“Esteiros” (1941) relata a história de cinco meninos, entre os 10 e os 12 anos, na zona ribeirinha do Tejo, que deixam a escola para trabalhar e ajudar à sobrevivência familiar.
Saliento que Soeiro tinha até à data apenas escrito pequenos contos e crónicas para jornais. O estilo realista foi construindo-o pela escrita praticada para esses jornais, mas um romance não é mera crónica, é preciso algo mais do que o simples relato do que se vê. Por outro lado, Soeiro já tinha tido uma má experiência com um relato demasiado rente à realidade com o conto “O Capataz” (1935) proibido pela censura de então. Daí que “Esteiros” acabe por não se agarrar aos gritos de pobreza, nem às ideologias que a provocava, mas antes se fixe num grupo de crianças que viviam por sua conta, apontando aos seus sonhos sem contudo deixar de ilustrar o mundo e as condições em que viviam. O resultado é um romance neorrealista, uma tradição artística muito em voga na época, tanto na literatura como no cinema, e que procurava dar a ver e sentir a realidade mas do ponto de vista das comunidades mais pobres, ou sem voz na produção cultural. Uma espécie de tentativa de abrir uma janela sobre uma realidade que a sociedade em geral ignorava de forma consciente e muitas vezes até sem qualquer noção da sua existência.
Soeiro viria a ingressar no Partido Comunista Português pouco depois, daí que o partido sempre se tenha achado no direito de usar a obra em defesa dos seus valores, contudo “Esteiros” está longe de ser um panfleto partidário. A obra vale por si, desenvolve todo um mundo próprio, dotado de uma visão pessoal do autor, sem laivos de luta ideológica, algo que Soeiro poderá ter feito para evitar a censura. Na verdade, o romance apesar de dotado de um sentido de missão, socorre-se de todo o convencionalismo estético que define um romance, desde a definição dos personagens e sua progressão, aos conflitos vitais para a construção do clímax, e aos cenários que tudo acompanham e enchem de densidade a viagem na imaginação do leitor. Soeiro segue o movimento neorealista da época, que ia beber ao realismo da pintura e ao naturalismo de Zola, forçando agora o sentimento realista pela forma. Enquanto o cinema italiano neorealista usava pessoas reais em vez de atores, Soeiro trabalha a escrita das falas dos personagens de modo a aproximarem-se da pronúncia efetiva, perdendo em qualidade escrita do português mas ganhando, pelo efeito realista, maior proximidade do sentir daquelas crianças.
No entanto, sente-se a falta de alguma uniformização discursiva, desde logo a narração apresenta momentos de descrição muito elaborada, quase poética, que se opõem aos diálogos bastante mais rasos das gentes. Por outro lado, o português mal-falado escrito parece elaborado um tanto ad-hoc sem estrutura nem padrão, denotando alguma falta de estudo e análise da linguagem que se tenta captar e apresentar. Juntam-se ainda algumas dificuldades de ligar quadros narrativos ou cenas inseridas sem relação no tempo da obra, que por vezes nos deixam pendurados sem perceber para onde ou porque se moveu o narrador. Mesmo a interessante divisão em quatro secções marcadas pelas estações do ano, são exclusivamente usadas para definir a cronologia das ações, servindo pouco a estética narrativa não se sentindo na escrita nem nos modos descritivos. Tudo isto não nos surpreende tendo em conta ser uma primeira obra, e num cenário histórico como o descrito acima.
Voltando ao histórico e político, Salazar não é parte do romance, mas está lá na figura do Sr. Castro, sempre condescendente com os mais fracos, mas levando as suas ideias por diante, porque assim tinha de ser, o progresso económico assim o exigiria. Não incorro, contudo, no facilitismo de atirar para as costas de Salazar todas as condições de vida dos personagens do texto. Em 1941, o mundo ao tentar sair de uma terrível crise económica, 1929 (compare-se estes personagens com o de “As Vinhas da Ira” (1939) de Steinbeck), tinha chegado ao auge de uma devastadora 2ª Grande Guerra Mundial (1939-1945), o nosso principal parceiro económico e vizinho, a Espanha, acabava de sair destroçada de uma Guerra Civil (1936-1939), e por isso por mais "mago de finanças" que fosse Salazar e pela neutralidade advogada, só podia contar consigo e com o que ia extorquindo às colónias. Foram tempos terríveis em toda a Europa, e Portugal não teria sido exceção com qualquer outro governo. O que teria sido exceção foi o que se seguiu, pois a seguir ao final da 2ª Grande Guerra Mundial, a Europa, graças ao Plano Marshall, entrou em total ebulição para repor muito do que tinha sido destruído, e renovar a esperança num mundo novo, mas Portugal fechado na ideologia do “Orgulhosamente Sós” permitiu que o Chefe de Estado conduzisse o país para um fosso inimaginável.
A Mocidade Portuguesa numa saudação Nazi e a cruz das Cruzadas, por Bernard Hoffman* em 1940
Alegadamente até os pobres iam à escola, como se vê nesta imagem de Bernard Hoffman* de 1940, mas o livro de Soeiro mostra todo um outro cenário.
* As fotos pertencem a uma reportagem da revista Life feita em Portugal a convite de Salazar. A reportagem é completamente submissa, apresentando Salazar como o líder visionário que salvou o país da bancarrota, indo a ponto de afirmar que "a maioria do que é bom no Portugal moderno deve-se a Salazar", já o povo português não passa de uma cambada de "sonhadores" e "incapazes" que gostam de "negros" e "vinho". Uma reportagem encomendada, feita de interesses de parte a parte, aos EUA também interessava criar e manter boas relações com Portugal para ter acesso facilitado à Europa.
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