Trago uma discussão sobre a importância do ensino superior porque se vai ouvindo um discurso nas áreas criativas - das artes à informática - que vende a ideia de que um curso superior não serve para nada, que é tempo perdido. Aponta-se o facto de que quem dá aulas não trabalha na indústria, logo seguido da ideia de que à indústria interessa apenas a experiência do saber fazer. E podemos até elencar vários casos de sucesso nacionais e internacionais, o único problema é que estes casos são as exceções, e não a regra.
Este é um assunto que me diz directamente respeito, na medida em que trabalho na academia no ensino de áreas criativas. É um assunto sobre o qual reflicto continuadamente. Todos os anos me questiono se os cursos que temos na Universidade reflectem as necessidades da sociedade, se o que estes oferecem representam uma mais valia para o estudante, se o modo como abordo cada assunto é suficientemente envolvente para levar à compreensão do que está em questão. Neste sentido este texto surge motivado por alguns textos recentes que li a propósito dos cursos superiores de videojogos [1, 2, 3] assim como a partir de tudo aquilo que me ocupa muitas vezes a mente sobre este assunto.
Primeiro quero separar o discurso americano do discurso Europeu. Se me perguntarem se vale a pena fazer um curso superior em jogos, jornalismo, cinema ou pintura pagando propinas no valor de 100 mil dólares, como se discute no
Kill Screen Daily, provavelmente terei de responder que não. A razão é simples, a educação de uma pessoa não é algo que serve apenas aquela pessoa em particular, serve toda a sociedade desde a família dessa pessoa, à empresa mais sofisticada deste país. Nesse sentido, obrigar uma pessoa a endividar-se para a vida para fazer um curso superior é uma aberração. Isto não é o que temos na Europa, e espero que nunca venhamos a ter. Pagar três mil euros por um curso superior completo é dinheiro mas convenhamos que é ainda um preço simbólico. Assim deixo algumas razões iniciais para se fazer um curso superior nos dias de hoje:
- A educação cria espaço para o erro, e tempo para aprender com este. Isto é fundamental num diploma, porque garante ao empregador que quem está à sua frente já investiu tempo, aprendendo com os erros. O diplomado é alguém que vai errar menos e perder menos tempo a aprender.
- O diploma é ainda um selo de garantia para o empregador de que a pessoa que está à sua frente é capaz de assumir tarefas/projectos de longo termo e levá-las até ao final. Algo que não é de somenos, tendo em conta que um dos maiores problemas nas áreas criativas surge na elevada taxa de projetos iniciados versus terminados.
- A experiência não ensina teoria, mas a teoria ajuda a compreender a experiência em maior profundidade. Permite melhorar as suas competências em profundidade, e não apenas em extensão. Não se trata de saber mais, trata-se de compreender a essência da actividade, para com isso ganhar autonomia e independência crítica.
- A turma de alunos serve de referencial entre iguais, com os mesmos sonhos criativos. É a comunidade que permite ao aluno encontrar-se. Descobrir aquilo em que é bom, ou em que é melhor que os seus pares.
O ponto 3 é dos mais importantes porque serve para responder a algum discurso que sempre existiu, mas que se vem afirmando ainda mais com a erosão criada pela extinção do movimento industrial e a abertura de uma nova economia baseada nos sistemas de informação e comunicação. E ainda pela ausência de reconhecimento por parte de metodologias herdadas do modelo industrial que professavam um ensino igual para todos, fazendo tábua rasa das claras diferença existentes entre indivíduos. Este discurso, defendido por pessoas como
Ken Robinson, Ivan Illich ou
Alvin Toffler, diz-nos que a Escola é uma instituição assente em valores errados, porque professa uma formatação das mentes de modo igual. Diz-nos que é algo que foi promovido pela revolução industrial, para criar pessoas bem comportadas para trabalhar em linhas de montagem, ou seja autómatos desprovidos de espírito crítico.
Ora isto corresponde cada vez menos à realidade. Se é verdade que a componente de avaliação realizada por exames escritos se encaixa neste padrão, as mudanças que vêm surgindo nos últimos tempos com a evolução dos métodos de avaliação a tornarem-se cada vez mais abertos, e mais preocupados com os processos de construção do que com os resultados finais alterou muito disto.
Nomeadamente nas áreas criativas onde raramente se trabalha com exames escritos. O
projecto é aqui a referência, porque é este que nos permite avaliar, não apenas a competência concreta, mas a evolução da competência, e o seu contexto. É possível desta forma compreender se o aluno está preparado para continuar a evoluir, mesmo que o resultado final não seja tão bom com o dos colegas. Porque é na Universidade que se falha, e por isso não é relevante se o aluno acerta, o que é importante é que tenha compreendido o processo que o levou a falhar.
Mas mais do que isto. Existe uma necessidade absoluta das pessoas se encontrarem nas escolas entre iguais. De perceberem o que os diferencia. De compreenderem em que medida podem fazer diferente ou melhor. A teoria que se ensina numa Universidade, não cria mentes que pensam todas da mesma forma. Antes pelo contrário
é a experiência sem substrato teórico que cria a mesma e única forma de compreender a realidade. Sem a teorização não se consegue compreender a essência do que está em causa, e por isso só em raras excepções a inovação surge da mera experiência. A teorização realizada num âmbito universitário procura antes de mais explodir o
status quo das ideias canónicas. Procura demonstrar que existe A mas também existe B, e que nenhuma das duas é mais relevante, porque cada uma têm as suas abordagens, perspectivas, contextos, e histórias. Cabe ao aluno compreender e crescer criticamente, e é nesse sentido, que vem o que cito a seguir de Jeff Parrott,
"Vocês precisam não só de passar pela escola e pela criação artística, mas precisam de se destacar, ir além do que vos é pedido." [1]
Ou seja, um dos maiores problemas do aluno que sai de uma Universidade no século XXI é que já não chega ter um diploma que certifica competências. É preciso que além dessas competências, a pessoa se diferencie, se evidencie em algum elemento da área em que se formou. A diferença face a século XX está na massificação de pessoas com o mesmo curso superior. Nesse sentido, não chega saber muito de uma grande área, porque temos muitas pessoas a saber muito de uma grande área. É preciso além disso que essa pessoa se diferencie, se destaque em algum componente da grande área em que se formou.
Ou seja, o drama de um aluno do ensino superior hoje, não pode ser tirar boas notas para ser o melhor aluno ou evitar chumbar para poder terminar o grau. Chamo drama porque trata-se de algo muito mais interno e pessoal do que exteriorização numa tabela de notas. É um conflito interno que passa por encontrar-se e transformar-se, assumir uma identidade definida, delineada e distinta. Um aluno que no final dos três anos tem um grau, mas não sabe em que é que pode fazer a diferença, dificilmente conseguirá um emprego duradouro e no campo do curso que frequentou. Nesse sentido ficam algumas ideias sobre como proceder para se encontrar, para se transformar, para ir além daquilo que a Universidade garante e conseguir mais facilmente uma posição no mercado.
- Identidade Virtual -
Colocar online o trabalho que se vai fazendo, tendo o cuidado de apenas escolher o melhor (Site pessoal, Fóruns e Grupos Online). Dar-se a conhecer e promover o seu trabalho, permite não só construir uma identidade reconhecida pelos outros como permite através do feedback recebido compreender se está na boa direcção ou não.
Alguns fóruns são frequentados por profissionais da área, nesse sentido temos ali uma oportunidade de perceber melhor o nosso potencial. Escrever em fóruns não deve contudo ser encarado como algo menor e aonde se faz o que nos apetece sob o manto do anonimato. Antes pelo contrário é preciso dar-se a conhecer com um grande sentido de humildade, demonstrar vontade de aprender, sempre.
- Consumo, quase obsessivo, da Área -
É um dos pontos mais relevantes na definição da identidade. É preciso devorar tudo o que se faz na área em que nos movemos - seja
videojogos, cinema, pintura, jornalismo, design, etc. Por várias razões:
- Para ter a sorte de encontrar o clique que nos fará mover em termos criativos. Quase todos os criadores têm um artefacto que lhes fez a uma determinada altura da vida tomar decisões e enveredar por A ou B.
- Para conhecer o que se faz na área, e compreender o que define a qualidade dos artefactos da área.
- Para compreender o que está em falta na área, ou aquilo em que existem ainda poucas pessoas a trabalhar.
- Trabalho em Equipa -
Ser capaz de trabalhar em equipa é de extrema relevância porque nenhuma profissão permite que vivamos isoladamente. Isto requer uma grande dose de inteligência social que é importante adquirir enquanto se está na Universidade. Ser capaz de compreender o outro e fazer cedências ajuda a optimizar processos, ajuda a conseguir resultados de forma mais eficaz, e com tudo isto ganhar reconhecimento dos pares.
- Amigos Pares -
Ter um grupo de amigos na área de trabalho é extremamente relevante para se pode obter o feedback mais honesto e sincero possível ao nosso trabalho. É este feedback que nos mantém ativos, e é este que nos vai moldando, empurrando para a área em que somos, ou poderemos vir a ser, bons.
- Criar, Criar, Criar -
A Universidade requer a realização de trabalhos, testes e projectos mas existem ao longo de um ano imensos tempos de pausa, nas paragens das aulas, nas férias, nos fins-de-semana, e até mesmo na fase em que as aulas são mais expositivas e requerem menos entregas. É preciso criar, sempre, nunca parar.
Investir na criação contínua é o único ponto numa actividade criativa que não pode nunca ser dispensado. Sem ele não existe criador. Porque só o trabalhado continuado permite evoluir na arte, o que juntamente com o feedback que se vai recebendo garante a prossecução do caminho para a melhor definição de si.
Pode parecer complicado mas é muito menos do que parece. Depende apenas de nós. Não é preciso fazer tudo o que digo aqui. Somos todos diferentes, e vemos todos o mundo de formas diferentes. Para uns fará mais sentido uns pontos, para outros outros pontos, e para outros ainda pode até fazer tudo sentido. Acima de tudo interessa muita dedicação e paixão pelo caminho que se trilha, que não seja motivado por um mero ordenado no final do percurso, mas apenas e só por crescer enquanto ser humano.
[1]
Day zero: Tips for starting out as a game artist, in Gamasutra, 2013
[2]
What Game Students Should Know Already, In GameTheory, 2010
[3]
Do game designers actually need to go to school?, in KillScreen Daily, 2013