janeiro 01, 2013

Holy Motors, a desilusão

Holy Motors é um filme grotesco que ganha pelo simples facto de trabalhar numa linha de minimalismo anti-estrutural que obriga os seus espectadores a trabalhar que nem loucos para dar significado ao que estão a ver. Obriga é uma palavra forte, mas neste caso assim é porque a obra vem com o selo de autor, e por isso mesmo qualquer crítico se vê na obrigação de procurar lógica no que está a ver. E é aqui que começam os problemas da crítica, os problemas do enriquecimento de sentidos pela análise forçada de intertextualidades. O crítico está tão preocupado em perceber o que está a ver que estabelece as ligações mais extemporâneas, e aqui o filme ajuda. Já não chegava ser anti-estrutura, sem organização ou lógica narrativa, ainda é minimal, ou seja pouco diz sobre o que quer dizer, garantindo um terreno extremamente fértil para todas as leituras que se queiram fazer. Aliás neste sentido aconselho a leitura do texto de alguns dias atrás com Richard Feynman.


Holy Motors está longe de ser aquilo que grande parte da crítica diz ser. Sei bem que estou em minoria, e a remar contra um facto já consumado. O que mais me incomoda nem são tanto as fragilidades do filme que são muitas, mas é a crítica não se ter dignado a analisar o filme, e ter partido para as interpretações rebuscadas daquilo que o filme alegadamente diz. Acabado o filme, não existe uma ideia concreta sobre o que acabámos de ver, sem ler sobre o mesmo, sem ler qualquer entrevista o filme desfaz-se, porque nada o sustenta. Estaremos perante arte conceptual? Não, basta ler as entrevistas com Leos Carax, para perceber que o seu objectivo era narrativo e concreto, simplesmente ficou muito longe de o conseguir fazer. A ideia principal de Holy Motors é até poderosa, e está bem explanada nas entrevistas, mas o filme falha em transmitir a visão que podemos depreender das suas palavras,
"This character is supposed to go from life to life traveling in a limousine. I didn't want every life to be the same degree of reality. Some are more fantastic and others are more realistic. (..) The rich banker transforms into a beggar. That idea of transformation was invigorating. I wanted to make this movie for a long time because people can be amazing: Sometimes they're morbid and erotic and they want to be seen differently on the outside, and there's kind of a virtual world there. It's a life for rent for a few hours." [fonte]
Carax diz-nos que o filme pertence ao género de ficção-científica, mas só ele parece acreditar nisso. A realidade é que como Carax admite nas várias entrevistas, raramente vê cinema e mais raramente ainda faz cinema. A sua relação com produtores e actores é má. No caso dos actores não existe direcção de actores, porque detesta que estes o questionem, espera antes que estes interpretem, ou melhor se desenrasquem. Aliás só esta sua ausência de noção da realidade da profissão explica o seu ostracizamento pela comunidade cinematográfica francesa. O papel de Kylie Minogue foi escrito para Juliette Binoche que não aceitou trabalhar com ele.


Para podermos compreender Holy Motors, temos de procurar compreender quem é o autor, e não apenas partir para as análises intertextuais. E Carax demonstra estar longe de tantos dos significados que já se ali quiseram colar. Basta lembra a máscara no final que Édith Scob coloca e que deu origem a análises intertextuais e a múltiplas interpretações, tendo entretanto sido admitido pelo próprio Carax, que esta aparece por pura arbitrariedade, não existindo ali qualquer simbolismo subjacente.


Carax confessa ter visto um filme recentemente e de que gostou, Chronicle (2012). Era importante perceber a relação entre ambos os filmes, para perceber como surge o novo filme de Carax. Em ambos não sabemos porque as pessoas fazem o que fazem, porque estão naquela situação, a fantasia existe. Os condicionamentos dos protagonistas são os focos de ambos os filmes. Mas os filmes separam-se quando Chronicle tenta construir uma ideia do impacto dessas alterações ou transformações não apenas sobre o personagem, mas sobre a sociedade em geral. Já em Holy Motors, não existe qualquer construção, existe apenas um sucedâneo de ideias grotescas, que chocam, mas que nada dizem per se. No conjunto e se quisermos reconstruir todo o filme com base no conceito geral dado por Carax, poderemos até dar algum alento ao que fica em nós do filme, de resto é pura especulação interpretativa.

6 comentários:

  1. Fico satisfeita por ver mais alguém com uma opinião semelhante à minha (http://www.espalhafactos.com/2012/12/20/holy-motors/) relativamente a Holy Motors.

    Carax quis ser genial e a maior parte da crítica resolveu fazer-lhe a vontade e acreditar nisso, pura e simplesmente. No entanto, no meio de boas ideias, ele conseguiu criar uma espécie de nonsense que deixa qualquer um frustrado, pelo menos qualquer pessoa que espere extrair alguma coisa de um filme que anuncia ter tanto para dar.

    Cumprimentos cinéfilos.

    ResponderEliminar
  2. Esta crítica mereceu destaque na rubrica «A “Polémica” do Mês» do Keyzer Soze’s Place, disponível aqui: http://sozekeyser.blogspot.pt/2013/01/a-polemica-do-mes-18.html

    Cumps cinéfilos.

    ResponderEliminar
  3. Olá Inês

    Obrigado, gostei muito da crítica com a qual concordo. Confesso que tinha alguma admiração por Carax, mas neste filme perdeu-se. Como disse a ideia era poderosa, mas não está no filme, ficou apenas na cabeça do autor.

    abraço

    ResponderEliminar
  4. Olá Samuel

    Obrigado pela referência!

    Existe um ponto de análise que queria ter explorado na relação crítica/filme, mas não deu. E que tinha a ver com as afinidades de cada um de nós.
    Ou seja os nossos mundos influenciam aquilo de que gostamos, mesmo quando não compreendemos.
    Isso acontece muito com Lynch, como com quase todos os autores que fogem da narrativa clássica.
    O que me surpreendeu e levou a escrever este texto, foi a unanimidade da crítica, que não é nada normal. E que pode apenas ser compreendida segundo o princípio da conformidade, em que se segue a orientação da maioria.

    Já agora parabéns pelo blog, gostei muito do top 10. Gostei do Take Shelter mas no final deixa demasiadas dúvidas no ar quanto à origem de tudo aquilo e isso deixou-me um pouco de pé atrás.
    Gostei das escolhas do ano parte1, nomeadamente concordo com o Mais Subvalorizado do ano e o Mais Sobrevalorizado. Adoro o Wes Anderson, mas neste filme não me tocou como estava habituado.

    um abraço

    ResponderEliminar
  5. Nelson, como dito em um dos melhores diálogos do filme, a beleza está nos olhos de quem vê. Aqui, Carax deixa claro que todas as interpretações a respeito de Holy Motors são não só válidas como também corretas. Abraço!

    ResponderEliminar
  6. Olá Rick
    Sim desde sempre. Sabemos isso, mas aceito melhor isso quando as coisas são pensadas, não quando acontecem por acaso e pior sem sentido. Por isso é que fui ler as entrevista com o realizador, e quando se percebe que existe ali muito de acaso, o encanto desaparece. E entretanto já encontrei outras críticas menos boas ao filme.

    Claro que como digo, tudo depende de quem vê. O filme Amour tem gerado várias críticas destrutivas, outras exatamente o contrário. Eu adorei o filme e acho-o o oposto deste. Em termos de arte cinematográfica, de compreender a linguagem, de a utilizar de forma consciente de forma efectiva não tenho qualquer dúvida que Haneke é muito superior a Carax :

    Fica a minha crítica a Amour:
    http://virtual-illusion.blogspot.pt/2012/12/amour-o-talento-da-realizacao-de-haneke.html

    ResponderEliminar