novembro 21, 2014

A Montanha Mágica

A magia da palavra, é daqui que brota o poder alienante a que sucumbimos ao longo das mais de 30 horas de leitura (832p) da obra-prima de Thomas Mann. "A Montanha Mágica" (1924) comumente citado como um dos mais relevantes romances do século XX, é mais do que isso, é um legado humanista.

“serei um amante de música, o que não quer dizer ainda que a preze de forma especial – como prezo e venero a palavra, o suporte do espírito, o instrumento, o arado fulgurante do progresso… a música… a música é o semiarticulado, o dúbio, o irresponsável, o indiferente...

...a música é de um valor inestimável como meio supremo de arrebatamento, como força que nos faz avançar e voar mais alto quando o espírito já se acha preparado para a acolher. Mas a literatura deve tê-la precedido.”
Mann leva-nos até ao cimo de uma montanha, onde nos entretém junto de hóspedes de um sanatório para tuberculosos. A pureza da natureza é confrontada com a morte pela doença, e daqui emerge um espaço-tempo propício à discussão dos elementos que fazem de nós homens e mulheres. A discussão assume um tom elevado, elaborado, mas não é por aí que a obra se torna difícil, podendo surgir talvez alguma dificuldade apenas pelo lado das referências filosóficas, culturais, sociais e políticas.

O tom elevado convive com um discurso conceptualmente trabalhado ao detalhe. Sente-se que Mann escreve com delicadeza, que escreve e reescreve para que da complexidade não surta ambiguidade, fá-lo sem contudo deixar de usar uma linguagem acessível, raramente adjectivando ou floreando, raramente rebuscando o vocabulário. Desta forma Mann consegue construir por meio de uma enorme simplicidade linguística, um estilo profundamente elaborado muito graças ao trabalho que exerce na construção gramatical, por meio de frases longas, cheias de descrições e significados que nos agarram, e nos obrigam a manter a concentração na leitura, sem espaço para distracções.
“E nós, sombras tímidas à beira do caminho, acanhadas na nossa segurança de sombras, sem desejo algum de nos alongarmos em patranhas e façanhas, viemos aqui dar guiadas pelo espírito da história, para que possamos avistar uma vez mais, antes de perdê-lo completamente de vista, um daqueles camaradas cinzentos que correm, se precipitam e avançam ao som do rufar dos tambores, que irrompem em bandos da floresta, um soldado que conhecemos bem, nosso companheiro de viagem de longos anos, o simpático pecador cuja voz tantas vezes escutámos.”
Em termos utilitaristas poderíamos dizer que se aprende muito lendo, e mais ainda lendo obras como “A Montanha Mágica”, mas aquilo que se aprende em obras deste calibre não está ao nível da ingestão de simples factos, ou descrições de eventos, acontecimentos, ou a desconstrucção de teorias e conceitos. O que se aprende com Mann, e nomeadamente com a viagem através desta Montanha, ao longo de 7 anos, tempo cronológico da diegese, é a ver o mundo de uma forma distinta. Aprendemos a aceitar a realidade de uma forma que não está ao alcance da experiência directa que possamos ter no nosso dia-a-dia. Porque mesmo ficcionando, Mann se viu obrigado a situar a acção num ambiente de reclusão, afastado da azáfama do dia-a-dia, das obrigações, deveres, trabalhos, relógios e calendários. Ali, a vida a corre num tempo completamente paralelo, imune às vicissitudes do nosso real.
“O que designamos por tédio é, portanto, uma abreviação doentia do tempo decorrente da monotonia: a uniformidade constante produz a redução atroz e assustadora dos longos períodos de tempo.”
Deste modo Mann consegue recriar uma comunidade profundamente dedicada à dialéctica, capaz de colocar em debate qualquer assunto, na sua estrutura em abstracto, mantendo na maior parte do tempo, uma enorme consciência do ponto de vista do outro, possibilitando a tolerância e assim fazendo avançar o debate. Inevitável recordar aqui um discurso de David Foster Wallace, que vale a pena ler e ouvir.

Apesar da beleza da forma, que como Mann diz pela boca de Castorp é apenas “afectação”, é natural que um trabalho desta magnitude tenha de ser suportado por conteúdo, o tal sentido utilitário da leitura, e nesse sentido foi com muito interesse que li o pequeno apontamento do extremista Naphta a propósito da Educação e da Escola, nomeadamente por este ser um texto com 100 anos, e distar tão pouco de muito daquilo que vamos continuando a ouvir ainda hoje:
“Sim, não nos apercebíamos de como o povo se ria a bom rir dos nossos títulos de doutor e de todo o nosso mandarinato educativo, da escola primária oficial, esse instrumento da ditadura burguesa manejado na ilusão de que a cultura popular seria uma forma diluída da cultura erudita. O povo sabia muito bem onde ir buscar a cultura e a educação de que necessitava na luta contra a burguesia apodrecida, sabia que não era nas casas oficiais de correcção que as encontraria, para além de que não era segredo para ninguém que o nosso modelo de escola, desenvolvido a partir da escola monástica da Idade Média, era um modelo obsoleto e anacrónico e que ninguém no mundo devia já a sua formação à escola… o ensino livre, aberto a todos, baseado em conferências públicas, exposições, cinema e outras coisas afins estava muito acima do tradicional ensino escolar.”
Não vou aqui entrar na discussão em detalhe do muito que se discute na obra, porque isso foi já tão amplamente dissecado em termos académicos, que eu, não sendo sequer da área literatura, muito dificilmente poderia aqui acrescentar algo. Desde congressos inteiros dedicados à discussão da obra de Mann, às centenas de papers que se podem encontrar no Google Scholar, é possível encontrar quase todos os assuntos, conceitos ou estilos discutidos em detalhe.

Para fechar, dizer apenas que tudo isto está apenas acessível a nós, falantes de português, porque a tradução de Gilda Lopes Encarnação, de 2009, é absolutamente magistral, levando o jornal Público a intitular uma entrevista realizada com a tradutora, “Como se Thomas Mann escrevesse em português”. Com um mestrado e um doutoramento em Literatura Alemã, e vários anos como professora de português em território germanófono, levou um ano e meio a realizar esta tradução, que não posso deixar de recomendar vivamente.

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