junho 22, 2017

O Nome da Rosa (1980)

Vi o filme no cinema quando saiu por cá, na segunda metade da década 1980, e ao longo da década de 1990 vi-o em VHS mais de uma dezena de vezes, até que o arrumei na prateleira e na minha cabeça como objeto definido e fechado. Não tendo nesse tempo chegado a ler o livro e tendo depois ‘arrumado’ o filme, só agora, passados vinte anos, resolvi revisitar a biblioteca-labirinto na abadia medieval, mas resolvi fazê-lo através do livro. As primeiras páginas fizeram ressurgir todo o universo do filme, não sendo nunca capaz de superar as memórias que em mim existiam, mas ao chegar à última página vi-me obrigado a aceitar que as duas obras se distanciam, já que o filme se fica pela análise histórica envolvida por uma teia de crimes, enquanto o livro vai para além disto, apresentando toda uma camada reflexiva para o leitor que a ela se queira dedicar. Contudo, tenho perfeita noção que nada de novo tenho para dizer, e se escrevo as linhas que se seguem é apenas por necessidade pessoal de reflexão e verbalização sobre a obra.


A Abadia de São Miguel em Piemonte, Itália que serviu de inspiração a Umberto Eco

Eco teve imensa sorte com o sucesso conseguido com o seu primeiro livro de romance. Não é fácil para um académico passar da escrita densa e seca das reflexões escolares para uma escrita escorreita e envolvente como o romance obriga. O modo como realizou essa transição foi inteligente, já que optou por um caminho intermédio, ou seja criando uma obra de edutainment (entretenimento educativo), socorrendo-se de um género que se viria a tornar nos anos mais recentes altamente popular, o Romance Histórico. Mas não se ficaria por aí, aquilo que distinguiria este trabalho de Eco dos demais foi no fundo aquilo que lhe permitiu aliviar a transição entre géneros, ou seja, o modo como ele liga a sua área de especialidade académica (a semiótica, o estudo da criação de sentido) com a aventura romanesca (a procura de pistas). Guilherme de Baskerville não anda apenas à procura do assassino, anda também à procura do sentidos, fazendo-o de uma forma pouco ortodoxa para a época em que se encontra.

Assim Eco conseguiu de forma simples criar um romance em camadas, permitindo a um grande público seguir atrás da tradicional história de crime e mistério, enquanto uma outra parte do público se dedicaria a tentar compreender as restantes camadas "escondidas" pelo autor. Enquanto na camada mais visível temos Sherlock Holmes a ligar provas entre si, nas restante camadas temos Eco à procura de sentidos em palavras, gestos, textos e contextos, apresentando Guilherme como o homem renascentista que renuncia a Inquisição e ao obscurantismo, em busca da verdade suportada em evidência empírica. Este novo homem, espécie de Eco investigador e semiótico que regressa ao passado, dá conta de uma viragem crucial na história europeia, do momento em que se abrem as portas renascentistas ao mundo da Ciência. O conhecimento científico que viria a servir para retirar o ser humano do caminho das trevas religiosas, trocando-o pela auto-estrada do auto-conhecimento e consequente progresso humano.

O próprio centro da obra, a Biblioteca, é mais importante que os assassinatos. Repare-se como aqueles agarrados ao fanatismo religioso e ao status-quo tudo faziam para manter as trevas, impedindo o acesso ao conhecimento, escondendo-o dentro de labirintos inacessíveis e mortais. Uma biblioteca que não servia para dar a conhecer mas para esconder. Ou seja, Eco consegue unir o melhor do romance, o crime-aventura, com o melhor da busca de sentido, a ciência.

A obra final que serve de móbil aos crimes, o livro perdido da Poética de Aristóteles, o segundo tomo que se supõe versar sobre a Comédia, é um passo magistral. Tendo sido devidamente preservado no filme, durante muito tempo me questionei porquê um livro sobre o riso, apesar de ser evidente a intolerância da maioria das religiões ao riso não é muito claro a razão de tal. Sim, a religião exige a seriedade e o riso não se coaduna, mas não é só isso, não seria apenas por isso que Eco faria deste o objeto central da sua obra. Na verdade o riso acaba sendo fundamental, porque nos permite colocar a realidade em perspetiva, rindo da mesma, libertando-nos do medo.
“- O riso liberta o vilão do medo do diabo (..) Ao vilão que ri, naquele momento, não importa morrer: mas depois, cessada a sua licença, a liturgia impõe-lhe de novo, segundo o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destruidora aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais provido e afetuoso dos dons divinos? ”
“- O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a arrogância do espírito, a fé sem sorriso, a verdade que nunca é aflorada pela dúvida. ”
O riso faz de nós criaturas capazes de duvidar, suportando a vontade de conhecer e descobrir quem somos, impedindo que nos limitemos a aceitar a verdade imposta na forma de dogmas.

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