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outubro 18, 2019

Parar, Pensar e Boicotar a China

Não é possível continuar calados a propósito do que está a acontecer na China, na região de Xinjiang. Daqui a umas dezenas de anos vamos olhar para trás e dizer, mais uma vez, que um regime Comunista Totalitário cometeu um Genocídio de proporções inimagináveis. O problema é que desta vez, todos nós, sem exceção, seremos culpados.



Desde 2017 que têm surgido relatos de maus-tratos na região de Xinjiang dirigidos maioritariamente a uma minoria étnica, os Uigurs. Esses relatos começaram por ser sobre pessoas que eram levadas e trazidas alteradas. Depois passaram a ser relatos de pessoas que estando fora da China não podiam telefonar aos familiares, pois esses seriam castigados por contactos com o exterior. Durante 2018 os relatos de pessoas fugidas foi aumentando, e a ONU até chamou a atenção da China que respondeu que estava a lutar contra grupos organizados de radicais naquela região, que formavam grupos de terroristas, inclusive dizendo que muitos se tinha alistado na Síria. Mas no início de 2019 os relatos aumentaram, e as imagens por satélite começaram a mostrar campos cada vez maiores, nos relatos falava-se em desaparecimento completo de muitas pessoas, incluindo investigadores e professores universitários, assim como maus-tratos profundos. Mais recentemente surgiu um vídeo (imagens abaixo) que mostra uma cena que parece tirada de Auschwitz. É preciso agir, não podemos cruzar os braços, temos de boicotar e podemos pressionar países, governos, empresas e a ONU, podemos contribuir para associações humanitárias, podemos fazer muitas ações, tais como simplesmente alertar para o problema, falar sobre ele, não permitir que seja calado como tanto deseja a China.

A Europa, Portugal, e todo o restante planeta compra diariamente milhões de produtos fabricados na China, alimentando esse regime, alimentando as atrocidades perpetradas por ele. Compramos diariamente Huawei, Xiaomi, Lenovo, Haier, Hisense, Anker, Cheetah Mobile, para não falar no gigante Alibaba e nas lojas chinesas espalhadas por todo o país, Europa e EUA, e para tudo isto a palavra de ordem de compra é — barato — sem parar para pensar nos efeitos desse barato.

Sayragul Sauytbay, uma médica que passou por estes Campos de Concentração, conseguiu fugir e obter asilo na Suécia. A história pode ser lida no Haaretz, mas atenção aos mais sensíveis.

A ideia que passa e alivia as consciências ocidentais é que a China é um país grande, vendido nos anos recentes como igual a todos os outros, por isso se estas pessoas foram presas é porque o mereciam. Pois leiam mais este relato, de Sayragul Sauytbay, uma médica que passou por estes Campos de Concentração, conseguiu fugir e obter asilo na Suécia, de entre os vários que têm sido publicados desde 2017. Nestes relatos é possível ler sobre a violência atroz, ao nível do que já lemos sobre Auschwitz, Dachau ou Treblinka, só faltam as câmaras de gás, por agora, mas até os comboios carregados de prisioneiros já temos (ver imagens abaixo). Isto é inaceitável, e nós não podemos continuar a compactuar com isto.




Imagens de vídeo captadas na província de Xinjiang. Os comboios descarregam milhares de pessoas, com a cabeça rapada, e os olhos vendados, que depois são transportados para os campos de concentração.

Sei bem que muitos dos produtos europeus e americanos que compramos são produzidos na China, e muito pouco podemos fazer no imediato, mas podemos fazer muito desde já no que toca a produtos especificamente chineses, existem alternativas, e os preços nem sempre são mais caros, basta procurar, basta ganhar consciência, tomar as rédeas daquilo que compramos de forma consciente. Nem que por vezes tenhamos de pagar um pouco mais, estaremos a agir em plena consciência de estar a castigar um país que não pode continuar a passar impune, a pavonear-se pela cena internacional como um dos mais ricos, poderosos, e pior aquele que pretende ser o farol nos próximos anos da Cultura Internacional. Podemos ainda contribuir para associações como a Amnistia Internacional que já lançou vários alertas.

Aliás, não podemos esquecer que isto não é sequer um problema de supostas minorias étnicas, menos ainda radicais como a China tem vendido, naquele país existe já todo um sistema informático de vigilância permanente de toda a sociedade, sem excepção, e que tem sido definido como Crédito Social (sistema que atribui pontos em função dos comportamentos bons e maus dos cidadãos, uma espécie de pontos de carta de condução para tudo o que fazemos enquanto cidadãos).

Ainda na semana passada tivemos um dos maiores ataques de sempre às grandes empresas americanas por parte da China, apenas por se terem levemente manifestado a favor de Hong Kong — ver os casos Apple, BlizzardNBA e uma análise geral dos porquês.

E quem quiser atirar pedras, dizendo que todas estas notícias sobre os campos de concentração na China são apenas uma manobra de contra-informação americana por causa da guerra comercial, podem ficar descansados, os relatos sobre o que se passa em Xinjiang começaram bem antes, existem notícias de 2017 e ramificações a políticas da China para aquela região que remontam a 1949. Tendo-se notado um recrudescimento dos relatos desde a alteração da Constituição chinesa, em 2018, que passou a permitir que Xi Jinping pudesse ser Presidente da China para sempre, seguindo Mao.

A brutalidade do que está a acontecer tem sido amplamente documentada, é tempo de deixar de fazer de conta, é tempo da ONU agir, da Europa agir, dos EUA agirem, de todos nós agirmos, ou então ficarmos com o peso na consciência de não só nada ter feito, como ter contribuído para que milhões de pessoas fossem extirpadas da sua humanidade.


Ligações para os vários Relatos recentes sobre Xinjiang e os Uigurs

A Million People Are Jailed at China's Gulags, Haaretz, 17.10.2019
Leaked drone footage purports to show Xinjiang prisoners blindfolded and tied up, Business Insider, 8.10.2019
'Think of your family': China threatens European citizens over Xinjiang protests, The Guardian, 17.10.2019,
‘There’s no hope for the rest of us.’ Uyghur scientists swept up in China’s massive detentions, Science Magazine, 10.10.2019
Disturbing video shows hundreds of blindfolded prisoners in Xinjiang, CNN, 7.10.2019
Despite China’s denials, its treatment of the Uyghurs should be called what it is: cultural genocide, The Conversation, 24.7.2019
China putting minority Muslims in 'concentration camps,' U.S. says, Reuters, 3.5.2019
China Targets Prominent Uighur Intellectuals to Erase an Ethnic Identity, NYTimes, 5.1.2019
Uyghur scholars and students interned or disappeared, University World News, 30.1.2019
Inside China's Massive Surveillance Operation, Wired, 9.5.2019
China's Jaw-Dropping Family Separation Policy, The Atlantic, 4.9.2018

Notícias anteriores, provindas da Ásia de 2017
China: Uyghur women and children endure heavy labor amid detentions in Xinjiang's Hotan, Radio Free Asia, 16.10.2017
Uyghur Biodata Collection in China, The Diplomat, 28.12.2017

agosto 28, 2019

A Máquina por Levi

Tenho pouco a acrescentar às imensas leituras que já foram feitas de “Se Isto é um Homem” (1947). Já Primo Levi, e Viktor Frankl em “Em Busca de Sentido” (1946), diziam ambos nada terem para acrescentar ao horror já conhecido dos campos de extermínio Nazi, mas isso não era verdade. As suas palavras foram importantes, e tenderão a ser cada vez mais importantes. À medida que vamos avançando no tempo, a tendência será para esquecer, como se vai vendo (ex. relato de viagem à Polónia de um grupo de judeus americanos em 2017). Estas obras devem figurar como leitura obrigatória, nem que seja parcial, nas escolas de toda a Europa.


Frankl e Levi escreveram as primeiras memórias publicadas de Auschwitz, com tons totalmente diferentes. Não por um ser austríaco e outro italiano, mas por um ser psicólogo e o outro engenheiro químico. O modo como olham o mundo, os detalhes em que se fixam, que analisam e escolhem discutir vai de encontro aos modos epistemológicos com que avaliam o real. Frankl, é só humano, só emoção e sentimento, tentativa de compreender a si e aos outros. Levi, é só estrutura, só análise e detalhe, tentativa de dar conta do funcionamento do sistema que regulava os campos internamente. Diferentes, mas imensamente relevantes, porque se complementam completamente.

Já li e vi muita coisa sobre os campos de concentração, mas ao ler Levi, percebi que ainda não tinha compreendido nada sobre a realidade dos campos de concentração Nazi, e mesmo sobre a governação Nazi. Pode parecer fastidioso o detalhe apresentado — sobre as regras, os hábitos, rotinas, afazeres, limitações, diferenças, imposições, condições, repetições, esperas, etc. — mas é esse mesmo detalhe que nos faz entrar pelo campo adentro e vê-lo, senti-lo como ele foi. Não porque me interesse senti-lo, mas porque esta descrição de Levi me mostra de forma efetiva a “Máquina” e o “Método” alemães. Neste registo não se fala dos fornos, nem das câmaras de gás, fala-se do funcionamento específico de um campo de concentração, do seu dia-a-dia, das divisórias sociais internas e da organização sistemática de tudo.

Aquilo que distingue o Holocausto de outros genocídios é o método. Nunca antes, nem depois, o ser humano construiu uma tal “máquina” de matar, e isso só foi possível pela força do método imposto ao estado, governo e militares. A ideia de raça pura e perfeita terá servido para conduzir os governantes alemães à obsessão com o método, tudo em busca da organização perfeita, impermeável a falhas, impermeável ao acaso e ao orgânico. Tudo era controlado, tudo era repetidamente controlado, para que nada falhasse. A organização era feita por humanos, mas de humano nada existia ali, apenas máquina, apenas sistema salvaguardado com redundância para eliminar o erro. Perfeitamente implementado, uma transposição perfeita do papel para o terreno. Insanamente perfeita.

Existia ainda um outro factor, responsável pela elevação da “máquina” a níveis de matança inauditos, o Ódio. Levi disse mais tarde, quando compararam a sua obra com o “Arquipélago Gulag” de Solzhenitsyn, que este se diferenciava do Lager de Auschwitz pela percentagem de mortos, 30% contra 90-98%. Esta diferença deve à máquina montada, sem dúvida, mas essa precisava de ser alimentada para chegar a estas percentagens, e a única forma de o fazer foi pelo ódio. Era preciso manter todos os envolvidos na estrutura motivados, com objetivos claros e concretos, com sensação de progresso e de contributo para o bem dos seus. Para tal todas as diferenças fisiológicas e culturais foram usadas como armas de lavagem cerebral — pelo cinema, jornais, livros, panfletos, às mãos de um dos mais maquiavélicos Ministros da Propaganda de sempre, Goebbels — para gerar o mais profundo Ódio aos judeus. Criou-se na mente dos militares e cidadãos a visão de estarem acima na escala social, e de os outros nem sequer pertencerem a tal escala. Por isso, havia um trabalho a fazer, e cada um precisava de dar o seu melhor para o levar até ao Final...

junho 12, 2019

Algo em que acreditar? A educação, sempre

Não querendo entrar na discussão que já vai grande sobre o João Miguel Tavares (JMT) e o 10 de junho, nem para laurear nem para desfazer, porque o seu discurso no geral parece-me bastante interessante, mas tendo-o lido depois de ouvir tantos comentários, quero apenas frisar um ponto do discurso, que apesar de bem trabalhado nas palavras e como clara intenção de defesa pessoal acaba por se contradizer.

Melhorámos muito, mas estamos ainda longe, falta outro tanto pelo menos...


Começa JMT por dizer:
"Os pais lutavam por isso – lutavam menos por eles, do que pelas suas crianças, para que elas tivessem uma vida melhor, estudassem, fossem “alguém”. Os seus filhos chegariam às universidades. Estudariam dezasseis, dezassete, vinte anos, se fosse preciso."
E termina a dizer:
"E se alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar a sua vida aos filhos. Currículo tem tanto o cientista que dedica o seu tempo à investigação como o reformado ou o jovem que dedicam o seu tempo a ajudar os outros."

Ousar pôr numa balança dois elementos tão díspares — os que estudaram e os que fazem ciência — com — os que tomam conta dos filhos e dos outros — é um paradoxo no discurso de JMT, porque é ele mesmo quem defende a Educação como Elevador Social, é ele quem descreve como os nossos pais tiveram um projeto de vida: Estudar os seus filhos. Os pais não investiram tudo o que tinham para os filhos apenas tomarem conta dos seus próprios filhos, isso é aquilo que já lhes compete enquanto cidadãos, os nossos pais quiseram que estudássemos para que fossemos mais, tivéssemos uma profissão e conseguíssemos ir além deles.


Percebo que JMT pretendia dar uma estocada em todos aqueles que questionaram o seu currículo para presidir ao 10 de junho, mas ao fazê-lo desta forma atirou o bebé junto com a água. JMT acaba por dizer que agora que já somos todos "doutores", porque a geração anterior se esfalfou para isso, isso já não é assim tão importante. Chegados a "doutores" encontrámos o desencanto, perdemos a esperança, não valeu a pena, e pior, ficámos sem sonhos para vender aos nossos filhos! Por isso, o melhor será voltar ao antes e sonhar outra vez. Talvez sem querer, acabou caindo no discurso populista do "não precisamos de especialistas" ou "temos licenciados e doutores a mais" que nos tem sido vendido por todos os líderes populistas bem conhecidos.

No ensino superior melhorámos mais rápido, mas porque a fasquia a atingir é menor. Mas não é razão para desencantar, sem esta subida o que digo abaixo não existiria.

Julgo que JMT em vez de se ter focado em pedir, "Dêem-nos alguma coisa em que acreditar", devia ter-se focado em dizer o que precisamos para continuar a acreditar, seguindo Kennedy em vez de Trump. Sei que JMT terá pensado que dar sonhos exteriores — mais riqueza, mais conquistas, mais isto e aquilo — seria sempre fraco, por isso focou-se nas pessoas, no seu interior, na entre-ajuda. Sim, esse deve ser o bem maior, mas é apena a rede funcional sem a qual não existiríamos como país, sobre esta precisamos de algo mais, precisamos de objetivos maiores do que aqueles já anteriormente alcançados. Porque a entre-ajuda estava lá antes quando conquistámos o 25 de Abril, entrámos na CEE, entrámos no Euro, e estava lá também quando organizámos a Expo 98, o Euro 2004, quando ganhámos o Euro 2016 e a Eurovisão 2017. Mas tudo isto só foi possível porque os níveis de Educação do país se elevaram tremendamente, se criaram ordens, sociedades, associações e academias de ciência e artes, assim como de turismo, de futebol, de música, de moda ou videojogos e tal só foi possível porque antes se criaram muitos cursos profissionais e superiores, com professores muito mais formados, em dezenas de profissões antigas que o país nunca tinha conseguido sequer formar, entre outras tantas novas que antes nem sequer existiam, e tudo isto depois tornou possível o surgimento de  pessoas com conhecimento e condições para garantir um país muito mais qualificado — capaz de criar empresas, festivais, concursos, eventos, obras e produtos não apenas nacionais mas internacionais — para que alguns de nós pudessem brilhar e ganhar, mas ao ganhar fossem além, elevassem a fasquia e dissessem que era possível fazer ainda mais.

maio 21, 2019

Quando é necessário dizer Não

Há cerca de um mês fui convidado para realizar uma palestra no evento Pint of Science que decorre este ano pela segunda vez em Portugal, em várias cidades, incluindo Aveiro. Aquando do convite fiz alguma pesquisa sobre a organização após o que aceitei participar. Entretanto fui confrontado com o facto do evento, organizado na cidade do Porto, estar a promover palestras que defendem o Reiki como terapêutica de tratamento do cancro (ver programa do Porto e vídeo). Este cenário colocou-me face a um dilema: ir ao evento significaria pactuar com aquilo que se promove nessa palestra; não ir, significava não cumprir com a palavra que tinha dado. Após alguma reflexão e face a nenhuma alteração de programa, apesar dos alertas realizados pela comunidade nacional, decidi cancelar a minha participação. Deixo algumas palavras que sustentam a minha atitude, sabendo que não repararão a minha falta, ainda assim espero que contribuam para uma discussão que é preciso continuar a fazer.


A ciência é um domínio frágil, os seus praticantes operam numa base de humildade permanente face ao conhecimento, aceitando por isso o questionamento constante dos seus princípios. Juntamente com isto, atravessamos toda uma era complexa de enorme e facilitado acesso ao conhecimento que em vez de tornar a sociedade mais informada e capaz de lidar com a ciência, tornou-a mais rude e desconfiada, nomeadamente de toda e qualquer fonte de autoridade. "Se tenho acesso ao conhecimento todo por via da internet, não preciso de especialistas para nada, posso saber o mesmo que eles sabem". "Basta-me umas horas de pesquisa e sei tanto como o meu cardiologista, ou como o meu advogado, ou como o especialista em aquecimento global". No fundo, temos na nossa frente aquilo que os teóricos do pós-modernismo vinham defendendo há décadas: uma sociedade de valores e princípios altamente fragmentada, descrente de qualquer autoridade ou meta-narrativas, vivendo numa realidade líquida em contínua e acelerada mutação.

Tudo isto sendo problemático, não o seria tanto se não fosse usado e abusado por políticos sem escrúpulos. Personagens como Trump, Bolsonaro ou os líderes da extrema-direita europeia tornaram-se populares graças a uma atitude de total desrespeito para com toda e qualquer autoridade instituída. Usam o princípio de que não existem certezas, de que existem cientistas que publicaram um ou outro artigo com reservas como se isso fosse suficiente, ou sequer evidência de algo, para atirar mantos de total descredibilização sobre todos os consensos da Ciência, para a coberto dos mesmos poderem promover as suas próprias agendas ideológicas, mas principalmente económicas.


E ainda assim, poderíamos enquanto membros da comunidade, desejar não nos imiscuir da política, que é um meio complexo, feito de ataques continuados, muitos deles pouco refletidos e menos ainda verdadeiramente sentidos, e que por isso mesmo não valeriam o nosso tempo. Contudo, o problema é grave, porque não se trata apenas de políticos à procura de benefício próprio, estas suas agendas têm impactos brutais sobre a sociedade, e até sobre o próprio planeta. Temos hoje milhares de pais a porem em risco milhares de crianças ao não vacinarem e ao apelarem à não vacinação. Temos milhares de pessoas que se colocam em risco e colocam outros em risco ao apelarem ao não tratamento químico de cancros. Temos milhares de pessoas que defendem que vivemos num planeta “plano”, mas pior, defendendo a inexistência de qualquer aquecimento global, usando a simples ideia de que tudo é questionável, e que a ciência não tem resposta para tudo. Claramente que a ciência não tem resposta, nem pretende ter, para tudo, mas as respostas que tem precisam de ser defendidas, e não colocadas à mercê dos ataques de quem não está minimamente habilitado ou sequer interessado na ciência. Assumir que tudo é igual, e todos têm direito à palavra com o mesmo grau de autoridade, deixou de ser uma condição aceitável, correndo o risco de tudo perdermos.

Temos que promover a ciência, temos de a defender, e isso implica tomar posições que por vezes são difíceis. Neste caso, os organizadores do evento no Porto preferiram o caminho mais fácil, defender as escolhas que tinham feito inicialmente, obrigando a que os investigadores ficassem com a escolha mais difícil, dizer que Não.


Notas Adicionais:
A tomada desta decisão foi feita no âmbito de um diálogo aberto com os organizadores do evento na cidade de Aveiro, que acabaram por compreender e aceitar a minha posição, manifestando a sua impossibilidade de atuação dada a autonomia que cada cidade organizadora do evento detém.

Do meu lado, esclarecer ainda que esta minha posição não deve ser lida como fundamentalismo científico, algo contra o qual tenho manifestado por várias vezes a minha posição, como se pode ver no texto que aqui publiquei no final de abril, "SciMed e a humildade em ciência".


Ler mais:
A Ciência não é Crença, Virtual Illusion
O Reiki funciona?, FFMS
Carta aberta à Pint of Science Portugal, Comunidade Céptica Portuguesa

abril 30, 2019

SciMed e a humildade em ciência

Entro na rede à procura de clínicas para fazer um exame de endoscopia, encontro uma perto de casa, entro e vejo que fizeram um vídeo explicativo do processo, acabo de ver o vídeo e como sempre faço, talvez por deformação profissional, vou ao YouTube ver de onde vem o vídeo, quantos o viram, comentaram, e que vídeos o YouTube me sugere mais. Surge um tal de "Dr. Lair Ribeiro - Ozonioterapia", não faço ideia do que seja, mas pelo título parece mais uma medicina alternativa. Começo a ver, invisto vários minutos e começo a pensar que o YouTube se tornou na maior arma de charlatanice da história. Pego no nome do senhor e faço pesquisa, nos primeiros cinco resultados aparece-me uma página do SciMed que me diz que o senhor, médico brasileiro, esteve recentemente em Portugal a debater com Rui Unas no Maluco Beleza. Em dúvida, entro no vídeo do Unas, vejo que se trata de uma entrevista de uma hora e meia, fico boquiaberto. Passo os olhos pelos comentários ao vídeo, só elogios ao senhor Lair!!! Volto ao artigo do SciMed, intitulado "Lair Ribeiro é um Charlatão – Análise Crítica às Suas Afirmações no Programa Maluco Beleza" no qual o médico João Júlio Cerqueira se dispõe a desmontar as falácias de Lair ao longo de um artigo longuíssimo (18 páginas). Se começo concordando, pensando em partilhar o texto para louvar o exemplo e esforço de desmontar falácias, quanto mais vou lendo mais incomodado me vou sentindo, já perto do final só sinto um trago amargo por cada novo parágrafo, até que bato com os olhos nos comentários dos leitores, uma enxurrada de ataques ao João em defesa de Lair, já com discussão xenófoba Brasil-Portugal pelo meio...


O sr. Lair pelos vistos perdeu-se no caminho da medicina, já que em tempos foi um médico de valor, inclusive investigou e publicou quase uma centena de artigos científicos, mas num certo momento da sua carreira algo lhe terá acontecido, porque abandonou a ciência, e começou a dedicar-se "à salvação dos mais necessitados" por meio das medicinas alternativas. Não sabemos se teve alguma experiência paranormal, ou se foi mera vítima da gula charlatã. Mas se o senhor é hoje um charlatão, não deixa de ter grande número de seguidores, tal como tem Edir Macedo, Olavo Carvalho ou Jordan Petersson. São pessoas dotadas de grande carisma, que acreditam estar imbuídas de uma missão, ou então são apenas pessoas despudoradas, capazes de tudo em nome de poder, fama e proveito económico.

Dito isto, não é difícil compreender que se movem ânimos intensos a favor e contra estas personagens. Não são apenas os seus defensores que se jogam na frente e dão o corpo em sua defesa. Todos aqueles que todos os dias trabalham em prol da sociedade, sentem-se de algum modo injustiçados por indivíduos que por graça do seu carisma contribuem apenas para destruir aquilo que vai dando tanto trabalho a criar, e por isso quando podem alinham-se também na primeira fila do pelotão, prontos a fuzilar. O João apresenta-nos um texto de puro fuzilamento. Em defesa do João podemos dizer que apresenta evidência, que desmonta os argumentos contrapondo com factos, reportando a estudos da comunidade internacional, que tornam claro quem tem razão, ou quem está mais próximo da verdade. Contudo, todo esse trabalho é destruído pelo tom do discurso, que por vezes conta mais do que o teor do conteúdo, mais ainda se tratando de esgrima argumentativa. E não adianta falar em falácias, ou conhecer as comuns falácias argumentativas, sem comunicação apropriada as ideias não se sustentam.

Começa logo na imagem usada para o artigo que dá o mote para a chacota que percorre todo o resto do texto. O João ainda começa por dizer que vai fazer uma “análise crítica”, mas logo a seguir inicia com termos como “missa habitual” seguido de “paletes de mentiras”, e ao longo de todo o texto, aqui e ali, vai como que encostando a ponta da faca da espingarda à barriga de Lair — “quem percebe o mínimo de medicina”, “ser evangelizado pelo Lair Ribeiro”, “é uma treta”, “tretólogo”, ”crendice”, “está tão gasto que dói”, “cheirar a mofo“ — ou até puro ad hominem disfarçado com “oligofrenia” e “culto oligofrénico”. Mas vai mais longe, embevecido pela sua luta, e vontade de fuzilar, leva tudo na frente cometendo erros graves como dizer: “Nenhum cientista que se preze cita livros para justificar posições.” Posso até conceder que na sua área não usem, mas a sua área não é toda a ciência. E mais, atacar assim o livro, enquanto objeto central do conhecimento, acaba por só levantar dúvidas à sua argumentação, mais ainda de todos aqueles que não trabalham com ciência e nem sequer sabem o que é um paper. Acrescentando por fim que o João acusa o Lair de se autocitar, vangloriando o Eu em vez da ciência, e depois acaba por ele próprio autocitar-se ao longo do texto várias vezes.


Chegado ao final, pergunto-me: o que retira o João de todo este trabalho, são horas e horas que estão ali (de análise de vídeos, desmontagem de argumentos, composição de imagens e diagramas, pesquisa e escrita)? É capaz de se sentir realizado porque despejou o saco, ventilou, pôs cá para fora toda a irritação de ver a ciência, e o seu trabalho, maltratados. Mas o João já se perguntou se aqueles que seguem o Sr. Lair deixam de o seguir depois de ler o João? A julgar pela discussão nos comentários ao texto do João, é fácil perceber que não. Para que serve então tudo isto?

O que me apraz dizer é algo que não é novo, que fazem falta nos cursos de medicina disciplinas que trabalhem a empatia dos médicos, que os ajudem a colocar-se no lugar do outro, neste caso teria sido muito útil ao João, perceber que ele não está a escrever para o seu Eu. Mas talvez mais importante do que isso, e já que vivemos tempos em que o Japão (já voltou atrás) e o Brasil (espero que volte atrás) querem acabar com os cursos de Filosofia, seria importante que todos os alunos de Medicina, mas não só, tivessem disciplinas de Filosofia, porque a Humildade Científica é o valor mais importante de qualquer aprendizagem científica.

março 30, 2019

A Analfabeta

Quando acabei de ler "O Grande Caderno", primeiro livro de Agota Kristof [1935-2011], senti-me tão impactado pela diferença do que tinha acabado de ler que tinha de saber mais sobre quem tinha escrito tal. Quem era esta Agota que tinha nascido na Hungria, de onde tinha partido aos 21 anos, em 1956, com um bebé de 4 meses ao colo, para se refugiar na Suíça? Sentia que o seu livro falava tanto a partir de dentro, do seu mundo pessoal, que só o poderia compreender compreendendo-a a ela primeiro. Descobri então que tinha deixado um pequeno livro de memórias, "A Analfabeta" (2004), nunca traduzido para português, que acabei por adquirir na língua original, o francês, a língua que Agota adotou como sua, desde que se refugiou na Suíça.

"A Rapariga do Tatra" (1905) de Marianne Stokes

A escrita segue de muito perto aquilo que está nos seus romances (entretanto já li o segundo, "A Prova" de 1989). A sua vida e família não serviram de espelho aos livros, mas emprestaram toda a dor e sofrimento provocados pelo roubo da infância e de identidade. Agota fala em algo em que nunca tinha pensado a propósito da União Soviética. Se na Rússia as pessoas viveram sob o jugo do comunismo, esse comunismo era emanado da sua própria cultura. Os restantes países, como a Hungria, foram obrigados a adotar uma língua que lhes era completamente estranha, obrigados a deixar de ler os seus próprios escritores, a estudar a história e geografia da Rússia, a sua cultura foi apagada, ou como ela diz, "sabotada", substituída pela cultura de um país estrangeiro. É verdade que isto é o que acontece quando uns países invadem outros, como fez Napoleão, ou Roma, mas supostamente não era isso que a União Soviética dizia ser, era supostamente uma União de países, era a URSS.

A Revolução Húngara de 1956, 3 anos depois da morte de Estaline, foi um golpe falhado. Muitos, como Agota, aproveitariam para fugir, porque como ela diz, a Hungria só viria a ser livre 33 anos depois.

E no entanto, ao ler as palavras de Agota, dou por mim a pensar em Portugal em 2019, e nas salas de cinema espalhadas pelas dezenas de shoppings nacionais, e em 99% dos ecrãs em que passam apenas filmes em inglês, professando, doutrinando tal qual Estaline fez, os hábitos e comportamentos dos portugueses com os valores dos EUA. E ligo o rádio, onde quem canta continua a fazê-lo em inglês, para depois ligar a televisão e abrir o Netflix, e continuar a ouvir inglês, e a ser invadido por problemas culturais que não são os meus, mas é como se fossem. E quando falo com as pessoas próximas, e recomendo um filme europeu, dizem-me, "não, obrigado, não gosto de ver cinema que não seja falado em inglês"! Agota passou a sua infância com uma fotografia a cores de Estaline no bolso, e nós?

Tudo isto acaba por dar ainda mais força à minha interpretação dos gémeos, na alegoria do primeiro livro de Agota, como potenciais faces de uma mesma moeda, o Comunismo e o Capitalismo.

"L'Analphabete" tem apenas 56 páginas. Começa assim:
“Je lis. C’est comme une maladie. Je lis tout ce qui me tombe sous la main, sous les yeux: journaux, livres d’école, affiches, bouts de papier trouvés dans la rue, recettes de cuisine, livres d’enfant. Tout ce qui est imprimé.
J’ai quatre ans.”
e termina assim:
“Je sais que je n’écrirai jamais le français comme l’écrivent les écrivains français de naissance, mais je l’écrirai comme je le peux, du mieux que je le peux.
Cette langue, je ne l’ai pas choisie. Elle m’a été imposée par le sort, par le hasard, par les circonstances.
Écrire en français, j’y suis obligée. C’est un défi.
Le défi d’une analphabète.”

março 10, 2019

Balança de justiça moral da História

Tenho muitas dúvidas sobre o histerismo condenatório que decorre à volta do legado de Michael Jackson em virtude do documentário "Leaving Neverland" (2019). Estive a reunir um conjunto de nomes ao longo da história com rabos de palha, desde Caravaggio (assassinato) e Da Vinci (pedofilia), a Einstein e Pessoa (declarações racistas), ou Heidegger e Hamsun (defensores do nazismo), passando por Picasso ou James Brown (autoritários e violentos), para tecer um argumento geral, mas acabei por desistir da ideia.

"O Tempo protege a Verdade dos ataques da Inveja e Discórdia" (1642), Nicolas Poussin

Cada caso é um caso, e cada pessoa tem níveis de aceitação diferentes em função da especificidade do legado e daquilo de que é acusada. Não é possível criar uma regra fechada que sirva uma análise generalista, pela simples razão de que os atos se opõem, ou seja, temos por um lado pessoas que serviram a sociedade, contribuindo com um legado considerado imensamente rico e relevante, por outro, essas mesmas pessoas cometeram crimes contra valores relevantes dessa sociedade. No fundo, trata-se de colocar na balança da justiça moral da História e chegar a um número que penda para o lado positivo ou negativo, mas como facilmente se depreende, nada disto é passível de medição, acabando por cair no subjetivismo de cada um.

Na verdade, qualquer vida escrutinada ao detalhe — quanto mais impactante e famosa tiver sido, mais escrutinada é, indo da exposição pública de cartas a diários íntimos — não pode encontrar apenas perfeição. Por muito mau que nos soe, e até ofenda, podemos contentar-nos pensando que afinal não passaram de meros humanos, que santos e deuses existem apenas na nossa imaginação.

janeiro 18, 2019

Melancolia sim, misantropia não

Talvez se tivesse lido "O Náufrago" (1983), de Thomas Bernhard, com 20 anos o tivesse admirado diferentemente. Num tempo em que almejava tornar-me cineasta, sonhava realizar os meus filmes e acreditava que a culpa por isso não acontecer era de todos os outros que não compreendiam tal. O artista estava acima do mundo, via mais longe, via diferente porque era diferente, e fazia questão de ser diferente, era melhor do que todos. Mas o crescimento, o amadurecimento e a aprendizagem daquilo que constitui o mundo e o real leva-nos a compreender que diferentes somos todos. E por isso, se a escrita de Thomas Bernhard é muito boa, a história que tem para contar neste pequeno livro é demasiado imberbe, apesar dos seus 52 anos à data de escrita.


O narrador conta-nos a sua história, focando-se sobre o período em que conheceu e estudou com Wertheimer e Glenn Gould (o pianista real) no curso superior de música em Salzburgo. Dá conta do antes e do depois, de quem ele e Wertheimer eram e foram depois de conhecer o génio do piano. Assim, o narrador desiste de um dia para o outro do piano, e Wertheimer simplesmente termina com a sua vida. Ao longo das 150 páginas, Thomas Bernhard dedica-se a desconstruir, em repetição e com amplas contradições, numa espécie de fluxo de consciência mas perfeitamente linearizada, o porquê do sucedido. Fá-lo seguindo uma lógica de culpa, todos desde a escola de música, aos professores, à família, pais e irmã, amigos, a Áustria, Salzburgo, Viena e seus cidadãos, todos tiveram culpa. Tanto Wertheimer como o narrador, são apresentados como puros misantropos, que acreditam que o mundo conspirou contra eles.

Chegados ao final, podemos questionar: que é feito da suposta alta sensibilidade do artista, como é que essa não lhe permitiu ver através da mediocridade da culpa? Essa sensibilidade serve apenas para sentir o seu próprio umbigo? Afinal que sensibilidade artística é essa? Diga-se que não me surpreende, olhando para muitas comunidades de artistas jovens, e outras menos jovens, ainda hoje, é exatamente este discurso de Bernhard que continuo a ver, e por isso não admira que ao resto da sociedade não reste outra opção que seja ignorar.

Porque melancolia é muito diferente de misantropia, e é preciso aprender a lidar com a diferença. Desse modo deixo excertos do discurso inaugural proferido por David Foster Wallace, para os alunos de artes do Kenyon College, EUA, a 21 de maio de 2005, entretanto publicado como “This Is Water: Some Thoughts, Delivered on a Significant Occasion, about Living a Compassionate Life” (texto completo inglês e português),  que ilustra bem o caminho de aprendizagem do Ser.


This is Water, David Foster Wallace, 21 maio de 2005
"Here is just one example of the total wrongness of something I tend to be automatically sure of: everything in my own immediate experience supports my deep belief that I am the absolute centre of the universe; the realest, most vivid and important person in existence. We rarely think about this sort of natural, basic self-centredness because it's so socially repulsive. But it's pretty much the same for all of us. It is our default setting, hard-wired into our boards at birth. Think about it: there is no experience you have had that you are not the absolute centre of.
(..)
it is extremely difficult to stay alert and attentive, instead of getting hypnotised by the constant monologue inside your own head (may be happening right now). Twenty years after my own graduation, I have come gradually to understand that the liberal arts cliché about teaching you how to think is actually shorthand for a much deeper, more serious idea: learning how to think really means learning how to exercise some control over how and what you think. It means being conscious and aware enough to choose what you pay attention to and to choose how you construct meaning from experience. Because if you cannot exercise this kind of choice in adult life, you will be totally hosed. Think of the old cliché about "the mind being an excellent servant but a terrible master".
This, like many clichés, so lame and unexciting on the surface, actually expresses a great and terrible truth. It is not the least bit coincidental that adults who commit suicide with firearms almost always shoot themselves in: the head. They shoot the terrible master. And the truth is that most of these suicides are actually dead long before they pull the trigger.
(..)
By way of example, let's say it's an average adult day, and you get up in the morning, go to your challenging, white-collar, college-graduate job, and you work hard for eight or ten hours, and at the end of the day you're tired and somewhat stressed and all you want is to go home (..) remember there's no food at home (..) of course it's the time of day when all the other people with jobs also try to squeeze in some grocery shopping. And the store is hideously lit and infused with soul-killing muzak or corporate pop and it's pretty much the last place you want to be but you can't just get in and quickly out; you have to wander all over the huge, over-lit store's confusing aisles to find the stuff you want and you have to manoeuvre your junky cart (..) now it turns out there aren't enough check-out lanes open even though it's the end-of-the-day rush. So the checkout line is incredibly long, which is stupid and infuriating. But you can't take your frustration out on the frantic lady working the register, who is overworked at a job whose daily tedium and meaninglessness surpasses the imagination of any of us here at a prestigious college.
(..)
The point is that petty, frustrating crap like this is exactly where the work of choosing is gonna come in. Because the traffic jams and crowded aisles and long checkout lines give me time to think, and if I don't make a conscious decision about how to think and what to pay attention to, I'm gonna be pissed and miserable every time I have to shop. Because my natural default setting is the certainty that situations like this are really all about me. About MY hungriness and MY fatigue and MY desire to just get home, and it's going to seem for all the world like everybody else is just in my way. And who are all these people in my way? And look at how repulsive most of them are, and how stupid and cow-like and dead-eyed and nonhuman they seem in the checkout line, or at how annoying and rude it is that people are talking loudly on cell phones in the middle of the line. And look at how deeply and personally unfair this is.
(..)
But most days, if you're aware enough to give yourself a choice, you can choose to look differently at this fat, dead-eyed, over-made-up lady who just screamed at her kid in the checkout line. Maybe she's not usually like this. Maybe she's been up three straight nights holding the hand of a husband who is dying of bone cancer. Or maybe this very lady is the low-wage clerk at the motor vehicle department, who just yesterday helped your spouse resolve a horrific, infuriating, red-tape problem through some small act of bureaucratic kindness. Of course, none of this is likely, but it's also not impossible. (..) If you're automatically sure that you know what reality is, and you are operating on your default setting, then you, like me, probably won't consider possibilities that aren't annoying and miserable. (..) The only thing that's capital-T True is that you get to decide how you're gonna try to see it.
(..)
This, I submit, is the freedom of a real education, of learning how to be well-adjusted. You get to consciously decide what has meaning and what doesn't."

Não é a primeira vez que cito este texto de DFW, em 2013 trouxe-o aqui porque tinha sido alvo de um belíssimo trabalho de ilustração audiovisual.

novembro 16, 2018

Racismo pela ciência

"Sami Blood" apresenta memórias que muitos suecos prefeririam esquecer, capazes de colocar  o governo de 1930 ao lado dos seus pares alemães, os nazis, nomeadamente pela suposta cientificidade do processo de inferiorizarão de povos apenas pela geografia, no caso o povo da Lapónia. Somos facilmente levados a pensar no modo como os Europeus trataram os indígenas norte-americanos, sul-americanos, ou australianos, para não falar de África, mas estamos já em 1930. Usar a ciência, toda a metodologia e alicerce do pensamento racional, para excluir o outro, para o inferiorizar e descriminar, é algo absolutamente aterrador.





“Sami Blood” apresenta a Lapónia nos anos 30, a terra das renas e hoje em dia do Pai Natal, pela mão de Elle-Marja, uma jovem inteligente e auto-determinada que é integrada num colégio interno, onde vai viver uma traumática experiência "científica" imposta pelo estado Sueco para catalogar o povo Sami. Contra tudo e todos abandona a escola, abandona a irmã, a família e o seu povo, e assume uma nova identidade sueca para poder emancipar-se.



O racismo não é determinado pela cor, nem sequer por qualquer outra diferença fisiológica, é simplesmente determinado pela não pertença ao grupo dominante, e pela falta de empatia do grupo majoritário para com o minoritário. É algo contra o qual temos de lutar de forma consciente, já que os instintos e emoções que nos regulam tendem a facilmente deixar-se manipular pelos instintos de proteção de grupo e comunidade. Quando até recorrendo ao método científico nos deixamos ludibriar por esses instintos, torna-se vital atuar pro-ativamente em defesa das minorias.

O filme apresenta não só as belíssimas paisagens do norte da Suécia, mas oferece-nos um guião impactante, sem pudores, carregado aos ombros por duas poderosas interpretações, as irmãs Lene Cecilia Sparrok e Mia Sparrok.

outubro 28, 2018

As Vinhas da Ira (1939)

É um clássico, podemos até sentir o texto datado, o relato bastante simplista e linear, no entanto não podemos deixar de confirmar o modo e a força com que somos transportados para o pós-Grande Depressão (1929) e que sentimos as dificuldades das vidas de milhares de americanos que tudo perderam, sem perceberem como, nem porquê. O livro tem problemas, mas o que tem de bom compensa tudo isso. Por isso continua a recomendar-se.

A edição que li foi da coleção Mil Folhas do Público que utiliza a tradução de Virgínia Motta realizada para a Livros do Brasil

Provavelmente aquilo que de menos gostei foi da tradução, parece-me estar longe do nível de eloquência do original, sofrendo ainda mais pela tentativa, sem sentido, da Livros do Brasil de produzir um português que satisfaça Portugal e Brasil, redundando numa mescla que não é uma coisa nem outra. O livro perde muito, e espero que um dia ganhe uma tradução feita com maior proximidade ao original e ao português de Portugal. O original em inglês não é propriamente fácil de seguir para não-nativos nomeadamente ao nível dos diálogos que aproximam a escrita da fala.

Quanto à estrutura, pode-se dizer que é bastante linear, um arco completo com  bastante progressão na ação o que torna a leitura, em partes, bastante acessível e prazerosa. Por outro lado, não gostei de um artifício criado por Steinbeck, que assentou em intercalar os capítulos da história com capítulos mais abstratos e filosóficos sobre o estado das coisas, e a condição humana. Fez-me lembrar os videojogos que precisam de intercalar a interação com pequenos clipes de filme para que se perceba o que a história está a tentar contar. Acaba funcionando como um rótulo de menoridade ao leitor, que supostamente seria incapaz de compreender todo o alcance do que está a ser relatado à família Joad no seio da História americana da depressão económica. Como se Steinbeck tivesse necessidade de reforçar a sua visão política do que descreve, para lhe permitir chegar a questões que quer abordar mas que não encontrou forma por via da história. Não fosse a história tão impressiva, e consideraria o livro, por esta razão, um falhanço.

Já na parte do conteúdo, das ideias que Steinbeck procura defender, existe algum excesso de zelo em defesa do realismo socialista, como tábua de salvação para todos males desencadeados pelo vil metal. Sim, tanto em 1929 como em 2008, as massas da população foram vítimas da falta de escrúpulos de quem lidou com os dinheiros de todos, de quem olhava apenas aos modelos económicos e esquecia que por debaixo desses existiam seres humanos reais. Isso trouxe tudo o que de pior existe no ser-humano — o racismo, a xenofobia, o desprezo pelo outro — a total desconsideração pelos valores humanos. Por outro lado, não podemos pensar como sendo algo fácil, lidar com milhões de deslocados, nem nessa altura, nem hoje, nem nunca. Continuo a defender que devemos receber todas as pessoas que precisam de se deslocar, mas não podemos esquecer que essas vão estar imensamente vulneráveis, e que mesmo um Estado rico podendo ajudar bastante, não pode de forma alguma chegar a todos, e que no meio de tudo isso haverá muito aproveitamento por parte de quem já estava nos lugares antes. Isso faz parte da sobrevivência humana, claramente que devemos vergar esses instintos pela lei, mas será mero paliativo, precisamos de agir sobre o que antecede, ou seja, em formas de evitar essas deslocações massivas. O que era preciso nessa altura, era ter criado as condições para as pessoas permanecerem nos seus terrenos e nas suas casas, lugar em que elas se sentiam bem, pois nenhum outro lugar por mais acolhedor que fosse poderia oferecer as alegrias do lugar em que aquela família tinha crescido e unido o seu sentir.

Sei bem que é fácil em teoria, e que em lugares como a Síria da atualidade isto se tornou uma impossibilidade. Mas por culpa de quem? Nossa. Europeus, americanos, russos, árabes, todos se acharam no direito de intervir num país que era soberano, e todos contribuíram para a sua total destruição. Hoje mandar os sírios de volta não adianta, eles já não têm lugar para onde voltar. Mas os EUA não sofreram pressões do exterior, o governo americano devia ter agido nas expropriações, na destruição de valor por via das quebras em bolsa. Ao permitir que a sociedade seguisse o seu rumo, sem qualquer regulação, criou um problema muito maior com os milhões de pessoas a mover-se massivamente.

Uma outra questão que surge aqui bastante evidente, na assunção de uma realidade idilicamente socialista, é o problema da falta de qualificação da mão-de-obra. Nessa altura já vivíamos num pós-Revolução Industrial, uma revolução que veio exigir das pessoas muito mais, não bastava força bruta, porque essa já pertencia às máquinas. Do mesmo modo hoje já não basta saber ler, escrever e contar. Não digo isto por acaso, mas porque vai existindo um discurso perigoso emanado de certas alas da sociedade que olham para a escola como algo pouco relevante, e que se acentuou recentemente com a internet, porque o conhecimento é de todos e todos lhe podem aceder, esquecendo que o mundo complexo em que vivemos não pode ser servido por meras pesquisas na internet. O progresso que vamos vivendo não exigiu, não exige, nem exigirá menos escola, mas mais, muito mais competências e capacidades finas que só estarão ao alcance de muito estudo e treino diários no tempo.

E no caso relatado na obra de Steinbeck, sabemos que o estado americano teve as suas culpas em não apostar numa rede pública de educação que assegurasse a elevação das capacidades da sua população, mas sabemos bem como certas franjas, nomeadamente no interior dos EUA olham para a escola pública, acusando-a de braço ideológico do governo, optando por escolarizar em casa, e até em alguns casos sequer escolarizar, como tem vindo a público em vários relatos recentes (ver "Educated: A Memoir" (2018) de Tara Westover ou "The Glass Castle" (2005) de Jeannette Walls).

outubro 19, 2018

“Factfulness” (2018), factos e comunicação

Nos últimos anos tenho-me posicionado cada vez mais do lado dos céticos em relação a análises do real a partir de números. Para isso muito tem contribuído a voragem a que todos vamos sendo submetidos por meios de avaliação que não levam em conta quem somos, mas apenas o que debitamos em termos de resultados numa folha de Excel. Por isso mesmo, não fosse a enorme recomendação feita ao livro, por Bill Gates entre outros, dificilmente lhe teria pegado. Reconheço que aprendi muito com Hans Rosling, mas a minha impressão em relação a números, métricas e estatísticas não se alterou, aliás Hans acaba por sem se dar conta dar razão ao trabalho de Daniel Kahneman a propósito da economia comportamental, e do modo como as pessoas simplesmente munidas de números pensam poder compreender o ser humano. Com isto não quero dizer que o trabalho de Hans seja mau ou irrelevante, ele é imensamente relevante e o livro vale a leitura para todos, mas deve ser lido com muito espírito crítico.

O livro foi publicado em 2018, mas Hans Rosling (1948) morreria antes da publicação, em 2017, com um cancro no pâncreas.

Hans inicia o livro com uma queixa que se prolonga ao longo de todo o livro, o facto de as pessoas desconhecerem os dados efetivos sobre o ponto de situação em que a nossa espécie se encontra a nível mundial. Hans explica como passou 30 anos a lecionar, a falar com líderes mundiais, a criar diferentes formas de comunicar, e se sentia, no final da sua vida completamente impotente. “Factfulness” (2018) foi, segundo o próprio, o derradeiro grito e tentativa para levar o conhecimento às pessoas, para lhes mostrar principalmente o quanto o mundo mudou, o quanto conseguimos enquanto espécie deste planeta evoluir e progredir em termos de condições de vida. E neste ponto, só tenho de agradecer a Hans, a todo o seu conhecimento e trabalho por todo o planeta em defesa das melhores condições para todos, assim como o seu incansável esforço em tentar que pudéssemos todos ver um mundo diferente, melhor acima de tudo, com muito mais esperança. Julgo que consegue isso, em parte, com este livro.

A pobreza extrema caiu a pique nos últimos 200 anos.

Uma das principais teses de Hans tem que ver com a divisão do mundo em duas metades, os pobres e ricos, contra o que se opõe determinantemente, tendo conseguido durante a sua vida fazer com que várias instituições mundiais mudassem essa visão, e passassem a ver o mundo antes em 4 níveis (ver imagem abaixo). Os níveis propostos por Hans dividem-se entre os que ganham 1 dólar/dia e estão no nível 1, e os que ganham pelo menos 32/dia e estão no nível 4. Pode parecer algo de somenos, mas nisto concordo, já que vermos o mundo em 4 mundos permite-nos compreender como progride o planeta, como evoluem as condições de vida. Permite-nos ver como as pessoas que estão no nível 1 podem realmente chegar ao nível 2, e isso para elas representará uma evolução imensa, algo que para quem está no nível 4, será completamente impercetível. Alguém que ganha 32 euros por dia, ganhar mais 1 euro ou 4 por dia, não mudará a sua vida. Alguém que ganha 1, passar a ganhar 4, muda completamente tudo aquilo que pode oferecer à sua família.

4 Níveis em vez de só Ricos e Pobres. Cada boneco representa mil milhões de pessoas, podendo ver na imagem a distribuição dos mesmos por cada nível. Hans diz-nos que houve progresso, a pobreza extrema decresceu imenso, ou seja muitos milhões passaram do Nível 1 para o Nível 2, no entanto para quem vê a partir do nível 4, a pobreza continua a ser enorme. Por outro lado, Hans tem razão quando diz que o progresso ocorreu, e que permitindo as coisas seguirem o seu rumo, estes que progrediram do 1 para o 2, acabarão por progredir para 3 e depois para 4, claro que isso não acontecerá numa geração apenas.

O problema com a conceção dicotómica, entre ricos e pobres, é que passamos o tempo a acreditar que as pessoas pobres nunca poderão chegar a ser como nós (partindo da visão de quem vive no nível 4, que como diz Hans é quem terá condições para ler o livro). Daí todo o debate que Hans realiza sobre a visão entre o Ocidente e o resto, ou entre os países desenvolvidos e os não desenvolvidos, ou industrializados e não industrializados, ou entre 1º mundo e 3º mundo. Esta visão em duas metades faz-nos acreditar que não é possível fazer nada, que não podemos ao longo da nossa vida contribuir para mudar o mundo, e acaba por criar a desesperança e frustração, e pior, a desistência do outro. Hans debate em profundidade, e mostra como não existe um nível 4 e um nível 1, existem no meio o nível 2 e 3, nos quais vive a maior fatia da população do globo, e essa fatia tem hoje acesso a 10 anos de escola para homens e mulheres, tem acesso a eletricidade, a vacinas, e que a sua média de esperança de vida não está muito distante dos que vivem no nível 4.

O mapa de Hans que coloca em evidência a ausência de um mundo dividido em apenas duas partes.

Com esta abordagem Hans consegue colocar em evidência o facto de não estarmos a crescer a um ritmo insustentável. Que o acesso a métodos contracetivos se globalizou, mas mais importante, a educação também se globalizou, e quem conseguiu chegar ao nível 2 e 3, já não tem mais de 5 filhos, mas menos de 3, e com isso conseguiremos um equilíbrio da vida no planeta. Aliás, nesta constatação dá conta de uma descoberta impressionante. Não é o dar melhores condições às pessoas de nível 1, que têm muitos filhos, que vai fazer com que tenham mais, mas é todo o contrário. Quanto mais educados e acesso à educação tenham, menos filhos terão. Esta constatação é muito importante, já que Hans relata o caso de pessoas que o abordavam em congressos, com medo da superpopulação do planeta, dizendo que não podemos dar a mesma qualidade de vida a todos, porque o planeta não aguentaria a pressão de tantos humanos.

O impacto na descida de número de bebés deve-se aos contraceptivos mas não só, deve-se muito à formação escolar das mulheres, ao retardar do primeiro filho para finalizar os estudos, etc.

Se tudo isto é muito relevante, entristece-me que Hans tenha optado por escrever um livro tão paternalista e condescendente para com o leitor. Eu não teria acertado em todas as perguntas que ele nos faz no início do livro, acertei pouco mais de 25% (ex. quantas crianças foram vacinadas no mundo; o número de anos que as mulheres, acima dos 30 anos, passaram em média na escola; a percentagem de pessoas que têm acesso a eletricidade; a variação da pobreza extrema no mundo; etc.). Embora me esforce por ter um conhecimento alargado dos problemas que assolam o planeta Hans conseguiu surpreender-me, e demonstrar que vivemos numa ideia distorcida da realidade (já falarei sobre esta distorção). Hans passou mais de metade da sua vida a tentar mudar esta perceção errada dos factos do mundo, mostrando que era um investigador tenaz e persistente, tentou múltiplas abordagens distintas a nível local e global, com diferentes extratos de população, com diferentes ferramentas de comunicação (artigos, tabelas, gráficos, infografias, documentários de televisão, discursos para grandes organizações, etc.) foi mesmo eleito pela Time em 2012, como uma das 100 pessoas mais influentes, mas todas as suas tentativas produziram apenas insucesso. No entanto, quanto mais o lia mais me questionava, porquê toda esta insistência, e porque razão tem de repetir no início de todos os capítulos que o mundo não sabe as respostas que as desconhece e esfregar isso na cara do leitor?

Hans era médico, fez o seu doutoramento no estudo de epidemias o que o levou a desenvolver bastante o domínio da estatística, foi médico em Moçambique e várias outras partes do planeta, foi professor universitário na Suécia durante grande parte da sua vida, co-fundou a Médicos Sem Fronteiras, e tornou-se consultor de grandes organizações internacionais como a UNICEF, a Organização Mundial de Saúde ou o Banco Mundial, e no entanto neste livro acaba por nos dizer que a maior batalha da sua vida assentou no desejo de mudar a perceção que temos do mundo, ou seja, um processo de comunicação. Reparem como essa não era, de todo, a especialidade de Hans, ele era médico e professor de saúde internacional, e esse é para mim o grande problema de toda a lógica de Hans. Porque é o próprio Hans que faz questão de frisar que os experts só o são no seu campo, e não devem tentar usar do seu conhecimento especializado para responder a tudo o resto.

Antes de explicar o problema de comunicação, dizer que o livro e o próprio Hans encontraram muitas outras contrariedades da parte de outros colegas, mas nas quais não me revejo, embora as compreenda. Ou seja, Hans foi muito atacado por se apresentar como um otimista incapaz de ver o mal que nos assola, tal como tem acontecido com Steven Pinker. Ambos ousaram quebrar com o status quo do apocalipse, e dizer que o mundo em que hoje vivemos é francamente melhor do que aquele em que viveram os nossos avós, e que não temos parado de progredir em todas as estatísticas mais relevantes para a nossa espécie. Pinker concentrou-se na diminuição da violência, enquanto Hans se centrou na diminuição da mortalidade infantil. Eu sigo ambos, os dados que apresentam são válidos, não existem razões para duvidar.

Uma das grandes razões porque as famílias tinham mais de 5 filhos era o alto nível de mortalidade. Ter 1 filho ou 2 era meio caminho para se chegar a velhice sozinho, sem filhos vivos para ajudar a sobreviver os últimos anos.

Existe uma corrente, claramente fundamentada em ideologia de extrema-esquerda, que desdenha todo este otimismo, porque o vê como conversa para ricos, para os apaziguar e fazer acreditar que estão a agir bem. Estes acreditam que Hans e Pinker não o deviam fazer, deviam antes lutar contra esses ricos para eliminar a pobreza. Ora, estes colegas simplesmente não perceberam nada daquilo que leram. As estatísticas estão lá, e não são para ser lidas como meros números, são para ser interpretadas, no tempo e na relação direta com as variáveis humanas. Não compreender isto, é negar a todas as pessoas que têm saído da pobreza extrema, da pobreza média, e a países como Portugal que atingiram o nível dos países desenvolvidos, o que estas estatísticas demonstram. Eu compreendo que para quem acredita num modelo anti-capitalista, isto surja como uma facada nas costas, porque não é mera conversa, são dados empíricos que demonstram, que não deixam espaço para interpretações ideológicas aquilo que está a acontecer. Mas estes ataques também demonstram algo bem diferente, ou nem por isso, de que estas noções de extrema-esquerda simplesmente não querem saber das pessoas reais, querem apenas colocar em marcha uma ideia do mundo que conceberam como a única possível, doa a quem doer. Hans não é um louco otimista, ele tem noção das complexidades em que vivemos:
"I do not deny that there are pressing global risks we need to address. I am not an optimist painting the world in pink. I don’t get calm by looking away from problems. The five that concern me most are the risks of global pandemic, financial collapse, world war, climate change, and extreme poverty. Why is it these problems that cause me most concern? Because they are quite likely to happen: the first three have all happened before and the other two are happening now; and because each has the potential to cause mass suffering either directly or indirectly by pausing human progress for many years or decades. If we fail here, nothing else will work. These are mega killers that we must avoid, if at all possible, by acting collaboratively and step-by-step."
Aconselho vivamente todos aqueles que colocam em causa o que Hans e Pinker têm vindo a discutir, a lerem antes deste: “Cosmos” (1980) de Carl Sagan, “Guns, Germs and Steel” (1997) de Jared Diamond, e “Sapiens” (2011) de Harari. O mundo não é feito só do “agora”, nem só do “nós”, aquilo que hoje representamos no planeta e representámos no passado é vital para compreender o alcance de muito daquilo que Hans aqui discute. O que está aqui em questão, está muito longe de meros fogos ideológicos ou de classes.

Voltando então à questão da comunicação. Julgo que o maior problema de Hans esteve em não se questionar porque as pessoas processavam o mundo desta forma. Para comunicar efetivamente temos de conhecer o público da nossa mensagem como nos conhecemos a nós. Mas não só, tenho de compreender como o ser-humano processa a informação, o conhecimento, como dá sentido ao real, como o perceciona e ganha consciência do mundo e dos outros. Não basta ter números, não basta ter bons gráficos, ou ter uma boa equipa audiovisual para fazer um documentário tipo BBC, é preciso primeiro compreender o que queremos dizer e que efeito procuramos com aquilo que queremos dizer.

Neste caso Hans demonstrou uma incompreensão sobre o funcionamento dos modelos cognitivos que nos permitem gerar e gerir a realidade circundante. Hans até percebe que os media usam e abusam do drama e tragédia para fazer o seu jornalismo e comunicar, e até os tenta desculpar, um pouco como Jesus pedia desculpa ao seu pai porque, dizia ele, "eles não sabem o que fazem". Mas o que Hans não percebeu foi que os media usam o drama porque é ele que tem o potencial de comunicação, não são os factos. As pessoas não recebem factos, não compreendem o mundo por via de tabelas e estatísticas, as pessoas precisam de histórias, de enredos e personagens estereotipados, precisam de tragédias e dramas para dar sentido aos factos e assim compreender o real. Uma listagem de eventos e percentagens vale zero para a generalidade das pessoas se não vier embrulhada numa narrativa que lhe dê sentido.

A razão disto é que nós precisamos de modos simplificadores do real, não somos capazes de manter múltiplos números soltos na nossa cabeça. Por isso criamos o lado bom e o mau, o herói e o vilão, o negro e o claro, para podermos comparar e tomar decisões rapidamente. Não existe outra forma, se eu sou pobre os outros são ricos, se eu sou rico os outros são pobres. Mas o problema não reside aqui apenas, o problema é que precisamos de motivar estas pessoas para ação, para a entre-ajuda, e para isso precisamos de forçar as diferenças entre os que têm e os que não têm, o drama. Aliás, aqui acabo por ter até de concordar com algumas das afirmações dos colegas mais à esquerda, porque o modelo corre o risco de colocar as pessoas no melhor nível a pensar que afinal as pessoas abaixo nem estão assim tão mal.

Um dos exemplos em que claramente percecionei isto foi nos dados de Hans sobre a vacinação. Ele atira com o número impressionante de 80% crianças no mundo vacinadas, mas aqui não diz que isso só foi possível graças à UNICEF e doações do mundo inteiro (embora ele diga noutra parte do livro que os preços das vacinas só são a preço de custo graças à força internacional da UNICEF para negociar preços). E que para que tal aconteça, é preciso que as pessoas acreditem que os outros estejam tão mal que se tenha de doar parte do que eles construíram com o seu suor a quem está pior que eles. Isto é o instinto de dividir o mundo em dois que consegue, de querer ajudar quem está pior do que nós. Porque se for para ajudar quem está pior, mas muito melhor que outros, então se calhar as pessoas pensarão duas vezes.

Ou seja, Hans é um otimista e acredito que devemos ouvir os seus argumentos porque devemos crer num mundo que está a melhorar, e não o contrário. Só que ter esta visão implica também continuar a lutar por manter uma consciência das múltiplas complexidades que assolam a vida de todos neste planeta, e que o facto de estarmos a progredir, de estarmos melhor, não quer dizer que não continuemos a precisar de ajudar e de ser ajudados. O progresso tem a vantagem de nos servir de confirmação de estarmos a agir bem e de estamos no caminho certo, o problema é que se temos conseguido fazer algumas coisas bem isso não nos garante que possamos vir a fazer o mesmo com a imensidade de outras coisas que continuamos a fazer mal e muito mal.

outubro 05, 2018

Portugal em 1941 segundo a literatura

Não é um grande livro, mas é uma grande obra. “Esteiros” foi publicado em 1941, como primeiro e único romance de Soeiro Pereira Gomes, num país em que a produção cultural era um luxo reservado a poucos, criava-se muito pouco e o que se criava focava-se mais na arte pela arte do que na realidade. A isso não era também alheio o facto de se viver sob um regime ditatorial que controlava a elite intelectual e todos os canais de veiculação cultural. Deste modo, se artisticamente podemos apontar várias falhas estilísticas à prosa de Soeiro, a sua audácia e inovação no plano nacional assim como o resultado que se imprime na leitura, fazem deste livro mais do que um documento vivo de um tempo da nossa história.

“Esteiros” (1941) relata a história de cinco meninos, entre os 10 e os 12 anos, na zona ribeirinha do Tejo, que deixam a escola para trabalhar e ajudar à sobrevivência familiar.

Saliento que Soeiro tinha até à data apenas escrito pequenos contos e crónicas para jornais. O estilo realista foi construindo-o pela escrita praticada para esses jornais, mas um romance não é mera crónica, é preciso algo mais do que o simples relato do que se vê. Por outro lado, Soeiro já tinha tido uma má experiência com um relato demasiado rente à realidade com o conto “O Capataz” (1935) proibido pela censura de então. Daí que “Esteiros” acabe por não se agarrar aos gritos de pobreza, nem às ideologias que a provocava, mas antes se fixe num grupo de crianças que viviam por sua conta, apontando aos seus sonhos sem contudo deixar de ilustrar o mundo e as condições em que viviam. O resultado é um romance neorrealista, uma tradição artística muito em voga na época, tanto na literatura como no cinema, e que procurava dar a ver e sentir a realidade mas do ponto de vista das comunidades mais pobres, ou sem voz na produção cultural. Uma espécie de tentativa de abrir uma janela sobre uma realidade que a sociedade em geral ignorava de forma consciente e muitas vezes até sem qualquer noção da sua existência.

Soeiro viria a ingressar no Partido Comunista Português pouco depois, daí que o partido sempre se tenha achado no direito de usar a obra em defesa dos seus valores, contudo “Esteiros” está longe de ser um panfleto partidário. A obra vale por si, desenvolve todo um mundo próprio, dotado de uma visão pessoal do autor, sem laivos de luta ideológica, algo que Soeiro poderá ter feito para evitar a censura. Na verdade, o romance apesar de dotado de um sentido de missão, socorre-se de todo o convencionalismo estético que define um romance, desde a definição dos personagens e sua progressão, aos conflitos vitais para a construção do clímax, e aos cenários que tudo acompanham e enchem de densidade a viagem na imaginação do leitor. Soeiro segue o movimento neorealista da época, que ia beber ao realismo da pintura e ao naturalismo de Zola, forçando agora o sentimento realista pela forma. Enquanto o cinema italiano neorealista usava pessoas reais em vez de atores, Soeiro trabalha a escrita das falas dos personagens de modo a aproximarem-se da pronúncia efetiva, perdendo em qualidade escrita do português mas ganhando, pelo efeito realista, maior proximidade do sentir daquelas crianças.

No entanto, sente-se a falta de alguma uniformização discursiva, desde logo a narração apresenta momentos de descrição muito elaborada, quase poética, que se opõem aos diálogos bastante mais rasos das gentes. Por outro lado, o português mal-falado escrito parece elaborado um tanto ad-hoc sem estrutura nem padrão, denotando alguma falta de estudo e análise da linguagem que se tenta captar e apresentar. Juntam-se ainda algumas dificuldades de ligar quadros narrativos ou cenas inseridas sem relação no tempo da obra, que por vezes nos deixam pendurados sem perceber para onde ou porque se moveu o narrador. Mesmo a interessante divisão em quatro secções marcadas pelas estações do ano, são exclusivamente usadas para definir a cronologia das ações, servindo pouco a estética narrativa não se sentindo na escrita nem nos modos descritivos. Tudo isto não nos surpreende tendo em conta ser uma primeira obra, e num cenário histórico como o descrito acima.

Voltando ao histórico e político, Salazar não é parte do romance, mas está lá na figura do Sr. Castro, sempre condescendente com os mais fracos, mas levando as suas ideias por diante, porque assim tinha de ser, o progresso económico assim o exigiria. Não incorro, contudo, no facilitismo de atirar para as costas de Salazar todas as condições de vida dos personagens do texto. Em 1941, o mundo ao tentar sair de uma terrível crise económica, 1929 (compare-se estes personagens com o de “As Vinhas da Ira” (1939) de Steinbeck), tinha chegado ao auge de uma devastadora 2ª Grande Guerra Mundial (1939-1945), o nosso principal parceiro económico e vizinho, a Espanha, acabava de sair destroçada de uma Guerra Civil (1936-1939), e por isso por mais "mago de finanças" que fosse Salazar e pela neutralidade advogada, só podia contar consigo e com o que ia extorquindo às colónias. Foram tempos terríveis em toda a Europa, e Portugal não teria sido exceção com qualquer outro governo. O que teria sido exceção foi o que se seguiu, pois a seguir ao final da 2ª Grande Guerra Mundial, a Europa, graças ao Plano Marshall, entrou em total ebulição para repor muito do que tinha sido destruído, e renovar a esperança num mundo novo, mas Portugal fechado na ideologia do “Orgulhosamente Sós” permitiu que o Chefe de Estado conduzisse o país para um fosso inimaginável.

A Mocidade Portuguesa numa saudação Nazi e a cruz das Cruzadas, por Bernard Hoffman* em 1940

Alegadamente até os pobres iam à escola, como se vê nesta imagem de Bernard Hoffman* de 1940, mas o livro de Soeiro mostra todo um outro cenário.

“Esteiros” é um relato imensamente importante por colocar o dedo na ferida aberta na Educação. Portugal era pobre, mas tinha por sua conta colónias dotadas de grande valor pelas matérias-primas que possuíam, no entanto Salazar em vez de apostar na massa cinzenta do país, acreditou que a salvação estava na indústria e na facilitação da sua edificação. Cerceou a liberdade a quem se opôs, fomentou o crescimento de quem se subjugou, e esqueceu o resto do povo, assim conduziu o país sob a sua visão única durante quatro décadas A leitura desta Obra de Soeiro mostra que não havia alternativa, nem sequer para o Gaitinhas que era excelente aluno e os pais tanto queriam que fosse “doutor”. O único trabalho que sobrava para quem nada sabia fazer era o temporário e de força bruta.  Como crianças sem proteção familiar ou de qualquer outra ordem e num país em que o Estado se coibia de impor qualquer regulação laboral, eram submetidas a tratamento escravo, do qual não podiam escapar por precisarem desesperadamente do pouco que ganhavam.


* As fotos pertencem a uma reportagem da revista Life feita em Portugal a convite de Salazar. A reportagem é completamente submissa, apresentando Salazar como o líder visionário que salvou o país da bancarrota, indo a ponto de afirmar que "a maioria do que é bom no Portugal moderno deve-se a Salazar", já o povo português não passa de uma cambada de "sonhadores" e "incapazes" que gostam de "negros" e "vinho". Uma reportagem encomendada, feita de interesses de parte a parte, aos EUA também interessava criar e manter boas relações com Portugal para ter acesso facilitado à Europa.