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abril 18, 2019

A civilização faz-se do contar de histórias

Há algum tempo que queria ler Mahfouz, o Nobel de 1988 dava-me alguma garantia de existir ali trabalho relevante, além de facilitar a triagem de uma cultura que tendemos a desconhecer. Comecei por procurar a Trilogia do Cairo mas como comecei a seguir a lista das 100 Obras do Instituto Norueguês do Nobel, e nesta vem este "Os Filhos do Bairro" (1959), acabei por optar por começar por aqui. Não li mais nada sobre o livro, apenas aceitei a recomendação da lista, entrei de olhos fechados, e mesmo assim o impacto foi grande. Provavelmente se tivesse lido algo mais sobre o que estava por detrás da mesma teria conseguido ler mais nas entrelinhas, contudo ler [1] no final continuou a permitir-me expandir a leitura e a sua compreensão, além de poder comparar as minhas interpretações com as mais consensuais. Mas se a história e sua premissa são belíssimas, imensamente poderosas e carregadas de significado, acabei por me entusiasmar mais ainda com a forma e estrutura (claro defeito da área que investigo).


Para mim, a premissa base de "Os Filhos do Bairro” assenta na explicação do mundo que temos como fruto do contar de histórias. A esta junta-se uma segunda, a mais debatida, da explicação do modo como surgiram as religiões e todo o seu impacto nos processo de civilização das sociedades. O registo escolhido é parabólico, num tom muito semelhante ao das “Mil e uma Noites” (800), mas poderíamos dizer também ao Velho e Novo Testamentos ou o Alcorão. A menção a estes últimos é intencional, já que a história que se conta tem por base as três religiões abraâmicas, ou monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Muitas das sínteses que se veem do livro falam sobre um conjunto de histórias, transparecendo quase a ideia de que se trata de um livro de contos, mas nada poderia ser mais errado. A estrutura apenas parece apresentar-se como um agregado de histórias, porque quando analisadas as suas relações, e compreendidos os seus objetivos e alcance damo-nos conta do facto de estarmos perante um romance não só completo, mas imensamente poderoso enquanto soma das partes. A estrutura é bastante distinta da matrioska das Mil e Uma Noites, porque funciona numa base de sucedâneo evolucionário, aparentemente natural mas com uns pós de sobrenatural, acabando por colocar em evidência, quase como representado sobre  um tabuleiro de ideias, todas as perspectivas religiosas e pós-religiosas. Existe algo de teleológico no romance, mas ao mesmo tempo diria que mais do que explicar o fim, Mahfouz está focado no chegar ao como, e é esse que acaba tornando a estrutura do romance (o sucedâneo de mundos evolutivos), tão mais relevante, porque acaba enunciado em si mesma aquilo que nos conta.

Ou seja, Mahfouz usa o contar de histórias, os seus processos, para literalmente discutir o mundo em que vivemos e aquilo que somos enquanto sociedade e espécie. Podia ter-se socorrido do ensaio argumentativo, mas preferiu a narrativa com todo o seu fervilhar dramático. Na verdade, o que Mahfouz faz é pegar nas qualidades narrativas, aquelas que tendemos a usar mentalmente para compreender o mundo, para nos dar a ver como funciona esse mundo. Este modo é muito mais eficaz que o ensaístico, já que usa a forma mental como construímos conhecimento, como nos relacionamos com o mundo, que contém sempre um lado humano que o ensaio, pelo seu traço racionalista, tende a deixar de fora. Por outro lado, o uso das histórias é ainda mais vital quando o foco da explicação do mundo assenta numa análise dos livros de histórias de cada religião, as mais importantes para a civilização em análise, ao que Mahfouz não deixa de juntar o correspondente atual, o Humanismo, com a sua ausência de Deus.

Naguib Mahfouz

Não vou detalhar os personagens, quem representam em cada história, porque efetivamente representam personagens da mitologia que suportam a nossa civilização. Aliás, é por causa dessa representação tão clara que a obra foi banida no Egipto durante décadas, mas pior do que isso, Mahfouz sofreu uma tentativa de assassinato [2] em 1994, 35 anos depois do livro escrito, o que dá bem conta do quão perfurante o livro consegue ser em termos religiosos, mas vou mais longe, o que  lhe aconteceu poderia ter sido mais uma das histórias contidas neste livro, o que torna todo o livro e o seu autor ainda mais coerentes e relevantes.


"Os Filhos do Bairro" é uma obra dotada de grande genialidade formal, que nos faz refletir em profundidade sobre a sociedade que temos, mas acima de tudo sobre aquilo que somos enquanto espécie. Não apresenta uma escrita muito elaborada, não sei o quanto se terá perdido na tradução, mas o cuidado estético e a mensagem poderosa fazem com que encaixe completamente no perfil do Nobel, ao lado de Saramago, Naipaul ou Marquez.


Nota: A Penguin criou todo um guia de questões [3] muito interessantes no apoio à leitura da obra de Mahfouz que pode servir clubes de leitura, assim como o uso das suas obras nas escolas.

Referências
[1] The Allegorical Significance of Naguib Mahfouz's, 1989 
[2] From ‘Children of the Alley: The Story of the Forbidden Novel’, 2019
[3] “Children of the Alley Reader”’s Guide, Penguin 

março 17, 2019

Leitura obrigatória: "Homem Invisível"

"Homem Invisível" (1952) de Ralph Ellison é um livro passível de infinitas interpretações que começam no título e nunca param de se nos oferecer à sua compreensão. Não é um livro de alegorias nem de filosofias, existe uma trama que nos agarra, é romance, são eventos que se sucedem numa história repleta de peripécias, que começam no sul quente dos EUA e desembocam na fervilhante Nova Iorque, mas não deixa de ser filosofia no seu estado bruto, aquilo que emerge do relatar do quotidiano, motivado pelo fulgor da profundidade e detalhe com que se preenche a explanação desse relato. Mesmo os momentos que fui considerando menos bons por alguma incoerência — diferença de tipos de discurso e alguns aparentes clichés narrativos — acabam no final fazendo sentido como um todo, evidenciando a narração adotada como inseparável da história e seus personagens.

Fotografia encenada com base no prólogo do livro "Invisible Man", criada por Jeff Wall, 2000, MoMA

Temos um personagem, negro, nos anos 1920/1930, nos EUA, de quem nunca sabemos o nome, que começamos por acompanhar num tradicional registo de romance de formação, mas que aos poucos vamos percebendo que de tradicional tem pouco. Inicialmente marcado por capítulos ou cenas da vida do personagem em crescimento, praticamente estanques, num tom diarista que choca com momentos de ação e espetacularidade, mas em que o espetáculo não é usado como fomento de heroísmo nem de anti-heroísmo, gerando verdadeiros anticlímaces, que no fundo acabam contribuindo para a o cerne do livro, a invisibilidade do personagem. A invisibilidade começa no interior do personagem, sendo o sentido mais imediato de leitura os efeitos que provoca no seu comportamento, mas que ao longo de todo o livro, e principalmente ao fechar do pano — a fuga e queda num buraco — acaba a refletir-nos a todos, àquilo que somos perante a sociedade.

"Compreender. Compreende? E bem pior do que isso. Os seus sentidos registam, mas o cérebro entra em curto-circuito. Nada tem significado. Ingere mas não consegue digerir. Já é... bem, Deus me valha! É só olhar para ele! Um zombi que caminha! Já aprendeu, não só a reprimir as emoções mas também a sua humanidade. É invisível, a encarnação viva do negativo, a realização perfeita dos seus anseios, senhor! O homem mecânico!"
Não raros momentos, pelo menos até meio, somos levados a pensar em autobiografia, memórias, mas com o desenrolar dos eventos vamos percebendo que essa é apenas uma secção do pano de fundo. Ellison deu várias entrevistas e escreveu, frisando que não se tratava de autobiografia, mas não era necessário, bastava desde logo atender às referências psicológicas e existenciais de Dostoiévski, góticas e fantásticas de Faulkner, ou alegóricas e pastorais de Twain. O registo move-se entre o realismo confessional, agravado pelo uso da primeira-pessoa, e a fantasia mitológica que roça o surrealismo, de onde originaram as minhas primeiras objeções, mas que no virar da última página, se percebe como sendo vitais para a total compreensão da dimensão da invisibilidade. É um livro que fala do humano em grande profundidade, para o que usa um tom descritivo do interior do personagem verdadeiramente perfurante. No entanto nada disso envolve grandes tiradas filosóficas, nem sequer grandes acontecimentos. Na banalidade do quotidiano o fantástico acontece, mas esse é-o apenas à superfície, já que rapidamente se converte em vulgaridade pela repetição entre passado, presente e potencial futuro.
"Ilusões que tinham acabado de ser varridas da minha cabeça: universitários que trabalhavam  para retomar os estudos no Sul; rapazes mais velhos, paladinos do progresso racial, cheios de planos utópicos para a construção de impérios comerciais negros; pastores cuja a única autoridade era a que conferiam a si próprios, sem igreja nem fiéis, sem pão nem vinho, corpo ou sangue; dirigentes comunitários sem seguidores; homens de sessenta anos ou mais, ainda presos aos sonhos pós-Guerra Civil, de liberdade dentro da segregação; seres patéticos que não possuíam nada, excepto sonhos de cavalheirismo, que tinham empregos insignificantes ou recebiam parcas pensões, todos fingindo estar envolvidos em empreendimentos mais vastos, embora obscuros, que influenciavam os comportamentos pseudo-aristocráticos de certos congressistas sulistas, diante dos quais se desfaziam em reverências e cumprimentos, como galos senis num quintal; multidão mais jovem pela qual sentia agora um desprezo apenas comparável ao que um sonhador desiludido sente por aqueles que ainda desconhecem que estão a sonhar" 
"Hoje em dia, o meu mundo é feito de infinitas possibilidades. Que frase! Ainda assim, é uma boa frase e uma boa atitude perante a vida; o ser humano não devia aceitar outra; isso, ao menos, aprendi debaixo da terra. Até que um grupo consiga colocar o mundo numa camisa de forças, essa definição é possível e viável."  
 Surpreende como um livro americano de 1952 consegue fazer-se valer de uma premissa tão contemporânea, e ao mesmo tempo adversa à própria cultura dos EUA, a arte de falhar. Num mundo e cultura tão direcionados ao sucesso só ganhar interessa, falhar nunca, criámos a vergonha e a desonra para quem falha, porque o falhanço é o símbolo da impossibilidade, incapacidade e da incompetência, espaço reservado a perdedores. Ora Ellison apresenta um personagem num romance de formação como homem novo e empoderado pela educação, mas que falha em toda a linha, sem contudo o apresentar como perdedor, já que é a partir desses falhanços na sua relação com o mundo, que ele cresce interiormente e aprende a conhecer-se. De certo modo, podemos aqui ler uma relação direta com as “Memórias do Subterrâneo” (1864) de Dostoiévski, no que toca à sua oposição ao mundo perfeito prometido pelo Comunismo através da apresentação de um mundo existencialista que pauta a condição daquilo que faz de nós seres-humanos.

Ralph Ellison [1913 — 1994]

É um romance magistral e, no entanto, é o primeiro do autor, mas se isso não for suficiente para nos impressionar, é também o único. Ralph Ellison publicou esta obra com 39 anos, depois de 7 anos completamente dedicados à sua escrita, e passaria os restantes 42 anos da sua vida a trabalhar no segundo romance que nunca publicaria, do qual nos deixaria mais de 2 mil páginas, de onde Charles R. Johnson acabaria por coligir 400 páginas e publicar o livro “Juneteenth”. Comparando com outros autores, não falando de torrenciais ou recordistas, é caso para nos interrogarmos porquê? Esta questão não se coloca apenas na literatura, surge em todas as áreas criativas, sendo a conclusão mais consensual: “que provavelmente o autor disse tudo o que tinha para dizer”. Aliás, voltando a Dostoiévski, as ideias dos seus cinco romances mais importantes — “Memórias do Subterrâneo”, “Crime e Castigo”, “O Idiota”, “Demónios”, “Os Irmãos Karamazov” — poderiam também talvez ter sido todas sintetizadas num único grande romance.

março 02, 2019

Os problemas da Gente Independente

Laxness criou uma obra carregada de atmosfera, muito graças ao modo como trabalhou o realismo, por meio de uma mescla entre o género épico que bebe na mitologia islandesa e o realismo social, criando uma espécie particular de realismo mágico. A escrita é boa, e a densidade das personagens estimulante, contudo estas acabam sofrendo pelos problemas emanados da história.

"Gente Independente" (1934/1935) Haldór Laxness

A escrita de Laxness é em vários momentos muito conseguida, capaz de nos embalar e levar pela narrativa adentro. Os personagens vão sendo lapidados à medida que a narrativa progride, sempre com mais e mais camadas psicológicas que nos permitem perscrutar vontades e sentimentos. A relação do épico com o romance realista tanto é capaz de nos fazer planar através do belo do universo representado, como de nos indispor pelo grafismo das descrições de violência e sordidez. No campo da estrutura, sente-se alguma falta de coerência, provavelmente pelo facto do livro não ser uma obra integral, mas antes a união de quatro partes escritas por Laxness em tempos e lugares diferentes, como atesta o fim de cada livro. Ainda assim, existe uma diferença bastante desfasada entre os dois primeiros livros, em que se relatam as vivências de Bjardur com cada uma das suas mulheres, e os segundos quase inteiramente dedicados a discussões sobre organização política e económica.

Mas é a história que complica o resultado desta leitura, no modo como Laxness apresenta o mundo que vê e diz conhecer. Se o livro como um todo acaba dando a volta e parecer querer justificar-se, o massacre a que somos submetidos por via da personagem principal é deveras angustiante, e em minha opinião, totalmente injustificado. Não tenho nada contra livros sobre pessoas fracas ou más, desde que exista um objetivo, desde que exista algo por debaixo de toda essa maldade. De outro modo, acabamos a questionar-nos sobre a razão de se dedicar um livro a dissertar sobre alguém que não tem nada para nos ensinar, nem sequer momentos de prazer para oferecer, levando-nos a pensar se o autor crê naquilo que descreve ou se pelo menos percebe o enviesamento daquilo que nos apresenta.


*** SPOILERS ***

A razão pela qual questiono a história tem que ver com Bjardur, o personagem principal, o idealista e grande lutador pela independência, que é representando como um irascível individualista, um autêntico sociopata, para quem a família — filhos e mulheres — contam nada. Ao longo de mais de 500 páginas somos brindados com uma personagem anti-humana que contra tudo e todos, morram ou vivam, se mantém imutável, fiel aos seus princípios, completamente obstinado. É apenas nas últimas 20 páginas, depois de ter ficado sem nada, de toda a sociedade o ter descartado, que resolve dar o braço a torcer e fazer uma volta de 180º. Vejamos:


Bjartur
1. Deixa a primeira mulher sozinha numa casota isolada num lugar ermo, e vai dias inteiros com amigos para montanha. Quando esta lhe diz que tem medo, e pede para deixar ao menos o cão, diz-lhe que nem pensar, que se aguente.

2. Repete, e deixa-a uma segunda vez, mas agora com ela grávida, para ir atrás de uma ovelha. Não existindo ninguém com ela, esta morre sozinha durante o parto.

3. Impede os filhos, e a segunda mulher de terem uma vaca, que estes queriam por causa do alimento do leite. A comunidade oferece uma contra a sua vontade, mas quando esta engravida, mata o vitelo da vaca sem piedade.

4. Depois mata a vaca, apesar da segunda mulher lhe dizer que seria como a matar a ela. A sua segunda mulher acaba também por morrer do stress.

5. Envolve-se numa situação de abuso sexual da própria filha (que não é filha de sangue) que a sua consciência interrompe.

6. Um filho desaparece, passados vários meses Bjartur encontra o cadáver, toca-lhe com um pau, manda-lhe uma luva, e deixa-o ficar a apodrecer ao ar, não contando nada aos irmãos nem a avó.

7. Despacha o filho mais novo para os EUA, de um dia para o outro.

8. Volta a deixar a família sozinha, e manda um suposto professor bebedolas tomar conta dos miúdos, que acaba a engravidar a sua filha.

9. Quando descobre que a filha está grávida, ela que pela limitação da educação recebida quase nem percebeu o que lhe aconteceu, deserda-a, manda-a embora de casa.

10. Nas repetidas vezes em que o segundo filho lhe diz para visitarem a filha, trata o filho abaixo de cão.

11. Na fase final arranja uma governanta, e quando esta se começa a envolver emocionalmente e disposta a ajudar a família, manda-a embora sem qualquer razão.

12. Obriga a mulher e filhos a trabalhar 16 horas por dia.
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Ou seja, independente aqui, só Bjartur, toda a sua família era tratada como escrava, todos às suas ordens. É uma autêntica aberração, nada disto se pode justificar com base na ideia de se ser independente. Os ideais, políticos ou outros, não se sobrepõem à empatia humana, apesar do individualismo tender para tal. Mas Bjartur não é apresentado como individualista, antes como anarquista e com graves problemas do foro mental, não muito longe daqueles sociopatas do interior dos EUA que impedem as famílias de irem à escola, ou não têm televisão nem telefone para não serem importunados pelo governo.

Quanto ao Nobel, não o compreendo, mas também só li este seu livro, e a tradução, apesar de direta dos islandês, deixa-me com a impressão de não ser tão rica em vocabulário como será no original.

fevereiro 10, 2019

A particularidade de Agustina Bessa-Luís

As primeiras páginas, de "A Sibila" (1954), desanimam a leitura, não parece um livro escrito em pleno século XX, recorda a escrita entrelaçada do início do século XIX que colada à ruralidade nacional apela inevitavelmente a Almeida Garrett. Cada frase surge trabalhada num detalhe e labor minuciosos, que provocam uma quebra na leitura, não apenas porque exigem foco e atenção, mas porque clamam sobre si importância e isolamento do todo. Eduardo Lourenço falou em neo-romantismo [1], tendi a concordar, já que se socorre da forma romântica de sobrecarregar as descrições com detalhe, impedindo o acesso imediato ao que se conta, mas fá-lo numa dimensão de atualidade, ainda que sobre uma realidade rural. Por isso senti que existia aqui algo distinto, não se tratava de mero romantismo, nem neo-romantismo, daí a dificuldade que a crítica tem tido no rotular da obra [2]. Repare-se como em oposição, Vitorino Nemésio com “Mau tempo no Canal” (1944), apenas uma década antes e também colado ao romantismo do século anterior, não se consegue desprender dos seus “tiques”, deslumbrando-se com a sua poética, da qual Agustina claramente se afasta. Não que me surpreenda, Nemésio foi um académico que escreveu um único romance, experimentou o modelo que tanto estudou, já Agustina é uma escritora que escreveria mais de cinquenta, em busca do definir da sua própria voz.


Agustina quebra propositadamente a fluidez do contar de histórias, obrigando a uma leitura racional em vez de emocional. Agustina nunca embeleza o texto, nem o ritmo, nunca procura a emoção do leitor, que é aquilo que Nemésio tanto objetiva, a marca impressiva de todo o Romantismo, no entanto tendo em conta o virtuosismo da escrita da autora, isso estava claramente ao seu alcance. Por outro lado, essa quebra criada não almeja à mera subversão narrativa, Agustina não destrói sentido, não fragmenta o fio narrativo nem nodifica os seus personagens, apesar de buscar a racionalidade tão cara ao modernismo. No entanto, os seus personagens são psicologicamente povoados, o realismo está presente com todo o seu savoir faire. Ou seja, Agustina constrói uma mescla entre romantismo, usando os largos caudais de detalhe, o modernismo, afastando o sentimento de cena, e o realismo, por via da ciência do sentir humano.
Sinopse:“No norte de Portugal, em finais do século xix, na propriedade da Vessada, há já muito tempo que são as mulheres que, perante a indolência e os sonhos de evasão que os homens alimentam, asseguram como podem a gestão da propriedade. Quina era uma adolescente franzina e inculta, que desde cedo participava nos trabalhos do campo ao lado dos trabalhadores. Com a morte do pai, com a propriedade quase em abandono, Quina passa a ter que ter uma ainda maior responsabilidade na administração da mesma. Graças ao seu esforço a todos os níveis, começa a acumular de novo a riqueza que seu pai desperdiçara, o que lhe vale a admiração da sociedade. Quina era uma pessoa lúcida, astuta e sempre em demandas, o que faz com que esta se torne conhecida por Sibila…”
 Temos então uma obra distinta, não admira o reconhecimento imediato por parte da comunidade de escritores e críticos portugueses. Contudo, nada disto torna o texto mais fácil. É uma leitura que requer atenção e dedicação. Sendo um livro pequeno, 250 páginas, acaba consumindo-nos tanto como um livro com o dobro das páginas. Acredito que se avisado, o leitor consiga dele extrair tudo o que tem para dar. Nesse sentido, é um excelente livro para trabalhar na escola, ainda que apenas nos anos finais do liceu, ou primeiros anos universitários, dada a exigência. Para os que defendem que a leitura deve ser apenas prazerosa, e que estes livros afastam os alunos da escola e da leitura, recordo que no caso de quem segue ciências — foi o meu caso — "ninguém" defende que o cálculo da derivada de uma função matemática ou da energia cinética na Física, devam ser prazerosas. A escrita é um processo, é um labor, e como tal deve ser estudada e compreendida nas suas diversas possibilidades, nomeadamente naquelas que o estudante sozinho tenderia a desconsiderar.


Para os mais impacientes, posso dizer que a primeira parte é mais descritiva, típica do início do realismo, quase naturalismo, com Agustina a contextualizar todo o porvir da protagonista, Quina, o seu ecossistema — espacial, familiar e condições psicológicas. Muitas personagens são introduzidas, cada uma com os seus detalhes, o que provoca algum desespero, e quase me fez desistir do livro, por o considerar arcaico. No entanto, a meio do livro Quina, a Sibilia de Agustina, assume o centro da narrativa e o grande conflito apresenta-se, conduzindo daí em diante o enredo até à moral final da obra. Se na primeira parte o arcaísmo era mais aparente, na segunda parte compreendemos que esta não é uma obra qualquer, a densidade do que se apresenta é fruto da forma de escrever única [3]. O que se conta não é extraordinário, mas o modo como se conta é singular, e por isso Agustina Bessa-Luís será sempre uma das grandes vozes das letras nacionais.


Referências
[1] Eduardo Lourenço (1963) “Agustina Bessa-Luís ou o neo-romantismo”, Colóquio. Revista de Artes e Letras , nº 26, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1963, pp. 43-52 (CS), http://coloquio.gulbenkian.pt/al/sirius.exe/artigo?740
[2] A Sibila, de Agustina Bessa-Luís, in PasseiWeb, https://www.passeiweb.com/estudos/livros/a_sibila
[3] A Sibila, de Agustina Bessa-Luís, in RTP Ensina, http://ensina.rtp.pt/artigo/a-sibila-de-agustina-bessa-luis/

janeiro 25, 2019

“David Copperfield” (1850)

“David Copperfield” foi a minha segunda incursão pelo universo de Dickens, depois de “Grandes Esperanças” (1861). Dickens é um ícone das letras britânicas, elemento fundamental dessa engrenagem literária, o Eça inglês, continuamente idolatrado pelos seus concidadãos que pela força da imposição da cultura anglo-saxónica no mundo tem feito de Dickens um ícone da cultura mundial. A sua escrita tem a vantagem de cruzar uma enorme eloquência com personagens e tramas simples, completamente liberto dos complexos e obscuros traços do romantismo, imensamente fluída e conhecedora das necessidades do enredo, o que faz com que facilmente consiga chegar a um grande público.


Quando li “Grandes Esperanças” deixei-me levar pelas interpretações aduzidas por muitos dos estudiosos da sua obra, e acabei aceitando algumas fragilidades como qualidades. Contudo desta vez furtei-me a aceitar outras interpretações, desde logo porque experimentei enfado durante 2/3 da leitura. Dickens escreve de forma belíssima, mas alonga-se, estende-se, dilata desnecessariamente as tramas que vai urdindo. Podemos pensar que o facto de estarmos a ler uma obra com mais de 150 anos torna inevitável o choque de velocidades a que se vive e por consequência pensa e sente. Ainda assim e descontando esse fator, não chega, nomeadamente se comparado com outras obras desta época, considero existir algo mais por detrás desta forma de escrever.

Dickens iniciou-se na escrita como jornalista, e o seu primeiro livro “The Pickwick Papers” (1837) surge a partir de um conjunto de textos publicados mensalmente num jornal como crónica ficcional seriada, a partir do que depois se compilou o seu primeiro livro, tal como hoje conhecemos. Todos os seus restantes livros seguiram o mesmo modelo, o que volvidos mais de 10 anos, e mais de 10 obras, terá contribuído para a construção de um modo perfeitamente rotinado de criação e escrita. “David Copperfield” acusa terrivelmente o impacto dessas rotinas, transformadas em artifícios e expedientes para manter a chama do leitor acesa. Neste sentido, temos imensos capítulos que podemos rotular de “enchimento", em que nada acontece, em que o autor se detém em particularidades completamente irrelevantes para a trama central, ou até mesmo para os protagonistas da obra. Não sendo Dickens um esteta nem um filósofo, estes momentos sentem-se com demasiado impacto, porque não acrescentam nada a trama, mas também não acrescentam nada ao romance em si, à sua cosmovisão.

Por outro lado, este modo rotinado de escrever tende a perder-se nos mecanismos narrativos de manutenção do sistema de relações causais, numa lógica de construção de consistência à superfície, mas que secundariza o aprofundamento de nós narrativos e nomeadamente de personagens, já que exigem toda uma outra postura investigativa e de dedicação de quem escreve. Assim, e apesar do romance ter mais de mil páginas (nas edições clássicas), e de ser inteiramente dedicado a um único personagem, David Copperfield, conseguimos chegar ao final da viagem sem conhecer completamente David, ou melhor, conhecendo apenas o David bondoso, generoso e caridoso, podemos quase dizer, David o santo que caminha sempre em frente e no caminho certo. Nada ficamos a saber sobre o David que não gosta, que detesta, que se revolta contra as injustiças, que se quer vingar, como se esse David não existisse, fosse homem pronto a ser canonizado, apesar de todas as maldades, algumas autênticas desumanidades, que lhe vão sendo impostas tanto pelos mais próximos, como pelos mais distantes e indiferentes.

Dickens escreve de forma belíssima, merece com certeza todo o lugar de destaque nas letras britânicas, até porque li apenas dois livros e o homem fez tanto mais para além dos livros que escreveu. Mas não nos deixemos seduzir pelo endeusamento do ícone para em tudo ver apenas qualidades e excecionalidades.

dezembro 31, 2018

Medeia (431 a.c.)

Uma viagem de 2500 anos para encontrar um problema humano que continua igual a si mesmo, capaz ainda hoje das mesmas consequências trágicas. Antes de se iniciar o relato de Eurípides, Medeia terá traído o pai e morto o irmão para ajudar Jasão e os Argonautas, abandonando depois o seu país com Jasão, de quem viria a ter dois filhos. O relato começa com Medeia já na Grécia, um país estranho para ela, descobrindo que Jason decidiu abandoná-la para casar com a filha de Creonte, rei de Corinto. O que sucede depois só pode ser tragédia, mas porquê?

"Medeia e a Urna" (1873) de Anselm Feuerbach

De tanto que se poderia destacar nesta pequena peça de Eurípedes opto por me focar nesta questão porque ao longo dos anos me tenho debruçado invariavelmente sobre ela, dada a intensa emocionalidade que tende a gerar, sendo grandemente responsável por muito daquilo que conhecemos hoje como violência doméstica. Aliás, não é por acaso que nos meus 30 livros preferidos tenho “Os Dias do Abandono” (2002) de Elena Ferrante, o livro que me veio de imediato à mente assim que comecei a “ouvir a voz” de Medeia.

A meio da peça Jasão apresenta as suas razões para casar com a filha do rei, que como diz o Coro e Medeia, não passam de bem falar, sem substrato. Repare-se como é este o cerne: a razão para o abandono. Porque o casamento não é uma cerimónia, é um contrato, um contrato que requer uma razão para ser quebrado. O problema é que a razão precisa de satisfazer ambas as partes no mesmo momento, e isso só muito raramente acontece. Assim, quando não existe o encontro e a sincronia entre as partes para aceitar o fim, abandonamos o reino da razão e da lógica, e entramos pelo reino exclusivo da emoção adentro. Aí começam a surgir os grandes substantivos — traição, deslealdade, engano, impostura — que levam ao pior do humano: a vingança, a punição, a destruição.

agosto 31, 2018

Ilusões Perdidas de Balzac

As ilusões discutidas são tantas que é difícil fazer uma resenha sobre tudo aquilo que trespassa este livro, mas diga-se que sem uma reflexão sobre o que se leu, uma análise do todo e daquilo que o autor parece querer dizer, podemos acabar por ficar à porta das intrigas e conflitos, muito bem urdidos, mas não propriamente o mais consequente da obra. A história terá uma base forte autobiográfica, mas mesmo assim Balzac não se limita ao seu pequeno mundo, coloca em questão um jogo de caminhos, encruzilhadas e soluções que nos falam da teia com que a sociedade nos enlaça e da qual cada um de nós tem de, da melhor forma, desenvencilhar-se. "Ilusões Perdidas" (1843) não é um simples "coming of age" ou "bildungsroman", é antes um mapeamento das diferentes possibilidades proporcionadas para o devir em sociedade.


A obra centra-se em dois personagens, aparentemente opostos, mas muito similares em termos de desejos, motivados não pelo que em si sentem, mas pelo que a sociedade lhes parece exigir, pelo que o mundo lhes pede que sejam, façam, devenham. Existe toda uma crítica não aos personagens, mas aos seus modelos do mundo, à ideologia que os sustenta, que os faz rodar e viver. Se David Séchard sonha em inventar um novo tipo de papel, não é porque o seu mote seja a criatividade ou a invenção, mas é apenas porque lhe renderá fortuna. Já Lucien parte à procura de aclamação para o seu romance, quando aquilo que na verdade lhe interessa é a aclamação da sua pessoa e as benesses que essa aclamação lhe possa oferecer. De maneiras diferentes, ambos acabam compreendendo que o mundo é complexo e difícil de domar, e se David parece aceitar e deixar-se domar, Lucien Chardon não aceita, percorrendo a saga igual a si próprio do início ao fim, e até para além deste livro (este livro tem uma segunda parte, menos conhecida, em "Esplendores e Misérias das Cortesãs" (1847)). Se num dos caminhos as ilusões se perdem e a resignação toma lugar, no outro caminho, as ilusões que se perdem não são as de quem segue o caminho, mas as de quem, como nós, vai acreditando que com os erros se aprende, e que tarde o cedo quem erra e sofre corrigirá o caminho, até que compreendemos que existe quem nunca aprende, perdendo nós a ilusão de ver a pessoa crescer e transformar-se.


Uma das questões que me coloco face a Balzac é o porquê de uma "Comédia Humana" com quase uma centena de volumes. Balzac acaba por explicar nas suas próprias obras, ao construir personagens a partir da realidade vivida e experienciada. Porque se Rastignac (de "Pai Goriot") e Lucien ("Ilusões Perdidas") são ambos jovens à procura de ascensão social parisiense, Goriot (o pai de "Pai Goriot") e Jérôme-Nicolas (o pai de "Ilusões Perdidas"), são ambos pais dessa “Comédia”, mas em polos afetivos completamente opostos. Aquilo que mais nos toca em "Pai Goriot" é a figura desse pai, que aqui Balzac mostra de ângulo diametralmente oposto, totalmente ignóbil e desprezível. Por outro lado, Balzac não se coíbe de ir reutilizando personagens de uns romances para os outros, Rastignac surge aqui e conversa com Lucien, tal como o prisioneiro fugitivo de "Pai Goriot", que depois assumirá o papel de protagonista na segunda parte das Ilusões, em "Esplendores e Misérias das Cortesãs". Balzac concebeu o seu mundo literário, a "Comédia Humana", como um mundo paralelo, espelho da realidade, mas construída à sua vontade e desejo, permitindo-lhe enfatizar, pintar, o mundo como ele próprio o via. Um desses destaques é o choque entre a pobreza e a riqueza, e os modos como se passa de um lado para o outro, daí que a ascensão social seja uma constante nos seus livros.

Tendo falado dos principais personagens, David e Lucien, quero apenas destacar os seus dois mundos, duas realidades tão distintas, mas que pouco ou nada mudaram em 175 anos. Por um lado, David tentando inventar e patentear uma revolução tecnológica no mundo do papel (em nada diferente de uma Apple, Facebook ou Google), por outro, Lucien tentando afirmar-se no mundo das artes, dando conta do quão estas se definem pela rede de amizades, mais do que pelo mérito. Ambos em busca da ascensão, da liberação da miséria, em busca de algo melhor, respeitando as regras, tentando aprender com os seus erros. Existe aqui uma luta dual que Balzac explora.

Marcel Proust agarrou-se à segunda parte, à arte e sociedade. Em certa medida fico a pensar que Proust escreveu "Em Busca do Tempo Perdido" como resposta a "Ilusões Perdidas". Ambos, Proust e Balzac, criticam o vazio da sociedade e o modo como só se é aceite e aclamado estando bem posicionado nas redes de "amigos" (as cunhas, o networking, as alianças, os lados da barricada). Mas Balzac parece quase submeter-se a esse desígnio, aceitando-o como uma inevitabilidade das sociedades humanas, parecendo desistir da possibilidade de poder existir algo mais na arte. Ora Proust escreve 7 tomos, abrindo e fechando um ciclo de ideias, que explicam o que tem a arte e a literatura para nos oferecer. Proust vai em busca da transcendência do sentido da literatura, para nos levar a acreditar no desígnio da mesma. Se Balzac atira tudo para a lama, Proust levanta e ergue de novo o edifício da arte literária, mostrando um mundo que só a ela pode oferecer, acabando deste modo a demonstrar como a própria obra de Balzac encarna em si mesmo essa transcendência.

No outro caminho, Balzac persegue os ideais capitalistas, da mais valia, da diferenciação e ganho de valor face à concorrência, colocando mesmo David a explicar a diferença entre o mercado Europeu e o Chinês, num discurso que se fosse hoje lido num jornal, seria aceite como tendo sido expresso nos nossos dias. Se Balzac parece a momentos acreditar nas capacidades inventivas do humano, na capacidade de nos deslocarmos no sentido do melhor para todos, de um suposto progresso, esse mesmo caminho surge aqui amputado, e agora não apenas pela falta de conhecimentos e rede, mas pela banca e pelo estado. A banca que empresta sob a condição de receber o dobro daquilo que emprestou, e o estado que tudo faz pelos direitos de quem detém o poder e empresta, esquecendo os mais frágeis e em piores condições de cumprir, impondo-lhes mordaças que os afastam da sociedade justa que tanto proclamam. Por isso mesmo a admiração expressa por Marx várias vezes à “Comédia” de Balzac.
"A mão de obra não vale nada na China; ali uma jornada vale três soldos, e assim os chineses podem pôr o seu papel, folha a folha, ao sair da forma, entre as lâminas de porcelana branca aquecidas, por meio das quais o prensam e lhe dão esse brilho, essa consistência, essa leveza, essa suavidade de cetim que o torna no primeiro papel do mundo. Pois bem! É preciso substituir o processo chinês por uma máquina. Com as máquinas conseguiremos resolver o problema do baixo custo que a China consegue à conta do baixo preço da sua mão de obra." (p.119)
“Como um grande estabelecimento bancário tem todos os dias, em média, uma ‘Conta de Devolução’ num valor de mil francos, recebe diariamente vinte e oito francos pela graça de Deus e pelas leis da Banca, uma formidável realeza inventada pelos Judeus, no século XII, e que hoje em dia domina os tronos e os povos. Por outras palavras, mil francos rendem então a esse estabelecimento bancário vinte e oito francos por dia ou dez mil e duzentos e vinte francos por ano. Se triplicarmos a média das ‘Contas de Devolução’, veremos que o rendimento é de trinta mil francos, vindo de capitais fictícios. Assim, não há nada que se cultive mais carinhosamente do que as ‘Contas de Devolução’.” (p.559)
As ilusões são atiradas pela janela, mas já sabíamos disso quando começámos a ler, estava escrito no título, mas nem por isso nos custa menos ver o quão desencantado Balzac se terá sentido para o escrever. "Ilusões Perdidas" pode já não ser atual em termos legislativos, mas deveria talvez ser uma obra obrigatória de leitura, não como mero grito de alerta aos jovens e seus sonhos de fama (pense-se no mais recente sonho de muitas crianças: ser YouTuber) mas como grito à sociedade nas suas múltiplas capacidades e necessidades — inventores, artistas, jornalistas, banqueiros — mas acima de tudo, governadores e políticos.
“É difícil (..) ter ilusões sobre qualquer coisa em Paris. Aqui há impostos para tudo, vende-se tudo, fabrica-se tudo, até mesmo o sucesso.”
Uma nota final sobre a leitura. As primeiras 50 páginas podem parecer paradas, Balzac tende a exceder-se na contextualização das personagens, e volta a fazê-lo sempre que alguma nova surge, mas o livro vai ganhando velocidade a ponto de se tornar imparável. Posso dizer que demorei uma semana para passar a primeira parte, mas num dia li toda a segunda metade.

agosto 18, 2018

As 1001 histórias

O livro “As Mil e Uma Noites” é hoje parte do imaginário da humanidade. É uma das poucas obras exteriores ao ocidente, geograficamente, a ter neste penetrado e assumido estatuto de clássico e de texto canónico. Pela sua própria génese está ele próprio para além da definição geográfica, já que as histórias que o constituem provêm de vários países e continentes, desde a China à Índia, passando por África, focando-se maioritariamente em todo o Médio Oriente (Arábia e Pérsia), ao que se juntou, na reta final, também a mão europeia. Tendo em conta esta dimensão geográfica, facilmente se depreende que não foi uma obra criada por um autor único, daí que esta se considere fruto de autor anónimo. Como tal também não foi escrita num único ano, nem século, convencionou-se que a primeira versão terá surgido no século IX, mas desde então foram surgindo, em cada século, versões diferentes com acrescentos, alterações e variações, até à chegada da obra à Europa no século XVIII, sem que ainda hoje se possa definir qual a versão original e definitiva. Dito tudo isto, percebe-se também que um dos maiores atributos académicos deste texto assenta exatamente na sua arqueologia, tentar perceber a origem dos vários contos tanto no tempo como na proveniência geográfica, assim como na composição do próprio livro (serão mesmo 1001 contos? teriam uma ordem, qual? quais partiram da oralidade e quais da escrita?). Para todas estas questões faltam respostas conclusivas, o que desde logo abre todo um imenso cenário de investigação possível. Para a maior parte de nós, mais interessados no livro e suas histórias, do que na história arqueológica, não precisamos de o ler para o conhecer já que desde crianças somos presenteados com o seu universo — desde os livros infantis, à animação, cinema, teatro e jogos — mas, e por causa disto mesmo, a sua leitura acaba sendo imensamente prazerosa graças a toda essa nostalgia. É inevitável sentir alguns arrepios durante a leitura, pelo modo como vamos desenvolvendo associações entre o que lemos e as experiências passadas vividas com cada história, desde Ali Baba aos tapetes voadores, passando pelos sultões, génios e concubinas, aos mágicos poderes, e animais fantásticos em terras distantes e exóticas.

Edição de "As 1001 Noites" pelo Expresso e Alêtheia de 2017

No campo da análise estritamente literária, o livro oferece pouco mais além do seu interesse arqueológico e da popularidade global conquistada. O seu lado fantástico serve bem as histórias de aventuras e policiais, assim como o lado romance serve o amor, intriga e vingança, e nalgumas versões o erotismo. O texto em si constitui-se de imensa repetição, tanto de temas, como conflitos, personagens, cenários e claro estruturas narrativas. A exceção surge na instigante macroestrutura da obra, sempre citada e admirada como referência da literatura e que se resume no conceito de "frame story" ("história moldura"). Podemos então dizer que o maior atributo literário de " As Mil e Uma Noites" é a sua "história moldura", que acaba espelhando a nossa própria leitura, e que se define assim:
Um rei árabe, depois de traído pela mulher, inicia uma vingança que consiste em todos os dias desflorar uma virgem e no dia seguinte mandá-la decapitar. A chacina produz efeitos devastadores na região até que surge Xerazade que se propõe terminar com a mesma, a sua arma é: contar histórias. Assim, Xerazade casa-se com o Rei e durante toda a primeira noite conta-lhe uma história, chegando ao dealbar, não termina a história porque, diz ela, não tem mais tempo, deixando a conclusão pendurada (criando aquilo que hoje definimos como gancho narrativo ou "cliffhanger"), o Rei claro, adia a sua morte, para poder ouvir o final na noite seguinte, mas na noite seguinte Xerazade repete a estratégia, já que  inteligentemente vai contando as histórias por meio de elos que abre e fecha em função do controlo que pretende da atenção do rei. 

Parecendo simples, a moldura ganha enorme significado literário, pelo poder que metaforicamente concede à literatura, nomeadamente ao contar de histórias. No campo do desejo e prazer, temos o ouvir de histórias colocado ao nível dos prazeres da carne, com o Rei a preferir continuar a ouvir histórias em vez de consumar os prazeres da carne com virgens do seu reino. No campo político, as histórias assumem a capacidade de apaziguar a ira e a sede de vingança. Este último ponto é talvez o mais relevante, e olhando à evolução da sociedade, nomeadamente ao surgimento de novos media ao longo do último século, que têm servido para aumentar exponencialmente o contar de histórias, fazendo com que chegue a todo o lado e em doses maciças (livros, cinema, televisão, videojogos, etc.), e cruzando esta evolução com a contínua diminuição da violência entre humanos, como fica patente no trabalho de Steven Pinker, podemos assumir esta receita prescrita pelas “As Mil e Uma Noites” como válida. Deste modo podemos assumir as " As Mil e Uma Noites " como homenagem, diria mesmo, monumento literário ao contar de histórias.


Em termos de manutenção do interesse do leitor, as "As Mil e Uma Noites" presenteia-nos com todos os tipos de artifícios narrativos, principalmente aqueles que reconhecemos como mais ligados aos géneros de aventura, policial e fantástico. Desde os ganchos, já acima referidos, ao célebre "whodunit" ("who done it", ou seja, quem foi, ou quem matou), passando pelo hitchcokiano "MacGuffin" (objetos perseguidos pelos protagonistas sem grandes explicações, e muitas vezes irrelevantes para a trama), todos ao serviço do contar de histórias, da gestão do interesse e curiosidade dos leitores. Diga-se que são aqui usados de modo hábil, já que não raras vezes parei a olhar para as páginas, dizendo para mim, "que coisa estrambólica", e, no entanto, a curiosidade de saber o que se seguiria, mantinha-me ali preso ao virar de página. Estruturalmente a forma predominante é a dos ciclos de histórias dentro de histórias, criando matrioskas narrativas, tal como a própria história-moldura. Assumimos o lugar do Rei, ouvintes, seguindo atrás do contínuo debitar de histórias de Xerazade, com a nossa curiosidade sempre em busca de saciedade, que como “As 1001 noites” faz questão de demonstrar é insaciável, e por mais redundantes e repetitivas que sejam as narrativas acabam servindo o desejo intrínseco ao ser humano de querer conhecer e saber infinitamente mais.


Esta moldura-história é relevante, não pela originalidade, porque até já a "Odisseia" usava a abordagem, mas porque serve de cola a contos altamente díspares, ao contrário dos quadros da "Odisseia" que estão organizados para um fim, e assim mantém o nosso interesse sempre fresco já que de cada vez que uma história começa a perder-nos, entra Xerazade para nos recordar que está ali atenta ao nosso interesse. Não se espere, contudo, um diálogo profuso de Xerazade com o rei, ou melhor connosco, leitores, não esqueçamos que esta é uma obra fruto de vários autores e de vários séculos. Pedir-lhe essa força de unificação de enredo está para além das suas possibilidades. Por outro lado, também não se enalteça, como não raramente vemos fazer, as suas propriedades e originalidades, como já dissemos, milhares de anos antes tivemos "Gilgamesh", "Ilíada", “Odisseia”, “Eneida”, e tantas e tantas peças de teatro.


Quanto a versões, é difícil aconselhar. Passei os olhos por várias nacionais, brasileiras e inglesas, mas de tanta diferença entre elas acabei concluindo que cada tradutor opta por criar a sua. A mais referenciada, porque a primeira a dar-nos a conhecer o texto, é a de Antoine Galland, traduzida para quase todas as línguas, e foi essa que eu li na edição publicada pelo jornal Expresso com a Editora Alêtheia de 2017. É uma edição mais curta, com o texto imensamente limado, nomeadamente no campo do erotismo e violência, e por isso acusada hoje de faltar à verdade do texto original. Embora do que pude ler em edições, ditas traduzidas diretamente do Árabe sem arestas limadas, não vi propriamente nada de revolucionário. Em Portugal a E-Primatur publicou no ano passado o primeiro volume do que parece ser a primeira tradução nacional diretamente do árabe, por Hugo Maia. Li algumas entrevistas com o tradutor, e não gostei da arrogância no modo como aponta o dedo às outras edições, esquecendo que se “As Mil e Uma Noites” são o que são devem-no a todas essas múltiplas versões e não ao texto original. Porque o texto, dito original, está longe de poder definir-se como coeso, uno e fechado. Foram múltiplos os intervenientes no texto durante séculos, por isso nunca poderemos ter uma versão definitiva. Vou mesmo ao ponto de dizer que os contos de "Ali Baba e os 40 Ladrões" e "Aladino", de que parecem existir provas de terem sido acrescentados apenas no século XVIII por Galland, devam ser vistos como parte da tapeçaria que constitui a história da construção da obra.


“As Mil e Uma Noites” deve ser visto como conjunto de histórias que abre portas para um imaginário fantástico de puro divertimento, sem preocupações de aprofundamento moral ou outro, e por isso aconselhável a quem busca o escapismo, nomeadamente os mais novos (na versão menos crua). Ao contrário do que fui lendo em algumas resenhas, espero que não tentem ver nesta obra uma janela para a cultura do médio-oriente, pelo menos não a atual. Sim, existem proximidades, mas claramente ampliadas pela sede de exotismo, ponhamos muito sal na fervura, assim como devemos pedir aos nossos amigos persas e árabes que façam o mesmo quando lerem o nosso D. Quixote ou Robin dos Bosques.


Para fechar, deixo uma lista das histórias que me mereceram maior interesse. Como disse, li uma versão mais resumida, já que existem versões bastante maiores, mas nem todas as histórias são tão interessantes, muitas delas são bastante inconsequentes, outras até incoerentes, por isso aqui fica uma seleção daquilo que dá conta do espírito da obra e das suas maiores conquistas:



1 - Xarir e Xerazade
A história-moldura, responsável pelo lançar de todas as restantes histórias.

2 - História das Três Maçãs
Uma história de tipo policial, em que a trama é muito bem urdida, fazendo-nos sentir a dor dos dilemas.

3 - O Vizir e o Sábio Duban
A história que deu a ideia de colocar veneno no virar de páginas a Umberto Eco para o "O Nome da Rosa".

4 - O Pescador e o Génio
A fantasia dos reinos invisíveis e dos peixes multicolores.

5 - O Sonhador
A provável génese da parábola de troca de papéis entre o rico e o pobre.

6 – Os Três Príncipes e a Princesa Nouronnihar
A história em que surgiu o tapete voador e o telescópio que permite ver o que se desejar mentalmente.

7 - Ali Baba e os Quarenta Ladrões
Ainda que se possa dizer que não é pertença do livro, que contenha inovações literárias fora de época, é uma das histórias mais emblemáticas do lote, a ponto de as suas palavras mágicas “Abre-te Sésamo” se ter tornado sinónimo de todo o livro.

8 – As Sete Viagens de Sinbad
Ciclos de histórias sobre as aventuras de um marinheiro destemido, a fazer lembrar, embora sem a mesma profundidade, as aventuras de Gulliver.

9 – A Maravilhosa Lâmpada de Aladino
A história em que o génio e sua lâmpada são os verdadeiros personagens principais.

10 – O Terceiro Dervixe
Os lugares mágicos e as portas que nunca devemos abrir.

agosto 12, 2018

"As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" de Michael Chabon

Pode definir-se como romance histórico, ou melhor, pretensamente histórico já que apenas o pano de fundo dos eventos e geografia são reais, a trama é fruto da invenção de Michael Chabon. Não segue a linha dos atuais documentários ficcionados (mockumentaries) já que o objetivo não é satírico, mas continua a ser histórico, mais como obra criativa de homenagem, seguindo explicitamente o exemplo de Orson Welles com "Citizen Kane" (1941). Enquanto Welles usa a vida real de William Randolph Hearst para dar corpo ao seu protagonista Charles Foster Kane, Chabon usa a vida de Jack Kirby para criar Joe Kavalier. Kirby foi um dos principais mentores da banda desenhada de super-heróis do século passado, um dos maiores expoentes da Era Dourada, entre 1930 e 1950, criador de vários super-heróis que ainda hoje pululam o imaginário global — Quarteto Fantástico, Homem de Ferro, Thor, Hulk, X-Men, Os Vingadores, Doutor Estranho, Pantera Negra, Feiticeira Escarlate, Homem-Formiga, Nick Fury.  Chabon não se ficaria pela primeira camada, a da pessoa do criador, optando por oferecer-lhe a criação de um super-herói que nomeia de Escapista, sendo também este decalcado da realidade e criação de Kirby, o Capitão América. Para quem conhece as origens do Capitão América facilmente depreenderá o que move o Escapista e acaba assim a suportar a introdução dos efeitos e tragédias da Segunda Guerra Mundial nesta obra.

A cena amplamente descrita como o nº1 da revista "O Escapista", não é mais do que a cena do nº1 da revista "Capitão América" de 1941.

A partir deste primeiro parágrafo pode-se compreender desde já, não só o modelo utilizado, mas também a complexidade de inter-relações existentes na obra de Chabon que obriga a uma leitura informada, ou seja com um bom lastro de contexto presente para se poder fruir completamente a obra. Desengane-se aquele que atraído pelos super-heróis espera encontrar aqui uma leitura fácil, rápida ou superficial. Ao longo das quase 700 páginas somos continuamente atirados para um mundo de referências reais: à BD, à sua linguagem expressiva, aos seus temas e seus problemas de afirmação enquanto arte; aos super-heróis e seus criadores, as suas editoras e editores; assim como ao tecido social americano dos anos 30-50 do século XX feito de discriminação da mulher, do desprezo pelo trabalho criativo, ou da enorme violência moral e física contra a homossexualidade; e ainda aos efeitos devastadores da Segunda Guerra Mundial sobre a comunidade judaica na Europa, centrado em Praga, com Portugal a servir de porta de saída para muitos refugiados, e os EUA a declinarem a aceitação desses refugiados. A tudo isto podemos ainda acrescentar personagens reais que vão passeando ao fundo e por vezes dialogando com os nossos personagens tais como Salvador Dali, Orson Welles, Eleanor Roosevelt, Stan Lee, Will Eisner, ou Fredric Wertham (autor do livro, "Seduction of the Innocent" (1954), responsável pela polémica social à volta da violência na BD).

O Empire State Building em Nova Iorque é o principal cenário da história, e motivo da capa da edição americana.

A capa portuguesa, assim como o título usado, são muito maus, não ajudando em nada à promoção do mesmo. Aliás não admira que o livro, com o número considerável de páginas que tem, esteja à venda por um valor tão baixo.

Na contra-capa do livro fala-se em Nabokov, o que me parece completamente despropositado, Chabon enreda-se muito, usa metáforas nem sempre muito conseguidas, nomeadamente no campo do olfacto, e apesar de alguma crítica catalogar a estrutura como pós-moderna, considero-a antes frágil e pouco suportada pelas intenções do autor. Mas se faço estes reparos é mais pelos prémios e elogios recebidos que poderiam passar a ideia de perfeição, já que na verdade a escrita apresenta um nível bastante elevado de elaboração e maturação. Quanto a rotularem o livro no género Épico não me choca. A história atravessa várias décadas, permitindo-nos acompanhar a vida de dois grandes criadores de banda desenhada, focando-se na arte mas também nas suas vidas, e no modo como as suas próprias tragédias alimentaram a sua arte. O romance atravessa uma parte importante da história da 9ª arte, assim como da história da América e da Europa, é impossível ficar-lhe indiferente, e não sentir que uma parte do que aqui se relata é História de que todos somos feitos. Claro que aqueles que, como eu, iniciaram a sua paixão pela leitura com muitos dos personagens imaginários aqui referenciados sentirão mais de perto, mas como disse antes o livro é muito mais do que BD, é uma resenha histórica de um período da nossa história que teve um lado destrutivo e mau, situado na Europa, que acabou por contribuir para um outro lado bom e construtivo na América.

Este, como muitos outros livros vêm colocar o dedo numa ferida que queremos esquecer mas que não podemos. A Segunda Guerra não foi apenas estúpida por todas as pessoas que matou e violentou, mas também porque acabou demonstrando aos seus promotores o quão errados estavam, já que a fuga dos judeus para os EUA contribuiu fortemente para estes se tornarem na super-potência que hoje ainda são. Foi a massa cinzenta de excelência de judeus que habitavam a Europa e daqui conseguiram escapar que fez com que os EUA se tornassem grandes criadores de banda-desenhada (Jerry Siegel e Joe Shuster, Jack Kirby e Joe Simon, Will Eisner, Stan Lee) assim como de cinema, de ciência e tecnologia. Aliás, isto mesmo seria reconhecido por Churchill quando depois de receber Einstein como refugiado em Inglaterra acedeu ao seu pedido de trazer mais cientistas judeus da Alemanha para Inglaterra. Ironicamente, Churchill não conseguiria aprovar a naturalização de Einstein no parlamento inglês, tendo este acabado por rumar aos EUA, país em que finalmente se naturalizaria após ter renunciado a cidadania alemã.

Na senda ainda do reconhecimento destas capacidades empreendedoras das comunidades, a leitura desta obra permite-nos aceder a um dos momentos de puro empreendimento tão tipicamente impulsionado pelas lógicas mercantis americanas. Repare-se como ao contrário da Europa, a sociedade não se moveria pela qualidade da BD, mas pelo seu lado comercial, pelo interesse e popularidade das obras criadas. Já antes, no início do século XX, tinha sido assim com a indústria do cinema, e a diferença entre a criação americana e europeia que se denota até aos dias de hoje. E repare-se como este cenário se volta a repetir nos anos 1970 com a indústria dos videojogos. Aliás, se Chabon estabelece várias relações entre o Cinema e a BD, eu não deixei de estabelecer imensas com os Videojogos ao longo de toda a leitura. Sobre isto deixo uma discussão imensamente pertinente sobre a linguagem e aceitação social da BD que hoje se aplicaria de igual modo aos videojogos:
“It was that Citizen Kane represented, more than any other movie Joe had ever seen, the total blending of narration and image that was—didn't Sammy see it?—the fundamental principle of comic book storytelling, and the irreducible nut of their partnership. Without the witty, potent dialogue and the puzzling shape of the story, the movie would have been merely an American version of the kind of brooding, shadow-filled Ufa-style expressionist stuff that Joe had grown up watching in Prague. Without the brooding shadows and bold adventurings of the camera, without the theatrical lighting and queasy angles, it would have been merely a clever movie about a rich bastard. It was more, much more, than any movie really needed to be. In this one crucial regard—its inextricable braiding of image and narrative— Citizen Kane was like a comic book. 
"I don't know, Joe," Sammy said. "I'd like to think we could do something like that. But come on. This is just, I mean, we're talking about comic books." 
"Why do you look at it that way, Sammy?" Rosa said. "No medium is inherently better than any other." Belief in this dictum was almost a requirement for residence in her father's house. “It's all in what you do with it.” 
[Não tendo acesso ao texto português em formato digital deixo o excerto em inglês]
Para fechar, uma leitura mais abstraída e focada no conteúdo. Chabon opta por enlaçar o universo da BD com o do ilusionismo, nomeadamente com Houdini e as suas artes do escapismo. São ainda hoje memoráveis as proezas de Houdini a escapar-se de correntes e caixas debaixo de água. O protagonista aqui é aficionado da arte, e o super-herói criado por ele faz homenagem ao escapismo. Ora a BD, especialmente de super-heróis, assim como toda a fantasia e ficção-científica, são comumente conotadas com o escapismo, neste caso o mental e não físico. Ler certos géneros de histórias podem conduzir a um certo escapismo da realidade, o que pode ser visto como crítico e o livro fala dessa preocupação por parte da sociedade, por poder representar uma tentativa de fugir ao seu quotidiano, de se furtar às suas responsabilidades sociais. Do meu ponto de vista parece-me que a relação com Houdini e o seu lado do espetáculo é um tanto forçada, no entanto considero que o modo como Chabon utiliza o escapismo ilusionista com os seus personagens funciona muito bem. Kavalier & Clay vivem toda uma vida em fuga, tanto física como mental, e desse modo acabam sendo ambos personagens muito mais ricas do que Houdini.

Em 2004 Brian K. Vaughan acabaria por criar uma série de BD para a Dark Horse, baseada no livro de Chabon, dando assim pela primeira vez"vida" ao super-herói Escapista.

julho 21, 2018

Primeiro Eça, depois os Maias

Vejo tanta discussão em redor da importância de "Os Maias" na escola portuguesa porque o Ministério decidiu terminar a sua obrigatoriedade, presenteando os docentes com a missão de serem eles agora a selecionar a obra de Eça de Queiroz que se estuda em cada ano, mas muita desta discussão vem bastante enviesada. Não vejo uma real preocupação com o que está em questão na leitura desta obra, mas mais uma discussão sob os velhos rótulos de alta e baixa cultura. Temos o típico coro de críticas de ataque ao que se muda, como se a mudança fosse sempre para pior. Mas temos também justificações para a mudança baseadas em preceitos de modernidade que não têm qualquer sustentação. Quando é, ou deveria ser, simples aquilo que motiva a escolha de obras de leitura geral e obrigatória nas escolas: a criação de um cânone que una todos os cidadãos num discurso comum, que não pode ser dissociado da idade dos alunos, e do seu desenvolvimento cognitivo.

Eça de Queiroz

Quero deixar algumas linhas sobre assunto, não apenas baseadas em leituras científicas, mas também na minha experiência pessoal de leitura, já que li "Os Maias" quando andava no liceu, com 16 anos, e voltei a lê-lo recentemente, com 42 anos (notas desta última leitura). Posso dizer desde já que foram experiências completamente diferentes, ao ponto de não conseguir ligar qualquer memória afetiva da primeira leitura com a mais recente. Pergunto-me porquê, e a razão não é muito difícil de descortinar, não terá havido ligação afetiva na primeira leitura. A leitura por obrigatoriedade tem destes problemas. Não acontece só com os livros, acontece com tudo, com o cinema, com os jogos, com a maioria dos prazeres da nossa vida. Não é por acaso que passámos os últimos 44 anos a prezar a Liberdade, porque a liberdade é a base da criação da experiência humana individual. Se, experienciamos porque alguém nos obriga a tal, a emoção troca de lugar com a razão, e a experiência que nos deveria tocar o coração passa a tocar a racionalização. Queremos compreender porque somos obrigados a experienciar, e no meio disso perdemos a oportunidade de chegar a sentir.

É claro que este discurso nos coloca face a um dilema insustentável. Se a escola deve ter como missão, além da promoção do conhecimento, a criação de sociedade, para o que dota os indivíduos de conhecimento comum que permite a emergência da comunidade, como é que tal pode acontecer se aquilo que se estuda é feito por obrigação, perdendo-se a fruição. Na verdade, isto não deve ser dilema porque quando estudamos Biologia ou Matemática, também não o fazemos para fruir, fazem-lo por necessidade de elevar o conhecimento dessa sociedade, para sermos capazes de operar a outros níveis de abstração da realidade. Então porque não pensar a literatura da mesma forma? E se em vez de obrigar à leitura de obras completas, livros com mais de meio milhar de páginas, a literatura não é apenas feita de romances, e não existe autor que não tenha escrito contos, porque não optar por trabalhar com contos?

Se pensarmos em concreto no que estamos a exigir cognitivamente a um miúdo de 16 anos para que leia "Os Maias", perceberemos o quão desprovido de senso é. E não estou a falar de sociedade digital, de internet ou videojogos e o famigerado discurso do défice de atenção das novas gerações. Podemos pensar em 1980, com um canal de televisão único, televisão a preto e branco, sem consolas, nem telemóveis. Estamos a falar de entreter a mente ao longo de centenas e centenas de páginas com uma escrita elaborada e detalhada, altamente estilizada com base em técnicas descritivas herdadas ainda do romantismo. Eça foi o nosso primeiro grande realista, mas foi-o mais no conteúdo do que na forma. Ler Eça não é propriamente simples, não porque use palavras caras, mas porque usa toda uma lógica descritiva da realidade que se enreda. O discurso está longe do modo direto que o realismo desenvolveu nos anos que sucederam a Eça, temos um discurso que se cobre de insinuações sobre aquilo que quer dizer, em vez de simplesmente o dizer. Nada disto é problemático quando estamos preparados para tal, quando já lemos muitas outras obras e aceitamos o contrato daquele tipo de escrita porque desejamos entrar na obra. Quando somos obrigados a ler e temos de realizar um esforço enorme para compreender o que estamos a ler, e na nossa frente esperam-nos ainda 800 páginas, é fácil entrar em desespero, chamar raios e coriscos à escola, aos professores, e desistir.

Mas o problema não é só estético. O problema agrava-se quando começamos a desconstruir o que Eça nos quer dizer com a sua obra. Temos de pensar que somos um leitor com 16 anos, que no século XIX poderíamos ser já um adulto casado com filhos, mas hoje somos quase uma criança ainda. Este leitor não compreende o que significa lidar com filhos, menos ainda adultos, perdê-los, seja por que motivo for. Está longe de compreender as nuances das relações adultas. Podemos até dizer, 'mas é bom que sejam confrontados com tal', sim, talvez se fosse apenas este o problema, mas como vimos assim não é, e adensa-se. A realidade de Eça é de um Portugal do século XIX, o que acaba distanciando ainda mais todos os problemas que aqueles personagens sofrem. Se os miúdos não têm muito contexto sobre as mensagens subtis entre adultos, menos ainda têm sobre o contexto político desse tempo. Não podemos esquecer que Eça escreve para os seus pares, do alto de uma vida carregada de experiência diplomática, o livro está pejado de detalhes que nos adoçam a leitura mas é preciso contexto para chegar a eles. E não se iludam, muito desse contexto não se dá nas aulas, constrói-se ao longo da vida, com experiências, com o cruzamento de leituras com experiências reais, que nos permitem ir criando associações de ideias a experiências, e fazer de nós pessoas mais adultas e sensíveis.

E continua, porque a componente mais intrincada de romance, de desenvolvimento e progressão de ação só surge na terceira parte do livro. Durante mais de metade do livro, somos arrastados por entre contextualizações e descrições, ou seja, muita exposição e pouco drama, o que vem complicar a manutenção do interesse dos leitores menos preparados para a leitura. Ser exposto a algo pode ser interessante, mas é um processo por natureza desprovido de emoção, e por isso dificilmente sustenta o interesse se o leitor não conseguir ligar essa exposição a contexto próprio, edificando-o com as suas próprias emoções. Mas o drama não é só emoção, é acima de tudo transformação. Daí que a progressão seja o maior garante de interesse dos leitores, porque estes focam-se no que muda, querendo saber porque muda e como muda. Os leitores menos preparados conseguem facilmente ler Dan Brown ou J.K. Rowling exatamente por causa disto, porque a mudança desperta a curiosidade para saber o que vai acontecer a seguir, fazendo com que a atenção se mantenha alerta e o interesse estável. "Os Maias" são uma grande obra, elogiada pela crítica internacional, exatamente por não se deixar levar por esse facilitador narrativo, por delinear uma estilística própria que obriga o leitor a trabalhar para mais tarde ser recompensado. Mas um aluno de 16 anos não é um crítico literário.

Podemos simplesmente obrigar, assim como obrigamos a decorar os rios de Portugal ou a tabela periódica, ou podemos pensar de forma diferente. Podemos pensar que aquilo que queremos criar é o conhecimento comum sobre Eça de Queiroz, prolongar o seu legado, criar um esteiro em que a sua obra sirva o cânone de que devemos, enquanto país, partir. (Aproveito para questionar aqui a nossa sociedade, se é verdadeiramente isto que queremos, porque não está Eça no nosso Panteão?). E para isso podemos usar obras mais curtas, contos, que darão muito mais espaço ao professor para nas aulas falar do autor, do tempo em que viveu, do país que conheceu e da sua relação com o país de hoje. A partir desses contos pode-se aprender sobre o estilo e estética de Eça, pode-se iniciar o conhecimento, e aos poucos aprender a amar Eça, a amar a língua portuguesa, e pode ser que no verão seguinte o aluno, por sua própria iniciativa, passe as férias junto de "Os Maias".

junho 20, 2018

Tess of the d'Urbervilles (1891)

Foi o meu primeiro livro de Thomas Hardy — "Tess of the d'Urbervilles: A Pure Woman Faithfully Presented" (1891) — e era um livro que há muito queria ler, tanto pelos créditos enquanto clássico canónico como pelo tema e abordagem do autor. Posso dizer que as expectativas não defraudaram o prazer da leitura. Apesar de se enquadrar no género reconhecido como romance vitoriano — destinos trágicos com finais felizes — Hardy parece preferir ficar-se pela primeira parte da abordagem. Estamos em Inglaterra, no século XIX, temos mulheres em idades casadoiras que vivem entre a plebe, cientes da sua insignificância, vivendo e trabalhando debaixo de duras condições ditadas por uma pobre ruralidade, quando perseguidas por maquiavéis da luxúria não mais se conseguem libertar das marcas por estes incutidas. A curiosidade era grande também porque o tratamento realizado por Hardy tinha sido, em parte, alvo de crítica pela sociedade de então.

Nastassja Kinski no papel da protagonista Tess, no filme homónimo de 1979 por Roman Polanski.

Tess é a típica menina certinha oriunda de uma pobre família disfuncional, com muitos irmãos mais novos, um pai bêbado e uma mãe desligada. Além de certinha era bonitinha, o que proporcionaria a ideia de buscar um bom casamento que levasse à retirada da pobreza de toda a família. Contudo Tess não era dotada da ausência afetiva que caraterizavam o pai e a mãe, e por isso no momento em que o seu íntimo é violado a sua pessoa altera-se para sempre. Olhando a literatura à volta podemos ver como o tema é tão pouco tratado, mesmo secundarizado, tornado menor, e mesmo a própria crítica de então menosprezou este foco. Contudo, e se a violação nos choca, muito mais choca o modo como a sociedade a encara, tanto na privacidade familiar, forçando a aceitação da condição feminina, como pelos restantes membros da comunidade que de forma ultrajante colocam o homem num patamar distinto da mulher em termos da sua sexualidade. E mais ainda me incomoda a leitura quando olhando a partir de 2018, e apesar do caso concreto poder ser visto de forma bastante distinta, a sociedade ocidental continuar ainda assim a olhar diferentemente aos direitos do homem e da mulher no que à liberdade sexual diz respeito. Um homem que tenha tido muitas namoradas é alguém forte, bem posicionado, com capacidade para ter tudo o quiser na vida, já uma mulher que se assuma assim, dificilmente não será rotulada de promíscua, para não usar adjetivos mais abjetos.


Hardy trabalha muito bem o seu objeto, pegando na inocência, integralidade e esforço para dar conta de uma mulher, que como o subtítulo reforça — "Uma Mulher Pura" —, é do mais puro que a natureza nos pode oferecer, confrontando-a com a soberba, a arrogância e o desprezo da restante sociedade. É de tragédia que se trata, e por isso é natural o conflito entre o forte e o fraco, entre o que nunca teve hipótese e está condenado desde que nasceu, e talvez por isso a leitura seja tão envolvente já que nunca nos cansamos de querer saber mais sobre Tess, de desejar que esta consiga de algum modo levantar-se e ganhar o direito a ser quem é. Claro que para tal contribuem não apenas as excelentes capacidades de Hardy na cozedura da trama, mas também a beleza da sua escrita.
“Todas essas jovens almas eram passageiras do navio Durbeyfield – inteiramente dependentes do julgamento dos dois adultos para seus prazeres, suas necessidades, sua saúde e até sua existência. Se os chefes da casa Durbeyfield escolhiam navegar em direção à dificuldade, ao desastre, à fome, à doença, à degradação, à morte, nessa mesma direção eram compelidos a navegar essa meia dúzia de pequenos cativos ainda no ninho – seis criaturas indefesas a quem nunca fora perguntado se desejavam a vida, muito menos se a desejavam em condições tão severas quanto aquelas da indolente casa de Durbeyfield. Algumas pessoas gostariam de saber de onde o poeta, cuja filosofia é hoje considerada tão profunda e confiável quanto pura e alegre sua canção, tira sua autoridade para falar do “plano sagrado da Natureza”.”
A obra vale claramente pelo retrato social que dá da época, do modo como coloca lado a lado vários conceitos e ideias de um tempo distante e nos questiona não apenas sobre o que já fomos como sociedade, mas também sobre o que ainda mantemos enraizado em nós na atualidade. Existem vários temas, além da sexualidade, a percorrer a obra tais como o determinismo e a liberdade, o modernismo e a industrialização, a religião e o sentido da vida. A obra traça um cenário social realista completo, permitindo ao leitor mergulhar num tempo distinto do seu, e experienciar a realidade e o sentir de quem a viveu.

Quanto à edição lida, foi a da editora brasileira Pedrazul, que apresenta uma muito boa tradução por Luana Musmanno. Fica registado o meu espanto sobre a ausência de uma tradução portuguesa, passados mais de 125 anos. Será o tema pouco bem-vindo por cá?

maio 01, 2018

Dostoiévski, o profeta do terror comunista

"Demónios" (1872) não é um romance, não é também um romance histórico, é um trabalho de puro ativismo social mas que nunca se subjuga ao mero panfleto, assume o fundo realista para se debruçar sobre as especificidades do realismo social e psicológico, ou seja, debate as questões que faziam mover a sociedade russa na segunda metade do século XIX, procurando compreendê-las a partir das motivações psicológicas dos seus principais atores. Ao fazê-lo Dostoiévski dava conta do que acontecia e do potencial que essas ações encerravam para o futuro da sociedade, daí que apelidar Dostoiévski de profeta assuma neste livro o seu sentido maior.


As personagens reais por detrás da história criada por Dostoiévski. Acima: Granovsky, Tchernichévski, Turguenev; em baixo: Bakunin e Nechayev. (Imagens do Museu de Dostoiévski, São Petersburgo).

“Demónios” é baseado num crime de assassínio cometido em 1869 pelo niilista Sergey Nechayev, autor do “Catecismo de um Revolucionário”, um manifesto que apresenta as bases ideológicas e executivas para a promoção daquilo que hoje designamos como Terrorismo. Como nos seus livros anteriores, Dostoiévski empenha-se aqui na luta contra o radicalismo político nas suas diferentes frentes, do niilismo ao comunismo. Terá contribuído para tal: o facto de ele próprio, nos seus 20 anos, ter pertencido a grupos literários radicais (Círculo Petrashevsky); os anos passados na prisão na Sibéria; e todo um amadurecimento; que o conduziriam a um recentrar de ideias, fugindo do ateísmo e impondo-se uma moldura de crença religiosa que o tornaria imune à redução do humano a mero joguete político. O radicalismo que Dostoiévski ataca é aquele que se assume a partir da excisão da empatia do ser humano.

"Estudante Niilista" (1883) de Ilya Repin

Depois do ataque direto a Tchernichévski em “Memórias do Subterrâneo” (1864), esta obra é talvez o seu mais violento ataque político, plena de raiva e carregada de horror, para dar conta do seu mau-estar com tudo o que grassava a sociedade russa. Sem subterfúgios Dostoiévski aponta o dedo a Turgueniev, a Tchernichévski, a Herzen, a Fourier, a Bakunin a todo o tipo de aventuras radicais que colocavam o indivíduo em segundo plano em nome de ideais, supostamente científicos, criados a partir de abstrações, de conceptualizações que limitavam o humano a mera variável de sistemas lógicos. Ora Dostoiévski após a sua experiência de quase-morte, quando lhe foi sentenciada a execução por fuzilamento, dá-se conta de que o ser humano não é mera abstração mas é alguém que sofre enquanto busca por se compreender a si mesmo, e que as ideias não se podem sobrepor às pessoas. Assim, temos Dostoiévsky a desconstruir a estrutura psicológica que suporta o terrorismo, o de ontem e o de hoje. Sim Profeta, porque esta obra e outras do autor, mas esta especialmente, previu o que viria a acontecer na Rússia, uma revolução terrorista como fica expresso nas seguintes passagens do livro:
[Chigalev:] "Ao dedicar a minha energia ao estudo da organização social da sociedade futura que substituirá a presente, cheguei à convicção de que todos os criadores dos sistemas sociais, desde a antiguidade até à presente data de 187..., eram uns sonhadores, uns fantasistas e uns tolos que se contradiziam a si mesmos, que não percebiam nada de ciências naturais e daquele estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier, as colunas de alumínio, tudo isso talvez seja adequado para os pardais, mas não para a sociedade humana. Mas como a futura forma social é necessária precisamente agora, quando todos nós, finalmente, tencionamos agir para não termos de refletir nunca mais, vou propor o meu próprio sistema de organização do mundo. Ei-lo! (..) Confundi os meus próprios dados, e a minha conclusão está em contradição direta com a ideia inicial em que me baseio. Partindo do princípio da liberdade ilimitada, chego à conclusão do despotismo ilimitado. Acrescento no entanto que, fora da minha solução da fórmula social, não pode haver mais nenhuma.
(..)
[Professor:] “Conheço o livro dele. Propõe, como solução final, a divisão da humanidade em duas partes desiguais. Uma décima parte obtém a liberdade pessoal e um poder ilimitado sobre os restantes nove décimos. Estes têm de perder a personalidade e transformar-se numa espécie de gado, e, infinitamente submissos, atingir, mediante uma série de involuções, uma inocência primitiva, uma espécie de estado de paraíso primitivo, embora trabalhem, aliás. As medidas sugeridas pelo autor para se privar de vontade os nove décimos da humanidade e para os transformar em gado por meio da reeducação de gerações inteiras são notáveis e muito lógicas, baseadas nos dados fornecidos pelas ciências naturais. Podemos não concordar com algumas conclusões, mas é difícil duvidar-se do intelecto e dos conhecimentos do autor.”
Ou seja, os revolucionários radicais que discutem estas ideias, apresentam como solução que noventa por cento da sociedade seja escravizada pelos restantes dez por cento. A igualdade entre os 90% deve ser operada pela polícia, terrorismo de Estado e destruição das vidas cultural e artística. Dostoiévski estima que para atingir o paraíso político, precisarão de eliminar "cem milhões" de pessoas pelo caminho. Isto foi escrito em 1872, a revolução comunista começou em 1917, e num estudo publicado em 1997 em França, "O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão" dá-se como número provável de mortes às mãos do comunismo, 94 milhões de pessoas.

E hoje, quando reflito nisto assusto-me ao pensar naquilo em que Portugal esteve perto de se transformar, em 1974. Obviamente que estas ideias perigosas não surgem do vazio, são precisas condições propícias à sua germinação, e a Rússia do final do século XIX aproximava-se perigosamente da França do final do século XVIII. Existia uma clara necessidade de pôr termo ao luxo desmedido da monarquia e séquito aristocrata. Apesar de o reinado Romanov estar já muito transformado, de ter abolido a escravatura e criado todo um sistema de governo e Estado muito mais justos, as diferenças entre classes eram ainda abissais.

Por isso surgem indivíduos como Sergey Nechayev que viam em Robespierre o único caminho possível, e que vão preparando o terreno para mais tarde Lenine chegar do estrangeiro, e com toda uma espécie de legitimidade, aplicar a cartilha revolucionária, e sem pudor defender que não um mas toda a Casa Romanov devia ser eliminada. Dostoiévski previu Lénine, e a sociedade russa estaria alerta, contudo não deixa de ser verdade que a Europa não foi inocente em todo esse processo, tendo contribuído para colocar Lénine no poder na Rússia, podendo apenas servir-lhe de desculpa a Primeira Grande Guerra. Assim como não podemos esquecer que se a NATO não tivesse instalado um porta-aviões no Tejo junto ao Palácio de Belém, em 1975, mais toda uma enorme atividade diplomática, provavelmente hoje eu não poderia estar a escrever estas linhas com todo este à vontade.


Sobre o livro em si. A escrita de Dostoiévski não é fácil de seguir, não pela excessiva elaboração, mas pela quantidade de contexto que requer para a sua compreensão, e assim obtenção de prazer. Não ajuda também o já conhecido problema desta literatura assente numa grande quantidade de personagens, todos com três nomes, fora os diminutivos, o que obriga a redobrada atenção no seguimento da trama. Por outro lado, este livro apresenta uma espécie de dupla linha de enredo, primeiro a geração mais velha — Stepan Trofimovich Verkhovensky e Varvara Petrovna Stavrogina — com a sua forma de estar intelectual, aristocrática e distante, e em segundo plano, ou talvez o principal, os seus filhos — Nikolai Vsevolodovich Stavrogin e Pyotr Stepanovich Verkhovensky —, os radicais totalmente incapazes de empatia. Dostoiévski não estabelece nunca a relação entre pais e filhos, deixando para o leitor o trabalho de compreender essa relação, mas apontando claramente no sentido mais crítico à obra de Turguenev "Pais e Filhos" (1862).

Sobre a edição portuguesa, devo dizer que vem com um capítulo extra no final do livro, que foi escrito por Dostoiévski para ser lido como o primeiro capítulo da terceira parte, mas que aquando da publicação teve dificuldades em fazer passar pelo editor. Li como Dostoiévski pretendia, e considero que tinha toda a razão. Sim, é um capítulo forte e intenso, talvez mais vulgar nos dias de hoje, mas é um capítulo fundamental para compreender até onde pode ir a obscenidade do radicalismo do protagonista da história: Nikolai Vsevolodovich Stavrogin. Todo o resto do livro apresenta um Stavrogin muito indefinido, necessário à criação da complexidade psicológica, mas este capítulo funciona como espécie de chave do seu caráter, e mais do que isso, como chave explicativa do niilismo.