cada interação. Não é a universalidade que garante que comecemos a falar igual a outros sempre que passamos mais tempo com eles (ex. quando convivemos muito tempo com grupos com traços fonéticos ou dialecticais marcados, rapidamente os assumimos). Por outro lado, para além de nunca se ter detectado qualquer módulo responsável pela linguagem, nem tão pouco qualquer gene, é no mínimo estranho que a ser uma formação inata, não tenham sido também detectados até hoje nem anomalias congénitas nem qualquer hereditariedade dessas entre gerações. Aliás, nos trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos no campo da genética, (ver "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" (2018)) fala-se de traços físicos e psicológicos, vai-se ao nível da personalidade que condiciona a nossa emocionalidade, mas não vi até ao momento qualquer estudo que incluísse uma variável de linguagem. Se realmente fôssemos dotados de um qualquer módulo, por mínimo que fosse, ele teria de estar contido em qualquer parte da nossa informação genética.
Mas Everett faz um trabalho muito mais minucioso, não se fica por uma argumentação de variáveis. O facto de ter trabalhado mais de 30 anos com tribos isoladas, permitiu-lhe chegar a sistemas linguísticos não contaminados culturalmente, e encontrar diferenças relevantes. No caso da tribo Pirahã, a principal descoberta tem que ver com a ausência de recursividade, demonstrando a impossibilidade de um módulo universal. A leitura sobre a cultura da tribo é extremamente interessante, podem aceder a um pouco da mesma na página Wikipedia. A questão da ausência de recursividade é fundamental na gramática universal, porque é ela que permite a auto-sustentabilidade linguística, que por sua vez garante criatividade, evolução e claro, progresso cognitivo. Evertt, ao encontrar esta tribo sem acesso a tal modo, mas capaz de linguagem e conversação, desenvolveu toda uma nova abordagem à linguagem assente na cognição semiótica de Peirce — no seu triângulo de significação: Index, Ícone e Símbolo. Deste modo, a comunicação existiria muito antes de existir recursividade, e a linguagem faria apenas parte da comunicação como um todo.
Voltando à questão da interação social, base da grande teoria de Bandura sobre a aprendizagem, existe um vídeo na TED que coloca a nu este mesmo processo. No experimento Ded Roy montou câmaras por toda a casa que captaram todos os momentos em que o seu filho acabado de nascer expressou palavras, e conseguiu deste modo captar a progressão da criação da linguagem e o modo como ela é moldada pela interação social, no caso com os pais. É um experimento impressionante, que vale a pena ver, ou rever. O bebé começa por emitir sons básicos, mas ao apontar para o que quer expressar, recebe o feedback dos pais, que replicam com a palavra correta. Deste modo a criança aprende que se quer aquele elemento, e se apontar não chega, precisa de dizer a palavra de modo a que os outros a compreendam. Ou seja, a criança não nasce com a capacidade de linguagem, mas antes com a capacidade de aprendizagem e modulação dos sons que produz. A nossa capacidade de aprender, permite-nos refinar tudo aquilo que fazemos por meio da interação e feedback com o real.
Um outro ponto altamente problemático da teoria de Chomsky é a pragmática da comunicação, e que só pode ser ignorada por quem se foca exclusivamente na lógica matemática do social. Se a linguagem humana é sustentada numa sintaxe inata, de onde surge a semântica e a pragmática? Porque repare-se que a sintaxe nada vale para o ser humano sem semântica, e de nada serve na comunicação sem pragmática. E podemos ir mais fundo, como é que poderíamos defender a existência de um mentalese sem a existência de qualquer quadro de referência de significado. Ou seja, a que corresponde cada signo da mentalese, como é que o sistema atribui valor aos signos?
Claro que também tenho problemas com a proposta de Everett, nomeadamente com a sua proposta de que a linguagem terá começado há mais de 1 milhão de anos. A razão é simples, as evidências que temos de evolução da espécie em termos cognitivos, nomeadamente por meio de registos materiais — principalmente escultura e pintura — datam de há apenas 200 mill a 40 mil anos. Ou seja, algo aconteceu com a nossa espécie nessa altura para que esta tivesse começado a expressar e a criar. E repare-se que a linguagem é o primeiro ato criativo, já que depende da constante mescla e associação de palavras, e claro das ideias. Neste sentido, poderia dar-se razão a Chomsky. Pode ter acontecido uma mutação cognitiva no humano que o conduziu à produção de sintaxe, a mescla de sons e formação de palavras, que por sua vez tenhamos conseguido operar de forma mais evoluída pela semântica e pragmática.
Ainda assim, Everett toca num ponto que coloca em oposição e que me é particularmente caro, a conversação. Everett sugere que a evolução terá ocorrido a partir desta e não da gramática, o que para mim faz pleno sentido. A conversação é o sistema cognitivo social mais evoluído que alguma vez desenvolvemos. Não se trata da mera produção de sons, ou encadeamento e mescla de sons, mas envolve toda a nossa capacidade cognitiva — incluindo memória, percepção, atenção, aprendizagem, raciocínio, empatia, etc. Mas tal não invalida que algo aconteceu há 50 mil anos, e aqui discordo de Everett que defende que não houve qualquer alteração que foi tudo apenas resultado da mera progressão. É verdade que Everett sustenta no caso empírico da tribo Pirahã, que é uma tribo que vive apenas no presente, para quem não existe passado nem futuro, não produzem registos, nem possuem identificadores de número. Para Everett os Pirahã demonstram que se pode estar num estado anterior e ser dotado de linguagem, ou seja, sem qualquer salto cognitivo ou mutação. Mas também podemos questionar-nos se não é esta tribo uma anomalia, já que tal não foi encontrado em mais nenhum outra comunidade.
Pareço dar o dito pelo não dito, mas a grande questão, olhando às propostas de Everett e Chomsky, prende-se com uma diferença de ênfase. Ou seja, Chomsky tem razão sobre algo ter acontecido no nosso aparelho cognitivo, da ordem da linguagem ou outra qualquer. Tal como Everett tem razão ao dizer que não existe qualquer linguagem universal do pensamento, ou módulo cerebral. Podemos pensar então que existe algo que predispõe a espécie humana à linguagem, algo que surgiu apenas nos últimos 100 a 200 mil anos, não sabendo nós explicar o quê, nem como sucedeu. Na verdade, nada disso nos deve surpreender, a linguagem faz parte da nossa capacidade de produzir consciência, que ainda hoje temos dificuldade em definir, para não falar em compreender como terá surgido, ou sequer como se forma.
Atualização: 27 agosto 2019
Em 2009, numa entrevista com o Folha de S. Paulo, Chomsky dizia sobre Everett: "Ele virou um charlatão puro, embora costumasse ser um bom linguista descritivo. É por isso que, até onde eu sei, todos os linguistas sérios que trabalham com línguas brasileiras ignoram-no". Esta reação é ridícula, porque passa a ideia de que Everett é o único cientista que não acredita na Gramática Universal de Chomsky. Deixo um artigo de Evans e Levinson sobre os Mitos das Linguagens Universais.
Ora o que Everett faz neste livro é exatamente desmontar essa ideia de linguagem universal. Como disse, não é o primeiro, basta fazer uma pesquisa no Google Scholar para encontrar estudos e artigos em oposição. O meu primeiro choque surgiu com a leitura de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) no qual Bergen apresenta a Hipótese da Simulação Corpórea com a qual sinto grande afinidade (não vou aqui detalhar, basta seguir o link para a discussão do livro). Mas talvez o maior choque, e só agora ao ler Everett me apercebi de tal, tenha sido com o livro de Tomasello “Origins of Human Communication” (2008), no qual o autor realiza um trabalho brilhante demonstrando o surgimento da comunicação a partir do gesto. Ou seja, a comunicação assente na expressão corporal, e na relação sistémica com o outro, e não a partir de um qualquer sistema inato interno.
Everett pega exatamente na questão dos gestos e na questão da comunicação, para demonstrar a origem evolucionária e socio-cultural da linguagem (apesar de só no final do livro sugerir a leitura de Tomasello). Não é muito difícil perceber esta posição se compreendermos a espécie-humana como formação de atores sociais altamente interdependentes. Ou seja, a linguagem, como muito daquilo que faz de nós pessoas, e não meros humanos, é emanada dessas relações, alterando-se a cada interação. Não é a universalidade que garante que comecemos a falar igual a outros sempre que passamos mais tempo com eles (ex. quando convivemos muito tempo com grupos com traços fonéticos ou dialecticais marcados, rapidamente os assumimos). Por outro lado, para além de nunca se ter detectado qualquer módulo responsável pela linguagem, nem tão pouco qualquer gene, é no mínimo estranho que a ser uma formação inata, não tenham sido também detectados até hoje nem anomalias congénitas nem qualquer hereditariedade dessas entre gerações. Aliás, nos trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos no campo da genética, (ver "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" (2018)) fala-se de traços físicos e psicológicos, vai-se ao nível da personalidade que condiciona a nossa emocionalidade, mas não vi até ao momento qualquer estudo que incluísse uma variável de linguagem. Se realmente fôssemos dotados de um qualquer módulo, por mínimo que fosse, ele teria de estar contido em qualquer parte da nossa informação genética.
Mas Everett faz um trabalho muito mais minucioso, não se fica por uma argumentação de variáveis. O facto de ter trabalhado mais de 30 anos com tribos isoladas, permitiu-lhe chegar a sistemas linguísticos não contaminados culturalmente, e encontrar diferenças relevantes. No caso da tribo Pirahã, a principal descoberta tem que ver com a ausência de recursividade, demonstrando a impossibilidade de um módulo universal. A leitura sobre a cultura da tribo é extremamente interessante, podem aceder a um pouco da mesma na página Wikipedia. A questão da ausência de recursividade é fundamental na gramática universal, porque é ela que permite a auto-sustentabilidade linguística, que por sua vez garante criatividade, evolução e claro, progresso cognitivo. Evertt, ao encontrar esta tribo sem acesso a tal modo, mas capaz de linguagem e conversação, desenvolveu toda uma nova abordagem à linguagem assente na cognição semiótica de Peirce — no seu triângulo de significação: Index, Ícone e Símbolo. Deste modo, a comunicação existiria muito antes de existir recursividade, e a linguagem faria apenas parte da comunicação como um todo.
Voltando à questão da interação social, base da grande teoria de Bandura sobre a aprendizagem, existe um vídeo na TED que coloca a nu este mesmo processo. No experimento Ded Roy montou câmaras por toda a casa que captaram todos os momentos em que o seu filho acabado de nascer expressou palavras, e conseguiu deste modo captar a progressão da criação da linguagem e o modo como ela é moldada pela interação social, no caso com os pais. É um experimento impressionante, que vale a pena ver, ou rever. O bebé começa por emitir sons básicos, mas ao apontar para o que quer expressar, recebe o feedback dos pais, que replicam com a palavra correta. Deste modo a criança aprende que se quer aquele elemento, e se apontar não chega, precisa de dizer a palavra de modo a que os outros a compreendam. Ou seja, a criança não nasce com a capacidade de linguagem, mas antes com a capacidade de aprendizagem e modulação dos sons que produz. A nossa capacidade de aprender, permite-nos refinar tudo aquilo que fazemos por meio da interação e feedback com o real.
"O Nascimento de uma Palavra" (2011) de Deb Roy
Um outro ponto altamente problemático da teoria de Chomsky é a pragmática da comunicação, e que só pode ser ignorada por quem se foca exclusivamente na lógica matemática do social. Se a linguagem humana é sustentada numa sintaxe inata, de onde surge a semântica e a pragmática? Porque repare-se que a sintaxe nada vale para o ser humano sem semântica, e de nada serve na comunicação sem pragmática. E podemos ir mais fundo, como é que poderíamos defender a existência de um mentalese sem a existência de qualquer quadro de referência de significado. Ou seja, a que corresponde cada signo da mentalese, como é que o sistema atribui valor aos signos?
Claro que também tenho problemas com a proposta de Everett, nomeadamente com a sua proposta de que a linguagem terá começado há mais de 1 milhão de anos. A razão é simples, as evidências que temos de evolução da espécie em termos cognitivos, nomeadamente por meio de registos materiais — principalmente escultura e pintura — datam de há apenas 200 mill a 40 mil anos. Ou seja, algo aconteceu com a nossa espécie nessa altura para que esta tivesse começado a expressar e a criar. E repare-se que a linguagem é o primeiro ato criativo, já que depende da constante mescla e associação de palavras, e claro das ideias. Neste sentido, poderia dar-se razão a Chomsky. Pode ter acontecido uma mutação cognitiva no humano que o conduziu à produção de sintaxe, a mescla de sons e formação de palavras, que por sua vez tenhamos conseguido operar de forma mais evoluída pela semântica e pragmática.
A Caverna de Altamira, Espanha, apresenta algumas das primeiras pinturas humanas, tendo sido datadas com 30 mil anos.
Ainda assim, Everett toca num ponto que coloca em oposição e que me é particularmente caro, a conversação. Everett sugere que a evolução terá ocorrido a partir desta e não da gramática, o que para mim faz pleno sentido. A conversação é o sistema cognitivo social mais evoluído que alguma vez desenvolvemos. Não se trata da mera produção de sons, ou encadeamento e mescla de sons, mas envolve toda a nossa capacidade cognitiva — incluindo memória, percepção, atenção, aprendizagem, raciocínio, empatia, etc. Mas tal não invalida que algo aconteceu há 50 mil anos, e aqui discordo de Everett que defende que não houve qualquer alteração que foi tudo apenas resultado da mera progressão. É verdade que Everett sustenta no caso empírico da tribo Pirahã, que é uma tribo que vive apenas no presente, para quem não existe passado nem futuro, não produzem registos, nem possuem identificadores de número. Para Everett os Pirahã demonstram que se pode estar num estado anterior e ser dotado de linguagem, ou seja, sem qualquer salto cognitivo ou mutação. Mas também podemos questionar-nos se não é esta tribo uma anomalia, já que tal não foi encontrado em mais nenhum outra comunidade.
Pareço dar o dito pelo não dito, mas a grande questão, olhando às propostas de Everett e Chomsky, prende-se com uma diferença de ênfase. Ou seja, Chomsky tem razão sobre algo ter acontecido no nosso aparelho cognitivo, da ordem da linguagem ou outra qualquer. Tal como Everett tem razão ao dizer que não existe qualquer linguagem universal do pensamento, ou módulo cerebral. Podemos pensar então que existe algo que predispõe a espécie humana à linguagem, algo que surgiu apenas nos últimos 100 a 200 mil anos, não sabendo nós explicar o quê, nem como sucedeu. Na verdade, nada disso nos deve surpreender, a linguagem faz parte da nossa capacidade de produzir consciência, que ainda hoje temos dificuldade em definir, para não falar em compreender como terá surgido, ou sequer como se forma.
Atualização: 27 agosto 2019
Em 2009, numa entrevista com o Folha de S. Paulo, Chomsky dizia sobre Everett: "Ele virou um charlatão puro, embora costumasse ser um bom linguista descritivo. É por isso que, até onde eu sei, todos os linguistas sérios que trabalham com línguas brasileiras ignoram-no". Esta reação é ridícula, porque passa a ideia de que Everett é o único cientista que não acredita na Gramática Universal de Chomsky. Deixo um artigo de Evans e Levinson sobre os Mitos das Linguagens Universais.
agosto 25, 2019
O Doente Inglês (1992)
Li-o há duas semanas, e não foi só por estar de férias e sem computador que não escrevi sobre ele, foi também porque a impressão que deixou não era clara. Clara, no sentido de poder ser traduzida em palavras. Escrevi quando o terminei — “Imensamente sensorial...” — e continuo sentindo-o como tal. Ondaatje apresenta não só um vocabulário rico como uma prosa elaborada e poética. Existe uma história, entre várias histórias por cada uma das personagens, cada uma carrega consigo as suas morais, cada uma toca-nos à sua maneira, permitindo-nos ler o livro a partir de múltiplas perspectivas de sentido, daí a minha dificuldade em verbalizar uma ideia central única. Espero no entanto ver emergir essa ideia nas linhas seguintes...
Vi o filme quando saiu, não era de todo o meu tipo de filme, e surpreendentemente adorei, talvez porque no meio da expectável fórmula de Hollywood tenha visto algo mais, algo que já nessa altura não consegui verbalizar, mas que senti como diferente de anteriores obras de grande aura pedestalizada pelos Oscars. Nos Oscars estava a torcer por “Fargo” e “Shine”, mas nunca senti que tivesse sido um erro perder-se para o Paciente, diga-se que Geoffrey Rush ("Shine") levou o melhor actor e Frances McDormand ("Fargo") a melhor atriz. O Paciente tinha algo não só de épico, mas também de incompreensível e contraditório. As múltiplas personagens, distintas e opostas, puxavam em cada direção, e na fragmentação ofereciam unidade, que os atores suportavam muito bem, mas acima de tudo a direção e cinematografia levavam para níveis de transcendência. Não num sentido místico, mas de belo, de pura beleza formal, que tudo envolvia e a tudo garantia sentido. Um pouco como quando colamos uma música sobre uma foto ou um vídeo sem som e tudo parece magicamente fluir, assim senti o filme de Anthony Minghella, o deserto quente parecia transmigrar por entre as imagens captadas.
Quando comecei a ler o livro, passados 23 anos sobre o visionamento do filme, esse mesmo calor do deserto, amarelo torrado, denso e a perder de vista, ressurgiu. O paciente na sua cama, Juliette Binoche sempre a seu lado, e Kristin Scott Thomas nos sonhos do passado do paciente. A estrutura narrativa usa o espaço do improvisado e abandonado hospital na Toscânia, para a partir dos personagens viajar geograficamente até ao Norte de África, Canada, a Segunda Guerra e Hiroshima, num verdadeiro vai-e-vem temporal, a partir do que vamos ficando a conhecer cada uma das personagens, os seus passados, os seus valores e morais. A narrativa deslinearizada vai emergindo da densa malha de factos que se vão solidificando para simultaneamente darem conta da enorme condição de fragilidade de todos. Os personagens que chegam a atingir um ponto de equilíbrio, visto por nós a partir da compreensão do seu passado e assunção da sua presença real, ali naquele lugar e naquele tempo presente, começam a dissolver-se, a perder força, e a desagregar-se, abandonando o lugar e as pessoas, parecendo emocionalmente seguir o rumo da aproximação do fim da Guerra, que apesar de caminhar para a vitória terminaria profundamente negra.
À superfície temos um triângulo amoroso e as consequências funestas para todos os envolvidos, mas isso é apenas o suporte humano daquilo que Ondaatje quer contar, ou melhor criar. Porque na verdade, e daí a minha dificuldade em verbalizar, Ondaatje não quer mesmo contar, ele quer fazer sentir. E faz sentir, porque usa todos aqueles personagens, os do triângulo e todos os que o envolvem, com os seus passados, ligações e missões de vida e dá-lhes forma por meio de um texto que se assume como ele próprio também personagem, porque é ele que todos liga, e é dele que obtemos respostas às nossas perguntas, mas essas respostas nunca são diretas, nem tão pouco completas, porque as respostas de Ondaatje não são textuais mas antes texturais. Porque as personagens não contribuem com respostas cabais, antes aceitam apenas alargar a nossa compreensão do que estamos a ler, alargando o sentido do artefacto, oferecendo-lhe textura por via do espaço viajado e comportamento desfiado. Se no final fica imenso por responder, nem por isso sentimos que não atingimos o final, porque o final daquele espaço-tempo foi sentido, e aquelas personagens, cada uma à sua maneira, ficaram em nós.
Se não temos respostas, se é difícil verbalizar o que nos dá o livro, se se sente mais do que se reflete, nem por isso nos deixa de questionar, e um dos momentos altos que só com esta idade poderia compreender, chegou com a frase abaixo que poderia servir de definição do existencialismo da meia-idade:
Edição lida: Círculo de Leitores, capa dura, 1997
Vi o filme quando saiu, não era de todo o meu tipo de filme, e surpreendentemente adorei, talvez porque no meio da expectável fórmula de Hollywood tenha visto algo mais, algo que já nessa altura não consegui verbalizar, mas que senti como diferente de anteriores obras de grande aura pedestalizada pelos Oscars. Nos Oscars estava a torcer por “Fargo” e “Shine”, mas nunca senti que tivesse sido um erro perder-se para o Paciente, diga-se que Geoffrey Rush ("Shine") levou o melhor actor e Frances McDormand ("Fargo") a melhor atriz. O Paciente tinha algo não só de épico, mas também de incompreensível e contraditório. As múltiplas personagens, distintas e opostas, puxavam em cada direção, e na fragmentação ofereciam unidade, que os atores suportavam muito bem, mas acima de tudo a direção e cinematografia levavam para níveis de transcendência. Não num sentido místico, mas de belo, de pura beleza formal, que tudo envolvia e a tudo garantia sentido. Um pouco como quando colamos uma música sobre uma foto ou um vídeo sem som e tudo parece magicamente fluir, assim senti o filme de Anthony Minghella, o deserto quente parecia transmigrar por entre as imagens captadas.
Quando comecei a ler o livro, passados 23 anos sobre o visionamento do filme, esse mesmo calor do deserto, amarelo torrado, denso e a perder de vista, ressurgiu. O paciente na sua cama, Juliette Binoche sempre a seu lado, e Kristin Scott Thomas nos sonhos do passado do paciente. A estrutura narrativa usa o espaço do improvisado e abandonado hospital na Toscânia, para a partir dos personagens viajar geograficamente até ao Norte de África, Canada, a Segunda Guerra e Hiroshima, num verdadeiro vai-e-vem temporal, a partir do que vamos ficando a conhecer cada uma das personagens, os seus passados, os seus valores e morais. A narrativa deslinearizada vai emergindo da densa malha de factos que se vão solidificando para simultaneamente darem conta da enorme condição de fragilidade de todos. Os personagens que chegam a atingir um ponto de equilíbrio, visto por nós a partir da compreensão do seu passado e assunção da sua presença real, ali naquele lugar e naquele tempo presente, começam a dissolver-se, a perder força, e a desagregar-se, abandonando o lugar e as pessoas, parecendo emocionalmente seguir o rumo da aproximação do fim da Guerra, que apesar de caminhar para a vitória terminaria profundamente negra.
À superfície temos um triângulo amoroso e as consequências funestas para todos os envolvidos, mas isso é apenas o suporte humano daquilo que Ondaatje quer contar, ou melhor criar. Porque na verdade, e daí a minha dificuldade em verbalizar, Ondaatje não quer mesmo contar, ele quer fazer sentir. E faz sentir, porque usa todos aqueles personagens, os do triângulo e todos os que o envolvem, com os seus passados, ligações e missões de vida e dá-lhes forma por meio de um texto que se assume como ele próprio também personagem, porque é ele que todos liga, e é dele que obtemos respostas às nossas perguntas, mas essas respostas nunca são diretas, nem tão pouco completas, porque as respostas de Ondaatje não são textuais mas antes texturais. Porque as personagens não contribuem com respostas cabais, antes aceitam apenas alargar a nossa compreensão do que estamos a ler, alargando o sentido do artefacto, oferecendo-lhe textura por via do espaço viajado e comportamento desfiado. Se no final fica imenso por responder, nem por isso sentimos que não atingimos o final, porque o final daquele espaço-tempo foi sentido, e aquelas personagens, cada uma à sua maneira, ficaram em nós.
Se não temos respostas, se é difícil verbalizar o que nos dá o livro, se se sente mais do que se reflete, nem por isso nos deixa de questionar, e um dos momentos altos que só com esta idade poderia compreender, chegou com a frase abaixo que poderia servir de definição do existencialismo da meia-idade:
“Quando somos jovens não nos vemos ao espelho. Fazemo-lo quando chegamos a velhos, quando nos preocupamos com o nosso nome, com a nossa lenda, com o significado que as nossas vidas terão para o futuro. Envaidecemo-nos dos nomes que usamos, da nossa pretensão a termos sido os primeiros olhos, o exército mais forte, o mercador mais astuto. É depois de velho que Narciso quer uma imagem gravada de si próprio.” (p.151)
Edição lida: Círculo de Leitores, capa dura, 1997
Subscrever:
Mensagens (Atom)