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março 09, 2019

Efeitos visuais de drogas

Bryan Lewis Saunders (1969) é um artista americano, já com uma longa carreira em vários domínios — pintura, video, performance, poeta, etc. Descobri o seu trabalho através do documentário de David B. Parker, "Art of Darkness" (2014), tendo-me impressionado particularmente a sua obra "Under the Influence", que consiste num conjunto de auto-retratos criados sob a influência de múltiplas drogas. A curiosidade sobre os efeitos das drogas é natural, mas conhecê-los e compreendê-los é bastante difícil, não só pela dificuldade de aceder às substâncias, mas acima de tudo pelos riscos que implicam (Saunders sofreu vários problemas neurológicos, apesar de não irreparáveis, no processo). Os efeitos das drogas, tal como o de qualquer outra experiência humana, são altamente subjetivos, ainda assim este trabalho abre-nos uma pequena janela sobre alguns esses efeitos.

Lithium (ref), tratamento depressão. Sobredosagem: vertigens, alterações neurológicas.

Absolut Shatter (ref), +- cannabis concentrado. Efeitos: humor e euforia

Abilify (after 3 months usage 3x maximum dose) (Aripiprazole), Usado como antipsicótico. Efeitos sobredosagem: depressão

Aderall (Wikipedia), usado para ADHD. Efeitos - estimulante cognitivo e focagem.

Alcohol (ref.) Efeitos: sedação, amnesia, incontinência, etc.


Absinth (ref) inebriation. Efeitos: espécie de lucidez bêbada

Cocaine (ref.) Efeitos: perda de contacto com a realidade, felicidade intensa

LSD (ref.) Efeitos: estados mentais alterados

Haloperidol (ref). Usado para esquizofrenia. Efeitos: potencial repetição de movimentos, sedação

Opium (ref) - Efeitos: analgésico, desaceleração do processamento mental

Na página do Saunders é possível ver muitos mais auto-retratos realizados sob efeito de mais substâncias. Algo que salta à vista nestas imagens é claramente a influência cultural da droga em questão. Questiono, seriam as obras iguais se Saunders não soubesse que droga estava a tomar em cada momento? Muito provavelmente não, e isso diminui a objetividade destas janelas, ainda que possamos dizer que as pessoas que tomam drogas, tomam-nas na ânsia por determinados efeitos prescritos pela medicina ou cultura, e desse modo as suas experiências das mesmas nunca são desligadas dessas expetativas.

fevereiro 01, 2019

Mann, Adorno e Schoenberg: holocausto e modernismo

"Doutor Fausto" (1947) pode ser lido como romance, e foi assim que o li, mas requer todo um enquadramento que deveria preceder qualquer edição do mesmo, para que não se torne em algo completamente incompreensível. Ainda que as obras se devam valer per se, obras com a densidade de "Doutor Fausto" requerem contexto, não apenas sobre o autor, mas especialmente sobre a sua génese. Sem isso, corremos o risco de nos colocar na posição de Italo Calvino aquando da sua leitura: "Eu passo as tardes aqui deitado nas pedras, de barriga ao sol, a ler Thomas Mann, que escreve muito bem sobre muitas coisas que são completamente incompreensíveis para mim” (1950).


Mann tinha 72 anos, tendo iniciado a sua carreira 50 anos antes, com a publicação de uma obra que para muitos escritores seria o derradeiro pináculo do virtuosismo de escrita, "Os Buddenbrook" (1901) (é a esta sua primeira obra que o Nobel faz referência, e não à "A Montanha Mágica" (1924), como esperaríamos). 50 anos depois, sempre a escrever livros, crónicas, cartas, peças, manifestos e discursos políticos, não transformariam o virtuosismo dessa escrita,  mas transformariam completamente o seu intelecto, a sua capacidade para ler e descrever as entrelinhas do real. "A Montanha Mágica" tinha sido um demonstrativo disto mesmo, um partir da descrição das relações humanas dos seus personagens para a discussão dos motivos filosóficos subjacentes. "Fausto" vai muito para lá da "Montanha", já que deixa para trás completamente o foco dos elementos base do romance, os personagens e suas intrigas, para se entregar totalmente à discussão de conceitos e fundamentos teóricos de suporte à constituição da realidade.

Para compreender "Doutor Fausto", não basta enquadrar Mann como exilado na Califórnia pelo nazismo, e toda a destruição humana de um povo que grassava na Europa Central. É preciso situar nesse lugar de exílio duas outras pessoas, alemães também exilados, Theodor Adorno, crítico e filósofo de estética, e Arnold Schoenberg, compositor e teórico musical. Os três homens representam, nas suas áreas, pináculos da arte e cultura germânica, o que de certo modo pode explicar a sua relação, pois se se aproximaram no exílio, logo acabariam por se separar, desavindos os três. E no entanto, na exata mesma altura, em 1947, produziram os três, obras maiores das suas carreiras:

Thomas Mann (1875), "Doutor Fausto" (1947)
Theodor Adorno (1903), "Dialética do Iluminismo" (1947) (co-escrito com Max Horkheimer)
Arnold Schoenberg (1874), "Sobrevivente de Varsóvia" (1947)

Se destaco aqui estas três obras não é por terem apenas sido criadas por artistas alemães no exílio americano, e no mesmo ano, ou ainda porque as três obras são respostas à emergência, impacto e efeitos do Nacional Socialismo de Adolf Hitler na Europa, mas também porque as três estão ligadas na sua criação, relação dialógica estabelecida entre os três criadores, antes e depois da publicação das obras. E por isso para compreender qualquer uma destas obras em toda a sua extensão, é necessário compreender o que subjaz a cada uma delas individualmente.

"Doutor Fausto" apresenta-nos um personagem, Adrian Leverkühn, como um prodígio à nascença, sempre na frente dos seus pares e professores, que acabaria por desembocar tarde na música, e que por isso não poderia tornar-se um virtuoso do instrumento, mas tornar-se-ia num virtuoso da composição e por isso mesmo ansioso por inovar e transcender o status quo musical. Mann leva Adrian a conhecer o Diabo e a estabelecer o pacto faustiano, a partir do que então Adrian acaba a produzir a sua grande inovação musical (a que é dedicado todo o capítulo 22), na forma do sistema atonal ou dodecafonismo (invenção real de Schoenberg). Esta síntese é o núcleo de todo o livro, e ao mesmo tempo o que une Mann, Adorno e Schoenberg, e também o que os separará.

Para Mann, Adrian, personagem decalcado de Nietszche, é o representante do super homem: puro, inteligente e perfeito. Para quem os demais existem apenas para o seguir. Os seus ideais estão acima das necessidades e prazeres mundanos, interessa-lhe apenas atingir o zénite da perfeição, da eleição supra-humana. O mal estaria na Natureza que tudo corrói com a sua organicidade, incerteza, e imperfeição. Cabe ao Homem desenhar, delinear e construir a perfeição. Mann dá assim corpo ao mundo professado pelo Nacional Socialismo de Hitler.

Adorno, vinha trabalhando ideias relacionando o Iluminismo e a catástrofe alemã, tendo uma primeira versão de "Dialética do Iluminismo" surgido em 1944. Para Adorno (e Max Horkheimer com quem co-escreve a obra), a intervenção do Estado, tanto na forma do comunismo que grassava na URSS, como na forma do nacional socialismo que abraçava a Alemanha, ditava o fim Iluminista, apesar de paradoxalmente defenderem uma racionalização da produção artística, como se vê em Adrian. Segundo Adorno, a modernidade com toda a sua racionalidade e  avanços científicos, não tinha sido capaz de libertar a sociedade, antes estava a fazer o seu contrário, daí o ataque à razão, por ter chegado ao estado de irracionalidade. O problema apresentava-se pela imposição do modelo de massas dessas ideologias, que levavam ao desaparecimento da individualidade e a liberdade humanas. Como Mann diz em "Doutor Fausto", “a liberdade é apenas outro termo para designar a subjetividade”, ou seja, é a partir da subjectividade que se pode elevar a inovação e transcendência artística e estética. Para Adorno, a produção cultural massificada pelo estado, base do seu conceito "indústrias culturais", não ofereceria "a revolução social" professada por Marx, mas antes o totalitarismo, capaz de pela homogeneização cultural adormecer a individuação e tornar as massas passivas. (Diga-se em abono da realidade de hoje, que o capitalismo não se diferencia muito destes modelos culturais, podendo nós ver essa mesma homogeneização a grassar nas playlists das rádios, nas tabelas de livros mais vendidos e nos filmes mais vistos, todos de Hollywood. A grande diferença é que a liberdade permitida pelo capitalismo abre espaço a nichos e franjas, acabando por paradoxalmente serem estas as responsáveis pelos avanços na estética da cultura dita de massas).

Assim, e se Mann e Adorno parecem sintonizar-se na crítica, o terceiro elemento da equação, Arnold Schoenberg, parece ter surgido nas mãos destes como ovelha a levar ao altar do sacrifício. Repare-se que Mann, ao seguir esta linha, apresenta o dodecafonismo, a invenção da vida de Schoenberg, não apenas como fruto de um pacto com o Diabo, mas como a encarnação do ideal Nazi. Nem Mann nem Adorno eram entusiastas do modernismo que para eles era apenas um sinal da racionalização na busca de uma suposta perfeição contra a imperfeição oferecida pela natureza.

Para entrar dentro da discussão e não apenas compreender mas sentir, já que de arte se trata, é necessário parar e voltar à produção artística do modernismo. Colocar como música de fundo, "Erwartung" (1909) de Arnold Schoenberg, o exemplo maior das suas composições atonais, fugindo ao sistema tonal, o modo mais harmónico e natural como ouvimos a música. Enquanto ouvimos, podemos pousar o nosso olhar sobre "Les demoiselles d'Avignon" (1907) de Picasso, em que o primeiro exemplar do cubismo, transfigura o modo como vemos e concebemos a representação tridimensional do real. E por fim, abrir "Ulisses" (1924), no seu capítulo final, e seguir o fluxo de consciência de James Joyce que foge a todo e qualquer modelo narrativo.


"Erwartung" (1909) de Arnold Schoenberg, Audio e Partitura

"Les demoiselles d'Avignon" (1907) de Picasso
"(...) I love flowers Id love to have the whole place swimming in roses God of heaven theres nothing like nature the wild mountains then the sea and the waves rushing then the beautiful country with the fields of oats and wheat and all kinds of things and all the fine cattle going about that would do your heart good to see rivers and lakes and flowers all sorts of shapes and smells and colours springing up even out of the ditches primroses and violets nature it is as for them saying theres no God I wouldnt give a snap of my two fingers for all their learning why dont they go and create something I often asked him atheists or whatever they call themselves go and wash the cobbles off themselves first then they go howling for the priest and they dying and why why because theyre afraid of hell on account of their bad conscience ah yes I know them well who was the first person in the universe before there was anybody that made it all who ah that they dont know neither do I so there you are they might as well try to stop the sun from rising tomorrow the sun shines for you he said the day we were lying among the rhododendrons on Howth head in the grey tweed suit and his straw hat the day I got him to propose to me yes first I gave him the bit of seedcake out of my mouth and it was leapyear like now yes 16 years ago my God after that long kiss I near lost my breath yes he said I was a flower of the mountain yes so we are flowers all a womans body yes that was one true thing he said in his life and the sun shines for you today yes that was why I liked him because I saw he understood or felt what a woman is and I knew I could always get round him and I gave him all the pleasure I could leading him on till he asked me to say yes and I wouldnt answer first only looked out over the sea and the sky I was thinking of so many things he didnt know of Mulvey and Mr Stanhope and Hester and father and old captain Groves and the sailors playing all birds fly and I say stoop and washing up dishes they called it on the pier and the sentry in front of the governors house with the thing round his white helmet poor devil half roasted and the Spanish girls laughing in their shawls and their tall combs and the auctions in the morning the Greeks and the jews and the Arabs and the devil knows who else from all the ends of Europe and Duke street and the fowl market all clucking outside Larby Sharons and the poor donkeys slipping half asleep and the vague fellows in the cloaks asleep in the shade on the steps and the big wheels of the carts of the bulls and the old castle thousands of years old yes and those handsome Moors all in white and turbans like kings asking you to sit down in their little bit of a shop and Ronda with the old windows of the posadas 2 glancing eyes a lattice hid for her lover to kiss the iron and the wineshops half open at night and the castanets and the night we missed the boat at Algeciras the watchman going about serene with his lamp and O that awful deepdown torrent O and the sea the sea crimson sometimes like fire and the glorious sunsets and the figtrees in the Alameda gardens yes and all the queer little streets and the pink and blue and yellow houses and the rosegardens and the jessamine and geraniums and cactuses and Gibraltar as a girl where I was a Flower of the mountain yes when I put the rose in my hair like the Andalusian girls used or shall I wear a red yes and how he kissed me under the Moorish wall and I thought well as well him as another and then I asked him with my eyes to ask again yes and then he asked me would I yes to say yes my mountain flower and first I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes."
Excerto final do Monólogo de Molly Bloom, in "Ulysses" (1924), James Joyce

Podemos questionar porque Mann atacou a música e não as letras, o seu domínio artístico. Aliás, Mann não era músico, daí que todas as discussões sobre composição musical tenham sido completamente trabalhadas pelo próprio Adorno no livro. Mas a meio de "Doutor Fausto", Mann explica que a literatura era a arte dos franceses, sendo a música a verdadeira arte de tradição alemã, evocando-se continuamente os seus grandes representantes Bach e Beethoven. Temos assim o classicismo, o belo rítmico e tonal, contra o modernismo, niilista e atonal. Mann vê neste modernismo, tal qual professado por Adorno, todos os traços que definiriam a emergência do barbarismo na Alemanha. O racionalismo do humano voltando-se contra si próprio.

O primeiro problema surge pelo facto de Mann ter utilizado a invenção dos doze-tons de Arnold Schoenberg, como fundamento do seu personagem, usando de toda a retórica de Adorno para a explicitar aos comuns leitores, sem nunca, em parte alguma do texto admitir que a invenção pertencia a Schoenberg (problema colmatado mais tarde com uma nota no final do livro). Mas vai mais longe, já que Schoenberg era ele próprio judeu, e exilado na Califórnia, onde convivia com Mann e Adorno. Schoenberg, talvez por ser judeu e ter sentido na pele a força do anti-semitismo, tentou por meio da sua influência defender a separação e criação do Estado-judeu. Schoenberg temia o Holocausto, bastante antes deste ter acontecido. Contudo Mann recusou-se a aceitar tal, para Mann isso seria a aceitação dos princípios do fascismo, e daí a sua desavinda com Schoenberg.

"A Survivor from Warsaw, Op. 46" (1947) de Arnold Schoenberg

Mas talvez o maior questionamento de toda a obra, não só de Mann mas também de Adorno, e que começa com Schoenberg, mas se estende a todo o modernismo, sejam os fundamentos das suas interpretações. Olhar para o modernismo como mera racionalidade da forma, como objeto formal incapaz de produção de sentido é de um reducionismo extremo. Se podemos dizer que "Les demoiselles d'Avignon" são mais forma, poderemos dizer o mesmo de "Guernica"? E se podemos atacar o formalismo da atonalidade de Schoenberg, o que podemos dizer do dodecafónico "Survivor from Warsaw" de Schoenberg? No fundo, Mann deixou-se seduzir por uma excelente narrativa criada por Adorno, que não era mais do que uma interpretação, uma das muitas teorias explicativas da arte e realidade, e no caso concreto do Holocausto não têm faltado grandes teorias sobre o sucedido.

Quanto à experiência de leitura de "Doutor Fausto", não posso dizer que se compare com o trabalho apresentado em "Os BuddenBrook" nem em "A Montanha Mágica". A escrita continua magnificente, o tema como visto acima é poderoso e altamente instigante, mas Mann falha na construção de um romance. O que temos é um livro de não-ficção disfarçado de romance, Mann fala num trabalho de "montagem" em que foi cosendo "dados factuais, históricos, pessoais e literários" [1], que acaba por fazer dos personagens do romance meros peões ao serviço de tudo aquilo de que se quer verdadeiramente falar. É uma leitura que se alonga, porque não se percebe para onde nos quer levar, criando por vezes enfado, perdendo amiúde a atenção do leitor, mantendo no entanto a chama acesa por graça da elevação e beleza da escrita assim como pelo mundo de ideias que envolvem o romance.



Referências

1 - "Mephistopheles in Hollywood: Adorno, Mann, and Schoenberg" January 2004, James Schmidt

2 - Ursula Mahlendorf (1978) "Aesthetics, Psychology and Politics in Thomas Mann's "Doctor Faustus",  Mosaic: An Interdisciplinary Critical Journal, Vol. 11, No. 4, pp. 1-18

3 - "What Was Theodor Adorno Doing in Thomas Mann’s Garden? — A Hollywood Story",
Posted on July 9, 2013

4 - "Books of the Times", de Orville Prescott, New York Times, October 29, 1948,

5 - "The Devil as Advocate in the Last Novels of Thomas Mann and Dostoevsky" Adrian Del Caro, Orbis Litterarum 1988, 43, 129-152

6 - Adorno, T. W., with Max Horkheimer (1947) Dialectic of Enlightenment. Trans. Edmund Jephcott. Stanford: Stanford University Press

7 - Artigos na Wikipedia: Dialectic_of_Enlightenment, A_Survivor_from_Warsaw e Arnold_Schoenberg.

janeiro 18, 2019

Melancolia sim, misantropia não

Talvez se tivesse lido "O Náufrago" (1983), de Thomas Bernhard, com 20 anos o tivesse admirado diferentemente. Num tempo em que almejava tornar-me cineasta, sonhava realizar os meus filmes e acreditava que a culpa por isso não acontecer era de todos os outros que não compreendiam tal. O artista estava acima do mundo, via mais longe, via diferente porque era diferente, e fazia questão de ser diferente, era melhor do que todos. Mas o crescimento, o amadurecimento e a aprendizagem daquilo que constitui o mundo e o real leva-nos a compreender que diferentes somos todos. E por isso, se a escrita de Thomas Bernhard é muito boa, a história que tem para contar neste pequeno livro é demasiado imberbe, apesar dos seus 52 anos à data de escrita.


O narrador conta-nos a sua história, focando-se sobre o período em que conheceu e estudou com Wertheimer e Glenn Gould (o pianista real) no curso superior de música em Salzburgo. Dá conta do antes e do depois, de quem ele e Wertheimer eram e foram depois de conhecer o génio do piano. Assim, o narrador desiste de um dia para o outro do piano, e Wertheimer simplesmente termina com a sua vida. Ao longo das 150 páginas, Thomas Bernhard dedica-se a desconstruir, em repetição e com amplas contradições, numa espécie de fluxo de consciência mas perfeitamente linearizada, o porquê do sucedido. Fá-lo seguindo uma lógica de culpa, todos desde a escola de música, aos professores, à família, pais e irmã, amigos, a Áustria, Salzburgo, Viena e seus cidadãos, todos tiveram culpa. Tanto Wertheimer como o narrador, são apresentados como puros misantropos, que acreditam que o mundo conspirou contra eles.

Chegados ao final, podemos questionar: que é feito da suposta alta sensibilidade do artista, como é que essa não lhe permitiu ver através da mediocridade da culpa? Essa sensibilidade serve apenas para sentir o seu próprio umbigo? Afinal que sensibilidade artística é essa? Diga-se que não me surpreende, olhando para muitas comunidades de artistas jovens, e outras menos jovens, ainda hoje, é exatamente este discurso de Bernhard que continuo a ver, e por isso não admira que ao resto da sociedade não reste outra opção que seja ignorar.

Porque melancolia é muito diferente de misantropia, e é preciso aprender a lidar com a diferença. Desse modo deixo excertos do discurso inaugural proferido por David Foster Wallace, para os alunos de artes do Kenyon College, EUA, a 21 de maio de 2005, entretanto publicado como “This Is Water: Some Thoughts, Delivered on a Significant Occasion, about Living a Compassionate Life” (texto completo inglês e português),  que ilustra bem o caminho de aprendizagem do Ser.


This is Water, David Foster Wallace, 21 maio de 2005
"Here is just one example of the total wrongness of something I tend to be automatically sure of: everything in my own immediate experience supports my deep belief that I am the absolute centre of the universe; the realest, most vivid and important person in existence. We rarely think about this sort of natural, basic self-centredness because it's so socially repulsive. But it's pretty much the same for all of us. It is our default setting, hard-wired into our boards at birth. Think about it: there is no experience you have had that you are not the absolute centre of.
(..)
it is extremely difficult to stay alert and attentive, instead of getting hypnotised by the constant monologue inside your own head (may be happening right now). Twenty years after my own graduation, I have come gradually to understand that the liberal arts cliché about teaching you how to think is actually shorthand for a much deeper, more serious idea: learning how to think really means learning how to exercise some control over how and what you think. It means being conscious and aware enough to choose what you pay attention to and to choose how you construct meaning from experience. Because if you cannot exercise this kind of choice in adult life, you will be totally hosed. Think of the old cliché about "the mind being an excellent servant but a terrible master".
This, like many clichés, so lame and unexciting on the surface, actually expresses a great and terrible truth. It is not the least bit coincidental that adults who commit suicide with firearms almost always shoot themselves in: the head. They shoot the terrible master. And the truth is that most of these suicides are actually dead long before they pull the trigger.
(..)
By way of example, let's say it's an average adult day, and you get up in the morning, go to your challenging, white-collar, college-graduate job, and you work hard for eight or ten hours, and at the end of the day you're tired and somewhat stressed and all you want is to go home (..) remember there's no food at home (..) of course it's the time of day when all the other people with jobs also try to squeeze in some grocery shopping. And the store is hideously lit and infused with soul-killing muzak or corporate pop and it's pretty much the last place you want to be but you can't just get in and quickly out; you have to wander all over the huge, over-lit store's confusing aisles to find the stuff you want and you have to manoeuvre your junky cart (..) now it turns out there aren't enough check-out lanes open even though it's the end-of-the-day rush. So the checkout line is incredibly long, which is stupid and infuriating. But you can't take your frustration out on the frantic lady working the register, who is overworked at a job whose daily tedium and meaninglessness surpasses the imagination of any of us here at a prestigious college.
(..)
The point is that petty, frustrating crap like this is exactly where the work of choosing is gonna come in. Because the traffic jams and crowded aisles and long checkout lines give me time to think, and if I don't make a conscious decision about how to think and what to pay attention to, I'm gonna be pissed and miserable every time I have to shop. Because my natural default setting is the certainty that situations like this are really all about me. About MY hungriness and MY fatigue and MY desire to just get home, and it's going to seem for all the world like everybody else is just in my way. And who are all these people in my way? And look at how repulsive most of them are, and how stupid and cow-like and dead-eyed and nonhuman they seem in the checkout line, or at how annoying and rude it is that people are talking loudly on cell phones in the middle of the line. And look at how deeply and personally unfair this is.
(..)
But most days, if you're aware enough to give yourself a choice, you can choose to look differently at this fat, dead-eyed, over-made-up lady who just screamed at her kid in the checkout line. Maybe she's not usually like this. Maybe she's been up three straight nights holding the hand of a husband who is dying of bone cancer. Or maybe this very lady is the low-wage clerk at the motor vehicle department, who just yesterday helped your spouse resolve a horrific, infuriating, red-tape problem through some small act of bureaucratic kindness. Of course, none of this is likely, but it's also not impossible. (..) If you're automatically sure that you know what reality is, and you are operating on your default setting, then you, like me, probably won't consider possibilities that aren't annoying and miserable. (..) The only thing that's capital-T True is that you get to decide how you're gonna try to see it.
(..)
This, I submit, is the freedom of a real education, of learning how to be well-adjusted. You get to consciously decide what has meaning and what doesn't."

Não é a primeira vez que cito este texto de DFW, em 2013 trouxe-o aqui porque tinha sido alvo de um belíssimo trabalho de ilustração audiovisual.

dezembro 24, 2018

“Gris”, experiência sensorial

Desconfiei da beleza visual de “Gris” (2018) porque foram inúmeras as vezes, no passado, em que tal se revelou mera superfície sem qualquer substrato. Algumas das resenhas que li inclinaram-me mesmo a deixá-lo para jogar apenas em 2019. No entanto, algo fez com que o comprasse na Steam junto com mais alguns jogos nas promoções deste Natal. Por isso, se sabia que a ilustração me ia deslumbrar, esperava pouco do resto, nomeadamente acreditava que a jogabilidade seria fraca, e que por isso o fluxo seria um tanto arrastado, tudo muito suportado no campo visual apenas. Nada poderia estar mais errado, “Gris” é um exercício de completo domínio de todas as artes envolvidas na criação de um artefacto interativo: da ilustração à interação, passando pela câmara, animação, som e música.



Sendo um jogo de plataformas, não se espere nada que o relacione com outros plataformas deste ano, seja “Celeste” (2018) ou menos ainda “Iconoclasts” (2018) ou “Dead Cells” (2018). “Gris” é uma experiência singular, não existe nada que se lhe assemelhe, é uma obra marcada por uma intensa direção artística. Posso talvez invocar, no plano visual, “Child of Light” (2014), e no campo experiencial, do fluxo interativo, o trabalho de Jenova Chen, “Journey” (2012). Mas se Chen é um visionário do fluxo de interação, Conrad Roset é apenas um artista de aguarela, o que quer dizer que “Gris” não é uma obra de uma pessoa apenas.

A equipa por detrás de “Gris” é composta por três pessoas, todas baseadas em Barcelona. O artista Conrad Roset (1984), que já expôs um pouco por todo o mundo, desde o MoMA em Virginia, ao Show Studio em Londres, passando pela Steven Kasher Gallery em Nova Iorque ou TiposInfames em Madrid, imensamente comissionado para trabalhos de ilustração, possui um significativo número de seguidores. Desenvolveu um estilo próprio, facilmente reconhecível, assente na aguarela colorida em contraste com fortes formas a tinta preta, socorrendo-se bastante da silhueta e sensibilidade femininas como motivação. Em segundo, temos Roger Mendoza que trabalhou na última década na indústria AAA, fazendo programação de IA e gameplay, essencialmente para a série Assassin’s Creed, tendo trabalho no "Assassin’s Creed III" (2012), "Assassin’s Creed IV" (2013) e "Assassin’s Creed: Syndicate" (2015). E por fim, Adrian Cuevas, outro especialista em tecnologia e programação, que também veio dos AAA, onde esteve envolvido em “Far Cry 3” (2012), “Tom Clancy's Rainbow Six: Siege” (2015), e “Hitman: The Complete First Season” (2017). Mendonza e Cuevas resolveram deixar os AAA, e em 2016 juntaram-se a Roset para criar o Nomada Studio em Barcelona. Com dois especialistas em tecnologia, treinados ao mais alto nível para garantir a fluidez do gameplay, e um especialista em arte visual, algo de qualidade teria de ser possível criar.




As competências que suportam a criação de “Gris” explicam porque a ideia que tinha, do indie belo mas gorado, não aconteceu. Roset tinha uma visão criativa, mas Mendoza e Cuevas sabiam como lhe dar forma, como a sustentar ao longo de 5 horas, e contribuir para o densificar dessa visão. Quando se entra em "Gris" e começamos a jogar, mesmo não sabendo nada sobre as pessoas por detrás da obra, sentimos de imediato um trabalho altamente apurado, refinado e polido por alguém que sabe muito bem o que está a fazer. Além disso, estes tiveram ainda a humildade de procurar quem sabia mais do que eles, em áreas como a animação, o irmão de Roset foi buscar Adrian Miguel, que já tinha trabalhado em "Invizimals", e para o sound design, Mendoza trouxe Ruben Rincon, que já tinha trabalhado para “Assassin’s Creed III” e para o português “Between Me and the Night” (2016). Para coroar todo este trabalho, e encorpar completamente as aguarelas de Roset, posso dizer que a entrada de Berlinist, banda composta por Gemma Gamarra, Luigi Gervasi e Marco Albano e responsável pela banda sonora, eleva o jogo em vários patamares experienciais. Os Berlinist trabalham bastante no campo ambiental e atmosférico, em certos momentos pareceu-me existir um traço futurista, a fazer lembrar a banda sonora de "Blade Runner 2049" (2017) de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer.

Pegando neste último ponto, o da experiência, é nele que “Gris” mais investe. Na minha modelação do Design de Experiência tenho dividido o mesmo em três camadas — funcional, sensorial e significado. “Gris” não está propriamente focado no significado, em contar uma história, “Gris” desenvolve-se completamente no plano sensorial. Ou seja, “Gris” trabalha a interação pela forma, busca impactar e transportar emocionalmente o jogador, mais do que fazê-lo pensar nesta ou naquela ideia. Assim como a narrativa não é o fundamento, o jogo também não o é, ele está lá como está a história, mas são ambos suporte. O foco são mesmo as imagens e a música que juntos garantem uma experiência audiovisual interativa única, suficientemente abstrata para que possamos preenchê-la com as nossas experiências, deixando-nos guiar pelo pautamento emocional que nos vai sendo imposto.

dezembro 01, 2018

Ajudar a libertar um reino

Muito já se escreveu sobre "Kingdom Come: Deliverance" (2018) (KC:D), nomeadamente que é um jogo para jogadores pacientes porque se começa com muito poucas capacidades — enquanto mero plebeu não sabemos manejar espadas ou arcos — o que acaba por o tornar mais interessante para quem procura experiências mais realistas, para quem busca agência narrativa, ou seja, possuir autonomia e controlo sobre a progressão da experiência. Em termos temáticos e visuais, podemos rapidamente evocar “The Witcher 3: Wild Hunt” (2015), em termos de jogabilidade as referências vão mais para “The Elder Scrolls V: Skyrim” (2011) e “Fallout 3” (2008), ainda assim, KC:D vai além, não apenas porque se furta à fantasia da FC e da Magia, algo muito raramente visto, mas também porque constrói um dos mundos de jogo e história mais detalhados e intrincados de sempre, mantendo as escolhas e a emergência sempre bastante vivas. Por isso, não tenho dúvidas em afirmar que KC:D é um dos grandes jogos deste ano e da última década.
KC:D é mais do que um jogo de mundo aberto realista, ao seu lado “Legend of Zelda: Breath of the Wild” (2017) é mero brinquedo para crianças. A experiência gerada por este mundo não se limita a mera simulação, no caso de época, existe jogo e existe narração, claramente assentes em factos históricos dignos de qualquer grande romance histórico. Mas aquilo que diferencia totalmente KC:D de Zelda, é o design que junta jogo e narrativa capaz de os colocar ao mesmo nível, fazendo depender um do outro, criando uma experiência una, em que o jogador nunca pensa, “estou a jogar” ou “estou a ver uma história”, mas antes “habito este mundo e tenho de me dar a estas pessoas”. Dan Vavra em entrevista dizia: "My philosophy, let's say, is that the gameplay experience generally should be natural, believable, it could be complex, but shouldn't be complicated", e é isso mesmo que temos, e que fica facilmente demonstrado pela imensidade de verbos que o jogo utiliza, todos baseados em fenómenos perfeitamente naturais para um ser-humano: andar, correr, montar, comprar, trocar, caçar, regatear, roubar, tirar, enganar, fugir, render-se, aprender, treinar, obedecer, desobedecer, matar, lutar, reparar, lavar-se, esconder-se, tratar-se, comer, dormir, repousar, esperar, namorar, ajudar, procurar, investigar, etc. Isto explica também porque o jogo é muito mais do que combates e lutas, não senti nunca que estava farto de lutas como acontece em tantos jogos, porque elas são bastante espaçadas em todo o jogo (claro que no meu caso optei por ir desenhando o meu perfil mais pela "fala" e menos pela "força" o que ajuda a minimizar essas lutas). Mas por exemplo, os mini-jogos como o de dados que se podem jogar nas tavernas, foi a primeira vez que me dei ao trabalho de aprender as suas regras, jogar mesmo, e ter vontade de ganhar ao adversário dentro de um mundo virtual, senti completamente a ânsia pela incerteza do lançamento dos dados. Já o mesmo não posso dizer dos “lockpicks”, não consegui entrar na lógica, que pelo que li é muito mais acessível via teclado do que gamepad, mas graças ao sistema de jogo aberto pude jogar todo o jogo sem ter nunca de abrir uma única fechadura por esse método, o que só por si é uma demonstração impressionante do game design do jogo.

O guião final de KC:D tem cerca de 1 milhão de palavras. Na imagem podemos ver o papel ocupado quando impresso.

Na intersecção entre o design e a arte temos o guião, parte escrita parte estrutura de jogo, no qual é preciso destacar os imensos conflitos desenhados para sustentar o nosso interesse ao longo de todo o jogo. Claro que se sente por vezes uma narrativa um tanto artificial pela força dos padrões de Hollywood, influencia clara do script doctor contratado, mas no geral, os 7 escritores sob o comando de Vavra deram muito bem conta do trabalho. Principalmente nos diálogos que demonstram uma relação com os costumes da época, dos seus interesses e diferenças, fazendo com que estejamos sempre interessados em ouvi-los para compreender melhor o mundo para onde viajámos. Do mesmo modo a descrição e resolução dos problemas dos personagens e sua especificação no design de jogo é algo a que não é alheio os mais de 20 consultores em História utilizados. No meio da imensidão de mundo e ações a realizar, muitas delas impõem tempos específicos, o que acaba por conseguir gerar todo um ritmo naquele mundo, e que por vezes apesar de toda a agência quase nos parece linear, ou melhor dizendo, parece o nosso próprio tempo naquele mundo, em que temos de fazer escolhas, mas essas fazem parte das condições daquela realidade, e é quase como se só tivéssemos uma opção porque estamos completamente absorvidos pela história e pela sua progressão. Tudo isto consegue fazer com que as horas se vão acumulando e o jogo só muito raramente acuse saturação narrativa, o nosso empenho no seu progresso é mantido até ao final.

7 escritores, vários consultores e um script doctor, tudo para que a narrativa funcione e suporte o jogo do início ao final.

Para perceberem um pouco melhor como funciona o sistema de escrita, simulação e emergência, vejam este pequeno trecho de uma das quests do início do jogo.

Se o design é brilhante e a escrita muito boa, a arte visual é sumptuosa. O mundo é enorme (16 km2), ainda assim passei dezenas de vezes por alguns dos caminhos e, no entanto, nunca senti o efeito de repetição, tal é a ordem de detalhe colocada na arte. Seja nos caminhos em pedra, seja na relva, seja nas construções, nas roupas, nos utensílios, nas armas, no sistema atmosférico, tudo segue referências reais e altamente pormenorizadas, no sentido de providenciar uma experiência intensa e rica de uma época efetiva, o final da Idade Média (sobre esta componente aconselho uma comunicação de Vavra que dá conta da componente histórica e sua importância artística para o jogo). Daria nota máxima a tudo neste campo, menos ao design de som e música, já que a opção por não saturar o ambiente de música, como acontece nas produções mais hollywoodescas, acaba por ser exagerada, atirando o som para o fundo, não servindo nunca o jogo como motivo. Não falo apenas de música para gestão emocional, mas também das paisagens sonoras naturais — do roçagar das árvores, do correr dos coelhos, dos veados, dos riachos, etc. Senti um pouco falta dessa componente, que tenho a certeza teria tido um enorme feito no incremento do ambiente experiencial, nomeadamente porque em momentos de jogo mais individuais e belos visualmente, teria incrementado o bucolismo das cenas. Aliás, ainda neste sentido, as vozes inglesas pecam também por não possuir um trago de maior autenticidade de época.
Comparações entre o real e os modelos implementados no jogo. Arrisco a dizer que o nível de detalhe colocado na modelação do mundo vai para além daquilo a que a Ubisoft nos tem habituado na sua série Assassin's Creed.

Mas os jogos não se fazem apenas de design e arte, requerem um terceiro elemento vital, a informática, e nesse campo não posso tecer louvores. Bem sei que se trata de uma pequena empresa, de um pequeno país europeu, mas ainda assim facilitaram demasiado. O jogo foi lançado em Fevereiro de 2018, carregadíssimo de bugs, o que lhes valeu dezenas e dezenas de más análises na imprensa internacional. Muitos analistas até gostavam do jogo mas a experiência, que relato acima, não era sustentada tecnologicamente à data. Para se ter uma ideia, eu comecei a jogar apenas em novembro, 10 meses depois, e já ia na versão 12, entretanto passei para a 13, e mesmo assim tenho de dizer que foi o meu jogo em consola com mais problemas informáticos de sempre. Saves que desapareciam; cutscenes cortadas a meio ou simplesmente que não me apareciam numa passagem, mas apareciam noutra; saltos entre ações necessárias de jogo sem que eu tivesse feito algo efetivo; cenários sem chão, paredes sem portas, personagens no ar. Tudo a fazer recordar o horribilis lançamento de “Assassins Creed: Unity” (2014), o qual só consegui jogar, também meses depois, após um patch de 17Gb. Na verdade, os problemas informáticos não são algo completamente alheio a este tipo de jogos, os immersive sims, por causa da complexidade envolvida. Desde sempre a Bethesda foi associada a problemas de bugs, nomeadamente com as séries “Fallout” e “Elders Scrolls” (veja-se o que está acontecer com o recém lançado "Fallout 76"), o que dá conta da questão subjacente, a complexidade do universo, nomeadamente aquela que a narrativa introduz, e que se fosse suportada tecnologicamente com certeza levaria mais do que 10% dos jogadores até ao final.

Não estamos a falar de uma grande área de jogo apenas, mas estamos a falar de simulação que se dá à agência do jogador, que tem ainda de permitir emergência, ou seja, reações do mundo de jogo não planeadas pelos designers, tudo em grande escala, ao que se junta uma estrutura narrativa imensamente detalhada, recortada e ramificada à qual se ligam os cenários, os personagens, as cenas e as cutscenes, tudo ao longo de dezenas de horas de modo a garantir que as sempre presentes escolhas e variações de abordagem de cada jogador funcionam. Aliás, esse é para mim talvez um dos grandes pecados de KC:D, a enormidade de produção de conteúdo. Vavra fala em 110 horas de voz off, só em cutscenes temos quase 9 horas de animação integral, eu fiz 103 horas de jogo para realizar apenas a Main Quest, e mais 3 ou 4 side quests. No YouTube existe um playthrough apenas da Main Quest, e apenas de uma perspetiva, com partes aceleradas e todos os momentos de espera cortados, e mesmo assim são precisas 17 horas. É verdade que, ao contrário da Bethesda que criou o seu próprio motor (Creation Engine), a Warhorse utiliza o CryEngine que sendo desenvolvido por terceiros, tem a vantagem de ser amplamente utilizado e por isso estar imensamente testado. No entanto, esse engine serve apenas a construção e renderização de cenas, para o design de jogo nas suas múltiplas frentes — missões, personagens, diálogos, objetos, locais, ações e interações, mapas, vozes, cutscenes, etc. — a Warhorse teve também de criar a sua própria ferramenta, o SKALD, que é o responsável pelo design assim como toda a gestão do pipeline de produção. Ou seja, grande parte dos problemas são originados nesta ferramenta, o que vem demonstrar mais uma vez o quão importante continua a ser a tecnologia e a informática enquanto arte de produção de videojogos.
CryEngine, construção de cena [fonte]
Interface de SKALD, visualização do mapa
Interface de SKALD, construção dos diálogos não-lineares. SKALD fez-me recordar o projeto europeu INSCAPE em que trabalhei, de 2004 a 2008, e que tinha como objetivo exatamente a construção de uma ferramenta de suporte à autoria de mundos narrativos interativos, algo que continua por definir e standardizar.

Apesar de tudo isto, KC:D exala paixão, espírito de missão e isso só é possível porque existe por detrás do jogo um líder, um diretor que busca dar forma e vida a toda uma visão, capaz de aguentar o projeto vivo durante 7 anos, e que é Dan Vavra (n. 1975; licenciado em Design). Este tem sido atacado por alguns comentários que foi fazendo sobre os media e nomeadamente sobre o GamerGate, mas se virem as suas várias entrevistas sobre o jogo, e o modo como trabalha em equipa e a sua abordagem contra a violência nos videojogos, verão como isso está longe de o caracterizar como pessoa. Daí o meu interesse em tentar perceber também como é que um jogo com estas dimensões pôde nascer num pequeno país Europeu, com a mesma população de Portugal, e fazendo uso da sua própria História. É que apesar de ser independente, estamos a falar de um jogo que custou, incluindo já despesas de marketing (o que pode ir de 30% a 50% nos dias de hoje), cerca de 35 milhões de euros, dos quais só 1 milhão veio pelo Kickstarter. Se tiverem o mesmo interesse que eu, aconselho-vos a ver o "Kingdom Come: Deliverance Documentary" (2018). Deixo a seguir alguns dos pontos do mesmo e que captei também em outras entrevistas, que me parecem essenciais para compreender o que aqui temos.


Dan Vavra começa, em 1998, num novo jogo, "Mafia" (2002), por mero acaso acabando a dirigir uma equipa de 9 pessoas, todos, ele incluído, sem qualquer experiência, nem de jogos nem de trabalho. Conseguem sucesso internacional e atraem um grande publisher, a 2K, para fazer uma sequela, "Mafia II" (2011). Mas como artista está pouco interessado em trabalhar sob as ordens da grande produção, por isso tenta ir à procura de outra sorte. Não emigra, nunca sai da Rep. Checa, começa a sua própria empresa. Para o efeito, desenha uma ideia assente numa abordagem inovadora, um RPG realista situado no centro da Europa no final da Idade Média. Com isso procura o primeiro financiamento antes de lançar qualquer desenvolvimento, que só começa em Setembro 2011. Em 2013 vão surgir os primeiros verdadeiros problemas quando o primeiro protótipo está pronto e se inicia o périplo pelos publishers internacionais, estes gostam mas respondem que não querem um jogo de História, não querem realismo, querem fantasia pura e visceral. Entra então o Kickstarter, não para financiar o jogo, mas para demonstrar que há mercado interessado naquele tipo de jogo. O oxigénio do Kickstarter permite passar o número de pessoas envolvidas, das 15 para as 40, e permite assegurar o interesse de mais financiamento e assim fazer chegar a equipa às 100 pessoas ao longo de 4 anos.

Só para fechar, deixo uma pequena lista que fiz há dias, dando conta de grandes jogos europeus que têm surgido nesta década, que dão cartas em todo o mundo, e que mostram que é possível fazer muito mais a partir de pequenos países como o nosso:
França - "Dishonored" (2012)
Suécia - "Brothers: A Tale of Two Sons" (2013)
Polónia - "This War of Mine" (2014)
Polónia - "The Witcher 3: Wild Hunt" (2015)
Dinamarca - "Inside" (2016)
Holanda - "Horizon Zero Dawn" (2017)
Suécia - "Wolfenstein II: The New Colossus" (2017)
França - "Prey" (2017)
Bélgica - "Divinity: Original Sin II" (2017)
República Checa - "Kingdom Come: Deliverance" (2018)

setembro 08, 2018

Forma e sentido na construção narrativa

“Os Lança-Chamas” (2013) de Raquel Kushner dificultou-me tanto o processo de resenha que resolvi criar uma nova categoria no GoodReads para o mesmo que denominei “Sem Avaliação” (no-rating), e no qual acabei inserindo outros livros que, como este, me tinham sido difíceis de avaliar. As dificuldades levantadas por estas obras têm principalmente que ver com os elementos de avaliação que uso para aferir o valor das mesmas que nestes casos se me oferecem com pesos que os colocam em polos opostos. Ou seja, num desses elementos a obra obtém o valor máximo enquanto noutro o valor mínimo. Nestes casos não é possível fazer média, que é aquilo que vamos fazendo subjetivamente ainda que com grandes margens de flexibilidade. Aliás, só mesmo por toda esta flexibilidade subjetiva é que aceito avaliar quantitativamente as obras, pois se quisesse ser completamente rigoroso não daria quaisquer estrelas. Mas o que está por detrás desta obra, ou melhor da minha experiência da leitura desta?


“Os Lança-Chamas” é o segundo livro de Kushner, tendo a autora lançado este ano o seu terceiro livro, já traduzido pela Relógio d’Água também — “O Quarto de Marte”. Falo deste último porque foram alguns dos aplausos recebidos pela obra, da parte de autores e críticos que costumo levar em conta — Jonathan Franzen, George Saunders e James Wood — que despertaram o meu interesse na autora, fazendo assim com que comprasse este segundo livro de Kushner.

Ao fim de poucas páginas percebe-se porque Franzen gosta tanto de Kushner, as suas formas de escrita aproximam-se imenso, encaixando muito bem num grupo de autores — Jonathan Franzen, Zadie Smith, David Foster Wallace, DeLillo e Pynchon — que Wood usa para delimitar o rótulo, por si criado, do "realismo histérico" (a definição foi apresentada pela primeira vez na resenha de Wood do livro "White Teeth" em 2000). Este modelo de contar histórias define-se, segundo Wood, pelo "excesso" e "exaustão" de realidade, criando uma espécie de "realidade evasiva enquanto assume os contornos do realismo". Os autores forjam conexões, ligações, enredos e paralelos entre múltiplas histórias e linhas de ação, que obrigam a um detalhar continuo de descrição de ações que tornam o texto num fluxo contínuo e imparável, disparando em todas as direções de sentido.

Franzen foi o primeiro escritor em que me apercebi deste modo de narrar, o seu detalhar contínuo de ações e micro-ações que mudam de espaço e tempo e nos levam atrás com enormes ânsias por descobrir mais e mais sobre o que se irá passar a seguir, que no fundo fazem com que se crie uma espécie de histerismo, uma urgência sem propósito. Li algures, uma comparação com o estado atual do audiovisual, com a necessidade de fazer montagens cada vez mais rápidas para agarrar os espectadores, e nomeadamente com as séries e os seus múltiplos enredos que asseguram o interesse ao longo de horas e horas. Pode ser, embora na escrita isto resulte mais complexo porque a retenção de tanta informação, se não muito bem urdida, pode destruir toda a experiência de leitura pelo excesso de demanda cognitiva. Por outro lado, não me parece que falemos aqui de excesso de linhas de enredo, o que temos é antes um excesso de detalhamento de ação interna ao enredo. Como se o olhar destes escritores conseguisse colocar em pausa a realidade, e assim detalhar ao pormenor o que se passa e porque se passa.

Este modo resulta bem diferente daquelas torrentes descritivas que Balzac ou Eça nos ofereciam no início do realismo, já que não descrevem o estático (espaços e personagens) mas o dinâmico (os eventos), que pela sua imprevisibilidade, dotada pela transformação e mudança, aumentem a curiosidade do leitor, o despertam e instigam a correr atrás. Na descrição do estático, temos de realizar um esforço para reconstruir em nós o que o autor está a ver e a descrever, enquanto na dinâmica, no enredo, estamos apenas presos ao fio dos acontecimentos, totalmente focados no que se irá suceder a seguir, e por isso mais atentos, interessados e claro curiosos. Não é por acaso que em narrativas mais centradas nos personagens, as pessoas se queixem de falta de ação, porque falta enredo, ou seja grandes ações e transformações a acontecer em que se focar e deixar-se levar. Nas narrativas centradas no personagem, temos de trabalhar mais internamente para ver e sentir de que são feitos esses personagens.
"Quando eu tinha doze anos, Flip foi a Reno e deu autógrafos num casino. Eu não tinha uma fotografia boa para ele assinar, por isso ele assinou na minha mão. Durante semanas tomei banho com um saco de plástico a cobrir essa mão, preso com um elástico no pulso. Não era uma paixão romântica. A disponibilidade tem os seus níveis. As meninas não alimentam ideias de sexo, o seu corpo e outro juntos. Isso vem mais tarde, mas alguma coisa haverá antes disso. Há algum devaneio inocente, um sonho, e os ídolos são perfeitos para os sonhos de uma rapariguinha. Os ídolos não são reais. Não são o homem de serviço na bomba de gasolina que tenta levar-te para as traseiras do posto, nem um ardina que tenta levar-te a entrar numa barraca de ferramentas, nem o amigo do pai que tenta levar-te a entrar no seu carro. Eles não tentam levar-te. Chamam, mas como pequenas miragens no deserto. Flip Farmer era inofensivamente inalcançável. Era uma coisa especial. Escolhi-o entre todos os homens do mundo e ele assinou as costas da minha mão e sorriu com uns dentes muito brancos, muito alinhados. Ofereceu esse sorriso a cada de um nós, crianças e adultos que estivemos na bicha para o Harrah's. Não éramos indivíduos, éramos a superfície onde ele se movia, sorridente e distante. O caso é que, se ele me tivesse devolvido o olhar, eu talvez tivesse lavado da mão o seu autógrafo." (Os Lança-Chamas, p. 29)
Ora Kushner enquadra-se belissimamente neste registo. O modo como exacerba o detalhe da ação agarra-nos totalmente, suga-nos para dentro do livro, e as páginas passam a voar. Contudo temos um problema, e agora voltando ao histerismo de Wood, os autores deste estilo caracterizam-se por apresentar temas e tópicos bastante diversos, mesmo extravagantes ou exóticos (ex. DFW usa uma parafernália de personagens estranhos tais como os Assassinos de Cadeiras de Rodas ou a divisão em anos definidos e promovidos por marcas como os hambúrgueres Whopper ou as fraldas para adultos Depend; DeLillo fala de artistas que pintam bombardeiros no deserto; enquanto Zadie junta bombistas islâmicos com Jeovás, com defensores dos animais e cientistas judeus que fazem experiências genéticas). Kushner não se fica atrás e fala-nos de motociclistas e automobilistas que vão para os desertos de sal americanos bater recordes, contrapostos com os artistas da cena nova-iorquina dos anos 1970, ao que junta resquícios de famílias da nobreza italiana contrapondo-as com as Brigadas Vermelhas, para no final nos levar através do grande Blackout de 1977. Se os cenários de Kushner encaixam bem, seguindo o tal histerismo, apresentam algo de distinto face aos restante escritores, é que parecem, pelo menos eu não consegui descortinar, que quando se juntam não resultam em algo mais, ou tão só não parecem ter nada para dizer.

Quebra de recorde de velocidade em Bonnieville Salt Flats por Roland Free em 1948. Fotografia de Peter Stackpole para a revista Life.

Foto símbolo de 1977 dos Anos de Chumbo em Itália

As pilhagens durante o Apagão de NY, em 1977

Se olharmos para "Piada Infinita", ou "Dentes Brancos" ou "Submundo", todas estas obras se constroem na base de múltiplas histórias e historietas, umas mais outras menos loucas, mas todas trabalham para um objeto, o seu entrelaçar vai desvendando esse objeto, o seu conjunto significa, aponta para a construção de significante, ainda que ele possa ser subjetivo ou abstrato. No caso de "Os Lança-Chamas" as histórias vão-se sucedendo, a escrita é belíssima, mas tudo parece apenas servir o desígnio de entreter a nossa mente, uma leitura rica mas que parece estar apenas ao serviço do passatempo. Reconstituído o puzzle final da leitura, não retiro dele nada. Este foi o problema que encontrei em "Purity" de Franzen, por oposição ao que nos tinha dado nas suas duas anteriores obras "Correções" e "Liberdade"  Talvez não por acaso tenhamos visto Kushner dar entrevistas tentando explicar o que queria dizer com o livro, assim como tenha escrito todo um artigo de desconstrução do processo criativo da obra para a Paris Review. Mas essas explicações só acabaram a reforçar as minhas conclusões iniciais, de que realmente nada havia aqui além do imensamente sofisticado tricot de palavras. Falo em sofisticação, porque não está ao alcance de qualquer um escrever e descrever desta forma, requer virtuosismo que por sua vez requer muito estudo e trabalho.

Tendo mais a defender obras pela excelência da forma do que do sentido, ou melhor, tendia, mais ainda no cinema. Talvez por um excesso de adulação que fui lendo em alguma crítica aos sentidos de algum cinema mais artístico, habituado a codificar ideias em símbolos na esperança de ampliar o seus sentidos, sem contudo se ter de obrigar a dizer algo em concreto. Muito desse cinema era, e ainda existe algum, muito básico na forma, porque muitas vezes era feito por pessoas com muito pouco traquejo da arte. Supostos artistas, que tendo algo supostamente tão importante para dizer, podiam prescindir de desenvolver conhecimento do métier, considerando-o mesmo secundário na arte. Nunca suportei tal postura, ainda hoje lido mal com a chamada Arte Contemporânea por causa desta sua tendência, a defesa do artista que não precisa de sujar as mãos. Por outro lado, não posso aceitar o contrário, que o brilho da execução, o virtuosismo, sejam suficientes para elevar uma obra e fazer esquecer que ela é, numa grande parte de si, um ato de comunicação. Se não há nada para comunicar, então mais vale não escrever ou não filmar.

Termino dizendo que a obra de Kushner tem momentos muito altos, não apenas na forma mas também no conteúdo. Existe muita pesquisa aqui envolvida, somos brindados com imenso conhecimento à medida que vamos lendo, e no fundo aprendendo. Contudo falta-lhe um propósito, a capacidade de tudo enlaçar e dar a ver por um novo olhar seu, pessoal, sobre o mundo que decidiu nos apresentar. Sei que isto não é obrigatório numa obra, já que se trata de romance e não de uma obra de não-ficção ou uma tese. Contudo, olhando aos grandes clássicos, os livros que se eternizam são os que são capazes de jogar tanto na forma como no significado. Não fosse a obra tão instigadora de diferentes opiniões, e não teríamos tido críticos a criticarem-se na praça pública (Miriello responde a Seidel, com Tracy a tentar explicar o que os separa). De qualquer modo, conto ler o último livro, para tentar definir melhor a minha posição face à autora.

setembro 06, 2018

"Loving Vincent" (2017)

"Loving Vincent" de Dorota Kobiela e Hugh Welchman é um filme-tributo dedicado a Vincent Van Gogh que usa como base a pintura a óleo, num processo manual que recorreu a mais de 100 artistas, para produzir os quadros que animam todo o filme. Se a primeira impressão é de estranheza, não só porque nem todos os quadros resultam esplendorosamente, mas principalmente porque existem vários problemas de fundo com a animação dos elementos, a história acaba funcionando bastante bem e a música de Clint Mansell marca a emocionalidade, a ponto de nos envolver e conseguir levar a viajar até bem perto de Van Gogh. Ficam algumas das melhores imagens do filme e um excerto de uma carta sua para o seu irmão, no início da sua jornada artística.















“What am I in the eyes of most people — a nonentity, an eccentric, or an unpleasant person — somebody who has no position in society and will never have; in short, the lowest of the low. All right, then — even if that were absolutely true, then I should one day like to show by my work what such an eccentric, such a nobody, has in his heart. That is my ambition, based less on resentment than on love in spite of everything, based more on a feeling of serenity than on passion. Though I am often in the depths of misery, there is still calmness, pure harmony and music inside me. I see paintings or drawings in the poorest cottages, in the dirtiest corners. And my mind is driven towards these things with an irresistible momentum.”
Vincent van Gogh, 21 July 1882