Conta com mais de uma dezena de entrevistas, entre as quais, algumas figuras do panorama criativo nacional: Fernando Alvim, Gonçalo M. Tavares, Filipe Pedro, Inês Fonseca Santos, Inês Nadais, Jacinto Lucas Pires, Joana Vasconcelos, João Bonifácio, Jorge Guerra e Paz, JP Coutinho, JP Simões, Nuno Cardinho, Pedro Mexia, Pedro Ribeiro, Raquel Bulha, Raquel Vieira da Silva, Valter Hugo Mãe, Vanessa Granja.
Técnica e criativamente muito bom. O autor demonstra ao longo de todo o trabalho um sentido analítico bastante apurado na justaposição e inserção de imagens que apelam à construção de abrangentes contextos polissémicos. Apesar do recurso visceral à montagem paralela, de base eisensteiniana, este é um trabalho clássico de construção narrativa audiovisual que se socorre de uma dupla de narradores para nos levar ao longo de uma viagem no tempo atravessando palavras, esgares e sorrisos de mais de uma dezena de entrevistados, com progressão e arcos narrativos perfeitamente delineados. Ao longo de 60 minutos somos brindados com imagens, sons e textos que deram forma à paisagem dos últimos 35 anos, embora com uma maior preponderância para a década dos anos 80.
Segundo o autor**,
“O documentário não foi o resultado de nenhuma encomenda mas sim da vontade de trabalhar um tema que, a meu ver, estava estranhamente sub-representado no espaço documental português.”É verdade que o tema está muito ausente da nossa esfera mediática. Tirando as datas comemorativas, o nosso cinema, música e arte pouco falam dos factos. Existem muitos medos reprimidos, e julgo que em parte o trabalho de José Gil, Portugal, Hoje - O Medo de Existir (2004) teve o sucesso que teve porque as pessoas se revêem nesse mesmo medo. Agora a ideia não é totalmente nova. Traçar um perfil da geração do 25 de Abril é algo que vem sendo feito nas datas comemorativas pelos canais de televisão, foi quando fizemos 30 anos, quando fizemos 35, e voltará a ser quando fizermos 40. Digo fizermos porque eu próprio nasci nesse ano de cisão da nossa história. Algo mais abrangente foi no entanto feito pelo António Barreto num documentário realizado pela Joana Pontes, Portugal Um retrato social (2007) com condições completamente distintas, não só de produção mas de preparação do tema. A ver nomeadamente o primeiro episódio.
As diferenças são claras nos objectivos e mais ainda nos meios de produção, se pensarmos que este documentário com todas as características de um produto profissional foi desenvolvido por uma pessoa apenas. Que os custos foram suportados inteiramente pelo autor e que este nos disponibiliza agora de forma inteiramente gratuita a obra completa na web. Para percebermos melhor os meandros da produção deste documentário nada melhor que seguir as palavras do André,
“foi um processo muito individual, caseiro, com as contrariedades e alegrias de qualquer processo de produção multimédia. Não é fácil, realmente, entrevistar pessoas e teres a teu cargo todo o processo: mochila às costas com a câmara e micro, tripé e foco de luz sob o braço, montar tudo em tempo recorde -luz, câmara, microfone de lapela-, sentar e fazer a entrevista, arrumar tudo de novo. Difícil mas possível, e o documentário pronto é a prova disso. Posso dizer que os entrevistados mais conhecidos da praça pública foram todos muito acessíveis, mais do que eu esperaria, não colocaram restrições à realização do documentário mesmo sem perceber a que espécie pertencia. Posso também acrescentar que é muito difícil seleccionar arquivo de entre milhões de opções que existem, e todas tão sedutoras: entre filmes, séries, publicidade, são incontáveis as referências que apetece incorporar mas é totalmente impossível fazê-lo.!"Em termos técnicos é muito importante este factor do one-man-show que nos faz reflectir sobre todo o processo de construção da linguagem audiovisual na actualidade.
“toda a produção e distribuição despoletou (e continua a despoletar) uma série de reflexões, nomeadamente o facto de ter conseguido fazer um documentário praticamente sozinho - nos dias de hoje continuo ainda a fascinar-me com o potencial da tecnologia - ou a distribuição viral possível através da Internet”Não podemos esquecer o facto de falarmos de um produto com características técnicas e estéticas profissionais e não de apenas um pequeno filme para YouTube. Não que as tecnologias sejam diferentes, como podemos ver na sua enumeração aqui abaixo, estas estão alcance da maior parte de nós,
“Utilizei o Final Cut Pro para a edição de vídeo, com algumas escapadelas ao Soundtrack Pro para alguns trabalhos de áudio mais específicos; o Compressor e o MPEG streamclip para transcodificações (MAC, claro está). A câmara foi uma Panasonic AG-HMC150.”Poderíamos então questionar que o factor “tempo dedicado” aqui seria determinante, alguém que se dedique a tempo inteiro à execução de um trabalho. No entanto atente-se à duração e timings de execução do projecto,
“O trabalho foi feito nos tempos livres e nem sempre de forma contínua. As entrevistas foram realizadas entre o final de 2008 e início de 2009 (alguma pesquisa no mesmo período); a recolha de arquivo decorreu entre Março e Maio de 2009; a escrita do argumento nalguns dias de Maio (1 semana, provavelmente); a rodagem das sessões com o Jorge e o João ocorreram em 2/3 dias algures entre Junho/Julho de 2009; a pós-produção entre Julho-Setembro de 2009, com pequenas afinações até ao início de 2010.”Impressionante. Ver como tecnologia acessível e com recurso ao pouco tempo não-útil se pode chegar a um produto deste nível. Por outro lado levantam-se outras questões como a duração de um documentário que vai ser distribuído pela Web, não será uma hora de filme demasiado? Mas a questão é o próprio tema e a sua dimensão, que no caso do António Barreto custou sete documentários de uma hora, aqui o autor diz-nos,
“Inicialmente tinha uma versão com 2 horas (um bocado esquizofrénica com tantas referências) e considerava impossível reduzi-la... tive de dar tempo a mim mesmo para conseguir ter a coragem de a ir cortando.”Esta necessidade de tanto dizer, e tanto para dizer deve questionar-nos a nós e a todos os que se dedicam à comunicação e expressão artística, que está na hora de começarem a falar, de criarem e trabalharem sobre algo que é nosso que nos pertence e que é importante que nunca esqueçamos. Basta pensar no que se passou em Portugal em 1928, ver quem tomou o controlo e porque razões e depois para onde isso nos levou (atente-se no anúncio abaixo que ganhou o Leão de Ouro de Cannes em 1988). Existe uma clara necessidade de não esquecermos o que se passou e que de algum modo se está por aí a começar a redesenhar, é só ver as recentes tentativas de alteração da nossa Constituição.
E porque é à politica que somos conduzidos por um documentário destes que é também inevitável que analisemos o que nos diz parte da nossa geração. Sim parte, porque esta não é, e digamos que dificilmente o poderia ser, representativa de todos nós. Esta é uma selecção do autor do texto,
“As pessoas entrevistadas nasceram, como escrevi na sinopse do filme, "pelo 25 de Abril", tanto pouco antes como pouco depois. Indivíduos que cresceram com a Revolução. Tentei cobrir um leque o mais diversificado possível de áreas: profissionais da rádio, dos media, literatura, jornalismo, teatro, artes plásticas, música, cinema, necessariamente com boa capacidade de comunicação e expressão por razões evidentes. Foi necessário, também, encontrar perfis e feitos diferentes para que encontrasse leituras diferentes daquilo que é a geração: pessimistas, optimistas, cínicos, revivalistas...”Temos aqui um recorte claro da nossa sociedade, o espectro criativo da mesma, que por sinal é o que mais domina a nossa paisagem cultural. Mas talvez por isso não fosse mau ter tentado ouvir outras vertentes, os agricultores, as classes operárias, as pessoas que nos atendem todos os dias nos serviços, os médicos e enfermeiros que tratam os problemas do corpo (e alma) da população, os juízes e advogados da barra do tribunal que são conduzidos pelas tragédias humanas, os técnicos e engenheiros que inovam todos os dias, no fundo todos aqueles profissionais que fazem de Portugal o país que é hoje.
Porque no final é com alguma tristeza que sinto na maioria dos discursos um claro desprezo por tudo o que foi aquela revolução, e principalmente por tudo o que representam as pessoas que a construíram. Para além de que esse desprezo claramente só poderia conduzir à falta de perspectivas para o futuro da geração aqui em causa. Este é um claro problema de uma parte da nossa sociedade, mais problemático que seja daquela que mais se dedica a interpretar o que somos, pois são estes os que criam as novas realidades, as novas ideologias (ver texto sobre o ensaio audiovisual Versions (2010)).
Existe muita reflexão, da parte dos entrevistados, ao longo do documentário completamente decalcada dos discursos vigentes nos media. O que não admira uma vez que grande parte deles são actores dessa arena. Mas não são só as frases feitas, pior que isso, são conceitos feitos sobre os quais pouco se reflectiu, ou noutros casos se reflectiu mas a partir de uma Torre de Marfim sem contacto, sem noção das texturas da realidade.
Talvez agora deva perguntar, sendo um documentário retrato, e sabendo nós que qualquer objecto de comunicação audiovisual é sempre uma interpretação do mundo realizado pelos olhos de alguém, não caberia ao autor criar mais sentido de tudo isto? Se poderia ter ido mais longe nas questões, pergunto também porquê atribuir um papel tão de superfície e passivo aos narradores? Por outro lado questiono-me a mim próprio se não é mesmo este lado menos bom, em minha opinião negativo, que faz do documentário uma peça tão importante no panorama audiovisual nacional. Sei bem que o autor está ciente disto, o título é claro em dizer ao que vem.
Vejamos então agora em maior detalhe o pior dos discursos propagados pelo documentário. À semelhança da opção deliberada do André em não rotular os entrevistados, dado o seu desejo de representação de uma "massa anónima" em detrimento das "individualização", não referenciarei os autores das frases aqui transcritas. Mais ainda, neste caso servirá de estímulo a quem ainda não viu, para ver e procurar descobrir quem disse o quê. Assim e de uma forma geral é sistematicamente dito que a culpa é dos outros, da geração anterior,
“A geração anterior entalou-nos”E alguém lhes transmitiu a eles um modelo para fazer uma revolução?
“Não nos foi transmitido um modelo uma fórmula para transportar o país”
“As gerações anteriores dizem que davam mais valor às coisas... não davam nenhum valor às coisas... há esse mito... nos casos mais honestos olham para a geração de 70 com Inveja.”Mas então o que dizer da abundância em que se vive hoje face a toda a escassez em que se viveu, em Ditadura e com duas Grandes Guerras?
“[A nossa geração] é uma geração traída, a quem foi prometido muita coisa...”Mas afinal eles têm inveja de nós, ou nós é que temos inveja deles?
“E o que se está a verificar é uma grande injustiça. A geração que teve todos os direitos... sociais, laborais, etc., e a geração que não tem esses direitos”
E se essa geração viveu debaixo de uma ditadura como é que teve todos esses direitos?
“O nosso futuro é uma treta... ainda há um ou dois que passados 15 anos de faculdade, ainda não fazem nada... Temos que andar mais anos na escola para conseguir o mesmo que os nossos pais”Não será natural e desejável que tenhamos que estudar mais do que a geração anterior?
Existem no entanto algumas reflexões inspiradoras, porque nos fazem questionar e olhar para o futuro,
A “confusão entre a moralidade e a legalidade” é algo que nos impede de nos revoltar contra as más leis e regozijar as boas leis.Se quisermos resumir o retrato maioritariamente plasmado neste documentário, duas frases de dois entrevistados são suficientes,
“Seres livre para fazeres as tuas decisões, sobre o teu corpo, sobre o teu intelecto, sobre a tua vida... é um luxo que muitas mulheres durante muitas gerações não tiveram ”.
“Nós estamos onde está a nossa atenção” em relação ao poder dos media, da informação globalizada.
“Nós somos mais tolerantes, porque não estamos a seguir o modelo dos nossos pais, se assim fossem seriamos conservadores, e não, nós somos criadores, isto é um Privilégio”
“Geração dada à nostalgia precoce”A evidência desta afirmação verifica-se de forma acentuada em programas nos media que dado o seu sucesso têm inclusive conseguido recuperar para o mercado actual produtos descontinuados há muito.
“Uma geração um pouco mimada do ‘eu tenho direito a tudo’”Eu diria que a geração aqui representada é a da adoração ao monólito que nos entrou pela casa adentro nos anos 80. Que viveu toda uma década de ilusão emanada desse monólito e que hoje sente uma nostalgia melancólica dos tempos em que a mensagem era apenas um alinhamento, numa só direcção e partilhada, por igual, por toda a comunidade.
Agora a questão é se toda esta geração de 70 é realmente assim? Ou falamos da geração que conseguiu vingar na vida da que está hoje nos media, que escreve, que filma, que fala. De uma classe urbana e licenciada que ocupa posições dominantes na produção de representações do país?
Porque muito do que vemos neste documentário é os entrevistados falarem sobre os outros. Os outros do passado, os vilões (as representações que têm dos pais) e os outros do presente, os desgraçados (a representação que têm da suposta geração que não eles). A falta de reflexão sobre o Portugal real, sobre o objecto em si e não sobre a interpretação do mesmo pelos media, leva a que não exista aqui muita reflexão para o futuro.
[*] Conheço o André há muitos anos, passámos pela mesma licenciatura, no entanto optei por realizar uma análise do documentário distanciada dessa relação, ainda que admita que esta possa ter algum impacto sobre as minhas palavras.
[**] As palavras do autor transcritas neste texto foram retiradas de uma entrevista realizada por e-mail no início de Agosto 2010.