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fevereiro 25, 2020

O Viés de Lucrécio

“The Swerve: How the World Became Modern” é um livro de divulgação científica centrado na teoria dos estudos literários que defende a obra “Da Natureza das Coisas”, de Lucrécio, como um dos principais motores do período da Renascença e consequentemente da Ciência, apontando o poema como pilar da criação do mundo moderno. O poema de Lucrécio foi publicado por volta de 55 a.C, sendo que a razão pela qual se sugere esta relação com o renascentismo tem que ver com o facto de ter praticamente desaparecido durante toda a Idade Média, tendo sido apenas recuperado em 1417 por Poggio Bracciolini, num mosteiro alemão, a partir do qual se fariam as cópias que o trariam até nós. Sendo um livro de divulgação, Stephen Greenblatt escolhe como foco exatamente Bracciolini, e toda a história em redor da redescoberta de “De Rerum Natura”, criando um livro de não-ficção romanceado, fazendo lembrar muitas vezes Umberto Eco e Dan Brown. O relato teve direito a Pulitzer e National Book Award, ambos na categoria Não-ficção.
Começar por dizer que a teoria — impacto de Lucrécio na Renascença — não é invenção nem descoberta de Greenblatt, é antes parte de uma corrente de estudos que se têm dedicado a compreender o modo como surgiu, desapareceu e voltou a aparecer na história o poema de Lucrécio. Assim no campo académico podemos aprofundar a discussão nos livros “The Cambridge Companion to Lucretius” (2007) editado por Stuart Gillespie e Philip Hardie e no livro “The Return of Lucretius to Renaissance Florence” (2010) de Alison Brown. Sendo este tipo de trabalho realizado a um nível interpretativo, como não podia ser de outro modo, já que não é possível aferir o que teria pensado, e até mesmo lido, cada um dos grandes nomes da Renascença, acaba sendo uma teoria dada a grande discussão. Ou seja, os estudiosos podem evocar Lucrécio em inúmeros autores, tendo alguns citado diretamente a obra Lucrécio, como acontece em Montaigne, mas não podem oferecer evidências concretas do impacto das ideias de Lucrécio nesses autores, e menos ainda em todo um movimento que demorou séculos a surgir, tendo o mesmo iniciado-se antes desta descoberta, com grandes obras como a “Divina Comédia” (1321) de Dante. Contudo, isso não faz da teoria algo menos interessante, relevante, e ainda menos apelativa. Na verdade, o conteúdo da mensagem de Lucrécio está completamente sintonizado com as razões que suportaram o surgimento da Renascença e nos daria depois o Iluminismo. Leiam-se as principais ideias subjacentes a “De Rerum Natura”, listadas por Greenblatt:
. “Everything is made of invisible particles”.
. “The elementary particles of matter-"the seeds of things"-are eternal.”
. “The elementary particles are infinite in number but limited in shape and size.”
. “All particles are in motion in an infinite void.”
. “The universe has no creator or designer.”
. “Everything comes into being as a result of the swerve.
. "The swerve is the source of free will."
. "Nature ceaselessly experiments."
. "The universe was not created for or about humans."
. "Humans are not unique."
. "Human society began not in a Golden Age of tranquility and plenty, but in a primitive battle for survival."
. The soul dies."
. There is no afterlife."
. “Death is nothing to us.”
. “All organized religions are superstitious delusions.”
. “Religions are invariably cruel.”
. “There are no angels, demons, or ghosts.”
. “The highest goal of human life is the enhancement of pleasure and the reduction of pain.”
. “The greatest obstacle to pleasure is not pain; it is delusion.”
. “Understanding the nature of things generates deep wonder.”
Sobre o conjunto das ideias aqui expressas, podemos dizer que formam o núcleo do Humanismo, ou seja da herança prestada pelo Iluminismo que nos daria a Revolução Industrial, e tal como diz Greenblatt, “o mundo moderno” que hoje conhecemos. Por isso, podemos até desconfiar do suporte científico à teoria, dos académicos das ciências literárias, mas não podemos deixar de lhe reconhecer sentido e mérito. O "swerve" era para Epicuro (autor grego seguido por Lucrécio, de quem restam poucos registos) o viés no movimento dos átomos, que originava variação e alteração, impossível de prever e que desse modo restringia a possibilidade determinística, criando o acaso, abrindo lugar ao livre arbítrio. Greenblatt, não perde a oportunidade de ligar esse "swerve", ao modo como "De Rerum Natura" desapareceu e voltou a surgir no nosso mundo por um grande acaso.

Posto isto, tenho de dizer que aquilo que mais me espantou, nos múltiplos ataques realizados a Greenblatt, não foram a propósito da fragilidade da teoria, mas essencialmente a propósito da linguagem, da falta de rigor, e nomeadamente falta de respeito pela Idade Média. Mas à medida que fui lendo os ataques fui percebendo que tínhamos ali algo além desse não reconhecimento. É sabido que nas últimas décadas tem existido um enorme movimento para recuperar a história da Idade Média e apresentar a mesma como um período que não terá sido tão mau como nos quiseram fazer crer no passado recente. Tenho de dizer que simpatizo com este movimento, porque por muito pouco que se tenha feito, fez-se, foram 1000 anos de vivência que nos trouxeram a um segundo grande milénio, por isso nem tudo pode ter sido mau. Contudo, quando começo a ver académicos a embandeirar excessivamente em defesa da Idade Média, fico de pé atrás. As evidências são tão avassaladoras que não é sustentável qualquer comparação mínima entre esse período, o anterior (Grécia e Roma antigas) e posterior (Renascimento).

Diagrama criado por Emil O. W. Kirkegaard, em 2017, a partir da obra historiográfica "Human Accomplishment: The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C. to 1950" (2003) em que Charles Murray lista cerca de 4000 individualidades que marcaram a nossa História, e no qual se vê o declínio da Europa, restando a história destes séculos nos ombros da China e Arábia. Para os que desconfiam da honestidade de Murray, podem sempre verificar os dados no Pantheon do MIT.

Tenho de dizer que os ataques promovidos em várias recensões do livro, em revistas internacionais de referência, são no mínimo ridículos, e só consigo pensar que quem o faz, o faz como forma de defesa da religião, nomeadamente do cristianismo. O que faz sentido, já que é à religião que temos de pedir contas por muito daquilo que seria toda aquela escuridão. Impressiona ver como o ano zero marca o declínio do Império Romano, ao que se sucederiam mil anos de completo vazio em toda a Europa. Se analisarmos listas dos feitos civilizacionais, da arquitetura à filosofia e ciência veremos a pujança dos Império Egípcio, seguido do Grego e Romano, ao longo de 3000 anos, e depois disso temos um ano zero em parece que tudo termina, e temos de esperar 1000 anos para ver novamente o ser humano a florir. Claro que Greenblatt põe o dedo na ferida, nem poderia ser de outra forma, pois olhando a lista de ideias de Lucrécio, expostas acima, torna-se muito simples compreender o que terá acontecido ao livro, e a razão porque terá praticamente desaparecido durante aquele período. Não posso deixar de me rir com a resposta que o próprio Greenblatt deixa como comentário a um desses ataques:
"I plead guilty to the Burckhardtianism of which John Monfasani accuses me.  That is, I am of the devil’s party that believes that something significant happened in the Renaissance.  And I plead guilty as well to the conviction, regarded by my genial and learned reviewer as ‘eccentric’, that atomism – whose principal vehicle was Lucretius’ De rerum natura – was crucially important in the intellectual trajectory that led to Jefferson, Marx, Darwin, and Einstein." (Reviews in History, 2012)
Compreendo que incomode os académicos, e não académicos, religiosos. Basta ver algumas das recensões que se encontram aqui no Goodreads ao próprio “De Rerum Natura”, o modo como se evocam os argumentos mais ridículos para destruir Lucrécio. E desse modo percebemos, como passados 2000 anos mudámos pouco e continuamos a debater-nos com os mesmos problemas. Por isso, não admira toda a polaridade política que grassa na América do Norte e do Sul, e que aos poucos tem procurado entrar na Europa. O conhecimento, a ciência, estão ao alcance de qualquer um, mas dão trabalho e não é são recompensas imediatas, falta-lhes o autoritarismo, a submissão e as hierarquias, falta-lhes estrutura que sustente as pessoas em grupos, o lado social e mesquinho. Nada interessa mais às pessoas do que fazer parte do grupo, de acreditar no mesmo que acredita o vizinho, mesmo sabendo que não é verdade, é preferível estar no mesmo barco, e ir ao fundo acompanhado, do que ficar sozinho.

Voltando a "Swerve", tenho de dizer que ao longo da experiência da leitura, e à medida que fui entrando mais e mais dentro de Lucrécio, a ponto de ter começado a ler o livro que já queria ter lido, mas tinha tido receio pela sua complexidade, fui sentindo que muito daquilo que me fez entrar no mundo da ciência, nomeadamente por via de Carl Sagan, já estava aqui, em Lucrécio. Respira-se um mundo feito de ideias, de argumentação e contra-argumentação, sustentado nas evidências e hipóteses. Um dos momentos mais altos surge perto do final quando Greenblatt introduz a reverência e carinho de Montaigne por Lucrécio e pensamos, sentimos, vemos, como o poema, o poema didático de Lucrécio, foi também responsável pela criação da forma do Ensaio. Como chegariam as suas ideias a Newton, Darwin e Einstein. Enquanto lia as palavras de Lucrécio só pensava no fascínio que tinha sentido recentemente ao ler Mlodinow ou Rovelli e no pouco de novo que estes afinal nos tinham trazido, ainda que sustentados em melhor ciência, face ao que Lucrécio e Epicuro anteciparam há mais de 2000 anos. Impressiona este andar em círculos, mesmo sabendo que o conhecimento verdadeiro só se constrói pela continua insistência e demonstração, porque perturba perceber o quanto é preciso lutar contra muitos daqueles que continuam a viver na obscuridade e a tudo fazer para que os outros com eles padeçam da mesma cegueira.

julho 08, 2019

Storytelling e as Ciências da Mente

O livro “Storytelling and the Sciences of Mind” (2013) de David Herman, pela MIT Press, trata um dos temas que mais tem atraído o meu interesse nos últimos 15 anos, e que tem que ver com o modo como as histórias servem o nosso enquadramento da realidade. Tentar compreender como é que a organização narrativa de informação nos ajuda a compreender o mundo e os outros, como é que essa organização se relaciona com as nossas capacidades cognitivas e nos impele não apenas a refletir e a interpretar os mundos, situações e pessoas apresentadas, mas também a conceber e especular planos futuros para ação, produzindo assim transformações comportamentais a partir da relação com essas narrativas. O livro de Herman é brilhante, porque não se limita a um dos lados da questão, antes trabalha transdisciplinarmente a narratologia e as ciências cognitivas, importando e fusionando conhecimento de parte a parte. O único problema é estar escrito numa forma nada amigável para quem não estude a área, reduzindo completamente o alcance da obra.


Na última década não têm faltado trabalhos no domínio da narrativa e storytelling sobre a sua importância para o humano e para as nossas capacidades cognitivas (Gottschall, Brian Boyd, Paul Zak, etc. ), contudo como diz Herman esses trabalhos têm-se limitado a importar apenas de um lado para o outro. Ora Herman apresenta uma obra na qual apresenta um troca entre ambas as partes, alimentando mutuamente o conhecimento tanto da narrativa como do modo como apreendemos o mundo. Assim o livro divide-se em duas grandes partes, procurando responder às duas grandes questões: (1) “How do stories across media interlock with interpreters’ mental capacities and dispositions, thus giving rise to narrative experiences?”, ou seja, como é que interpretamos os mundos apresentados pelas narrativas. (2) “And how (to what extent, in what specific ways) does narrative scaffold efforts to make sense of experience itself?”, ou seja, como é que a narrativa contribuiu para a nossa compreensão da realidade. Para o efeito Herman propõe dois grandes conceitos: “Narrative Worldmaking” e “Storying the World”.

Assim para o Worldmaking, Herman propõe que as narrativas — independentemente do media — funcionam de modo referencial, providenciando estímulos cognitivos para a criação de entidades na forma de mundos onde as histórias acontecem. No “storying”, Herman propõe que as histórias configuram o modo como organizamos o fluxo do caos de estímulos da experiência diária. Deste modo, o worldmaking poderia ser visto como um instrumento de criação de sentido da realidade. Esta proposta de convergência de enquadramento teórico acaba por configurar aquilo que Herman define como o “mind-narrative nexus”.

Em jeito de introdução a toda esta teorização Herman abre o livro como uma discussão extremamente pertinente e com a qual me venho debatendo há algum tempo, a intenção autoral. Assim, só faz sentido configurarmos as histórias com base na criação de sentido se assumirmos que quem conta histórias o faz com uma intenção, ou seja, que a narrativa é em essência um ato de comunicação, algo que Walter Fisher já tinha proposto em 1985, mas que choca com alguns defensores da arte como algo não comunicacional. Do meu lado, tendo a aceitar mais facilmente que a arte possa não ser dotada de intenção comunicativa quando ela é de ordem simbólica — música ou abstracta — contudo quando falamos de estruturas narrativas, falar de ausência de intenção expressiva é no mínimo paradoxal. Para Herman isto é tanto mais central porque o modo como compreendemos as narrativas é a partir das razões que movem os personagens/pessoas sendo elas que conduzem as razões das histórias e sendo com elas que nós nos envolvemos. Porque os atos das pessoas nas histórias estão fundamentadas em "crenças", "intenções", "objetivos", "motivações", "emoções", "estados mentais" ou "competências" que para a interpretação do leitor têm de inevitavelmente ser atribuídas aos autores/criadores das narrativas.

Isto vai ao encontro da discussão que se segue que tem que ver com a análise não-redutível das situações e das pessoas nas histórias. Herman considera que apesar de podermos aprofundar neurocientificamente os constituintes de "pessoa", isso não nos ajuda a compreender o que acontece no processo de experiência dos recetores. Porque considera que os processos que decorrem acontecem ao nível da intersubjectividade, que pode ser definida em dois níveis, segundo Trevarthen  — primário, “the core of every human consciousness” que “appears to be an immediate, unrational, unverbalized, conceptless, totally atheoretical potential for rapport of the self with another’s mind”; e secundário “sympathetic intention toward shared environmental affordances and objects of purposeful action” — e que é responsável pela nossa noção de individualidade no seio da comunidade, e assim pela nossa capacidade de construir uma noção do nosso posicionamento nessa realidade. Deste modo as histórias servem não apenas o reforço de modelos sociais, mas servem fundamentalmente como experimento e teste desses modelos. Se as pessoas se baseiam nos seus conceitos do mundo para compreender o mundo apresentado pela narrativa, não deixam de usar essas mesmas narrativas como instrumentos de suporte ao pensamento crítico sobre esses conceitos. Ou seja, existe uma interação contínua entre aquilo que a narrativa apresenta e aquilo que é o mundo pré-exposição à história do recetor que conduz a uma discussão crítica interna.

Herman defende que o cerne do engajamento com as histórias acontece a partir do modo como podemos ou não mapear as pistas dadas em dimensões de configuração mental assentes no em: Quem, O Quê, Onde, Como e Porquê. E por sua vez como é que estas questões servem na passagem das categorias narrativas à definição dos personagens, para o que Herman defende que o leitor prossegue um conjunto de questões tais como:
(1) “For which elements of the WHAT dimension of the narrative world are questions about WHO, HOW, and WHY pertinent? In other words, in what domains of the storyworld do actions supervene on behaviors, such that it becomes relevant to ask, not just what cause produced what effect, but also who did (or tried to do) what, through what means, and for what reason?” 

(2) “How does the text, in conjunction with broader understandings of persons, enable interpreters to build a profile for the characters who inhabit these domains of action? Put otherwise, how do textual features along with models of personhood (deriving from various sources) cue interpreters to assign to characters personlike constellations of traits?” 

(3) “Reciprocally, how does the process of developing these profiles for individuals-in-a-world bear on broader understandings of persons?” 
Na segunda parte, dedicada ao "Storying the world", Herman dedica-se a desconstruir o modo como as narrativas podem servir de instrumentos ou ferramentas mentais para trabalhar o mundo, para o que apresenta cinco grandes modos de criação de sentido, ou modos de scaffolding (de suporte) ao nosso pensamento:

1 — “’chunking’ experience into workable segments”
Aqui Herman começa por exemplificar com a divisão em 3 atos de Aristóteles, que tem apenas como objetivo podermos separar em partes a experiência absorvida. Ou seja, particionar e atribuir estrutura à informação, organizando em “pedaços” facilmente indexáveis e chamáveis à memória. Neste processo de chunking enquadram-se vários processos, um também muito interessante é a noção de espaço versus lugar:
“stories can be used to turn spaces into places — to convert mere geographic locales into inhabited worlds. My analysis suggests that there is in fact a range of ways in which narrative can serve as a resource for transforming abstract spaces into lived-in, experienced, and thus meaningful places (..) As Johnstone (1990) puts it, “coming to know a place means coming to know its stories; new cities and neighborhoods do not resonate the way familiar ones do until they have stories to tell” (p. 109; cf. p. 119 and also Johnstone 2004; Easterlin 2012, pp. 111–151; Finnegan 1998; Relph 1985; Tuan 1977). Accordingly, “in human experience, places are narrative constructions, and stories are suggested by places” (Johnstone 1990, p. 134). Hence narrative worldmaking can also be described as a resource for place making—for saturating with lived experience what would otherwise remain an abstract spatial network of objects, sites, domains, and regions."
2 — “imputing causal relations between events” 
É esta componente que nos permite desenvolver pensamento crítico sobre o que acontece nas relações entre os agentes, analisar, contrastar e confrontar as razões, a justeza, a verdade e falsidade. Herman defende que lemos os eventos como ações que constroem o mundo-história dirigido a um objetivo, para uma meta que condiciona as ações e reações. No fundo esta abordagem pela causalidade serve também o chunking, já que permite relacionar eventos e ocorrências até aqui isoladas, em episódios ou cenas, que depois podemos utilizar mentalmente. Herman diz mesmo que as histórias funcionam como heurísticas de julgamento, que vão contribuindo para alimentar com regras básicas a nossa interpretação da realidade.

3 — “addressing problems with the 'typification' of phenomena” 
Neste ponto entramos num processo de chunking, ou organização, em parte, do modo como resolvemos problemas. No fundo, o modo como conseguimos partir do particular de cada história para a generalização da nossa relação com a realidade diária. Herman fala então da tipificação, ou categorização — em objetos e classes — que nos permite gerar expectativas para determinadas resultados de solução para situações nunca antes encontradas, através daquilo que já experienciámos. Assim “If assimilated to preexistent types, any encountered object, situation, or event can be placed within a “horizon of familiarity and pre-acquaintanceship which is, as such, just taken for granted until further notice as the unquestioned, though at any time questionable stock of knowledge at hand”. As histórias recebidas sobre o mundo fornecem contextos de tipicidade, garantindo a interpretação de ocorrências inesperadas, permitindo vários modos de resolução de problemas. No fundo, “a general account of narrative as a mind-extending, mind-enabling resource” (p. 251).

4 — “sequencing actions” 
Aqui a ideia é de que as histórias nos fornecem também uma espécie de protocolos de atuação, de racionalização da sequência de ações a tomar. Este processo é comparado por Herman à conversação, na qual nos organizamos para colaborar, aqui utilizamos as pistas para nos organizer para agir na relação com o problema proposto pela realidade.

5 — “distributing intelligence across time and space”
Este ponto surpeendeu-me porque me habituei a pensar nele a partir da rede de internet, e apesar dele ter nascido com o contar de histórias, e apesar de sabermos que esse é um dos grandes fundamentos das histórias, a passagem de conhecimento entre gerações, nunca tinha parado para compreender as histórias como um fenómeno de inteligência distribuída, que o é também.


Deixo ainda uma palavra para a complexidade do texto. Herman trabalha de forma soberba a abstração de conceitos, o seu problema acaba sendo a enorme dificuldade que tem em particularizar as mesmas. O livro denota um esforço tremendo no sentido de tornar o texto mais acessível, desde logo todos os capítulos apresentam introduções e conclusões de sumário, que repetem os argumentos, assim como são utilizadas várias histórias de vários meios — literatura, cinema, banda desenhada — para desmontar os conceitos, mas nem assim se torna mais fácil compreender o que é aqui discutido. É interessante como Herman compreende que a força das histórias está na particularização e individuação dos eventos e das ações, no uso das pessoas/personagens como veículos principais da compreensão, mas depois não consegue aplicar essas ideias na sua abordagem comunicativa. Não é uma mera questão de uso de jargão, embora diga-se que não houve nesse domínio qualquer controlo de danos, e isso também não ajuda, mas o maior problema são mesmo as enormes tiradas de conceitos abstractos, definidos por jargão, que se interligam e embrenham em novos conceitos, que obrigam o leitor a montar todo um enquadramento mental altamente exigente, para o que quem não possui experiência e conhecimentos anteriores da discussão se torna praticamente inacessível.

junho 23, 2019

A ciência de Steven Pinker, e dos seus

Uma rápida passagem pelas discussões genéricas em redor de “Enlightenment Now” passa a ideia de que uma boa parte não o leu, focando-se mais nas entrevistas e textos promocionais da obra do que no texto em si. Parece existir uma fixação da elite intelectual, mais de esquerda, em atacar os dados quantitativos e otimistas de Pinker, e uma fixação da elite científica, mais à direita, em defender esses mesmos dados. Quanto ao progresso visível nos dados, passo a discussão, Pinker não diz nada que Hans Rosling não tenha já dito em “Factfulness: Ten Reasons We're Wrong About the World – and Why Things Are Better Than You Think” (2018) (análise). Por outro lado, é tonto, para não dizer algo mais rude, ver Pinker ao longo de todo o livro a acicatar estes dois grupos de pessoas, querendo ele próprio colocar-se de fora, citando amiúde a seminal obra de CP Snow “The Two Cultures” (1959) (análise), mas de cada vez que o faz só se afunda mais num desses lados. Repare-se que estas duas culturas — que prefiro sintetizar pelos perfis dos modelos mentais, lógicos e ambíguos —, não são uma invenção do século XX, elas estão presentes desde a oposição entre Platão e Aristóteles, passando pela oposição entre Descartes e Hume, chegando aos estereótipos delineados por William James — “tender-minded” vs. “tough-minded” — que C.P. Snow opta por diferenciar como — “cientistas” e “intelectuais literários” — e que podemos apresentar, nos dias de hoje como — positivistas e interpretivistas.

Este mapa de conceitos explica muitos dos problemas do livro de "Enlightenment Now" (2018). No entanto se Pinker se coloca do lado do positivismo para defender o seu modo de ver, quando lhe interessa passa para o lado do interpretivismo, nomeadamente no que toca a atacar académicos como Bauman ou Foucault ou filósofos como Nietzsche.

Dito isto, teria pouco mais a dizer sobre o livro, porque como já disse Pinker não diz nada, em termos de dados económicos mundiais, que Rosling não diga muito melhor. Por outro lado, ao longo do livro as leituras que vai apresentando sobre esses dados são não só pouco novas, como pouco estimulantes, nomeadamente quando comparadas com as de Yuval Harari (análises dos seus livros). No entanto, não posso deixar de dizer algo mais sobre esta obra, mais concretamente sobre a terceira parte, e em especial os últimos dois capítulos — “Ciência” e “Humanismo — nos quais considero que Pinker destrói completamente a sua credibilidade enquanto académico moderado e conciliador, para não dizer mesmo enquanto académico.


No capítulo sobre Ciência, Pinker ataca diretamente Bauman e Foucault, rotulando-os de pós-modernos, anti-verdade, anti-ciência, anti-dados, tudo rótulos que não colam com nenhum dos autores, mas de que Pinker abusa para assim poder agregar valor ao trumpismo, populismo, conspiracionismo, etc. etc. O pior é que ao fazê-lo, rotulou esses dois autores com estes mesmos rótulos, o que é do muito ponto de vista, não um erro grosseiro, mas uma filha-da-putice (peço desculpa pela linguagem). É inadmissível que Pinker para defender as suas ideias, atire para a lama dois dos mais respeitados pensadores das ciências sociais, duas mentes dotadas de uma capacidade visionária impar. Não vou defender Foucault, que tem andado na boca de muitos, mas sobre o ataque  a Bauman tenho de falar.

Pinker não compreendeu, ou não quis compreender Zygmunt Bauman. Optou por simplesmente pegar nele e metê-lo no saco duvidoso em que estavam Adorno e Horkheimer, levando de arrasto o próprio Foucault. Ao fazê-lo cometeu um erro que destruiu tudo o que tinha para dizer. Adorno era um filósofo da Estética, não era sociólogo, ainda assim não se pode dizer que tenha só dito banalidades, muito do seu discurso de ataque à Arte Moderna na relação com o Nazismo faz algum sentido, claro que no final as suas teorias valem o que valem, falo extensivamente sobre isto na análise do “Doutor Fausto” (1947) de Mann (análise). Mas Bauman não era crítico de arte, foi um dos mais importantes sociólogos do século XX, judeu-polaco fugido dos Nazis para União Soviética, o seu impacto cresceu durante toda a segunda metade do século, recebendo as mais diversas premiações e condecorações científicas. Pinker comete um erro que vejo amiúde, misturar a discussão sobre Arte pós-moderna com a análise sociológica que define o tecido social como pós-modernista.

Vejamos então como para defender a sua visão otimista Pinker opta por dizer que a ciência não trouxe mais guerra, antes o contrário, e por isso não aceita que Bauman veja os nazis, o Holocausto, como fruto do Iluminismo. Ora, em primeiro lugar, isso mesmo diz Bauman, a evolução científica trouxe mais paz, mas isso não serve para eliminar a ciência da leitura, antes serve sim para tornar o Holocausto uma aberração ainda maior. Pinker do alto do seu racional lógico é incapaz de aceitar a anomalia à regra. Repare-se então como o tamanho e a brutalidade do que foi feito no Holocausto não é igual a nada na História anterior. Desde logo aqui seria preciso questionar-nos, então porquê agora? Mas Pinker, em vez de questionar, atira para o lado, do mesmo modo como faz noutros assuntos ao longo do livro, e menoriza mesmo, dizendo sobre o Holocausto apenas e só que racismo sempre existiu.

É preciso ler Bauman, ler como ele desmonta toda a máquina Nazi desde a burocracia à criação de rotina e desumanização, todo o modo como se constrói o distanciamento moral do ato violento. Nada disto era possível noutro tempo, porque nunca antes houvera civilizações tão racionalmente avançadas e organizadas para criar uma máquina que funcionasse sem controlo central, em cadeias autónomas. Repare-se como passados 75 anos não se sabe se a ordem para uma Solução Final chegou alguma vez a existir, pelo menos registos escritos não existem (ver “Shoa” (1985) análise), porque talvez a ordem nunca tenha mesmo sido proferida, mas tenha resultado de um conjunto de ideias, ordens, pressões, que se foram amontoando e culminaram em algo que provavelmente ninguém conseguiria sequer imaginar enquanto sujeito humano normal, e sim, a maior parte daqueles alemães eram pessoas normais, empáticas, com aversão à violência, mas o sistema conseguiu furar essas barreiras do humano. Repare-se ainda no modo como a racionalização científica atuou sobre a ideia de raça, não pela simples ideia da diferenciação de raças, mas pela lógica e causalidade, como fica explanado num excerto de Goebbels que Bauman cita:
"There is no hope of leading the Jews back into the fold of civilized humanity by exceptional punishments. They will forever remain Jews, just as we are forever members of the Aryan race." Goebbels
Ou seja, o racional está ali, não há como transformar judeus em arianos, por isso só nos resta aniquilá-los. A razão é lógica, só a compaixão poderia derrubar este racional, algo completamente inaceitável num sistema brutalmente lógico como o Nazi. Veja-se como as pessoas foram selecionadas para ser levadas para os campos, no caso de judeus regulares era direto, mas para aqueles que tinham casado fora do reduto judeu, criou-se uma fórmula de cálculo das gerações até às quais se contava o parentesco e a presença de sangue judeu. Isto não é algo que um grupo de simples racistas se lembrasse de fazer, isto é feito assim para garantir a solidez da razão lógica, inquestionável, justificando plenamente a ação (leia-se “La Storia” (1974) (análise)).

É muito triste ver Pinker a desancar em Bauman e Foucault, dizendo barbaridades como o facto de eles não utilizarem dados quantitativos, ou de se dedicarem a meras abstrações (sendo a abstração o reino por excelência do racionalismo e positivismo) e depois pondo-os no mesmo saco de comentadores de jornais, e extremistas que atacam a ciência a partir do seu mero fervor religioso, ou simplesmente, porque financeiramente não lhes dá jeito, como no caso dos Republicanos e o aquecimento global.

Mas não posso dizer que me tenha surpreendido totalmente, Pinker é psicólogo, mas o seu discurso está completamente imbuído de positivismo, mesmo que ele vá dizendo amiúde que a ciência é um contínuo refinar de hipótese e teses, amiúde vai dizendo que a ciência é a última verdade. Ora um posicionamento destes é inaceitável. Não podemos querer tudo, não podemos querer fazer da ciência religião e política, porque ela nunca quis tal lugar. Sim, vivemos tempos de Humanismo, em que as religiões caíram e resta-nos a ciência, mas usemos a ciência para nos ajudar, não para nos controlar. Aliás, é isso mesmo que se discute em “Doutor Fausto”, o problema da racionalização é que impede o subjetivismo, levado ao extremo seremos todos tão racionais quanto iguais, e nisso a única coisa que poderemos ganhar é o fim da nossa liberdade interior.

No fundo Pinker ataca todos, tanto os que ousam duvidar do discurso científico, como aqueles que duvidam de tudo ou simplesmente são lunáticos, e assim acaba a juntar-se à turba de lunáticos, atirando indiscriminadamente sem olhar a quem. Se alguém ousa falar mal da ciência, deve ser imediatamente excomungado. Esquece Pinker que a ciência só existe enquanto criação humana, não nos foi enviada por nenhuma entidade exterior e divina. Como tal a ciência tanto nos dá a Penicilina como nos dá Hiroshima. Não se pode simplesmente contorcer o discurso, porque se não não estamos a falar de ciência, mas de política, de aniquilação do pensamento daqueles que não podem exercer pensamento crítico.

No fundo, falta a Pinker tudo aquilo que ele passa mais de metade do livro a pregar: abertura suficiente para reconhecer que só podemos viver em paz se nos aceitarmos uns aos outros nos diferentes modos de viver. Porque o progresso científico sendo um ganho fenomenal para a raça humana, deve evoluir ao ritmo que for possível, e não ao ritmo que teoricamente, ou racionalmente, nos pareceria desejável.  Para fechar, deixo um apanhado do último capítulo, que entretanto tinha colado no Facebook, e que julgo falar por si, sobre o que podem esperar deste livro, em termos de cientificidade:
“If one wanted to single out a thinker who represented the opposite of humanism (indeed, of pretty much every argument in this book), one couldn’t do better than the German philologist Friedrich Nietzsche”
..
“Nietzsche helped inspire the romantic militarism that led to the First World War and the fascism that led to the Second.”
..
“Nietzsche posthumously became the Nazis’ court philosopher”
..
“The link to Italian Fascism is even more direct”
..
“The connections between Nietzsche’s ideas and the megadeath movements of the 20th century are obvious enough: a glorification of violence and power, an eagerness to raze the institutions of liberal democracy, a contempt for most of humanity, and a stone-hearted indifference to human life.”
..
“So if Nietzsche’s ideas are repellent and incoherent, why do they have so many fans? (..) A sample: W. H. Auden, Albert Camus, André Gide, D. H. Lawrence, Jack London, Thomas Mann, Yukio Mishima, Eugene O’Neill, William Butler Yeats, Wyndham Lewis, and (with reservations) George Bernard Shaw,”
..
“he was a key influence on Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Jacques Derrida, and Michel Foucault, and a godfather to all the intellectual movements of the 20th century that were hostile to science and objectivity, including Existentialism, Critical Theory, Poststructuralism, Deconstructionism, and Postmodernism.”
..
“the [Nietzsche] mindset has sat all too well with all too many of them. A surprising number of 20th-century intellectuals and artists have gushed over totalitarian dictators, a syndrome that the intellectual historian Mark Lilla calls tyrannophilia (..) Ezra Pound, Shaw, Yeats, Lewis (..) H. G. Wells (..) Sartre, Beatrice, Sidney Webb, Brecht, W. E. B. Du Bois, Pablo Picasso, Lillian Hellman (..) Foucault, Louis Althusser, Steven Rose, Richard Lewontin (..) Graham Greene, Günter Grass, Norman Mailer, Harold Pinter, Susan Sontag"
Atente-se na irracionalidade dos pesos colocados nesta interpretação, pois aqui Pinker esquece completamente a sua preciosa busca pela verdade, pelos dados de suporte. Para Pinker, um movimento de transformação global da sociedade, em que a ciência tudo revoluciona pela força da tecnologia colocada ao serviço da industrialização, não tem qualquer relação com o Holocausto. Mas um simples professor universitário que passou por várias crises de insanidade, pode perfeitamente ser o responsável pelas guerras mais devastadoras até à data.

Leituras adicionais recomendadas:
The World's Most Annoying Man, Current Affairs, Maio 2019
Unenlightened thinking: Steven Pinker’s embarrassing new book is a feeble sermon for rattled liberals, New Stateman, Fevereiro 2018

maio 28, 2019

As Duas Culturas (1959)

Este livro foi feito a partir de uma palestra dada por C.P. Snow em 1959, tendo gerado imensas ondas em toda a academia, muitas delas contra Snow, condenando-o por contribuir para o aumento da divisão que queria ilustrar entre ciências e humanidades. Devo confessar que fiquei surpreso por ler tais condenações, ainda mais quando feitas por pessoas como Stephen Jay Gould, e não menos fiquei ao procurar comentários mais recentes e encontrar pessoas defendendo que Snow se limita a afirmar o óbvio, para a seguir dizerem que as coisas são muito simples e deveríamos ser todos capazes de nos entendermos. Isto demonstra uma atitude baseada em ideais e não numa análise minimamente objetiva da realidade.


Talvez se fosse há alguns anos eu teria concordado com a ideia de que todos os grupos de pensadores se deveriam entender, independentemente da abordagem ao real que fazem, mas hoje, isto parece-me no mínimo ingénuo. Acreditar que Aristóteles discordou em quase tudo do seu professor Platão apenas por birra, só pode ser tonto. As suas discordâncias estão exatamente na génese daquilo que Snow aqui identifica, e têm que ver com as motivações e personalidades de cada um que os levaram a construir modelos da realidade distintos, no caso, opostos. Ou seja, não penso o mundo a partir de uma tábua rasa e do conhecimento que experiencio ou me transmitem, mas filtro-o através daquilo que sou, e do modo como desejo transformar o mundo que me rodeia.

É verdade que o livro não ajudou, porque Snow não ajuda, nada mesmo. Não há um método na divisão, nenhuma definição sequer é apresentada sobre ambos os lados, nenhuma caracterização dos diferentes perfis é apresentada, nenhuma análise social é feita, menos ainda qualquer traçado comportamental, cognitivo ou emocional é apresentado. Deste modo, Snow cria um argumento meramente no ar, a partir de uma ideia do senso comum que segue o erro, hoje clássico, de caracterizar pólos a partir de médias. Vemos muito isto quando se quer classificar atividades em termos de orientação: homem ou mulher. Nestes casos usam-se curvas de Bell que nos mostram que existem maiorias de homens que gostam de A e maioria de mulheres que gostam de B, e por isso diz-se que os homens gostam de A e as mulheres gostam de B. O problema destas abordagens é que esquecem que junto ao pico da média dessas curvas, existe uma divisão, e para um desses lado, existem faixas enormes de homens e mulheres que não se identificam, que não encaixam nessas classificações simplistas. E foi isso que aconteceu com este texto de Snow, porque usar cientistas contra estudiosos de literatura, não podia dar outra coisa se não um mar de cientistas que adora literatura, e um mar de estudioso literários que manifestam interesse pelas ciências, e que por isso consideram toda a conversa de Snow ridícula.

Se Snow tivesse apresentado um divisão por interesses, objetivos ou metas em vez de classificar as pessoas em etiquetas genéricas, teria com certeza conseguido gerar uma discussão mais equilibrada em redor desses argumentos, em vez de colocar grupos sociais uns contra os outros. Por outro lado, se o tivesse feito não teria conseguido chamar tanto a atenção, só um nicho se teria interessado pela discussão, e o livro talvez tivesse caído rapidamente no esquecimento.


Nota sobre a tradução: Acabei desistindo desta edição portuguesa, mas depois de pegar na original de Snow, percebi que o problema não era da tradução, o atabalhoamento da discussão está mesmo no original, talvez por se tratar de um texto transcrito de uma comunicação. Ainda assim considero que Snow poderia, deveria, ter revisto o texto antes de o deixar publicar.

Mitos da Investigação Fundamental e Aplicada na Europa e Portugal

Existe uma ideia, recente em Portugal, de que as Universidades devem ser os motores da inovação do país, que devem ser as responsáveis por toda a investigação nacional, desenvolvendo-se ali o futuro do tecido industrial nacional. Ora isto é uma ideia sem pés nem cabeça. Diga-se que para isto muito contribuíram as faculdades de Engenharia, do IST à Universidade de Aveiro, ao desenvolverem modelos cada vez mais próximos da indústria, ou seja, aplicados, mas que estão longe de poderem servir de modelos a aplicar a toda a Universidade Portuguesa como modus operandi. Antes de explicar porquê, vou apresentar alguns dados que desmontam algumas ideias feitas, ou mitos.

Apenas 6% do investimento em investigação nas universidades americanas provem da indústria, a maioria (60%) vem do estado, e outra fatia vem das propinas dos alunos (25%).

Nos EUA a investigação nas Universidades é sustentada pelo Estado, como se vê neste gráfico acima, apenas 6% do investimento em investigação feita nas Universidades provém da indústria. E isto inclui universidades privadas como MIT, Stanford, etc. Ou seja, a ideia de que a Universidade na Europa, e a portuguesa, deveriam ser auto-financiadas por recurso a investigação feita com as empresas, porque é assim que se faz nos EUA, é um Mito.

O investimento americano total em investigação é maioritariamente feito pela indústria. o que contrasta desde logo com o gráfico acima, demonstrando que a investigação nos EUA se faz nas empresas, não nas universidades.

Olhando para a R&D americana, o seu verdadeiro pulmão está na indústria. É verdade que é ela quem mais paga para que se faça investigação, mas ela não paga às Universidades para a fazer. Essa investigação é feita nas empresas. Na HP, IBM, GM, Google, Apple, etc. etc. Porquê? Porque estamos a falar de uma investigação diferente, daquela que deve ser feita nas Universidades.

Repare-se ainda como na Europa, o programa H2020 (2014-2020) mudou completamente a agulha do investimento, pondo muito mais dinheiro nas empresas, assumindo-se cada vez mais as empresas como coordenadoras de projetos, ao contrário do que acontecia nos programas quadro anteriores. Ou seja, procura-se o modelo americano, mas apenas pela divisão dos dinheiro, já que quando olhamos ao gráfico abaixo, percebemos que a essência não mudou, a quantidade de investimento na Europa já foi ultrapassada pela China.  Este gráfico, mostra que temos na Europa ainda a ideia de que a investigação deve vir das universidades, porque aí pode sair a custo zero para as empresas. Mas o que isso está a fazer é que a Europa continua a investir muito pouco em R&D e está a ficar cada vez mais atrasada no desenvolvimento industrial.

O investimento europeu global em investigação continua estagnado abaixo dos 2%, quando a meta dos 3% vem sendo apregoada há quase 20 anos. Entretanto fomos ultrapassados pela China.

Mas reparemos agora mais em concreto em Portugal, e voltemos à questão de partida. A razão pela qual não acredito na investigação de um país alicerçada exclusivamente na Universidade é porque a universidade não é uma empresa, e a investigação que uma precisa é diferente da que a outra precisa. A universidade não pode fazer-se apenas de Engenharia ou Design, ou seja Investigação Aplicada, precisa, e muito, de Investigação Fundamental. Ora as empresas não fazem, nem querem saber da investigação fundamental, aquela em que se discute se A deve ser mesmo A, ou se podia ser B. A indústria só quer saber se A dá dinheiro ou não, é indiferente definir A como A ou como B, desde que funcione. Mas ambos os domínios são necessários, pois sem os avanços no aprofundamento dos fundamentos da ciência, a componente aplicada acaba por estagnar.

Investimento em Investigação Aplicada (R&D) por sector na Europa, EUA, China e Rússia. Repare-se como Portugal apresenta quase uma igualdade de investimento entre as Universidades e Empresas, e como isso não é seguido em mais país nenhum, a não ser a Sérvia e Macedónia.

Ora o problema é que Portugal não teve criação de suficiente tecido industrial, e por isso não tem indústria para sustentar a investigação aplicada. Por outro lado, se começarmos a colocar o esforço de toda essa investigação aplicada nas nossas universidades, corremos o risco de cada vez mais nos limitarmos a aplicar a ciência fundamental que as Universidades exteriores criam. Isto foi bastante visível na última abertura de concursos investigação da FCT que deu primazia a projetos não pela componente científica mas pelo seu impacto socioeconómico. E podemos até perceber que não tendo as condições dos outros países, a Universidade deve ajudar, como têm feito e bem as Faculdades e Departamentos de Engenharia e Design, mas têm de haver avanços claros por parte da indústria nacional sem depender das universidades. As universidades podem ser chamadas a contribuir para a ideação e inovação, mas não devem continuar a servir a implementação, como vem acontecendo, por falta de recursos especializados na indústria.

Por outro lado, esta discussão é maior que Portugal, já que ela surge muito colada aos atuais modelos tecnológicos, e Portugal por acordar tão tarde apanhou o barco que encontrou no cais. Ou seja, a Engenharia e o Design assumiram o controlo e o poder, são estas que regulam o grande desenvolvimento mundial tecnológico, e oferecem os maiores avanços técnicos e industriais, mas, e este mas é enorme, elas vivem de todas as restantes ciências, tanto da vida, como sociais, e mesmo das artes. São as inovações na Física, na Biologia, na Psicologia, na Economia, na História ou nas Artes que permitem à Engenharia e Design estarem continuamente a brilhar, pegando no conhecimento em bruto e encontrado formas de o aplicar tornando o conhecimento teórico em práticas úteis à sociedade. Por isso precisamos de Universidades fortes a produzir ciência fundamental e não ciência aplicada. Porque não podemos esquecer que sem uma Universidade forte em ciências e artes fundamentais não só não teremos inovação para alimentar a engenharia e o design, como não conseguiremos criar os melhores recursos humanos que sustentem o desenvolvimento da nossa indústria.


Ligações para os dados usados:
R & D expenditure, EC Europe, 2019
Historical Trends in Federal R&D, 2019

abril 14, 2019

Design de Narrativa, Desenho de Significado na Experiência Interativa

Foi publicado esta semana, na Convocarte - Revista de Ciências da Arte, da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, um novo artigo em que apresento todo um enquadramento teórico do recente domínio de Design de Narrativa que tem vindo a ser promovido pelo meio dos videojogos, intitulado "Design de Narrativa, Desenho de Significado na Experiência Interativa". Apresento neste uma modelação do conceito de Design de Narrativa a partir de três vetores — Estrutura, Personagens e Cenário —, com a Estrutura, base primordial do design, a ser evidenciada em quatro camadas — Linear, Ramificada, Modular e Modular Ramificada. O artigo acabou resultando num investimento maior do que o esperado, e por isso acabou ficando demasiado grande (quase 9000 palavras), de modo que fica como primeira parte do tema. A segunda parte será focada na poética das escolha interativas, e deverá surgir lá mais para o final do ano.

Zagalo, N. (2019). Design de Narrativa, Desenho de Significado na Experiência Interativa, in Convocarte - Revista de Ciências da Arte. No.7, Dezembro de 2019. ISSN:2183–6981. Lisboa: Faculdade de Belas Artes
A revista científica é publicada em acesso aberto, por isso o artigo encontra-se disponível para ser descarregado integralmente e sem custos no ResearchGate ou aqui.


dezembro 07, 2018

A construção inata das emoções

Lisa Feldman-Barrett tem provocado imensas ondas no campo das ciências da emoção com a sua nova proposta sobre o modo como surgem as emoções. Se no mundo da ciência as suas abordagens vão sendo aceites mas bastante questionadas, dada a natureza de regulação da ciência que favorece a dúvida, no campo mais mediático, da chamada folk science, as suas abordagens têm sido recebido como revolucionárias e de extrema importância. É verdade que Barrett tem um currículo académico que lhe granjeia facilmente autoridade, e por isso a aceitação daquilo que diz como sendo cientificamente demonstrada e logo verdade. Do meu lado, darei aqui conta do ceticismo para com a sua teorização.

Se quiserem um atalho para o livro, leiam o artigo da autora "The theory of constructed emotion: an active inference account of interoception and categorization" (2017) publicado no Social Cognitive and Affective Neuroscience, resume todo o livro.

Barrett apresentou uma TED, escreveu dezenas de artigos e no ano passado lançou o livro “How Emotions Are Made: The Secret Life of the Brain” (2017), tudo para defender aquilo que ela define como uma teoria revolucionária das emoções, a que chamou de "theory of constructed emotion". Nessa teoria diz-nos que a teoria clássica da emoção está completamente errada: que as emoções não são universais, variam entre seres-humanos, e mais, não são inatas. Para Barrett, as emoções são meras construções mentais, simulações que fazemos a partir de experiências passadas. Para sentir uma emoção precisamos de julgar momento a momento para determinar a emoção que sentimos. Estas conclusões de Barrett advém do facto de ter passado as últimas décadas a tentar encontrar a "impressão digital" das emoções e não a ter encontrado. Ou seja, nos estudos que fez com fotografias de faces humanas encontrou demasiada variabilidade nas respostas; nos estudos que fez com a variação corporal e nos estudos que fez com os circuitos neuronais, igual. Barrett diz assim que até hoje não foi possível encontrar no corpo humano o lugar em que a emoção se define, e desse modo ela não existe de forma inata, sendo mera construção mental.

Esta abordagem de Barrett, do meu ponto de vista, enquanto investigador da emoção e cognição, levanta-me imensas dúvidas, algumas a partir de outros autores, outras como reação direta ao que é questionado pela autora, e que passo a elencar:

1 – Expressão Facial e Paul Ekman 
Ekman é um dos mais reputados investigadores de emoção, em especial, da emoção facial. E é também um dos mais atacados por Barrett, porque segundo ela, nas suas replicações experimentais, nunca conseguiu encontrar os mesmos resultados que Ekman. Por sua vez Ekman, respondeu-lhe em 2014, de forma muito direta, com a imensidade de estudos que suportam o seu trabalho e as suas propostas, vale a pena ler. Barrett aceita que a leitura de expressões faciais possa ser demasiado subjectiva, e por isso realizou testes com sensores de variação muscular da cara, a partir dos quais concluiu que continua a existir demasiada variabilidade.

Ora estes estudos levantam-me vários problemas, primeiro porque a avaliação de emoção apenas por meio de uma fotografia é algo que só muito treino pode garantir, pela simples razão de que lhe falta a variabilidade temporal da cara. Uma emoção facial não tem a duração de um momento congelado no tempo, mas no mínimo, a variação da posição neutra até à posição da emoção, e depois o voltar ao neutral novamente. Ora, nós seres humanos estamos apenas dotados de capacidade para ler essa variação, e não instantes captados com máquinas fotográficas. É o mesmo que tentar ver o que acontece numa imagem de um filme quando o filme está em movimento, não conseguimos, temos de usar a tecnologia para parar o movimento. Por isso Ekman defende a necessidade de treinar as pessoas para lerem emoções.

8 pontos de Barrett vs. 152 marcadores usados por Tom Hanks para o filme "Polar Express" (2014)

Mas pior do que isto são os testes com sensores feitos por Barrett. Como vemos na fotografia, está a usar 8 sensores para captar a variação muscular. Mesmo aceitando que são sensores capazes de uma mais alargada sensibilidade, se compararmos com os sistemas de motion capture que temos criado para realizar animação facial com alguma qualidade, as quais recorrem a mais de 150 pontos, soa no mínimo ingénuo a experiência de Barrett. Mas agrava-se, porque se pensarmos que mesmo com esses 150 pontos, continuamos a não conseguir captar toda a essência do movimento da cara, e a ter problemas na representação facial em 3d, o qual é reconhecido como uncanny valley, então ficamos a pensar que falta muito trabalho a Barrett para chegar à identificação das expressões faciais por meios ditos objetivos.

2 – Marcadores somáticos de Damásio
Um segundo aspeto que me parece um pouco tonto na teoria de Barrett, até por ela a apresentar como se fosse algo completamente revolucionário, é que Damásio já tinha defendido que as emoções emergiam a partir de marcadores somáticos, que não são mais do que inferências do passado, preservadas no nosso corpo. Aliás, Barrett é bastante desleal aqui, porque o único lugar em que reconheceu semelhanças com a sua teoria foi numa página wiki de trabalho para o livro, já nos seus artigos e no livro, não existe qualquer menção aos marcadores somáticos. Na wiki, Barrett diz que descarta a teoria de Damásio, porque apesar de semelhante, Damásio defende as emoções como sendo inatas. Ora Damásio, como Ekman, Darwin e tantos outros, só defendem seis emoções como inatas — Alegria, Tristeza, Medo, Raiva, Nojo e Surpresa—, todas as outras Damásio defende como emoções sociais, ou seja construídas culturalmente.

Na verdade a teorização de Damásio é muito mais relevante porque defende os marcadores somáticos presentes no corpo e não apenas na mente como defende Barrett. Para Barrett a emoção é apenas uma resposta mental, enquanto para Damásio é todo um quadro somático do nosso corpo que nos permite sentir o impacto fisiológico da emoção (não esquecer as mais recentes descobertas em torno dos neurónios presentes na medula espinal, no coração, e no intestino.). E aqui agrava-se ainda mais a abordagem de Barrett apresentando-se como defensora do mais básico dualismo mente/corpo, aquele que Damásio procurou desmontar, e desde então tem sido aceite por boa parte da ciência.

Mas Barrett vai mais longe, no livro e na TED, atira à cara das pessoas que estas “não estão à mercê das emoções”, uma vez que essas são meramente criadas pelo cérebro. Que “nós não somos vítimas de circuitos de emoção primitivos e animalescos” porque é o nosso “cérebro que constrói as experiências emocionais, mesmo aquelas fora de controlo”. Ou seja, não só atira as questões inatas como todo o corpo fora. Onde é que na equação de Barrett entram as situações pós-traumáticas e as hormonas da testosterona, da ocitocina, da adrenalina ou da dopamina!?

3 – Emoção e Cognição
No terceiro ponto vejo um problema enorme, que é a total confusão entre cognição e emoção. Barrett usa princípios da Gestalt para definir o modo como se processa a identificação de etiquetas emocionais. Os princípios da Gestalt são operados por lógica, pela busca de padrões que o nosso cérebro opera, mas que se diferenciam imenso das sensações ou emoções que atuam sobre o nosso corpo como um todo. Aliás, Barrett usa e abusa de todas as teorias no campo visual, narrativo, da aprendizagem, assim como da psicologia — tal como a "appraisal theory" — mas nunca cita todo o trabalho feito nessas áreas. No fundo, arranjou uma interpretação sua para algo que diz que não tem explicação na neurociência, e fala dela sem ligar nenhuma a todos os restantes ramos do conhecimento que se têm dedicado a perceber como construímos conhecimento, como compreendemos o real, e como isso se diferencia dos modos como sentimos esse real.

4 – Expressões faciais em invisuais
Apesar de ter deixado este ponto para quarto, é talvez o mais impactante em toda esta teorização de Barrett, porque é uma evidência clara da insustentabilidade da teoria proposta. Ou seja, se as emoções e expressões faciais são respostas mentais construídas, apreendidas no tempo, por via dos pais e cuidadores, então como é que se explica que invisuais de nascença, possam expressar emoções com a cara do mesmo modo que pessoas com sentido de visão? Como é que estas pessoas aprenderam a gerar aquelas emoções? Como é que o seu cérebro sabe o que deve fazer com a cara?

Nestas imagens vemos como as expressões faciais são iguais. Mas algo que é muito interessante no estudo que apresenta estas imagens é que se verificou que os invisuais só apresentam a mesma expressão facial quando estão a sentir a emoção, e não quando lhes pedem para fazer a cara de uma determinada emoção, o que torna ainda mais evidente o facto da emoção ser um processo inato e automático, e não aprendido e consciente.

5 – Emoção como palavra!
Para Barrett só sentimos as emoções para as quais temos palavras. Se não soubermos definir o que sentimos, então não sentimos essa emoção. Aliás, neste mesmo sentido diz-nos que os
animais não sentem medo, que sentem apenas uma espécie de afeto! Ou seja, é preciso ter um sistema mental completo e dotado de expressão e comunicação para sentir! Seguindo esta ideia, uma criança a quem nunca tivesse sido ensinado o que é a tristeza, ou a alegria, ou o medo, poderia viver toda a sua vida sem sentir emoção. Então pergunto porque não temos a nossa espécie cheia de Spocks? Ou pior, porque raio continuam os animais a insistir em sentir emoções?!!!




Seguindo a teoria de Barrett, como podem estes cão sentir algo se ninguém lhes ensinou as palavras que definem as emoções que sentem?!


São tantos os problemas desta teoria, a ponto de ser a própria a aceitar que a sua teoria é apenas uma teoria — "the roles I’ve described for your various brain networks are not objective facts. They are concepts invented by scientists to describe the physical activity within a brain" — e que tem imensos problemas, apresentando vários buracos. No entanto, esta aceitação entra em choque com a sua vontade de estar constantemente a atacar as teorias que aceitam o lado biológico das emoções, e pior, apresentar a sua teoria como verdade absoluta e inquestionável.

setembro 10, 2018

Facebook é a nova Televisão e modela comportamentos na Academia

Em 1992 os The Disposable Heroes of Hiphoprisy lançavam um álbum de rap intitulado "Hypocrisy Is the Greatest Luxury" no qual atacavam as hipocrisias da sociedade desse tempo. A banda punha o dedo na arte, na política, no emprego, no consumismo, no racismo, no sistema financeiro e na recessão, no bullying e no suicídio. A música homónima do álbum abria com os versos abaixo, que poderiam ter sido facilmente escritos em 2018, mas foi a faixa 3 que ficou desse álbum e porque deles me lembrei, e que se intitulava: "Television, the Drug of the Nation".

"Life these days can be so complex
We don't make the time to stop and reflect" (1992)


Repare-se que em 1992 a complexidade gerada pela sociedade de informação ainda vinha longe. A internet só existia nos departamentos de informática das Universidades, era a Televisão que regulava as nossas vidas, dizia-nos o que vestir, o que ouvir, ver, ou ler. Como se dizia nesta faixa 3:

“One nation 
Under God 
Has turned into 
One nation under the influence 
Of one drug [television](ouvir)

Vem tudo isto a propósito de um longo texto publicado no The Quillette, na semana passada por Theodore P. Hill, um matemático formado por Stanford e Berkeley e professor até se reformar no Georgia Tech, em que dava conta de uma saga com mais de ano e meio para a publicação de um artigo científico. Essa saga envolveu um artigo que foi Aceite para Publicação, depois de todo o processo de revisão por pares, na Mathematical Intelligencer, revista científica respeitada e publicada pela Springer desde 1979, mas que à última hora a editora-chefe da revista, Marjorie Senechal, decidiu retirar e não aceitar para publicação. Depois disso, os colegas de Hill retiraram-se de co-autores do artigo, e ele por ser reformado e não ter nada a perder partilhou o artigo na rede. Pouco depois o editor do New York Journal of Mathematics, uma revista aberta sem pressões editoriais nem de indexação, convidou Hill para submeter uma versão revista do artigo. Hill submeteu, o artigo foi revisto pelos pares, aceite e publicado. Mas não terminou a saga, porque três dias depois de publicado, o artigo simplesmente desaparecia da página da revista, e passados mais alguns dias, surgia outro no seu lugar, como se nunca tivesse existido tal artigo. Leiam o texto no Quillette para compreender toda a extensão e esferas envolvidas no silenciamento da ciência. Estamos a falar de forças subterrâneas com motivação muito forte para fazer dobrar tanta gente, nomeadamente gente que foi treinada para seguir a máxima da Liberdade de Pensamento Científico. Impedir a publicação tinha sido forte, mas retirar um artigo já publicado, e fazer de conta que nunca aconteceu, implica viver numa realidade de poder indiscriminado e desgovernado, um simulacro.

A Mathematical Intelligencer depois de aceitar o artigo, deu a aceitação como recusa. O NYJM depois de publicar o artigo, apagou-o sem qualquer explicação ou justificação, e substitui-o por outro artigo, fazendo com que  a publicação anterior nunca tivesse existido.

O apagamento de um artigo de uma revista científica, sem qualquer explicação, é em termos de simulacra comparável aos apagamentos políticos protagonizados pelo aparelho de Estaline.

Mas o que defendia o artigo de Hill? É um estudo na área da Matemática que demonstra a existência de maior variabilidade no género masculino — de forma simples, tendem a existir mais mentes brilhantes (ex. podem dar mais prémios Nobel), mas também tendem a existir mais mentes broncas (ex. existem mais homens presos). Esta variabilidade, mais acentuada no machos que nas fêmeas, parece existir de forma quase universal nas várias espécies. Aquilo que Hill faz é trabalhar dados probabilísticos, a sua área de expertise, e demonstrar o que está a acontecer. Steven Pinker foi um dos cientistas que veio defender o artigo no Twitter ontem, dizendo:
"Egregious: A math paper that tries to explain a fascinating fact (greater male variability) is censored. Again the academic left loses its mind: Ties equality to sameness, erodes credibility of academia, & vindicates right-wing paranoia." [@sapinker]
Falamos de puro tráfico de influência, de batalhas ideológicas de submissão do outro. Tudo isto esquecendo a Ciência, esquecendo que por mais benéfica que uma ideia nos possa parecer, ela não se transforma em realidade por simplesmente o desejarmos. E que nem sempre aquilo que o colega nos diz que lhe parece ser, o é verdadeiramente. O Facebook vem sendo um palco cada vez maior para todo este tipo de comportamentos, em que vamos assistindo a colegas da academia que deveriam ser isentos, imparciais, defensores do pensamento científico aberto e livre, mas que se deixam embalar pelas inflamações do momento, que aceitam partilhar notícias falsas apenas para promover a guerrilha ideológica. Contudo, e ao contrário de Pinker, não vejo isto como um problema de um dos lados, isto é um problema de ambos — Esquerda e Direita — que se polarizaram tremendamente, não por causa direta do Facebook, mas não se pode dizer que este não tenha vindo a servir de catalisador emocional de toda essa polarização.

Não é de Esquerda nem de Direita porque ainda esta semana se passou outro caso, em território nacional, seguindo um modelo muito próximo de atuação. Falo da Conferência sobre as alterações climáticas decorrida na Universidade do Porto este fim-de-semana. Durante toda a semana anterior vimos os mais respeitados colegas nacionais a atacar por todos os meios os colegas que “ousaram” fazer tal conferência. Houve direito a abaixo-assinado com dezenas de reputados nomes, e milhares de ataques no Facebook e na imprensa nacional. Muitos dos que realizaram ataques, nem sequer sabiam do que tratava a conferência, não perderam um minuto a ler os textos dos colegas, afiaram as machetes e avançaram na defesa de um ideal.

Analisado o livro de abstracts da conferência o que temos ali verdadeiramente? Uma conferência sobre alterações climáticas que não contestam, em que os intervenientes pretendem apresentar potenciais outras visões sobre o que pode estar a motivar essas alterações, para além da ação humana. Na verdade, o que temos neste momento são dados de correlação, e dados de 200 anos num planeta com milhões de anos. Sim, os dados levam em conta todas as variáveis conhecidas que potencialmente poderiam gerar o efeito, atenuando o impacto de mera correlação, e deixam muito poucas dúvidas sobre o facto de sermos nós o agente que está a fazer a diferença (ver infografia explicativa dos dados que possuímos sobre as alterações).

A esmagadora maioria dos estudos demonstram que a variável que mais afectou o aquecimento foi a humana. Mas isso é razão para não se discutirem outras hipóteses? Para não mantermos a mente aberta? [fonte da imagem]

Não restam muitas dúvidas sobre a responsabilidade da nossa espécie sobre o clima, o que é diferente de dizer que não resta espaço para podermos exercer a dúvida. A constatação que temos não é verdade absoluta, em ciência a verdade só existe até provada a sua falsidade. Por isso ter pessoas a discutir análises de factos, a contestar posturas, pode parecer arrogante, mas não deixa de ser legítimo. Mais ainda porque estamos a falar de uma conferência no domínio das ciências sociais e humanas, lugar em que se fazem conferências sobre Post-it e as irmãs Kardashians, que não refiro como menosprezo pelo que se investiga mas refiro para defender que aquilo que está aqui em causa é distinto de uma conferência no domínio da Física. Não perceber isto é querer forçar uma visão monolítica do conhecimento e da ciência, sem qualquer benefício.


Estes dois casos não são isolados, e são claramente sintoma de muito do que se passa à nossa volta. mas aceitarmos o calar de cientistas com o argumento de perigo de contaminação da opinião pública com ideias erradas é algo extremamente preocupante. Isto equivaleria a dizer que os cientistas não devem agir enquanto investigadores da realidade, não devem pensar livremente, mas devem subjugar-se às necessidades de controlo e manipulação da opinião pública e defesa das grandes narrativas. Ou que a liberdade de pensamento científico é apenas uma utopia para oferecer credibilidade aparente à ciência. O que temos aqui não é mais do que o modelo social criado e imposto pelo Facebook a moldar o pensamento da sociedade, a toldar os parâmetros dos diferentes grupos, incluindo os próprios cientistas. Todos se sentem escrutinados, e por isso todos acreditam que precisam de trabalhar para a construção de uma realidade paralela na qual tudo é melhor do que na realidade em que vivemos. Nem que para isso tenhamos de transformar as nossas vidas naquilo em que durante tantos anos contestámos à televisão, que está expressa nestes versos dos Disposable Heroes:

“Television [Facebook], the drug of the Nation 
Breeding ignorance and feeding radiation”

O Facebook roubou as grandes audiências à televisão, nomeadamente a partir da introdução e massificação dos smartphones. Com este, os estudos começaram a mostrar padrões nos quais as pessoas parecem preferir ver informação que vá de encontro ao seu próprio modelo do mundo. Aquilo que não se enquadra nessa visão, Esquerda ou Direita, chega a ser doloroso, porque obriga a mudança de opinião, saída da zona de conforto. Por isso as pessoas desataram a eliminar, a barrar ou a deixar de seguir todos aqueles que não se exprimem no mesmo comprimento de onda. Criaram bolhas, câmaras de eco, confirmações de viés, enormes silos com grandes divisórias. Contudo em vez de ficarem felizes nos seus redutos, começarem a surgir de cada lado "guerreiros" na defesa de visões e ideias. A Primavera Árabe foi um prenúncio do que viria a seguir, depois disso tivemos o Obama, o Brexit, Trump, e a cada nova história, cada novo conflito, as hostes, fechadas em cada silo, agitam-se e lançam as suas farpas. Deixaram de existir terrenos neutros, espaços onde as diferenças se podiam debater. A Universidade que devia ter permanecido esse espaço, parece votada a deixar de o ser. No Facebook, se acedemos a conversar com uma ala, não podemos conversar com a outra. Chegámos a um ponto em que apenas conta: "Ou estás connosco, ou estás contra nós".


Se aceitarmos colocar a ciência em segundo plano, se aceitarmos partilhar o rumor, se aceitarmos exigir a censura, a imposição e a submissão da ciência e dos cientistas na defesa de ideologias, esqueçam o progresso, não haverá literacia que nos proteja de uma sociedade enclausurada num simulacro.

julho 07, 2018

Fábula da Academia do século XXI

A academia era responsável por criar conhecimento, imaterialidade de experiência humana, tinha sido assim a sua génese e assim sobreviveria por vários milénios. No entanto nas últimas duas a três décadas, por várias razões, o conhecimento foi sendo convertido em produto, em matéria resultante e concreta. O conhecimento deixava de valer per se para valer apenas em função do que podia ser medido, quantificado e apresentado como rendimento efetivo.

Sócrates, Academia de Atenas

Começando pelo aumento massivo do ensino superior nas últimas décadas, um aumento de instituições e recursos humanos que inevitavelmente começaria a gerar pressão para que se justificasse o dinheiro investido pelos contribuintes. O conhecimento per se não interessava propriamente a quem ia chegando ao Ensino Superior, já que este era visto como “centro de treino para emprego”. Não se tiravam médias de 19 para ir aprender Medicina, mas apenas e só para ter acesso ao emprego de médico. O conhecimento era um cartão de emprego. Ora, durante algum tempo a relação entre o ensino superior e a empregabilidade foi suficiente para justificar a sua existência, mas essa linha foi ultrapassada quando os números aumentaram exponencialmente e se percebeu que o ensino superior não tinha cartões de emprego para oferecer a todos. Foi então preciso encontrar formas mais criativas de justificar o investimento massivo.

Produzir pessoas com elevados recursos de conhecimento precisava de ciclos muito grandes, não era só o tempo que demorava a produzir o empregado “superior”, era ainda preciso bastante tempo, fora da academia, para este começar a produzir, por isso era preciso encontrar formas alternativas de aumentar o ciclo de produção das universidades. Reduzir o número de anos dos cursos ajudou, Bolonha tinha sido uma vitória, mas sabia a pouco. Muito melhor era se pudéssemos transformar o conhecimento diretamente em produto, politicamente classificado como “transferência de tecnologia” ou “ligação à sociedade”. Os professores precisavam então de acordar para o mundo à sua volta, sair das suas “torres de marfim” e “falar” com a sociedade. Na verdade, e visto de fora, os professores faziam muito pouco, ou nada, diziam que se dedicavam ao conhecimento, mas isso era pouco diferente de se dedicar ao ócio, era preciso pô-los a trabalhar. Havia então que secundarizar o aprender e ensinar, e passar a produzir. Dizia-se, ‘O conhecimento só vale a pena quando aplicado em produtos’, quando 'dá dinheiro'. Chamavam-lhe inovação e criatividade, e diziam à academia que ela tinha a responsabilidade de salvar a economia dos seus países. Com isto esquecia-se a sua principal função, o conhecimento e a formação de pessoas com esse conhecimento, ao que se acrescentou ainda o declínio da natalidade. Era preciso fazer algo que mantivesse o fluxo de estudantes.

Os rankings vieram “ajudar” as universidades mais antigas que tinham perdido espaço para a emergência das que tinham surgido como “centros de formação”. Estar bem posicionado no ranking permitia às universidades tornarem-se atrativas, e assim reganhar alunos a essas instituições “arrivistas”. Mas os rankings eram internacionais, dizia-se que eram independentes e por isso muito bons. Mas também por causa disso precisavam de usar uma única língua, não era possível realizar rankings se o conhecimento produzido fosse nas línguas dos seus países, e como o poder económico era regulado pelo Império Americano, que outra língua além do inglês poderia ser adotada? Começaram então todos a produzir papéis (artigos e textos) na língua que esses rankings pudessem perceber. As pequenas conferências em que os académicos se encontravam e discutiam conhecimento em estado bruto começaram a escassear, cada um estava agora apenas interessado em produzir e publicar papéis. Porque eram esses papéis que permitiam aos rankings classificar as universidades internacionalmente. Quantos mais papéis fossem publicados no sítio em que mais pessoas queriam publicar, mais reconhecidos eram esses papéis. Não mais interessava o que dizia o conhecimento, era tudo uma questão de dança e posicionamento de papéis que garantiam rankings, ou seja, produto.

O número de papéis duplica à razão de 10 anos. Enquanto isso os autores passam a assinar papéis uns dos outros para garantir aumentos de produção de papéis.

Os rankings produziam reconhecimento, ofereciam status, e com ele atraiam alunos que escasseavam, mas também serviam para triar financiamento. Como vimos, a academia já não podia sobreviver só com o ensinar, tinha de produzir, todos o diziam, mas na verdade havia pouco dinheiro para pôr nas mãos dos académicos para potenciar essa produção. Desejava-se que produzissem mas que o fizessem com o mínimo, que fossem criativos, usassem o conhecimento, a “suprema” matéria-prima, a massa cinzenta, para criar produtos. Desta forma os rankings ajudavam também a decidir quem de entre esses académicos tinha direito a receber mais apoios, a ver projetos financiados com os dinheiros que iam sobrando aos estados. Por isso não tardou até que grupos de académicos passassem a dedicar mais tempo a numerar, listar e quantificar os seus feitos do que a discutir conhecimento. Muitos destes passaram a dedicar-se às metodologias de avaliação dos seus próprios feitos, passando até por especular a probabilística dos mesmos a 5 e a 10 anos, enquanto atacavam rankings por usarem maus indicadores e elogiavam outros por usarem as melhores fórmulas de cálculo.

Na verdade, os rankings e os papéis, o produto, interessavam apenas a um grupo restrito, quem os escrevia fazia-o por obrigação, quem fazia a revisão por pares fazia-o por obrigação, e quem os citava fazia-o por obrigação, sobravam as editoras que ganhavam milhões pelo meio, ao que se juntavam as agências de rankings que ganhavam mais alguns milhões. Os políticos fechavam os olhos, na verdade todo esse sistema permitia-lhes tomar decisões sem terem de perceber nada do conhecimento criado pelos académicos. Não admirava por isso até que o próprio comissário europeu para Ciência e Investigação fosse alguém que nunca tivesse produzido qualquer conhecimento, não era preciso, as tabelas e gráficos produzidos por estas empresas eram suficientes para tomar decisões. E, no entanto, a indústria real não queria saber desses rankings nem papéis para nada, da relação que podiam estabelecer com a academia, estava apenas interessada no que poderia ganhar em termos de melhoria das vendas do seu produto, e para esse efeito os papéis eram inconsequentes.


Repare-se como a produtividade não depende dos papéis nem da investigação, já que o aumento de investigadores não representa qualquer aumenta de produtividade.

A ânsia pelo produto conduzia assim ao desaparecimento do conhecimento de cada país, da sua especificidade regional e cultural, porque interessava mais aquilo que era comum a todos, porque só assim poderiam entrar nos locais em que todos “tinham” de publicar. O Império Americano e seus satélites jogavam em casa, os outros tinham de duplicar a velocidade, para em paralelo criar conhecimento e colocá-lo na língua desses. Se em domínios aplicados o conhecimento era facilmente aceite em inglês básico, em domínios fundamentais, em que a língua era ela própria criadora, não bastavam meras proficiências das escolas de inglês do bairro. Deste modo, o Império transferia-se da economia para o conhecimento, e do conhecimento novamente para a economia, tudo conjugado numa hegemonia que se queria robusta.

Os papéis noutras línguas simplesmente desaparecem.

De cada vez que um papel era publicado num daqueles sítios em que todos queriam publicar ficava-se feliz, mas apenas naquele dia, naquela hora, já que apenas interessava o que ainda estava por publicar, porque o que interessava era aumentar o número de papéis, para garantir o aumento e manutenção do reconhecimento que per se não trazia qualquer felicidade. De cada vez que um projeto científico era aprovado, ficava-se feliz, mas apenas até se iniciarem os trabalhos e perceber-se o inferno da gestão burocrática do mesmo que mudava a cada seis meses. Mesmo assim, a ânsia pelo reconhecimento e o receio da falta de financiamento que justificasse a sua posição, faziam com que mal iniciado um projeto se iniciasse de imediato a submissão de um novo, mesmo sem qualquer novo conhecimento que o justificasse.

O conhecimento era produto, o conhecimento era agora algo perfeitamente delineado, medível, quantificável e claro vendável. Para quê entrar em dialéticas quando uma folha de cálculo podia pôr um fim imediato a quem tinha razão. Aliás, dentro da própria academia os físicos viam a filosofia como morta, porque a razão já não era baseada em conhecimento, a razão era oferecida por cálculos baseados em número de papéis, número de citações, locais em que se tinha publicado, projetos financiados e quantidades de financiamento. Assim, a razão que tinha por dever instigar e incentivar a centelha humana, elevar o humano para além dos limites do pensar, tinha ela própria sucumbido e sido transformada em produto.


Referências