janeiro 07, 2023

Como Não Fazer Nada

Jenny Odell é uma artista e professora de design digital na Universidade de Stanford, e o seu livro "How to Do Nothing: Resisting the Attention Economy" de 2019 tornou-se um best-seller nos EUA, ou como se diz na gíria da internet, tornou-se viral. A razão prende-se essencialmente com o argumento que discute: como lidar com um mundo em alta-rodagem em que somos continuamente monitorizados e se espera que atinjamos mais e mais resultados. A discussão realiza-se num plano próximo, em que todos aqueles que trabalham no mundo dos serviços e usam redes sociais no seu dia-a-dia facilmente se reconhecerão, mas enriquece essa discussão com teorização da psicologia e fenomenologia, assim como com a sua própria experiência. Odell nasceu em Cupertino na California, a pequena cidade que alberga a sede "espacial" da Apple, considerada um dos corações de Silicon Valley, tendo crescido no meio da tecnologia procurou conciliar a mesma com os seus estudos em artes.

Interessa começar por perceber que este não é o primeiro livro sobre a temática, existe todo um "movimento slow" que começou no final do século passado em Itália, com a Slow Food por Carlo Petrini, que Geir Berthelsen transformaria no "World Institute of Slowness" em 1999, e Carl Honoré no livro "In Praise of Slow" em 2004. Este movimento foi-se expandido em direção a todas as áreas da ação humana, desde as artes (Slow Art Day, 2004) à academia ("The Slow Professor", 2016), passando pela moda, educação, consumo, o pensamento, etc.

O livro de Odell é particularmente relevante no momento porque ataca o problema que se agravou na última década com as redes sociais, e em particular a internet e os smartphones. Mas que como vimos acima não é novo, é antes a constatação de que por mais que gritemos "slow", o mundo tende a não nos ouvir, e a seguir na sua velocidade vertiginosa em direção à obtenção de mais e mais, em menos e menos tempo. Inevitavelmente temos de ligar esta constatação ao modelo económico que escolhemos. Se queremos sobreviver nesta sociedade regulada pelo capital, temos de produzir, e o que produzirmos amanhã terá de ser sempre maior do que aquilo que produzimos ontem. O modelo económico a isso nos obriga. O modelo que escolhemos não funciona se acontecer em reverso, que é visto como insucesso, logo tendente ao fracasso. Por isso não é possível parar, a competição é desenfreada, estimulada pelo próprio sistema, tornando-nos a todos ratinhos que correm na rodinha circular, não por algo concreto, mas apenas para manter a sensorialidade de continuar a fazer parte do movimento em que todos os nossos amigos se encontram.

Odell ataca de frente este problema, dizendo mesmo que o problema não está nas redes sociais, ou na agora definida "economia da atenção", mas está em nós, na nossa necessidade de redefinir aquilo que é importante para nós, e sermos nós a tomar as rédeas da nossa atenção. Não permitir que o sistema nos limite, nos force ou nos aprisione. Odell evoca por várias vezes Thoreau, não só o seu ímpeto para voltar a natureza, mas especialmente pela "desobediência", já que sem esta vontade de remar contra a maré, não conseguiremos sair da rodinha. Aliás, Thoreau  foi de certo modo um percursor deste movimento Slow ainda no século XIX, o que nos obriga a reconhecer que isto nada tem que ver com redes sociais, smartphones ou computadores mas tudo a ver com o modelo económico que regula o nosso dia-a-dia.

O meu único problema com a abordagem de Odell surge no modo como ela resolve focar tudo no problema da Atenção Humana, como se estivesse aí a chave do problema. Discordo totalmente, e em dois níveis. O primeiro, em que Odell pede para mudarmos da atenção fragmentada para a atenção dirigida não é crível, porque essa atenção drena muito mais recursos cognitivos. Não é o mesmo estar a fazer zapping ou scrolling, ou estar a ler um romance de mil páginas, o esforço cognitivo é muito distinto. Por isso não basta dizer que temos de mudar, é preciso perceber como, mas é também preciso perceber que não podemos esta todo o tempo em modo dirigido. No segundo nível, não basta eu querer mudar a agulha do meu foco. Desde logo, porque o meu foco constrói-se a partir do que conheço. Só posso expandir os meus horizontes se alargar primeiro a minha Literacia. Não se trata de uma questão de mera vontade. Só sei que existem outras nuances onde posso concentrar os meus esforços se tiver sido apresentado por outras pessoas às mesmas. Ou então, claro, que se tiver aprendido a aprender, que é algo que se espera de qualquer pessoa com formação superior. Mas nem todos chegam a esse estádio, como tal para que se possa mudar o foco, não dizer que se se mudar o foco se vão encontrar melhores alternativas. É preciso saber que existe mais mundo do que aquele que se conhece, e é preciso chegar ao conhecimento do caminho para lá chegar e da noção de que é possível, na sua condição, trilhar esse caminho. 

Ou seja, temos um problema que requer reservas cognitivas, o que é difícil para alguém que no final de um dia de trabalho mecânico num escritório, de fazer compras no supermercado do bairo, buscar filhos na escola, dar-lhes comer e vestir e mandar para a cama, não sobra para qualquer carga para efetuar atenção dirigida. Por outro, temos um problema de literacia, de conhecer o que existe para além do que é apresentado pelos amigos próximos no Facebook ou no Café, ou pelos telejornais que só falam do crime do vizinho, e da novela que se foca em pessoas que pensam de igual modo. E ainda sobre tudo isto, um modelo económico que só quer, ou melhor exige, clama com toda a força do seu marketing, por que todos desejem o mesmo, por uma visão de naturalidade em que todos precisam de trabalhar mais e mais horas para conseguir ter o carro ou telémovel que todos têm. Com isto, estou de certo modo a desculpar a sociedade, mas estou a chamar a atenção para a importância que a Educação tem na formação de um Estado.

Enquanto não acedem ao livro podem ver uma síntese no mesmo numa comunicação da autora na Google.

3 comentários:

  1. Boa resenha, Nelson, e concordo com a tua perspetiva: e educação, o exemplo e as oportunidades são fundamentais para que o grosso da população possa fazer a tal escolha de mudar de foco. E isto não se aplica só aos livros, mas à música, à arte...

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  2. Oops, publiquei sem querer como anónimo, não estava com atenção suficiente :D

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    1. Obrigado pelo teu comentário Ana.

      Concordo que isto não é só para o caso dos livros, é a Experiência de Mundo pelas múltiplas formas possíveis, sem ela fica difícil desenvolver crivo.

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