O que aqui discutimos é o "Livro" (por arrasto as revistas e jornais) enquanto Narrativa e não o estatuto do Papel. Essa seria toda uma outra discussão relacionada com questões de “preservação de memória” e que remontam a milénios de registos de conhecimento sendo a sua mais antiga expressão conhecida as figuras de Altamira e Lascaux.
Mas e “o livro, em papel, tem os dias contados.”?
“nada irá substituir o folhear de um bom livro, o seu cheiro, as suas letras impressas...” @CristelaPois, mas tenho olhado para as prateleiras que preenchem a quase totalidade do meu escritório com livros e penso, dentro de pouco tempo acontecerá a tudo isto o que já aconteceu com os meus Vinyl, com as minhas VHS, com os meus CDs e está a acontecer com os DVDs.
Montagem de imagens a partir de WIHW
Os Vinyls, cerca de 300, estão metidos num armário na casa dos meus pais, talvez a última vez que tenha colocado um a tocar no gira-discos tenha sido há mais de 15 anos. As cassetes VHS que foram a minha maior relíquia, o meu tesouro de conhecimento, com tantas obras raras conseguidas com tanta má qualidade. Tinha filmes do Dreyer, Welles, Eisenstein, Lang, Jarmusch entre muitos outros que pouco mais se via que sombras derivado de serem cópias em 4 ou 5ª geração, algumas inter-sistema, de Beta ou V2000, mas guardava-as religiosamente dada a sua raridade. E para quê? Entretanto todas estas obras se tornaram facilmente acessíveis, todas estas raridades tenho-as hoje em DVD e muitas delas em cópias restauradíssimas a partir das melhores películas ainda existentes, casos como Nosferatu (1922) ou Metropolis (1927) podem hoje ser vistas com melhor qualidade plástica do que provavelmente foram vistos na sua estreia.
Metropolis (1927). À esquerda imagens do DVD Eureka de 1998, à direita a versão restaurada de 2003 [1]
E assim há cerca de 5 anos depositei as mais de 500 cassetes num aterro público, tenho pena de não as ter fotografado, mas para quê, mais uma recordação materialista? Em 2000 quando iniciei a minha colecção de DVDs com vista à substituição do arquivo VHS, dei-me conta que todos os CDs que tinha nas prateleiras eram inúteis, porque não tinha naquela altura nenhum leitor de cd no quarto em que morava, e assim a música que ouvia era via PC. E o que começou a acontecer foi a preferência por escolher música a partir da enorme base de dados mp3 presente no disco duro e não ir às prateleiras escolher o CD.
Assim peguei naquelas discografias de AC/DC, Metallica, Zeca Afonso, Mike Oldfield, nas centenas de Bandas Sonoras e muita coisa que já nem me lembro e vendi praticamente tudo no Miau.pt, o acabado de criar Ebay português. Dos cerca de 400 CDs, restam uns 30 que considerei guardar (ex.Tindersticks, Tom Waits) que estão numa caixa dentro do armário do quarto.
Com o dinheiro que fiz na venda comecei a aquisição religiosa de DVDs, das suas edições super-especiais, importadas dos EUA, Austrália, UK, Hong-Kong. Entre 2000 e 2006 comprei mais de 500 dvds. Comprei centenas de DVDs a 30, 40 e 50 euros cada edição, por serem Criterion ou edição especial de 2, 3 e 4 discos, com caixa “digipack”, “tin can” ou outra.
Ao mesmo tempo em que iniciava a aquisição desenfreada de DVDs começava paralelamente a colecção ainda mais desenfreada de filmes em formato DivX através de download, trocas, cópias, compressões. Cheguei a ter uma grande gaveta com mais de 1300 DivX em pequenos envelopes de papel e ordenados por ordem alfabética. Depois com o aparecimento dos gravadores DVD, comecei a colocar entre 3 a 6 filmes por disco, e nessa fase consegui mais uns 150 dvds, ou seja mais uns 500 a 600 filmes. Tudo isto entre 2000 e 2007.
Mas por volta de 2006 a presença cada vez mais maciça de material fílmico online, a facilidade de acesso aos mesmos, começou a colocar em causa a razão de uma colecção tão extensa de DVDs e DivX que me ocupava muito espaço e que pouco uso tinha na generalidade. Isto porque o objectivo da posse do registo era poder ter sempre acesso às obras sempre que precisasse de realizar um qualquer trabalho e para isso serviu muitas vezes. Contudo a rede foi-se revelando cada vez mais eficaz no acesso às obras e hoje é capaz de dar resposta a grande parte das nossas demandas. De resto cada vez menos fui tendo tempo para ver obras mais do que uma vez, como fazia nos anos 80 e 90.
Comprei muitos dvds que nunca cheguei a ver naquele formato, comprei apenas para ter na prateleira, Once Upon a Time in America (1984), Raging Bull (1980), Scarface (1983), The Last Emperor (1987), Schindler’s List (1993) entre outros, não por não gostar dos filmes mas por já os ter visto mais de 4 ou 5 vezes, alguns mais do que isso até, no Cinema, na TV, em VHS. Apocalypse Now (1979) é o filme que mais vezes vi (acima das 20).
Assim hoje já não colecciono Divx, tenho apenas uma pequena parte guardada em 2 ou 3 caixas de CDs da Ikea, o resto joguei no lixo, falta de qualidade da cópia ou do filme. Porque nisto das colecções, quando se começa, arrecada-se muito lixo em favor do número.
Dos DVDs que passaram os últimos dois anos em caixas, "vivem" agora uma parte no escritório e outra parte permanece ainda nessas caixas. Deixei de os adquirir, o factor já acima enunciado de fácil acesso a todo o cinema, e o consumo desenfreado que acabou por trazer ao cimo o facto de que grande parte daquelas edições especialíssimas não passavam de adereços de marketing.
É claro que em face deste estado de coisas o aparecimento do Blu-ray acaba por surgir apenas como mais um brinquedo. Ainda que se possa sentir a diferença num ecrã de 40’ a verdade é que o impacto está longe de ser suficiente para justificar a re-aquisição. Não que por vezes não sinta a tentação, em casos como Matrix (1999) ou Lord of the Rings (2001) majestosos objectos visuais que têm a ganhar com esta nova possibilidade.
Como poderão ver depois de todo este historial, o que aprendi foi que o conteúdo vai mudando de suporte, mas permanecendo igual a si próprio, o suporte não é mais do que um elemento puramente materialista sem qualquer valor ou efeito estético sobre a obra. O texto, a música ou filme são artefactos intangíveis e como tal possuem um discurso próprio que é independente do suporte. Nos dias de hoje ver um filme numa sala de cinema vazia, como tantas vezes fiz nas sessões do meio da tarde, ou ver esse mesmo filme em casa com condições Home Cinema, faz pouca ou nenhuma diferença. Assim como ouvir um disco, em Vinyl, CD ou MP3. Por isso ler um romance em papel, no Kindle ou no iPad tem as suas particularidades mas não deixam de suscitar os mesmos mundos, de desencadear os mesmos pensamentos associativos, as mesmas emoções. O que aqui falamos é meramente de suporte, e esse está longe de sequer ser parte do media porque o seu impacto sobre a obra é diminuto. O media é o texto, assim como no cinema é a imagem ou na rádio é o som e esses sim condicionam os discursos. Aliás a leitura vertical da web não é algo novo, já o fazíamos antes do livro com os papiros.
Por tudo isto a desmaterialização é o fenómeno mais interessante operado pelas tecnologias de informação, pela digitalização do mundo. A desmaterialização nada destrói daquilo que é a essência do romance, do filme ou da música. A desmaterialização abre apenas novas possibilidades aos media, ao criar a possibilidade de convergência como no exemplo do Vook dado pelo @Sergio.
What is a Vook?
Ou ainda os exemplos mais interessantes que passam pela alteração radical do discurso com a inserção da interactividade e controlo do leitor sobre as obras.
Heavy Rain de David Cage (2009)
Quanto à tecnologia vencedora, não sei, duvido que seja uma única. Digitalmente o formato PDF é reconhecido, mas em termos de harware são muitas as opções. O Kindle foi inteiramente concebido para ser o mais semelhante ao livro possível em termos perceptivos. Por outro lado o iPad permite conteúdos multimédia além do texto. Muitos mais aparecerão, cada um com as suas vantagens e desvantagens. Como sempre devemos comprar o que precisamos no momento e não aquilo que vamos precisar daqui a um ano.
Indo um pouco mais longe na desmaterialização, e entrando em algo mais polémico.
1 - O que dizer da pintura?
A visualização de uma tela num museu é diferente da sua visualização num ecrã? A primeira vez que vi a La Gioconda no Louvre, há alguns anos atrás senti deslumbre e tremuras por todo o corpo, mas na segunda vez, agora recentemente, esse sentimento não ocorreu. Talvez porque o sentimento de que estamos a falar não fosse potenciado pelo quadro mas por todo o seu contexto cultural. Assim sendo justificar-se-à a deslocação das pessoas por milhares de kilometros para verem algo que podem ver à distancia de um clique em altíssima resolução proporcionado pelo próprio Louvre? Todo este frenesim em volta da pintura não será antes criado e mantido por uma elite que se socorre do fenómeno para poder servir-se do mesmo como investimento seguro? Claramente que existem muitas obras que podem apenas ser apreciadas na totalidade in loco, obras demasiado grandes ou que fazem uso de técnicas de relevo. E por isso mesmo esta lógica não se aplicaria à Escultura ou Arquitectura.
2 - E do desporto ao vivo?
Neste último mundial o Nelson Mandela deslocou-se ao estádio para saudar os presentes na final da copa. Fiquei boquiaberto quando li que ele tinha no entanto regressado a casa para ver o jogo na TV antes de este se ter iniciado. Na altura pensei, claro, a experiência do jogo é mais clara, pode ver-se maior detalhe e podem ver-se repetições. Claro que neste caso Mandela tem uma idade algo avançada para as emoções que se vivem num estádio. Mas então se viu o jogo em casa, é porque estas não provém do jogo mas do público. Ou seja o fenómeno social é a base da experiência futebolistica, ora para quem a dispense, ver o jogo num ecrã ou num estádio será algo bastante aproximado.