dezembro 09, 2012

Sangue do Meu Sangue, uma obra-prima

Sangue do Meu Sangue é provavelmente um dos 10 melhores filmes portugueses de sempre. O seu registo é perfeito em toda a linha, realização, montagem, cinematografia, som, direcção de actores, guarda-roupa e claro os actores, os actores a servirem totalmente o cinema de João Canijo.


Apesar de tanta perfeição, não posso deixar de destacar três elementos: a escrita, a realização, e a interpretação de Rita Blanco. Da escrita podemos destacar o emaranhado de nós, a forma como somos levados por entre as vidas daquelas personagens, a narrativa não nos prende a um personagem em particular, antes nos prende à essência da vida ali presente, do seu modo, do seu peso, da sua anunciada tragédia. Claramente que empatizamos, mas cada um segue o personagem mais próximo de si, não existe um centro, porque o centro é a vida, a narrativa não dá corpo a um herói que se manifesta, antes coloca em evidência uma forma de estar na vida, de a encarar, de a viver e sentir. Neste sentido Canijo aproxima-se muito de Mike Leigh, tratando realidades diferentes – Inglaterra e Portugal – mas de forma tão próxima. O que aqui é relevante é o espectador compreender o mundo a partir da perspectiva daquelas pessoas, um universo real, longe da realidade adocicada de telenovela ou mesmo de telejornal. Não deixa de ser estranho no mundo de hoje, termos de ver um filme ficcional para sentir a realidade que um telejornal deixou de ser capaz de nos dar a ver.


No campo da realização, fiquei verdadeiramente impressionado pelo trabalho de Canijo, porque apesar de conhecer o seu trabalho prévio, este têm-se evidenciado mais pela escrita do que propriamente pela realização. Mas aqui ele vai bem mais longe, e chego a pensar que estamos perante uma nova forma de filmar, de algum modo pós-moderna. No sentido em que somos transportados por entre o drama e tragédia por meio de um autêntico festim de diálogos cruzados, colocados em cena de modo simultâneo, não diferentemente do que aconteceria na realidade, mas diferente do que estamos habituados a ver. Até aqui o cinema tem sido assertivo na apresentação das suas ideias, os diálogos não se cruzam, a menos que sejam meramente figurativos, ora aqui isso torna-se parte da estética do filme. Sentimos um certo desejo de colocar o espectador em atividade “multitasking”, tendo de seguir diálogos em simultâneo no ecrã e que surgem por cada canal do estéreo. Não podemos deixar de dar a devida a atenção a cada um deles, mas sentimos que exige de nós, sentimos que o filme nos envolve, nos abraça e nos obriga a entrar adentro dele. A câmara assume o seu papel de narrador mas como se de um autor implícito se tratasse, porque é ela que nos conta, é ela que nos coloca na cena, nós percebemos claramente que estamos ali como que a invadir o espaço privado daquelas pessoas, um espaço do qual a câmara faz parte. A juntar a isto, a construção sonora é irrepreensível, porque assegura uma realidade muito clara do espaço em que estamos, do modo denso e profuso que se vive em cada um dos espaços que nos aparecem. Canijo conseguiu reconstruir "vida" na tela.


Finalmente o trabalho magistral de Rita Blanco, não apenas ela, todos os actores são magistrais de um naturalismo tão perfeito que nos parece que invadimos o seu espaço por meio da câmara. Todos eles integrados, mesmo aqueles que nos habituámos apenas a ver em telenovela, morfoseiam-se e assimilam o personagem, somos incapazes de os descolar do espaço em que se apresentam. Sente-se que isto só poderia ser conseguido com o espaço dado ao improviso, a naturalidade com que as emoções jorram no ecrã não se consegue com diálogo memorizado, tem de ser sentido, tem de ser jorrado no calor da construção da cena, ainda que claro siga directrizes. A cena mais conseguida nestes moldes acontece durante o almoço dos "carapaus do Nini" em que a força emocional da cena atinge um pico intensamente realista, deixando-nos por momentos ansiosos, e com o coração a bater mais rápido. Por outro lado o filme acentua ainda mais este naturalismo com o contraste dado pela família de classe alta que aparece a meio do filme e que se encena, no sentido clássico da palavra, em que não se sente o pulsar da vida, mas apenas e só a fachada construída daquilo que se espera ser uma vida. Ainda assim e no meio de todo este calor interpretacional, Blanco impressiona, porque tem um magnetismo, porque é ela e não uma personagem, porque embora não sendo, parece tanto, que só pode ser. Blanco é a mãe que lutou toda uma vida para dar o melhor aos seus filhos, mas nem sempre as coisas correram da melhor forma, mas ela ali está com uma força tremenda, capaz de continuar a lutar e a tudo fazer para garantir que os seus filhos terão algo melhor do que ela. Aliás, agora que corre na nossa sociedade aquela ideia de que os nossos filhos viverão pior do que nós, é bom que vejam este filme e percebam porque isso não pode ser verdade, porque não o permitiremos, nem hoje, nem nunca.

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