O autor, David Benioff, é alguém que respeito imenso. O seu primeiro livro, “25th Hour” (2002) foi por ele adaptado para o filme homónimo realizado por Spike Lee, tendo resultado num dos melhores filmes da primeira década de 2000, e para mim o mais marcante sobre o 11/9. Depois disto escreveu vários guiões interessantes, embora nenhum tão intenso — "Troy" (2004), "Stay" (2005), "The Kite Runner" (2007), "X-Men Origins: Wolverine" (2009). Pelo meio escreveu este “Cidade de Ladrões”, mas foi ainda antes deste, em 2006, que começou a sua maior saga, a adaptação de “A Song of Ice and Fire” do George R.R. Martin para a série de televisão “Game of Thrones”, que só veria a luz do dia em 2011, mas que desde então nunca mais pararia de surpreender espetadores no mundo inteiro. Benioff não é apenas escritor do guião da série, ele juntamente com D. B. Weiss assumiram a autoria da série, tendo Martin apenas como apoio, e isto é tanto mais real quanto as últimas temporadas na televisão apresentam o enredo já para além do último livro lançado por Martin. Ainda em defesa de Benioff e do próprio “Cidade de Ladrões” temos Bruce Straley, realizador e designer de um dos meus videojogos preferidos de sempre, “The Last of Us” (2013), a dizer em entrevista que este livro lhe tinha servido de inspiração artística na criação do universo pós-apocalíptico do jogo. Não poderia apresentar mais ou melhores argumentos, a não ser talvez os amigos do Goodreads que listam maioritariamente este livro com 5 estrelas.
Começando pelo melhor. Benioff é um excelente contador de histórias, capaz de fundir ficção e realidade com imensa facilidade. Nesta obra recorre ao Cerco de Leninegrado como espaço onde situa a sua história, e usa-o para preencher aquilo que seria uma mera narrativa com dados históricos que nos surpreendem, alimentam a nossa curiosidade e nos formam. Acompanhamos dois jovens desconhecidos, a quem se encarrega uma missão que têm de realizar juntos, e por meio dessa missão ficaremos a saber muito mais sobre o Cerco, a cidade, a guerra, assim como sobre os russos. Ou seja, Benioff fez um bom trabalho de investigação para o livro, apresentando bastante detalhe de relevo permitindo-nos ganhar uma visão mais próxima do que terá sucedido naquele sítio naquela altura.
A violência do Cerco de Leninegrado que durou de 8 de Setembro de 1941 a 27 de Janeiro de 1944
O meu problema com o livro desdobra-se em duas componentes: drama e artificialismo. Falta dramatização ao texto. Quanto mais ia lendo e as ações iam acontecendo, mais sentia isto mesmo, mais pensava, “isto é um guião, não é um livro”. Os personagens passam pelos eventos como se lhes fossem totalmente alheios, das coisas mais macabras às mais banais, tudo é visto com os mesmos olhos. Ou seja, falta o ator, falta performance por detrás do que vai acontecendo e vai sendo dito e pensado pelos personagens, que é o drama. Um pouco como acontece com as peças de teatro escritas, em que temos apenas acesso ao texto, e para podermos verdadeiramente sentir a peça na sua plenitude temos de a ver encenada para aceder ao drama. De certo modo senti-me mesmo incomodado com as ausências de reação por parte dos personagens, assumindo tudo com aparente naturalidade, ou melhor dizendo, neutralidade por via da ausência de emoção. Tanto faz encontrar canibalismo como matarem ali ao lado pessoas às dezenas, tudo parece servido quase apenas de decoração narrativa já que aos nossos personagens, nada os afeta. No fundo, Benioff é melhor escritor de guiões do que de romances.
Por outro lado, o facto de Benioff se ter tornado um mestre no contar de histórias, faz com que ele saiba muito bem o que precisa para ativar os seus espetadores e leitores, mas ao mesmo tempo, faz com que quem leia o texto com um pouco mais de atenção perceba que os elementos vão sendo apresentados apenas com o objetivo de impactar o nosso sentir. Ou seja, “Cidade de Ladrões” surge mais como fruto de design do que de arte. O ritmo é pautado por marcos bem doseados de horror, sexo e relaxe que permitem ao leitor seguir atrás, envolvido e agarrado na expetativa pelo que vai acontecer a seguir. A juntar a isto temos o desenho do enredo assente num único objetivo final concreto que mantém tudo coeso e com sentido do início ao fim mas que acaba por retirar toda a relevância aos personagens em si. Quantas vezes não paramos para nos interrogar sobre o porquê da importância dessa missão, completamente incapaz de justificar muitas das ações que se vão desenrolando num crescendo que é apenas necessário à história que se quer contar, e à formula que um bom clímax exige. Isto para não dizer nada sobre a total inverosimilitude do arranjo final, com o hollywoodesco happy-ending.
Sobre o que se diz na história, não há muito a dizer. Sim a guerra é uma tontice, mas era dispensável transformar-nos, a nós leitores, em tontos à procura de galinhas e ovos, no meio de um autêntico apocalipse em curso. Pelo meio Benioff alimenta-nos com mais do que isso — a poesia russa, o hábito russo de jogar xadrez, a fome, o canibalismo, o comunismo, o nazismo, o Cerco... — e por isso o livro vale completamente a leitura. Podia ser melhor, mas tenho também de dizer que talvez não ajude o facto de imediatamente antes de ler Benioff tivesse andado a ler Dostoiévski, o que terá colocado a fasquia um pouco alta.