maio 07, 2018

Cidade de Ladrões (2008)

Já por várias vezes tinha tentado ler “Cidade de Ladrões”, as notas no Goodreads eram muito boas, com fortes recomendações de leitura, mas de cada vez que o iniciava não me conseguia ligar ao mesmo, parecia-me ser apenas mais um livro de histórias sem propriamente uma ideia ou mensagem. Desta vez, o facto de ter percebido, erradamente, que o livro tratava de uma história real do avô do autor, acabei por continuar a leitura que me agarrou até ao final, mesmo já depois de ter percebido que nenhum dos avôs de Benioff tinha realmente estado no Cerco de Leninegrado. Serviu ainda o meu interesse inicial o facto de ter estado recentemente em São Petersburgo e por várias vezes os locais terem referido “O Cerco” como algo que impactou muito daquilo que são os costumes ainda hoje naquela cidade. Contudo, chegado ao final, continuou a faltar-me algo, continuei a sentir que o livro não era capaz de ir além da superfície do conteúdo tratado. Tentarei nas próximas linhas dar conta do porquê.


O autor, David Benioff, é alguém que respeito imenso. O seu primeiro livro, “25th Hour” (2002) foi por ele adaptado para o filme homónimo realizado por Spike Lee, tendo resultado num dos melhores filmes da primeira década de 2000, e para mim o mais marcante sobre o 11/9. Depois disto escreveu vários guiões interessantes, embora nenhum tão intenso — "Troy" (2004), "Stay" (2005), "The Kite Runner" (2007), "X-Men Origins: Wolverine" (2009). Pelo meio escreveu este “Cidade de Ladrões”, mas foi ainda antes deste, em 2006, que começou a sua maior saga, a adaptação de “A Song of Ice and Fire” do George R.R. Martin para a série de televisão “Game of Thrones”, que só veria a luz do dia em 2011, mas que desde então nunca mais pararia de surpreender espetadores no mundo inteiro. Benioff não é apenas escritor do guião da série, ele juntamente com D. B. Weiss assumiram a autoria da série, tendo Martin apenas como apoio, e isto é tanto mais real quanto as últimas temporadas na televisão apresentam o enredo já para além do último livro lançado por Martin. Ainda em defesa de Benioff e do próprio “Cidade de Ladrões” temos Bruce Straley, realizador e designer de um dos meus videojogos preferidos de sempre, “The Last of Us” (2013), a dizer em entrevista que este livro lhe tinha servido de inspiração artística na criação do universo pós-apocalíptico do jogo. Não poderia apresentar mais ou melhores argumentos, a não ser talvez os amigos do Goodreads que listam maioritariamente este livro com 5 estrelas.

Começando pelo melhor. Benioff é um excelente contador de histórias, capaz de fundir ficção e realidade com imensa facilidade. Nesta obra recorre ao Cerco de Leninegrado como espaço onde situa a sua história, e usa-o para preencher aquilo que seria uma mera narrativa com dados históricos que nos surpreendem, alimentam a nossa curiosidade e nos formam. Acompanhamos dois jovens desconhecidos, a quem se encarrega uma missão que têm de realizar juntos, e por meio dessa missão ficaremos a saber muito mais sobre o Cerco, a cidade, a guerra, assim como sobre os russos. Ou seja, Benioff fez um bom trabalho de investigação  para o livro, apresentando bastante detalhe de relevo permitindo-nos ganhar uma visão mais próxima do que terá sucedido naquele sítio naquela altura.


A violência do Cerco de Leninegrado que durou de 8 de Setembro de 1941 a 27 de Janeiro de 1944

O meu problema com o livro desdobra-se em duas componentes: drama e artificialismo. Falta dramatização ao texto. Quanto mais ia lendo e as ações iam acontecendo, mais sentia isto mesmo, mais pensava, “isto é um guião, não é um livro”. Os personagens passam pelos eventos como se lhes fossem totalmente alheios, das coisas mais macabras às mais banais, tudo é visto com os mesmos olhos. Ou seja, falta o ator, falta performance por detrás do que vai acontecendo e vai sendo dito e pensado pelos personagens, que é o drama. Um pouco como acontece com as peças de teatro escritas, em que temos apenas acesso ao texto, e para podermos verdadeiramente sentir a peça na sua plenitude temos de a ver encenada para aceder ao drama. De certo modo senti-me mesmo incomodado com as ausências de reação por parte dos personagens, assumindo tudo com aparente naturalidade, ou melhor dizendo, neutralidade por via da ausência de emoção. Tanto faz encontrar canibalismo como matarem ali ao lado pessoas às dezenas, tudo parece servido quase apenas de decoração narrativa já que aos nossos personagens, nada os afeta. No fundo, Benioff é melhor escritor de guiões do que de romances.

Por outro lado, o facto de Benioff se ter tornado um mestre no contar de histórias, faz com que ele saiba muito bem o que precisa para ativar os seus espetadores e leitores, mas ao mesmo tempo, faz com que quem leia o texto com um pouco mais de atenção perceba que os elementos vão sendo apresentados apenas com o objetivo de impactar o nosso sentir. Ou seja, “Cidade de Ladrões” surge mais como fruto de design do que de arte. O ritmo é pautado por marcos bem doseados de horror, sexo e relaxe que permitem ao leitor seguir atrás, envolvido e agarrado na expetativa pelo que vai acontecer a seguir. A juntar a isto temos o desenho do enredo assente num único objetivo final concreto que mantém tudo coeso e com sentido do início ao fim mas que acaba por retirar toda a relevância aos personagens em si. Quantas vezes não paramos para nos interrogar sobre o porquê da importância dessa missão, completamente incapaz de justificar muitas das ações que se vão desenrolando num crescendo que é apenas necessário à história que se quer contar, e à formula que um bom clímax exige. Isto para não dizer nada sobre a total inverosimilitude do arranjo final, com o hollywoodesco happy-ending.

Sobre o que se diz na história, não há muito a dizer. Sim a guerra é uma tontice, mas era dispensável transformar-nos, a nós leitores, em tontos à procura de galinhas e ovos, no meio de um autêntico apocalipse em curso. Pelo meio Benioff alimenta-nos com mais do que isso — a poesia russa, o hábito russo de jogar xadrez, a fome, o canibalismo, o comunismo, o nazismo, o Cerco... — e por isso o livro vale completamente a leitura. Podia ser melhor, mas tenho também de dizer que talvez não ajude o facto de imediatamente antes de ler Benioff tivesse andado a ler Dostoiévski, o que terá colocado a fasquia um pouco alta.

maio 01, 2018

Dostoiévski, o profeta do terror comunista

"Demónios" (1872) não é um romance, não é também um romance histórico, é um trabalho de puro ativismo social mas que nunca se subjuga ao mero panfleto, assume o fundo realista para se debruçar sobre as especificidades do realismo social e psicológico, ou seja, debate as questões que faziam mover a sociedade russa na segunda metade do século XIX, procurando compreendê-las a partir das motivações psicológicas dos seus principais atores. Ao fazê-lo Dostoiévski dava conta do que acontecia e do potencial que essas ações encerravam para o futuro da sociedade, daí que apelidar Dostoiévski de profeta assuma neste livro o seu sentido maior.


As personagens reais por detrás da história criada por Dostoiévski. Acima: Granovsky, Tchernichévski, Turguenev; em baixo: Bakunin e Nechayev. (Imagens do Museu de Dostoiévski, São Petersburgo).

“Demónios” é baseado num crime de assassínio cometido em 1869 pelo niilista Sergey Nechayev, autor do “Catecismo de um Revolucionário”, um manifesto que apresenta as bases ideológicas e executivas para a promoção daquilo que hoje designamos como Terrorismo. Como nos seus livros anteriores, Dostoiévski empenha-se aqui na luta contra o radicalismo político nas suas diferentes frentes, do niilismo ao comunismo. Terá contribuído para tal: o facto de ele próprio, nos seus 20 anos, ter pertencido a grupos literários radicais (Círculo Petrashevsky); os anos passados na prisão na Sibéria; e todo um amadurecimento; que o conduziriam a um recentrar de ideias, fugindo do ateísmo e impondo-se uma moldura de crença religiosa que o tornaria imune à redução do humano a mero joguete político. O radicalismo que Dostoiévski ataca é aquele que se assume a partir da excisão da empatia do ser humano.

"Estudante Niilista" (1883) de Ilya Repin

Depois do ataque direto a Tchernichévski em “Memórias do Subterrâneo” (1864), esta obra é talvez o seu mais violento ataque político, plena de raiva e carregada de horror, para dar conta do seu mau-estar com tudo o que grassava a sociedade russa. Sem subterfúgios Dostoiévski aponta o dedo a Turgueniev, a Tchernichévski, a Herzen, a Fourier, a Bakunin a todo o tipo de aventuras radicais que colocavam o indivíduo em segundo plano em nome de ideais, supostamente científicos, criados a partir de abstrações, de conceptualizações que limitavam o humano a mera variável de sistemas lógicos. Ora Dostoiévski após a sua experiência de quase-morte, quando lhe foi sentenciada a execução por fuzilamento, dá-se conta de que o ser humano não é mera abstração mas é alguém que sofre enquanto busca por se compreender a si mesmo, e que as ideias não se podem sobrepor às pessoas. Assim, temos Dostoiévsky a desconstruir a estrutura psicológica que suporta o terrorismo, o de ontem e o de hoje. Sim Profeta, porque esta obra e outras do autor, mas esta especialmente, previu o que viria a acontecer na Rússia, uma revolução terrorista como fica expresso nas seguintes passagens do livro:
[Chigalev:] "Ao dedicar a minha energia ao estudo da organização social da sociedade futura que substituirá a presente, cheguei à convicção de que todos os criadores dos sistemas sociais, desde a antiguidade até à presente data de 187..., eram uns sonhadores, uns fantasistas e uns tolos que se contradiziam a si mesmos, que não percebiam nada de ciências naturais e daquele estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier, as colunas de alumínio, tudo isso talvez seja adequado para os pardais, mas não para a sociedade humana. Mas como a futura forma social é necessária precisamente agora, quando todos nós, finalmente, tencionamos agir para não termos de refletir nunca mais, vou propor o meu próprio sistema de organização do mundo. Ei-lo! (..) Confundi os meus próprios dados, e a minha conclusão está em contradição direta com a ideia inicial em que me baseio. Partindo do princípio da liberdade ilimitada, chego à conclusão do despotismo ilimitado. Acrescento no entanto que, fora da minha solução da fórmula social, não pode haver mais nenhuma.
(..)
[Professor:] “Conheço o livro dele. Propõe, como solução final, a divisão da humanidade em duas partes desiguais. Uma décima parte obtém a liberdade pessoal e um poder ilimitado sobre os restantes nove décimos. Estes têm de perder a personalidade e transformar-se numa espécie de gado, e, infinitamente submissos, atingir, mediante uma série de involuções, uma inocência primitiva, uma espécie de estado de paraíso primitivo, embora trabalhem, aliás. As medidas sugeridas pelo autor para se privar de vontade os nove décimos da humanidade e para os transformar em gado por meio da reeducação de gerações inteiras são notáveis e muito lógicas, baseadas nos dados fornecidos pelas ciências naturais. Podemos não concordar com algumas conclusões, mas é difícil duvidar-se do intelecto e dos conhecimentos do autor.”
Ou seja, os revolucionários radicais que discutem estas ideias, apresentam como solução que noventa por cento da sociedade seja escravizada pelos restantes dez por cento. A igualdade entre os 90% deve ser operada pela polícia, terrorismo de Estado e destruição das vidas cultural e artística. Dostoiévski estima que para atingir o paraíso político, precisarão de eliminar "cem milhões" de pessoas pelo caminho. Isto foi escrito em 1872, a revolução comunista começou em 1917, e num estudo publicado em 1997 em França, "O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão" dá-se como número provável de mortes às mãos do comunismo, 94 milhões de pessoas.

E hoje, quando reflito nisto assusto-me ao pensar naquilo em que Portugal esteve perto de se transformar, em 1974. Obviamente que estas ideias perigosas não surgem do vazio, são precisas condições propícias à sua germinação, e a Rússia do final do século XIX aproximava-se perigosamente da França do final do século XVIII. Existia uma clara necessidade de pôr termo ao luxo desmedido da monarquia e séquito aristocrata. Apesar de o reinado Romanov estar já muito transformado, de ter abolido a escravatura e criado todo um sistema de governo e Estado muito mais justos, as diferenças entre classes eram ainda abissais.

Por isso surgem indivíduos como Sergey Nechayev que viam em Robespierre o único caminho possível, e que vão preparando o terreno para mais tarde Lenine chegar do estrangeiro, e com toda uma espécie de legitimidade, aplicar a cartilha revolucionária, e sem pudor defender que não um mas toda a Casa Romanov devia ser eliminada. Dostoiévski previu Lénine, e a sociedade russa estaria alerta, contudo não deixa de ser verdade que a Europa não foi inocente em todo esse processo, tendo contribuído para colocar Lénine no poder na Rússia, podendo apenas servir-lhe de desculpa a Primeira Grande Guerra. Assim como não podemos esquecer que se a NATO não tivesse instalado um porta-aviões no Tejo junto ao Palácio de Belém, em 1975, mais toda uma enorme atividade diplomática, provavelmente hoje eu não poderia estar a escrever estas linhas com todo este à vontade.


Sobre o livro em si. A escrita de Dostoiévski não é fácil de seguir, não pela excessiva elaboração, mas pela quantidade de contexto que requer para a sua compreensão, e assim obtenção de prazer. Não ajuda também o já conhecido problema desta literatura assente numa grande quantidade de personagens, todos com três nomes, fora os diminutivos, o que obriga a redobrada atenção no seguimento da trama. Por outro lado, este livro apresenta uma espécie de dupla linha de enredo, primeiro a geração mais velha — Stepan Trofimovich Verkhovensky e Varvara Petrovna Stavrogina — com a sua forma de estar intelectual, aristocrática e distante, e em segundo plano, ou talvez o principal, os seus filhos — Nikolai Vsevolodovich Stavrogin e Pyotr Stepanovich Verkhovensky —, os radicais totalmente incapazes de empatia. Dostoiévski não estabelece nunca a relação entre pais e filhos, deixando para o leitor o trabalho de compreender essa relação, mas apontando claramente no sentido mais crítico à obra de Turguenev "Pais e Filhos" (1862).

Sobre a edição portuguesa, devo dizer que vem com um capítulo extra no final do livro, que foi escrito por Dostoiévski para ser lido como o primeiro capítulo da terceira parte, mas que aquando da publicação teve dificuldades em fazer passar pelo editor. Li como Dostoiévski pretendia, e considero que tinha toda a razão. Sim, é um capítulo forte e intenso, talvez mais vulgar nos dias de hoje, mas é um capítulo fundamental para compreender até onde pode ir a obscenidade do radicalismo do protagonista da história: Nikolai Vsevolodovich Stavrogin. Todo o resto do livro apresenta um Stavrogin muito indefinido, necessário à criação da complexidade psicológica, mas este capítulo funciona como espécie de chave do seu caráter, e mais do que isso, como chave explicativa do niilismo.

abril 30, 2018

Alexander Pushkin (1799-1837)

A minha última visita, em São Petersburgo, ocorreu à casa de Alexander Pushkin, símbolo nacional da literatura russa. Tal como Dostoiévksi nasceu em Moscovo mas foi em São Petersburgo que fez o liceu e começou a sua carreira como escritor, foi ali que se afirmou e viria também a morrer. Pushkin difere da restante galeria de autores clássicos russos, não por ser poeta mas por os ter precedido a todos e desse modo ter pertencido ao movimento do Romantismo, ao contrário dos outros grandes nomes — Dostoiévksi, Tolstói, Gogol, Turguenev, Tchekhov — todos realistas. Nesse sentido, a casa museu espelha bem a aura romanticista através de uma decoração intensamente classicista.


A entrada da casa e a sala de jantar

Não sendo eu grande adepto do romantismo, nem tão pouco do verso, optei por adquirir antes da visita o livro-coletânea "Love Poems", já que tinha apenas lido "Eugénio Oneguin" (1825). Funcionou bem, no sentido em que me permitiu chegar mais perto do verdadeiro estilo de escrita do autor, e sentir o modo intenso como descrevia o sentir humano por meio de texto. Assim ao entrar na casa, todo aquele luxo do início do século XIX, as mobílias imaculadas e de bom porte, combinariam na perfeição com os poemas que tinha lido pelas ruas de São Petersburgo.


Friendship and Love

"Friendship alone, I've heard it said,
makes our world beautiful. Without it 
there is no joy. The path we tread 
would be too hard, no doubt about it,
but for quiet friendship's light ahead.
But listen - there's another feeling:
it both caresses and torments;
in times of struggle, times of healing,
It's flame is equally intense;
it's cruel and excruciating,
it numbs our souls which, scarce alive 
with wounds profound and devastating,
the balm of hope cannot revive...
This is the passion I've endured!...
I languish, perish in my prime,
But god forbid I should be cured..."

[Tradução de Mary Hobson]


É tempo, meu amigo…

"É tempo, meu amigo, o coração cansou-se…
Cada hora voa, e é como se com ela fosse
um farrapo daquilo que pensamos vivo.
Tardará muito a morte? Ah, tudo é fugitivo.

Felicidade não, mas paz e liberdade
é quanto espera quem só ainda sonha que há-de
fugir — cansado escravo —, antes da noite escura,
a repousar nos longes da mais clara altura."

[Tradução de Jorge de Sena]


Relativamente à experiência da visita, sendo interessante a descrição do audioguia, peca por ser incapaz de dar uma visão mais concreta da pessoa por detrás do símbolo. Ou seja, sendo Pushkin um ícone nacional, o texto assume que nós já conhecemos bastante bem o escritor e foca-se quase exclusivamente nos seus últimos dias, no derradeiro duelo e nas últimas horas antes de morrer. É verdade que aquela casa é o local onde morreu, mas considero que a experiência poderia ter sido desenhada de modo mais abrangente para que pudéssemos aceder a mais do autor. Por outro lado, e olhando aos visitantes tipo, os miúdos das escolas russas, acaba por funcionar bem para eles já que ao focar-se na morte e na descrição das últimas horas, intensifica a experiência da visita pela urgência e desenrolar dos eventos ao longo das várias secções da casa.

"A. S. Pushkin’s duel with Dantes" (1860) de Adrian Markovic Volkov. A tela original pode ser vista na casa.

Mais uma vez, a peça mais interessante é o seu escritório-biblioteca, no qual podemos ver as estantes carregadas de livros, e que segundo o guia teriam chegado a perfazer 40 mil volumes (talvez exagerado, ou não) em cerca de 14 línguas distintas. Isto dá bem noção da relação do autor com o mundo das letras, da sua obsessão por estas, mas também dos seus intensos relacionamentos com toda a elite capaz de lhe proporcionar acesso a tão relevante espólio.

Estúdio de Pushkin

Conjunto de pistolas de duelo, semelhantes às utilizadas por Dantes e Pushkin

Existe uma outra peça que atrai o interesse dos alunos, a caixa de armas da época, que nos oferece uma visão direta sobre o momento em que Pushkin inicia o processo da sua morte. Infelizmente são apenas semelhantes àquelas usadas no duelo de Pushkin, não são as que realmente serviram o fatídico momento. Confesso que apesar de respeitar as questões de honra, sempre me fez confusão a lógica de um duelo com armas de fogo, por oposição aos duelos de armas brancas ou simplesmente de punhos. A única explicação que encontro é que estas armas eram, à altura, muito pouco certeiras e pouco poderosas, de outro modo seria impossível sair alguém vivo dali.

Estátua de Pushkin à entrada do Museu Russo de S. Petersburgo

abril 29, 2018

Anna Akhmatova, a poetisa da dor russa

Depois do luxo arquitectónico dos Romanov e dos clássicos literários russos acabei por desaguar numa camada de história da cidade completamente distinta, o tempo soviético. Não que tenha ido à sua procura, era algo que tinha pensado evitar (a quantidade de camadas de história que se podem aqui visitar são tantas que se torna inevitável fazer escolhas), mas a visita à Fortaleza de Pedro e Paulo, onde se encontram os túmulos de toda a dinastia Romanov, é o local onde se encontra a prisão onde estiveram presos centenas de políticos de vários quadrantes. Assim, tendo saído bastante impressionado da prisão, pela apresentação das fotos e historiais dos vários presos (Gorki, Trotski, Kropotkin, Bakunin, vários políticos sociais-democratas, assim como vários membros do governo e aristocracia após a revolução de 1917), ao visitar no dia seguinte a casa da poetisa Anna Akhmatova acabei sendo completamente atirado para dentro da questão soviética.
Anna Akhmatova em sua casa, na Fountain House, nos anos 1930, em São Petersburgo. Aqui viveu quase 30 anos, casa que agora serve de museu à sua memória.

Não conhecia a poetisa antes de começar a preparar esta viagem, procurei depois saber mais na rede, mas a informação pareceu-me escassa, ao que se acrescentou, estranhamente, a ausência de obras traduzidas em Portugal (correção: descobri entretanto que a RA editou dois livros dela). Por isso tinha até alguma dúvida se devia visitar o museu, contudo ainda bem que o fiz, foi uma visita maravilhosa, inicialmente menos pelo espaço e mais pelas pessoas que ali encontrei também a realizar a visita. Diga-se que as casas de escritores não são propriamente grandes atrativos das cidades, os autocarros param em barda nos grandes museus, praças e palácios. A este pequenos museus vão apenas fãs, ou no caso de alguns nomes mais sonantes as excursões escolares. E tendo eu já visitado várias casas destas aqui, fui completamente apanhado de surpresa pelo público que ali encontrei: em grande número e maioritariamente jovem (18-30) e feminino. O facto de ser mulher torna-a mais apelativa tendo em conta que praticamente todos os autores clássicos russos são homens. (Por outro lado, foi talvez também o facto de ser mulher que impediu Estaline e os seus dirigentes de a fazer desaparecer, optaram apenas por a ignorar na esperança de que esta se suicidasse tarde ou cedo).
A casa em que viveu é um apartamento num antigo palácio da cidade, chamado Fountain House.
Poemas escritos nas paredes em redor do jardim da sua casa
A sua mesa de trabalho

Visitei então toda a casa, na qual a autora viveu quase 30 anos, podendo nós encontrar ali imensa memorabilia da mesma, materiais do quotidiano, mas também muitas cartas, telas, brinquedos, livros, etc. tudo muito bem mantido, apresentando uma estética anos 1920, ao que se acrescenta efeitos de som de ruído de vinyl, de relógios e por vezes alguma música da época. Existe uma instalação multimédia apelativa, mas toda apenas em russo, aliás muito do que se pode ver neste museu está quase só em russo, o que é uma pena. Contudo no final lá encontrei um pequeno livrinho comemorativo do museu*, em inglês, comprei-o e sentei-me num banco do jardim em que Akhmatova costumava passear, e aí começou a minha verdadeira experiência. Através do texto pude viajar até ao início do século XX e acompanhar Akhmatova e as tragédias sofridas à mão de Lenine e depois Estaline, desde logo a execução do marido, a impossibilidade de publicar os seus poemas, o rechaço do seu filho pela sociedade, e mais tarde os vários amigos artistas que foram emigrando, atirados para gulags ou que simplesmente optaram pelo suicídio.

Antes da revolução, em 1911, Akhmatova teve um caso com Modigliani que criou vários desenhos dela, este foi o único que sobreviveu. Existem várias teorias sobre o efeito deste romance no estilo e desígnios posteriores do pintor.

Quadro inacabado de Natalia Tretyakova em que se vê Akhmatova e Modigliani

É essencialmente a partir das suas várias trágicas experiências e debaixo de um controlo político cerrado, que incluiu escutas permanentes na casa, já que ela se relacionava com muita da chamada intelligentsia — Boris Anrep, Osip Mandelstam, Sergey Gorodetsky, Boris Pasternak, Alexander Blok, Natan Altman, Isaiah Berlin; foi mentora do Nobel Joseph Brodsky,  — que ela cria os seus dois mais importante poemas — “Requiem” e “Poem Without a Hero” —, escritos ao longo de anos, e apenas tornados públicos fora da Rússia nos anos 1960, e na Rússia no final dos anos 1980. A pressão sobre a mesma foi tanta, nomeadamente pela prisão e deportação para a Sibéria do filho, que ela chega mesmo a escrever poemas em defesa do governo de Estaline para o tentar salvar. Contudo, é na clandestinidade que o seu nome se vai construindo, com a passagem de mão em mão dos seus poemas que refletem o sentir de tantas outras mães, e tantos e tantos outros cidadãos russos.

“Madness with its wings
Has covered half my soul
It feeds me fiery wine
And lures me into the abyss.

That's when I understood 
While listening to my alien delirium
That I must hand the victory
To it.

However much I nag
However much I beg
It will not let me take
One single thing away:

Not my son's frightening eyes -
A suffering set in stone,
Or prison visiting hours
Or days that end in storms

Nor the sweet coolness of a hand
The anxious shade of lime trees
Nor the light distant sound
Of final comforting words.”

Excerto do poema Requiem, 1963 (poema completo em inglês escrito e declamado, partes em português)
"Anna Akhmatova" (1915) por Nathan Altman, no Museu Russo

Akhmatova fica como uma espécie de voz contra o horror causado pela Revolução Comunista, contra os espíritos ditatoriais de Lenine e Estaline, pela capacidade de colocar em palavras o sofrimento que assolou a alma russa, e por não se calar e lutar sempre, sem nunca abandonar o país.


Após chegar a casa converti o DVD que vinha com o pequeno livro, e coloquei-o online no YouTube.

abril 27, 2018

A casa dos primeiros anos de Nabokov

Depois de ter ontem visitado a casa dos últimos anos de Dostoiévski, hoje visitei a casa dos primeiros anos de Nabokov, em São Petersburgo. Ia com muitas expectativas, apesar de saber que a casa tinha sido quase completamente delapidada e destruída depois de abandonada pela família de Nabokov. Senti um certo amargo, apesar de Nabokov nunca mais ter voltado à Rússia, viveu ali quase 18 anos, toda a sua infância, e por isso merecia todo um museu, pelo menos ao nível de Dostoiévski, e no entanto temos apenas duas salas, com algumas fotografias, cartazes, edições inglesas dos seus livros, algumas borboletas e pouco mais. Para uma casa tão grande, e que era tão ricamente decorada, soube-me a muito pouco.



Tinha deixado para ler apenas após a visita o "Fala, Memória" (1951) porque nesse livro Nabokov recorda por várias vezes esta casa, mas talvez tenha feito mal. Contava sentir-me em casa dele, e isso não aconteceu. Pareceu-me apenas um espaço em que tinham assemblado alguns objetos que lhe tinham pertencido. Verei se quando ler o livro se estas memórias agora criadas me ajudarão a viajar pelas memórias de Nabokov.




abril 26, 2018

Os últimos anos de Dostoiévski

São Petersburgo é uma das grandes capitais da arte e cultura europeias, muito graças a Pedro o Grande e aos que o sucederam na dinastia Romanov nos 300 anos seguintes, que sempre tiveram um enorme interesse pelo desenvolvimento destas áreas, ainda assim e no meio de tanta e tanta cultura que se pode por aqui encontrar, existe um talento que se destaca enormemente, Dostoiévski. Não nasceu cá, mas foi aqui que morreu e escreveu praticamente toda a sua obra. Por isso torna-se obrigatório visitar o museu que a cidade lhe dedica no qual podemos aceder ao apartamento em que viveu os últimos três anos da sua vida e onde escreveu o derradeiro, e profético, “Os Irmãos de Karamazov”.

Estúdio de trabalho de Dostoiévski

O apartamento está imensamente bem mantido. Nele podemos ver o quarto dos seus filhos, o escritório da esposa, e o seu estúdio, e não deixa de ser impactante como estes três cómodos apresentam todos mesas com utensílios de escrita. Toda a família se dedicava à escrita, as crianças eram educadas desde tenra idade não apenas na leitura, mas também na escrita, e a esposa, à semelhança de tantas outras esposas de grandes escritores, era quem corrigia as provas de Dostoiévski. O autor nutria uma profunda admiração pelos filhos, considerando-os a razão para estar vivo, no quarto destes podemos ver também vários brinquedos da época. A sua filha, Lyubov Dostoevskaya, viria a publicar, em 1920, um livro com as recordações do seu pai — "Dostoyevsky as Portrayed by His Daughter" — que segundo os historiadores não é muito factual, devendo-se muito ao facto de Lyubov ter apenas 11 anos quando Dostoiévski morreu, ainda assim fiquei imensamente curioso por conhecer este relato.

À esquerda, a mesa do quarto das crianças (Lyubov e Fyodor). À direita, a mesa da esposa Anna Grigoryevna Snitkina

Já tinha visto fotografias do último escritório de Dostoiévski, por isso não me surpreendeu propriamente, o que me tocou mais profundamente foi o relato, do sistema audioguia, sobre o último ano de vida, junto com os objetos ali mantidos. Falo especialmente da cigarreira, na qual podemos ver inscrita pela mão da filha, Lyubov, o dia da sua morte. Apesar de avisado pelos médicos, Dostoiévski fumou sempre até morrer, e de modo intenso enquanto escrevia pela noite adentro. O relógio do escritório foi também parado no dia e hora. Além disso, podemos ver várias fotografias da família, as mesas e cadeiras, espreitar a rua pelas janelas, sentir o espaço e a vida de quem ali terá vivido.

A caixa de tabaco de Dostoiévski com a inscrição pela filha da data da morte do pai — 28 janeiro 1881. Data antiga que no nosso calendário gregoriano corresponde a 9 fevereiro 1881.

Talvez a maior novidade, para mim, tenha sido a descoberta do impacto gerado pelo seu “Discurso a Puchkin” (deixo o PDF, em inglês) para a inauguração do monumento dedicado ao poeta em Moscovo, em 1880. Dostoiévksi terá desejado enaltecer a obra de Pushkin a um ponto mitológico, fazendo dele o representante máximo da alma russa, mas ao fazê-lo, e tão perto da sua própria morte, estava já bastante doente, acabou sendo ele próprio elevado a profeta. Quando terminou, o público chorava e gritava — Profeta, Profeta, Profeta — levando-o em braços. É a apoteose de Dostoiévski, que ainda desejava escrever a segunda parte de ”Os Irmãos Karamazov” mas já não teria tempo para tal. No museu encontram-se fotografias do evento em Moscovo, e descrições do que se passou nesse dia, e tenho de dizer que aceder a tudo isto, pela primeira vez e no espaço em que ele viveu, produziu em mim um forte impacto.

Inauguração, em 1880, do monumento de homenagem a Pushkin em que Dostoiévski participou.

Dostoiévski não foi apenas um escritor, não foi sequer mero criador de movimentos literários, seja o psicologismo ou o existencialismo. A sua forma de estar no mundo deveu-se a muitas variáveis, as quais não podemos simplesmente atribuir à sua família, à prisão na Sibéria, à perda de dois filhos pequenos (uma com três meses, outro com três anos), ou à política. O que o destacou dos demais foi o seu profundo humanismo, o qual soube tão bem utilizar para descrever o ser-humano e as suas entranhas psicológicas.


Obras analisadas no VI:
"Os Irmãos Karamazov" (1881)
"Os Demónios" (1872)
"O Idiota" (1868)
"Crime e Castigo" (1866)
"Memórias do Subterrâneo" (1864)

abril 25, 2018

Pintura russa: realismo e ideologia

Aproveitando o facto de estar esta semana a dar aulas na Universidade de São Petersburgo fui ontem ao famoso Hermitage e hoje ao Museu Estatal Russo e tenho de dizer quão boa foi a surpresa de hoje. O Hermitage é o típico museu internacional, com obras de vários nomes sonantes da pintura mundial — Rembrandt, Da Vinci, Michelangelo, Raphael, Picasso, Van Gogh, etc. — mas o Museu Russo, ao ser completamente dedicado à arte russa, abriu-me portas para todo um mundo novo. Não vou fazer um relato da visita, até porque existe imensa informação online sobre o museu, incluindo a visita virtual pelo Google Art Project, mas quero deixar alguns dados e obras que adorei experienciar.

"Guarda-chuva" (1883) de Marie Bashkirtseff

O Museu Russo está, de forma genérica, dividido em dois grandes pisos: o primeiro dedicado à Arte Antiga (séculos XIV a XVII) e Clássica (século XVIII); e o rés-do-chão dedicado ao Realismo (século XIX). Existe ainda um edifício adjacente que abriga uma  terceira ala, denominada Benoit Wing, na qual são apresentados diferentes movimentos da primeira metade do século XX. Assim, se o Hermitage vale bem o tempo investido, se quiserem sentir uma experiência distinta dos restantes grandes museus internacionais, aconselho vivamente o Museu Russo.

"Meio-dia no campo" (1864) de Petr Sukhodolsky

"O Degelo" (1871) Fyodor Vasilyev

"No Campo" (1872) de Mikhail Klodt

"Rebocadores do Volga" (1870-73) Ilya Repin

"Na Floresta" (1883) Ivan Shishkin

"Escolhendo penas" (1891) de Aleksey Kivshenko

Se tiverem pouco tempo, recomendo todo o piso dedicado ao Realismo, nomeadamente para quem gosta dos clássicos da literatura russa. Posso dizer que a experiência foi deslumbrante, exatamente por permitir ver algo que tinha apenas imaginado aquando das leituras. Existem obras menores que se socorrem da narrativa para agarrar o espectador, mas existem obras de enorme valor capazes de nos transportar no tempo, de nos fazer sentir a Rússia de Dostoiévski, Tolstói, Turgueniev ou Gogol. O realismo russo deixa para trás os ícones religiosos, a mitologia e a aristocracia para nos dar a ver o povo, os campos abertos, as condições de trabalho, acedemos assim ao pulsar de vida, algumas obras são mesmo capazes de apresentar marcas da impressão psicológica que parecia estar apenas ao alcance dos grandes mestres da literatura.

"Lev Tolstói descalço" (1901) de Ilya Repin

Já na área dedicada à primeira metade do século XX, temos imenso modernismo, cubismo, algum impressionismo e surrealismo, digo desde já que desconhecia a imensidão de obras aqui presentes que alargam os horizontes daquilo que se produziu no centro da Europa nesta época. Mas o que mais me tocou foi o sentir do impacto da Revolução de 1917. Aos poucos, enquanto viajamos pelas diferentes alas, vamos sentindo mais e mais o impacto político sobre a arte, não apenas nos conteúdos, mas intensamente nas suas formas e cores. É algo como se o tempo e seu significado passasse através de nós por meio das obras criadas pelos artistas. Refiro-me aqui apenas ao caráter da experiência de transformação, sem qualquer juízo sobre a qualidade das obras ou das ideologias defendidas por estas.

"Trabalhadoras dos Têxteis" (1927) Alexander Deineka

"Mulher com Baldes" (1928) de Vyacheslav Vladimirovich Pakulin

"A Agricultora de Bicicleta" (1935) Alexander Deyneka


Por fim, para quem tiver tempo para percorrer todas as galerias, deixo um bónus que vale a pena procurar numa das salas deste museu.

abril 12, 2018

Eugénio Onéguin (1825)

Existe algo de brilhante neste texto a que não consigo aceder na plenitude. Tendo gostado bastante de ler e sentido por vezes que atingia um certo zénite, não consegui permanecer por lá todo o livro, apesar de o ter procurado já que o desejo por realizar esta leitura era bastante elevado. Pushkin é uma referência da história internacional da literatura, é o Camões, ou talvez melhor, o Dante do russo. Estranhamente no início do século XIX a elite russa usava mais o francês do que o russo, um pouco à semelhança da elite que só escrevia em latim quando Dante ousou escrever em italiano.

Mais uma belíssima capa da RA

Creio que a minha leitura sofreu por três razões pessoais, que espero um dia ultrapassar: o meu desgosto com o romantismo; a minha fraca inclinação para a poesia; e o meu limitado interesse por novelas curtas. Começando pelo último, os textos curtos fazem-me sempre sentir que tudo passa demasiado a correr, sem espaço/tempo para um verdadeiro desabrochar dos personagens. Já a poesia perco-a na forma, por se dedicar mais à sintaxe que à semântica, é um pouco como se a literatura almejasse a ser música, sendo artes dotadas de tão distintas valências. Por fim o romantismo, já muitas vezes me queixei do mesmo, julgo que não adianta apontar os seus problemas, não foi por mero caso que a corrente desapareceu no tempo.

Por outro lado, agora refletindo e comparando com outras obras de contornos épicos, não que este seja um épico declarado mas pode ser encarado como tal pelo que disse acima, considero que fui provavelmente exigente demais. Aqui atribuirei as culpas ao brilhantismo de Pushkin. O modo como escreve é assombrosamente acessível, dotado de um ritmo de tranquilidade que faz tudo parecer tão fácil, quase como se estivesse ali no papel por zelo natural. Pushkin consegue fazer-nos esquecer que estamos a ler em verso, consegue fazer-nos esquecer que continua a obedecer aos parâmetros do romantismo, os quais ele obsessivamente persegue na forma do seu grande ídolo, Byron. Em certa medida, e depois de passar os olhos por algumas peças escritas por Pushkin, fico com a ideia que esta sua abordagem de simplificação, de facilitar o acesso, dar a ver e não esconder, no fundo uma certa fuga ao romantismo, se deve a uma sua outra obsessão, Shakespeare.

Uma obra para reler.

abril 08, 2018

La Casa de Papel (2017)

No final da linha temos envolvimento completo, empatia absoluta. Roubar e fazer reféns menores é algo que só pode ser feito por pessoas más, pessoas dispostas a violar tudo o que de mais sagrado construímos enquanto sociedade e civilização, mas no final, por debaixo das máscaras dessa maldade — sejam Dali, Munch ou Warhol — são humanos que emergem, humanos como todos nós. No final, torna-se difícil se não impossível apontar quem são os vilões. Teremos sido manipulados?


O melhor deve-se sem dúvida ao criador e principal guionista, Alex Pina, e à restante equipa de guionistas — Esther Martínez Lobato, Javier Gómez Santander, Pablo Roa, Fernando Sancristóval, David Barrocal, Esther Morales. A premissa por detrás do assalto ao banco consegue ser bastante original, todo o desenrolar, ainda que com pequenos problemas, agarra-nos, e o final, algo que desde o início acreditei estar condenado ao fracasso, já que os clichês se repetiam aqui e ali, atira-nos ao tapete convertendo-nos ao maestria de Alex Pina.

É preciso competências técnicas de excelência para pegar no melhor da máquina do storytelling americano, desenvolvido ao longo de um século por Hollywood e altamente aperfeiçoado nas últimas duas décadas pelas cadeias de televisão americana privadas, pô-la a rolar e mantê-la viva ao longo de quase 20 horas, mas para tocar o sentir dos espetadores desta forma, é preciso saber ler a contemporaneidade e apertar os botões corretos que agitam e fazem mexer as nossas crenças.


Assim, se a série conta com excelentes atores, muito boa cinematografia (para televisão) e ótima direção de arte, tudo é operado tecnicamente com um fim muito concreto: tornar o mais verosímil possível aquilo que o guião tem para oferecer. Ele é a estrela, é o guião que nos agarra e mantém tensos, em pulgas, continuamente a tentar adivinhar o que vai acontecer a seguir, e ao mesmo tempo consegue surpreender até ao final. A construção dos núcleos narrativos não segue a tradicional linearidade horizontal, está desenhada em 360º por meio de ganchos que enlaçam as ações e personagens num enorme labirinto de causas e efeitos que se vão desdobrando em camadas, gerando no espetador sempre a expectativa de existir algo mais por descobrir.


Tudo isto seria muito bom, diria até por descargo de consciência muito bom entretenimento, mas não o direi porque temos mais, temos genialidade. Alex Pina estabelece um paralelismo entre o que está a acontecer dentro da série e aquilo que está acontecer com os espetadores agarrados à série, indo ao ponto de desmontar na nossa frente tudo aquilo que está a fazer. Cedo começa a descortinar o síndrome de Estocolmo para descrever como se criam paixões em situações de refém, espelhando o nosso próprio lugar como reféns da série; depois toda a relação com os media, que vai sendo amiúde relatada atingindo o auge com a narrativa sobre os assaltantes — David contra Golias, ou no caso Camarões contra Brasil — na opinião pública, e em nós espetadores; todo o jogo entre os que se apaixonam por interesse e os que verdadeiramente caem na rede de Afrodite mas com todas as forças procuram escapar-lhe das malhas, tal como os espetadores; tudo e muito mais vai toldando a nossa própria sensibilidade, fazendo com que ao longo do tempo cedamos, mais uma vez como cedem os personagens dentro da série, colocando em questão as suas, e nossas, agulhas morais. Alex Pina é uma espécie de ilusionista que não se importa de mostrar os seus truques, porque sabe-se capaz de nos manter ainda assim sempre dentro da ilusão. No fundo, quem era o Professor se não o próprio Alex Pina.


CODA
Passar maus por bons não é algo novo, nas últimas décadas os videojogos foram imensamente atacados por o fazerem — o maior expoente foi "Grand Theft Auto" (1997-2013) — depois vieram as séries de sucesso repetir a fórmula — com casos como "Breaking Bad" (2008-2013) —, mas muito antes disso já tínhamos tido obras como "The Godfather" (1972), para não falar mais concretamente em "Bonnie and Clyde" (1967) (poderá existir a tentação de juntar aqui o mito de Robin Hood, mas são de ordens muito diferentes). Na verdade, falamos de um fenómeno emergente da segunda metade do século XX, marcando bastante bem os momentos em que o pensamento pós-modernista começa a emergir. Já não se podia ir para além do experimentalismo do modernismo, já se tinham destruído todas as noções estéticas do belo, por isso restava agora apenas quebrar as noções morais do bem. É isto que temos aqui, no fundo algo melhor entendível se definido como "pós-verdade". A realidade do mundo atual foi completamente transformada por uma sociedade muito mais formada, dotada de várias literacias que lhe permitem laborar mentalmente no abstracto, e assim compreender a constituição da Ilusão em que vive. Esta já tinha percebido que a verdade não existia, mas ainda não tinha percebido que era criada por cada sujeito à medida da sua mundividência, o "fim das meta-narrativas" deixava de ser um postulado teórico e passava a facto para milhões.