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maio 19, 2019

La Storia (1974)

Adorei o tratamento do interior da personagem principal, Ida, principalmente as primeiras 100 páginas, é delicioso. Assim como, mais a frente, tudo aquilo que envolve Ida e os filhos. Ela, eles, e a suas relações, seus medos e anseios, assim como Roma e os mundos criados pela imaginação deles, é tudo soberbo, sublime. Morante tem uma capacidade extraordinária para metaforizar os sentires, que são depois apresentados por uma escrita elegante, de elevada elaboração sem nunca se deixar levar em excessos de forma. Se tivesse permanecido no nível dessas primeiras 100 páginas, teria entrado diretamente para a minha lista de livros de sempre, o problema é que à medida que vamos avançando os problemas vão-se avolumando, muito por força das idiossincrasias da autora, e que passo listar:



— Inúmeras descrições de sonhos que não acrescentam nada ao relato. Uma abordagem claramente colada às ideias muito em voga da psicanálise dos anos 1970.
— Personagens com capacidades supranaturais, como falar com cães, sem qualquer razão nem motivação.
— Personagens que são aprofundadas e imensamente alongadas, mas que nada acrescentam à narração.

E a mais grave:

— Apresentação da epilepsia como algo maléfico.

Sente-se uma escritora demasiado presa a ideias dos anos 1970, o que não será alheio ao imenso sucesso do livro em Itália, tendo vendido mais de meio milhão de exemplares quando saiu, apesar da crítica não lhe ter sido favorável. Umberto Eco diria mesmo: "Talvez um dia venhamos a perceber que o romance aparentemente popular, era na verdade uma obra culta, muito meta-literária, quem sabe..." Apesar da crítica desfavorável, e do quase esquecimento da obra, ela marca presença na conceituada lista de 100 Obras do grupo do livro norueguês, criada em 2002.

Do meu lado, acredito que a popularidade do livro se deve a dois elementos: um histórico e sentimental; o outro de posicionamento político. O livro retrata a Itália no período do fascismo seguido do nazismo, entregando uma visão do interior de Roma em tempo de guerra e ocupação, que funciona como registo e ao mesmo tempo, pela forma como está escrito, parece transportar-nos para dentro dessa altura com imensa força. Por outro lado, Morante apresenta uma crítica política devastadora contra o capitalismo mas também contra o comunismo, parecendo colocar-se ao centro, que como sabemos é a área mais popular na política. Por causa disso acabaria por afastar dela alguns dos conceituados artistas italianos dessa época (ex. Pasolini), contudo eu não diria que Morante defende um centro político, apesar de algumas críticas apresentadas à anarquia, ao longo de todo o livro, são várias as vezes em que o movimento surge como o último reduto possível para a autora.

Libertação de Roma em 1944 pelos Aliados

Morante teve uma vida algo atribulada, sempre mergulhada em depressões, com vários suicídios no seu caminho, tendo ela inclusive tentado pôr fim à sua vida já na reta final. Deixo um excerto de uma carta escrita ao marido Alberto Moravia:
"Se tu soubesses a desordem da minha mente, que mal-grado tudo consigo esconder, e a incerteza que tenho a cada momento, a impressão de esterilidade, a que se junta a paixão deveras estranha e quase inaudita que em diferentes formas me calhou, terias ainda mais pena de mim do que já tens.
Não penses que não te sou grata pela maneira como me tratas e da qual me recordarei sempre. Estou muito mal, não sei se conseguirei tornar a encontrar um equilíbrio em alguma coisa. Queria poder trabalhar verdadeiramente, ou amar verdadeiramente, e seria feliz em dar a alguém ou a alguma coisa tudo aquilo que posso, contanto que a minha vida se cumprisse finalmente e encontrasse descanso no coração."
(fonte)

Ler mais:
Nazismo: ouro e livros, VI

maio 04, 2019

Talento ou motivação para criar?

Quando uma filha (14) ganha um concurso ficamos contentes, imensamente alegres por ela, mas quando ganha um concurso a nível nacional de escrita (criativa em inglês), que descobrimos apenas que ela participou quando soubemos que ganhou, além de nos fazer sentir felizes, questiona-nos: como e porquê? Não podendo deter-me no artefacto, foi escrito na hora do concurso em resposta ao tema e à mão e por isso não o pude ainda ler, detenho-me então sobre o seu percurso, não meramente escolar, mas essencialmente no ambiente que lhe foi proporcionado. Muito rapidamente me dou conta de algo que já há algum tempo vinha desmontando sobre a criação de talentos, não basta o ambiente social, nem sequer o investimento e trabalho árduo. Existe algo mais.


Nos últimos anos tenho-me dedicado a tentar compreender o modo como se criam os chamados talentos, no sentido de compreender a motivação e envolvimento humanos. Trabalho com media interativos, e por isso tenho como objeto central da minha investigação compreender o modo como o ser humano se envolve ou engaja com a realidade e os outros, descobrir o que é necessário para convencer alguém a agir, a sair da sua passividade do mero consumir para interagir. Dos estudos que fui lendo, notei uma ênfase enorme na necessidade de esforço e trabalho, relatados em análises de grandes nomes das mais diversas áreas, desde o Cristiano Ronaldo a Pele, passando por Kournikova, mas também Avicii ou Lady Gaga, passando pelas estrelas criativas do cinema romeno Cristian Mungiu ou Cristi Piu, ou inovadores tecnológicos como Bill Gates e Steve Jobs, ou ainda nomes maiores como Mozart ou Proust [1, 2, 3, 4].

A ideia que passa, no final de entrarmos nestes universos de desmontagem académica dos processos de formação de talento, é de que é tudo criado por nós, que existe uma fórmula que podemos seguir para desenvolver qualquer talento, a ponto de podermos concluir que pode ser atingido por qualquer ser-humano desde que se esforce para tal. Mas em todos esses estudos fui sempre apontando um detalhe, que parece menor, mas é fundamental, a motivação intrínseca. Aquilo que nos move internamente. Não estou a falar do célebre “jeito”, menos ainda “dom”, mas de motivação para investir horas diárias a chutar numa bola, a programar, ou a escrever, porque todos os exemplos dados acima tiveram isso, nenhum deles foi formatado para ser o que é, foram eles que foram sempre além daquilo que o ambiente lhes pedia, porque queriam mais. Ou seja, não nascemos com um dom para ser cantores ou escritores, mas nascemos com inclinações que nos predispõem a sacrificar tudo o resto em nome daquilo que mais gostamos.

O exemplo que tenho em casa mostra bem isso. Claramente que é uma miúda privilegiada, com acesso a centenas e centenas de livros espalhados por toda a casa, assim como centenas de DVD e videojogos, ao que se acrescentam vários serviços de conteúdos online na televisão, consolas e computador. Mas tem as suas inclinações que a separam totalmente do irmão (10), que tem acesso exatamente ao mesmo entorno material e social. Adora cinema e séries mas não gosta de jogos de mestria ou abstratos, é boa aluna, mas não é brilhante, não se colocando ao lado das suas colegas que correm as pautas a cincos. Se os mando continuamente ler aos dois, já que os ecrãs são a sua maior perdição, ela vai lendo vários livros ao longo do ano, enquanto ele parece estar sempre a fazer provas de superação sempre que vai ler, a única coisa que vejo capaz de agarrar o seu foco, até agora, tem sido os jogos, digitais ou físicos.

Ela não lê desenfreadamente, pois por uma qualquer razão só gosta de ler quando vai para a cama à noite. Ainda ontem lhe perguntava pelo Harry Potter, só leu até ao 5º volume, por outro lado, viu os 8 filmes provavelmente mais de meia-dúzia de vezes. Do mesmo modo, leu ainda apenas os primeiros quatro livros do Game of Thrones, mas está quase a acabar a série. É alguém que adora histórias, independentemente do medium. Começou a ver longas-metragens completas da Disney aos 2 anos, enquanto o irmão, já com 10 anos, continua a perder o interesse nos filmes antes de chegarem ao fim. Quando era mais pequena levava-a a eventos com performers que contavam histórias e ela deliciava-se. E isto é talvez aquilo que vem inscrito na sua motivação, o universo das histórias, contadas, visualizadas, escritas e imaginadas. Não fomos nós em casa que lhe dissemos que as histórias eram relevantes, é algo que a atrai, que a motiva, que puxa pela sua curiosidade e a faz mover. Agora, claramente que precisa de alguém que a vá guiando que lhe mostre a diversidade criativa existente, mas mais do que isso, que existe algo para além do mero consumo, que ela também pode ser parte desse mundo de criação, e isto tem sido algo para o qual a mãe tem dado o maior contributo cá em casa. Entretanto, do que conseguimos perceber, tem vindo a dar os seus passos, mas tudo no segredo do seu quarto e dos seus cadernos pessoais, desconhecendo nós que qualidades ou fragilidades possui, mas a julgar por este concurso, parece estar a dar alguns frutos.

Desta pequena súmula volto a retirar o essencial daquilo que considero ser o papel principal da Escola, ajudar as crianças a encontrarem o seu próprio filão interior. O que gostam, como se vêem, o que os move e demove. São muitas as disciplinas que se ensinam na escola, e eles não precisam de ser bons em todas, menos ainda excelentes, e por isso talvez devessem ser ainda mais as disciplinas, as áreas abordadas, dada a amplitude de possibilidades de realização que o mundo complexo em que vivemos nos proporciona, ou pelo menos abrir-se mais o leque em termos de valências extra-curriculares. É por isso que além do que a escola oferece, lhe proporcionamos ainda o acesso a escolas de dança (ballet) e música (orgão). Acredito que é na frequência da multidisciplinaridade que as crianças e jovens poderão encontrar o seu modo, a sua força intrínseca, criar o seu espaço de ação interior e exterior, e virem a ser capazes de agir no seio dos outros de modo consequente.

Deixo ainda uma nota de agradecimento à escola e aos professores portugueses, que a sociedade teima em desprezar, em apontar o dedo atirando farpas de que tudo está sempre igual a quando por lá passaram. Mas a escola de hoje é diferente, porque os professores de hoje têm uma formação muitíssimo superior à que tinham os nossos professores. São muitas, imensas as atividades que todos estes professores criam e gerem ao longo do ano em cada escola, de Norte a Sul, desde os concursos de escrita criativa, a debates argumentativos, a construção de robôs, e modelação e impressão 3D, passando por programação de jogos, simuladores, jornais escolares, reportagens, olimpíadas de matemática, experiências, audições, intercâmbios, exposições, etc. etc. Claro que a maior parte de tudo isto está nas mãos dos professores individualmente, são eles sozinhos que retiram do tempo da sua família para dedicar sábados e fins de dia para que os alunos tenham mais do que aquilo que vem inscrito nas matrizes estandardizadas de conteúdos. Provavelmente precisamos de mudar essas matrizes, precisamos de uma matriz menos sobrecarregada e de fazer dos projetos individuais dos professores projetos de escola, e julgo que de certo modo é isso que está a ser feito com a chamada Autonomia e Flexibilidade Curricular, aguardemos pelos seus frutos. E bem-hajam.


[1] O Talento é Sobrestimado, 2012
[2] Outliers, 2011
[3] Código do Talento, 2014
[4] Necessidades e Realização Pessoal, 2018

março 08, 2019

Multimodalidade e expressividade nos videojogos

Acaba de ser publicado na revista científica Observatório o artigo "Multimodality and Expressivity in Videogames" no qual abordo a multimodalidade e expressividade nos jogos digitais, sob a perspectiva da comunicação audiovisual, discutindo dimensões críticas em relação à alfabetização e experiência dos videojogos. Começo por apresentar uma visão geral sobre como criamos sentido a partir dos media audiovisuais, para depois enquadrar o foco na natureza cognitiva multimodal dos jogos digitais. Segue-se uma discussão sobre as razões que fazem com que os jogos digitais se tenham tornando mais relevantes do que o vídeo, discutindo as diferenças dos dois meios em termos de aprendizagem, nomeadamente na distinção entre as representações vicárias e enativas.


Ao longo da discussão, realizada no artigo, dou conta das novas possibilidades abertas pela multimedia e jogos digitais, tanto na integração de diferentes modos, como pela oferta de um novo modo, a interatividade, que, como argumentou Bruner, abre novos espaços de representação pela enatividade. Além disso, demonstro como os jogos aproveitam a motivação para extrair comportamentos ativos dos jogadores, ou seja, as ações solicitadas pelo design de jogo que garantem o engajamento e interesse em continuar a jogar para além das abordagens simplistas (estímulos extrínsecos).

Aceder ao artigo completo que se encontra em acesso aberto.

fevereiro 04, 2019

Logoterapia por Viktor Frankl

Viktor Frankl nasceu em Viena, 1905, de uma família de judeus. Com apenas 16 anos escreveu um ensaio sobre Freud, que lhe enviou, e este considerou digno de publicação no Journal of Psychoanalysis. Tendo estudado com Freud e Adler, deixaria de os seguir mais tarde. De 1933 a 1937 fez a sua residência em neurologia e psiquiatria, centrado nos tópicos da depressão e suicídio, tendo sido responsável pelo "Selbstmörderpavillon", o "pavilhão dos suicidas" onde tratou milhares de pacientes com tendências suicidas. Em 1942 foi deportado para o gueto de Theresienstadt na antiga Checoslováquia, uma espécie de ante-câmara dos campos de exterminação e ao mesmo tempo fachada modelo para enganar as autoridades internacionais do tratamento que estava a ser dado aos judeus. Chega a Auschwitz em Outubro 1944, levando consigo a sua única posse, um manuscrito em que traçava os primeiros princípios de uma teoria por si desenvolvida, a Logoterapia. É transportado para o campo de Türkheim em Março 1945, e é libertado em Abril 1945. Esposa, pai, mãe e irmão morrem nos campos, sobrevive a sua irmã.


Frankl tornou-se piscoterapeuta, tendo para o seu trabalho desenvolvido a teorização que denominou de Logoterapia, como tal considerada a "Terceira Escola Vienesa de Psicoterapia", sendo as outras duas, a psicanálise de Freud, e a psicologia de Adler. Como explica Frankl, enquanto a psicanálise se centra na avaliação do passado, no questionamento das razões traumáticas, a logoterapia centra-se no futuro, na busca de razões para continuar a viver. A denominação surge pelo "logos", razão em grego, já que Frankl definia como cerne da sua teoria a busca da razão, ou seja, de "um sentido para a vida". O "sentido da vida" de Frankl diz respeito a cada sujeito individual, não se defendendo qualquer sentido generalizável a todos os sujeitos. A teorização surge agregada a um conceito de Nietzsche, "Will to Power" (vontade de poder), e à máxima "Aquele que tem um motivo para viver pode suportar quase tudo." Este conceito de Nietszche que era usado por Adler, foi transformado por Freud como "Will to Pleasure" (vontade de prazer), e por Frankl "Will to Mean" (vontade de sentido).

A logoterapia assenta em três grandes princípios: a) existe sempre um sentido para a vida, mesmo a mais miserável; b) a motivação principal assenta na vontade de descobrir o sentido da vida; c) nós temos liberdade de encontrar sentido naquilo que fazemos e experienciamos,  mesmo aquando duma situação de enorme sofrimento. Deste modo, Frankl defende na Logoterapia, três métodos para podermos encontrar o sentido das nossas vidas:

(1) criar uma obra ou realizar uma ação;
(2) experimentar algo ou encontrar alguém;
(3) atitude face ao sofrimento inevitável, em que mesmo tudo nos sendo retirado, continuamos a ter a última liberdade humana: a escolha da atitude em cada momento.

Frankl seguiu estes princípios enquanto preso nos campos de concentração, que acabariam por o salvar em momentos de encruzilhada e dilema. Muitos pereceram e ele sairia vivo dos campos, embora como diz, por sorte do acaso. Ainda assim, se as decisões que tomou o levaram a ter sorte, o mais importante não é ter tido essa sorte, mas antes ter decidido por si como fazer, e não se ter deixado condicionar pelas pressões e aparências em cada momento. O livro divide-se numa primeira parte que relata a sua passagem pelos campos, e uma segunda que dá conta destes princípios. Na primeira parte, Frankl não nos dá nada de muito novo, o que ele próprio admite, e se refreia mesmo de detalhar, mas reflete sobre alguns dos comportamentos no campo, que acabam dirigindo-se ao âmago desta teorização, e de que deixo aqui algumas passagens:
“On entering camp a change took place in the minds of the men. With the end of uncertainty there came the uncertainty of the end. It was impossible to foresee whether or when, if at all, this form of existence would end.”
“Former prisoners, when writing or relating their experiences, agree that the most depressing influence of all was that a prisoner could not know how long his term of imprisonment would be (..) A well-known research psychologist has pointed out that life in a concentration camp could be called a “provisional existence.”
“A man who could not see the end of his “provisional existence” was not able to aim at an ultimate goal in life. He ceased living for the future, in contrast to a man in normal life. Therefore the whole structure of his inner life changed; signs of decay set in which we know from other areas of life. The unemployed worker, for example, is in a similar position. His existence has become provisional and in a certain sense he cannot live for the future or aim at a goal. Research work done on unemployed miners has shown that they suffer from a peculiar sort of deformed time—inner time—which is a result of their unemployed state. Prisoners, too, suffered from this strange “time-experience.” In camp, a small time unit, a day, for example, filled with hourly tortures and fatigue, appeared endless.”
“In this connection we are reminded of Thomas Mann’s The Magic Mountain, which contains some very pointed psychological remarks. Mann studies the spiritual development of people who are in an analogous psychological position, i.e., tuberculosis patients in a sanatorium who also know no date for their release. They experience a similar existence—without a future and without a goal.”
“One of the prisoners, who on his arrival marched with a long column of new inmates from the station to the camp, told me later that he had felt as though he were marching at his own funeral. His life had seemed to him absolutely without future. He regarded it as over and done, as if he had already died. This feeling of lifelessness was intensified by other causes: in time, it was the limitlessness of the term of imprisonment which was most acutely felt; in space, the narrow limits of the prison. Anything outside the barbed wire became remote—out of reach and, in a way, unreal. The events and the people outside, all the normal life there, had a ghostly aspect for the prisoner.”
“The prisoner who had lost faith in the future—his future—was doomed. With his loss of belief in the future, he also lost his spiritual hold; he let himself decline and became subject to mental and physical decay.”
Um último ponto sobre a logoterapia, e diferença face aos sistemas de auto-ajuda, é que esta se afasta completamente da ideia de se objetivar à felicidade. Na logoterapia, o sofrimento é visto como algo inevitável no ato de estar vivo, e a felicidade deve ser vista apenas como consequência do encontrar de um sentido ou significado da vida, não devendo ser procurada per se, já que o simples ato de a procurar implica a infelicidade de a não conseguir atingir. Encontrar uma razão, conduz a uma felicidade que logo termina para se iniciar nova busca de sentido. O significado não existe como absoluto, mas como etapas. O que verdadeiramente importa é o caminho, o processo, a busca pelo sentido, a tentativa de definir o sentido, e não o fim. Frankl definiu o significado da sua vida como, "ajudar os outros a encontrarem o sentido das suas vidas".

O livro é bastante curto, o relato de memórias rápido ainda que bastante atmosférico. A segunda parte mais teórica é ainda mais curta. Fica alguma sensação de falta, de aprofundamento, mas o contacto com o livro e a logoterapia é per se suficienente para justificar o contacto com o livro e a vida de Frankl.

dezembro 24, 2018

“Gris”, experiência sensorial

Desconfiei da beleza visual de “Gris” (2018) porque foram inúmeras as vezes, no passado, em que tal se revelou mera superfície sem qualquer substrato. Algumas das resenhas que li inclinaram-me mesmo a deixá-lo para jogar apenas em 2019. No entanto, algo fez com que o comprasse na Steam junto com mais alguns jogos nas promoções deste Natal. Por isso, se sabia que a ilustração me ia deslumbrar, esperava pouco do resto, nomeadamente acreditava que a jogabilidade seria fraca, e que por isso o fluxo seria um tanto arrastado, tudo muito suportado no campo visual apenas. Nada poderia estar mais errado, “Gris” é um exercício de completo domínio de todas as artes envolvidas na criação de um artefacto interativo: da ilustração à interação, passando pela câmara, animação, som e música.



Sendo um jogo de plataformas, não se espere nada que o relacione com outros plataformas deste ano, seja “Celeste” (2018) ou menos ainda “Iconoclasts” (2018) ou “Dead Cells” (2018). “Gris” é uma experiência singular, não existe nada que se lhe assemelhe, é uma obra marcada por uma intensa direção artística. Posso talvez invocar, no plano visual, “Child of Light” (2014), e no campo experiencial, do fluxo interativo, o trabalho de Jenova Chen, “Journey” (2012). Mas se Chen é um visionário do fluxo de interação, Conrad Roset é apenas um artista de aguarela, o que quer dizer que “Gris” não é uma obra de uma pessoa apenas.

A equipa por detrás de “Gris” é composta por três pessoas, todas baseadas em Barcelona. O artista Conrad Roset (1984), que já expôs um pouco por todo o mundo, desde o MoMA em Virginia, ao Show Studio em Londres, passando pela Steven Kasher Gallery em Nova Iorque ou TiposInfames em Madrid, imensamente comissionado para trabalhos de ilustração, possui um significativo número de seguidores. Desenvolveu um estilo próprio, facilmente reconhecível, assente na aguarela colorida em contraste com fortes formas a tinta preta, socorrendo-se bastante da silhueta e sensibilidade femininas como motivação. Em segundo, temos Roger Mendoza que trabalhou na última década na indústria AAA, fazendo programação de IA e gameplay, essencialmente para a série Assassin’s Creed, tendo trabalho no "Assassin’s Creed III" (2012), "Assassin’s Creed IV" (2013) e "Assassin’s Creed: Syndicate" (2015). E por fim, Adrian Cuevas, outro especialista em tecnologia e programação, que também veio dos AAA, onde esteve envolvido em “Far Cry 3” (2012), “Tom Clancy's Rainbow Six: Siege” (2015), e “Hitman: The Complete First Season” (2017). Mendonza e Cuevas resolveram deixar os AAA, e em 2016 juntaram-se a Roset para criar o Nomada Studio em Barcelona. Com dois especialistas em tecnologia, treinados ao mais alto nível para garantir a fluidez do gameplay, e um especialista em arte visual, algo de qualidade teria de ser possível criar.




As competências que suportam a criação de “Gris” explicam porque a ideia que tinha, do indie belo mas gorado, não aconteceu. Roset tinha uma visão criativa, mas Mendoza e Cuevas sabiam como lhe dar forma, como a sustentar ao longo de 5 horas, e contribuir para o densificar dessa visão. Quando se entra em "Gris" e começamos a jogar, mesmo não sabendo nada sobre as pessoas por detrás da obra, sentimos de imediato um trabalho altamente apurado, refinado e polido por alguém que sabe muito bem o que está a fazer. Além disso, estes tiveram ainda a humildade de procurar quem sabia mais do que eles, em áreas como a animação, o irmão de Roset foi buscar Adrian Miguel, que já tinha trabalhado em "Invizimals", e para o sound design, Mendoza trouxe Ruben Rincon, que já tinha trabalhado para “Assassin’s Creed III” e para o português “Between Me and the Night” (2016). Para coroar todo este trabalho, e encorpar completamente as aguarelas de Roset, posso dizer que a entrada de Berlinist, banda composta por Gemma Gamarra, Luigi Gervasi e Marco Albano e responsável pela banda sonora, eleva o jogo em vários patamares experienciais. Os Berlinist trabalham bastante no campo ambiental e atmosférico, em certos momentos pareceu-me existir um traço futurista, a fazer lembrar a banda sonora de "Blade Runner 2049" (2017) de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer.

Pegando neste último ponto, o da experiência, é nele que “Gris” mais investe. Na minha modelação do Design de Experiência tenho dividido o mesmo em três camadas — funcional, sensorial e significado. “Gris” não está propriamente focado no significado, em contar uma história, “Gris” desenvolve-se completamente no plano sensorial. Ou seja, “Gris” trabalha a interação pela forma, busca impactar e transportar emocionalmente o jogador, mais do que fazê-lo pensar nesta ou naquela ideia. Assim como a narrativa não é o fundamento, o jogo também não o é, ele está lá como está a história, mas são ambos suporte. O foco são mesmo as imagens e a música que juntos garantem uma experiência audiovisual interativa única, suficientemente abstrata para que possamos preenchê-la com as nossas experiências, deixando-nos guiar pelo pautamento emocional que nos vai sendo imposto.

dezembro 22, 2018

Lógica no suporte da narrativa

"Return of the Obra Dinn" (2018) é o último jogo de Lucas Pope, mais conhecido pelo brilhante "Papers, Please" (2013), que volta a colocar-nos no lugar de um profissional que tem de executar um trabalho, neste caso somos um perito de uma agência de seguros que tem de fazer um relatório sobre o que se terá passado num barco perdido em alto-mar no século XIX, que entretanto deu à costa. O jogo assume o velho desenho das histórias de detetives, e nós assumimos o papel do detetive, só que desta vez não temos de descobrir uma morte mas sessenta.





Dividiria "Return of the Obra Dinn" em dois grandes momentos: a descoberta de todas as mortes ocorridas no barco, à medida que vamos descobrindo cadáveres, que por meio de uma bússola mágica nos permitem ver o momento, visualmente congelado, em que morreram, e assim vão dando estampa a todas as páginas do livro, que vamos utilizando para tomar notas para enviar à seguradora; e o segundo, o da decifração de quem são essas pessoas e como é que morreram. O primeiro momento tem a particularidade de acontecer em modo reverso, seguindo a abordagem narrativa de "Memento" (2000), o que contribui para aumentar a complexidade do segundo, na decifragem dos eventos. Estes dois momentos são responsáveis pela criação de um terceiro, apenas no nosso plano mental, que é a reconstrução da história de como tudo aconteceu e que acaba sendo a grande motivação para jogar até ao final.

O passar do decifrar de 1 morte para 60 não é mera quantidade para aumentar a duração do jogo, é antes responsável pela criação de uma teia vasta e profusa de elementos, automaticamente ligados por estarem todos num mesmo espaço, o barco, mas órfãos por pertencerem a pessoas que não conhecemos e já estão mortas. Cabe-nos a nós, enquanto investigadores, reconectar todos os elementos, conjecturar a partir das evidências, dar-lhes lógica e inseri-las na grande narrativa do que aconteceu ali. É isto o jogo, e por isso se a base poderia facilmente ser passada a outro formato não-digital, a dimensão do que está em jogo torna isso completamente impossível, ainda que nos vejamos obrigados a recorrer a caderno de notas e lápis reais para nos ajudar a reconstruir o que vamos experienciando no jogo.

Não se pode dizer que seja um jogo revolucionário, muito longe até de algumas resenhas que se viram nalguns sites de referência dizendo que pela primeira vez se sentiram verdadeiros detetives. Basta recuar ao brilhante "The Last Express" (1997) de Jordan Mechner, ou mais recentemente "LA Noire" (2011) ou "Sherlock Holmes: Crimes and Punishments" (2014). Mas e o que dizer da enorme quantidade de jogos de aventura gráfica dos anos 1990 que usavam e abusavam do mistério e do detetivismo para motivar o jogador na progressão narrativa, dos quais temos o grande expoente "Myst" (1993), mas também "7th Guest" (1993) ou "Phantasmagoria" (1995), e porque não falar dos seus sucessores, os walking-simulators, nomeadamente com "Dear Esther" (2012) e "Gone Home" (2013). Todos estes exemplos dão conta de uma vertente de excelência do jogo, o "storytelling ambiental", mas não se fica por aí. Numa outra vertente, um outro jogo em que pensei bastante, à medida que ia avançando, foi "Her Story" (2015), pelo modo intrincado do design de todo o sistema que interconecta as centenas de indícios. E por fim, no campo específico da forma, das sequências congeladas em 3d que nos permitem investigar o espaço em redor de cada momento e obter indícios, embora aqui não saiba dizer quem chegou primeiro, já que os jogos saíram ambos este ano, podemos olhar para "Detroit" (2018) de David Cage que explorou exatamente o mesmo conceito.

Ou seja, "Return of the Obra Dinn" não inova num sentido radical, mas também não tinha de o fazer. O que se pedia a Lucas Pope era uma experiência ludo-narrativa, e essa temo-la. Resta-nos avaliar se enquanto tal nos faz sentir, e se o faz, como o faz, se ocupa suficientemente a nossa mente e se se regista nas nossas memórias. Quanto a isto, não há dúvidas, a resposta é cabal: "Return of the Obra Dinn" é uma experiência de grande prazer e objetivamente inesquecível. O primeiro embate é de enorme estranheza, todo o universo visual cria distância, mas à medida que vamos investindo tempo no jogo e vamos assimilando as suas mecânicas, compreendendo as suas vontades e motivações, vamos sentindo-nos em casa, com o que vem o desejo de ali permanecer mais e mais tempo, ao que se seguem as descargas de adrenalina do suspense e mistério e da dopamina pela descoberta das evidências e conexões. "Return of the Obra Dinn" é um artefacto complexo, mas elaborado num detalhe imensamente cuidado, que vai da lógica do sistema à plástica audiovisual, incluindo a banda sonora, criando uma experiência única.

dezembro 20, 2018

Origens da Comunicação Humana

Michael Tomasello é psicólogo de desenvolvimento e diretor do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology, apesar da sua investigação não ser na área da Comunicação o seu trabalho, e em particular este livro, “Origins of Human Communication” (2008), é um contributo fundamental para a compreensão daquilo de que a Comunicação é feita. A pergunta de partida é muito simples: sendo os chimpanzés reconhecidamente tão inteligentes, porque é que eles não falam?


O livro inicia com uma discussão assente numa grande variedade de estudos à volta dos chimpanzés, focada no modo como estes comunicam usando a linguagem não-verbal, principalmente o ato de apontar. Tomasello conclui que estes não apontam uns para os outros, pelo menos de forma consciente ou de modo intencional, e apesar de poderem ser ensinados a apontar, quando aprendem fazem-no apenas para realizar pedidos (normalmente para pedir comida).


Prosseguindo a discussão no campo dos humanos, Tomasello demonstra por um largo conjunto de estudos, e exemplos, que nós utilizamos o ato, ou gesto, de apontar como forma de comunicar entre nós, dando conta da complexidade envolvida neste ato aparentemente tão simples, mas capaz de conduzir à produção de sentidos altamente elaborados, mas que isso só é possível graças a uma condição: o “common ground”. Ora vejamos:
“All the instances of pointing and pantomiming just recounted involve one person simply directing another’s attention or imagination to some referent. The recipient then looks to the indicated referent, or imagines it, and from this discerns what the communicator is attempting to communicate—anything from “Are you waiting for the bathroom?” to “I’d like my cheese grated.” How do we do it? Where does this communicative complexity come from, if it is not “in” the protruding or sprinkling fingers? The answer is of course “context,” but this only takes us so far. Thus, great apes often operate in complex social contexts without seeming to communicate so richly.” (p.74)
Então o que é que acontece com os humanos, porque é que o seu contexto é distinto?
“For humans the communicative context is not simply everything in the immediate environment, from the temperature of the room to the sounds of birds in the background, but rather the communicative context is what is “relevant” to the social interaction, that is, what each participant sees as relevant and knows that the other sees as relevant as well—and knows that the other knows this as well, and so on, potentially ad infinitum. This kind of shared, intersubjective context is what we may call, following Clark (1996), common ground or, sometimes (when we wish to emphasize the shared perceptual context), the joint attentional frame. Common ground includes everything we both know (and know that we both know, etc.), from facts about the world, to the way that rational people act in certain situations, to what people typically find salient and interesting (Levinson 1995).” (p.74) 
Deste modo, o nosso ato de apontar consegue funcionar com bastante maior elaboração, expandindo a comunicação, do simples “pedir” dos chimpanzés para três funções básicas: “solicitar (solicitando ajuda); informar (oferecendo ajuda na forma de informações úteis); e partilhar emoções e atitudes (unindo-se socialmente pela expansão do common ground)”. Tomasello defende assim que é o facto de termos desenvolvido a capacidade, e a necessidade, de comunicar que nos levou a desenvolver a linguagem, que acaba não sendo mais do que uma elaboração simbólica sobre estes três modos. No fundo, é a capacidade de estabelecer um “common ground” que potencia a complexificação do gesto e assim da comunicação e por sua vez do próprio tecido social humano, que é fundamentalmente baseado na nossa motivação para a cooperação.

Isto não é propriamente revolucionário para quem trabalha em comunicação, já que a sua definição essencial é exatamente “colocar em comum”, e o contexto elaborado de que aqui se fala não é mais do que a Pragmática da Comunicação. O que é aqui mais relevante é este ato de colocar em comum, ou seja, a comunicação, ser responsável pela criação da linguagem humana e ao mesmo tempo por definir o fino fio que separa o humano das restantes espécies. Ou seja, a capacidade de informar e partilhar, a “intencionalidade partilhada” que é providenciada pela “leitura mental recursiva”, potencia a produção de pontes entre os indivíduos, acabando por fomentar a linguagem que por sua vez não acontece em mais nenhuma espécie.

novembro 17, 2018

A deceção com Ishiguro

Vi a versão homónima — "Never let me go" — cinematográfica quando saiu, em 2010, e lembro-me de não compreender a razão de tanto entusiasmo por parte da crítica. Recordo-me de ter gostado do ritmo e ambiente, da clara antítese para com outros filmes de ficção-científica pela ausência de futurismos tecnológicos, mas ao mesmo tempo nada da história, dos seus personagens, fez muito sentido para mim. Pensei na altura que o facto de não ter lido o livro me tinha deixado à porta do significado e por isso condescendi. Acabado agora o livro, sinto exatamente o mesmo que senti quando vi o filme, gostei do suspense, gostei da fragilidade e abandono, mas a mensagem continua distante. Li, entretanto, várias análises, incluindo a de James Wood e mais algumas académicas, mas não fiquei convencido com os argumentos apresentados em defesa da obra.


********** SPOILERS *************

O texto trata de um tempo igual ao nosso, mas numa realidade paralela em que a clonagem existe para servir as necessidades de transplantes de órgãos. Crianças clonadas, sem pais, são criadas e educadas em escolas até aos 16 anos, para depois seguirem, primeiro um processo de ajuda aos colegas mais velhos em pós-operatórios e períodos de convalescência entre extrações de órgãos, e depois passarem também a ser dadores, processo que pode chegar até à quarta ronda de extração, altura em que por norma, "completam o ciclo", morrem.

Olhando para esta síntese, temos uma premissa regular de ficção-científica, que trabalha um tópico quente do início deste milénio, a clonagem, e procura realizar alguma crítica. Contudo o tratamento do tópico por parte de Kazuo Ishiguro deixou-me completamente incrédulo sobre todo o cenário apresentado. É interessante que Ishiguro, apesar de trabalhar a mesma premissa do filme "The Island" de Michael Bay, que saiu exatamente no mesmo ano do livro, tenha seguido uma abordagem completamente distinta. O filme de Bay segue uma história-conceito de Caspian Tredwell-Owen, que não foi desenvolvida para além do filme, no entanto a premissa é muito próxima de "Never Let Me Go". Não interessa o tradicional "quem copiou quem" até porque tendo saído no mesmo ano, os tempos de produção não permitiriam cópias, mas interessa, mais ainda a esta distância no tempo, verificar como o tema mexia com a sociedade desse tempo, a ponto de dois objetos culturais terem sido criados e terem conseguido gerar grande impacto. Em 2003 a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado (1996), morria gerando grande comoção e discussão internacional em redor da clonagem, tornando os tempos propícios à criação de alegorias.

Indo agora ao cerne das minhas objeções. “Nunca me deixes” apresenta-se como uma alegoria, o que serve a todo o tipo de interpretações, desde os que defendem que Ishiguro usa a clonagem como mero pretexto para dissertar sobre a nossa própria mortalidade, aos que consideram que funciona como crítica ao processo e seus impactos. Muito honestamente, considero a alegoria completamente falhada, por falta de sustentação do cenário apresentado. Clones ou não, refletiam, questionavam-se, tinham curiosidade pelo pensar do outro, mas eram incapazes de questionar o seu desígnio? A única explicação é que sendo clones, eram apenas em parte humanos, com genes transformados para se comportar como animais domesticados, mas assim sendo então qual o valor da alegoria?

Por várias vezes parei para comparar com outras alegorias, um dos processos muito usado por Saramago, mas a conclusão era sempre a mesma, não se podem criar alegorias para servir de espelhos conceptuais, que na base comparativa estejam adulteradas. A alegoria deve partir das mesmas condições do conceito que se pretende discutir, e depois então transformar as propriedades ou condições contextuais para apresentar os impactos possíveis. Ora neste caso temos um grupo de crianças impossíveis. Mesmo assumindo a ideia de órfão, são apresentadas como humanos ausentes de curiosidade, ausentes de ímpeto do ser — quem sou eu? porquê? como? Mesmo a busca pelos “possíveis” que seria algo fundamental num humano regular, querer conhecer a sua origem, clonado ou não existe sempre uma origem, é apresentado como mero fait-divers, pouco relevante!

Claro que poderia existir um conjunto de personagens mais acomodados, mais resignados, menos despertos, mas todos! Não existe um único personagem que questione! E no entanto eles não são mantidos fechados num mundo à parte, eles leem literatura, clássicos instigadores, eles veem cinema, seguindo os comportamentais clássicos de Hollywood. Não lhes faltam modelos para despertar a imaginação, para questionar a diferença entre eles e os outros, e essencialmente o porquê dessa diferença. Ao mesmo tempo, a escola em que são educados e vivem, assim como a partir dos 16 anos, a herdade em que aguardam serem chamados para cumprir os seus supostos papéis, não são guardadas, não existe qualquer sistema de repressão ou controlo. Eles estão ali porque para ali foram levados, e nada mais.

A alegoria é um total falhanço em termos de compreensão do que sustenta a existência humana. Erra completamente ao retirar aos personagens qualquer motivação, qualquer sentimento de auto-determinação, como se fossem meros envelopes de carne, vacas e porcos, à espera de seguir para o matadouro. Como é que se podiam apaixonar se não se sentiam como indivíduos? Isto é tanto mais ridículo quando o desígnio de Hailsham, um colégio especial como ficamos a saber no final através da personagem Madame, tinha por objetivo demonstrar que eles eram tão humanos como os outros. Chegado aqui, poderia até questionar se não teria sido essa a ideia de Ishiguro. Ou seja, partir de um processo de clonagem direcionado apenas para a produção de envelopes de orgãos, mas ausentes das essências do sentir humano. Mas nada disso é abordado, quando se fala nesta escola com boas condições para os clones, o contraponto não é que eles são desprovidos de sentir, mas antes que a sociedade prefere ignorar a sua existência, e por isso não existe como oferecer-lhes melhores condições. Por outro lado, se Ishiguro tivesse ido ao ponto do design da consciência dos clones, seria no mínimo estranho que o único elemento extirpado fosse a auto-determinação. Para quê manter toda a complexidade passional e desejo sexual quando não existia capacidade de reprodução. Ver o sexo como um prazer que se lhe permitia é tão primário, completamente incapaz de compreender o reverso totalmente masoquista. Contudo, nada disto está em discussão nesta obra, por isso não adianta estar aqui a realizar interpretações sobre algo que o autor não se dignou a pensar, ou se o fez, foi incapaz de colocar no texto.

Fechando, o livro lê-se muito bem, leva-nos até à última página sempre com a ânsia por saber mais, por compreender melhor quem são aqueles indivíduos, porque vivem ali e como, mas se nós leitores nos preocupamos, eles não. Se sentimos empatia, percebemos no final que isso é algo ausente no desenho dos personagens. Por outro lado, a escrita está longe de ser de um nível Nobel, já que é pouco estruturada e repetitiva, mais ao nível de um romance Young Adult. Mesmo admitindo que objetiva a mostrar o mundo pelos olhos da personagem, ela já é adulta quando fala e recorda, e não é propriamente uma personagem desconhecedora de cultura literária.

novembro 15, 2018

Uma Educação (2018)

Para alguns, o passado de Tara Westover não é tão negro como o pintam as badanas e os blurbs no livro, porque em sua casa havia televisão e telefone, ou havia dinheiro para ela ir para a Universidade, e até para fazer estadias fora dos EUA numa universidade inglesa (ignorando as bolsas a que recorreu). Contudo esses comentários passam ao lado daquilo que este livro verdadeiramente nos conta. Não é o tamanho do buraco de onde a Tara saiu que importa, é a sua jornada e o seu efeito transformador, é a luta contra as crenças da sua família em nome de uma Educação. Porque o livro não se chama "Educated" porque a Tara fez um doutoramento, o título vai ao âmago do livro, tal como a ilustração da capa americana, a Tara foi obrigada a atraiçoar os seus valores essenciais enquanto pessoa, definidos pelos seus criadores e cuidadores, para obter a sua Educação. Porque a sua Educação não foi mera montanha de esforço, foi um caminho de não-retorno.

"Tara Westover tinha 17 anos quando pela primeira vez entrou numa sala de aulas. Nascida numa família de sobrevivencialistas nas montanhas de Idaho, preparou-se para o fim do mundo armazenando pêssegos enlatados em casa e dormindo sempre com a sua "bolsa-pronta-para-o-pior". No verão, ensopava ervas para a mãe, uma parteira e curandeira, e no inverno recuperava ferro-velho para o pai. O pai proibia os hospitais, por isso nunca chegou a ver qualquer médico ou enfermeira (..) Um dia, sem qualquer educação formal, Tara começou a educar-se a si mesma."
Talvez o discurso ao longo do livro, com Tara a apresentar tudo com a maior das normalidades, mesmo quando de pura violência se tratava, ou de lavagem cerebral ou ainda de coação, não tenha facilitado a perceção do que estava em causa. Talvez a excecionalidade das suas capacidades e de alguns dos seus irmãos nos surpreenda e faça levantar o sobrolho. Mas o que me parece ter maior efeito nesta leitura é a dificuldade que temos em compreender o quanto o ser-humano é moldável, e o quanto os pais têm capacidade para modelar e condicionar o erguer das pessoas que são os seus filhos. E que por mais mal tratados que sejam, um filho não renegado, não tem nenhum outro lugar do mundo para onde voltar, para onde se dirigir, a quem seguir. Mais ainda, quando convencido de que o mal-trato é para seu bem, para o proteger e dar-lhe o melhor que o mundo tem para lhe oferecer. Neste sentido, não é por mero acaso que Tara se dedique a John Stuart Mill e cite os conceitos de liberdade positiva e negativa de Isaiah Berlin no livro.

O pai de Tara sofria de claras psicopatias, era uma pessoa que acreditava no fim do mundo e fazia toda a sua família trabalhar para armazenar viveres e recursos para o dia em que o mundo terminasse. O pai de Tara acreditava que a Escola servia apenas para endrominar os cidadãos com ideologia do governo, assim como os hospitais não tratavam, antes envenenavam as pessoas. Os seus filhos foram treinados para acreditar nisso, e acreditar nele. Quando a Tara chegou à Universidade, sem nunca ter andado na escola, nem ter aprendido em casa nada além das escrituras Mormons, ela não sabia o que era o Holocausto ou que a Europa era um continente. O mundo de Tara era a pequena aldeia no interior dos EUA, e em essência o mundo que o seu pai para ela tinha construído. Quando confrontada com outras versões do mundo, tudo aquilo que assumia como realidade colapsou.

Isto levanta a questão complexa do que devemos fazer enquanto comunidades e estado. Aceitar que pais, apenas porque deram à luz, tenham o direito de distorcer as mentes de crianças e destroçar os seus futuros, ou agir previamente para que sejam dadas as mesmas oportunidades a todos os cidadãos? Por outro lado, a intromissão a este nível social é de tal modo intrusiva que coloca em causa a base da liberdade das pessoas, a liberdade de ser diferente, de acreditar em ideais distintos, de não ter de obedecer a padrões económico-financeiros iguais para todos. E acreditando eu tão profundamente nesta liberdade, não consegui deixar de sentir a mágoa do sofrimento de Tara e dos seus irmãos. Porque se os pais têm todo o direito de ser como quiserem, também deveriam ser responsáveis por oferecer a oportunidade aos seus filhos de serem um dia o que quiserem.
"A minha vida era-me narrada por outros. As suas vozes eram categóricas, enfáticas, absolutas. Nunca me ocorrera que a minha voz pudesse ser tão forte como a deles (..) É estranho como damos às pessoas que amamos tanto poder sobre nós." (Pág. 229 - 232)
Por outro lado, esta história é poderosa por demonstrar como a escola básica e secundária não é tudo nas nossas vidas. Porque alguém que apenas tinha lido livros bíblicos e mal sabia fazer contas aos 17 anos, conseguiu trabalhar afincadamente, recuperar 12 anos de "atraso", e em 10 anos não só licenciar-se mas também se doutorar em História (um outro seu irmão, com um pouco de educação formal, seguiu o mesmo caminho que Tara e acabaria a doutorar-se em Engenharia Mecânica). Ou seja, este exemplo vem também colocar o dedo numa ferida que temos discutido vezes sem conta, o valor efetivo da escola. Até que ponto esta não é mesmo o tal resquício da revolução industrial, desenhada para nos manter ocupados e aprender a respeitar a autoridade. Ou seja, até que ponto metade da escola e das disciplinas que oferecemos às crianças e adolescentes, não seriam mais do que suficiente para um dia poderem vingar nas suas áreas. Bem sei que parece mais fácil do que é. Tara nunca teria toda esta motivação e capacidade de esforço e sofrimento, não tivesse passado por uma vida tão dolorosa, e da qual poderia apenas escapar se se esforçasse pela Educação, ao que se junta ainda a filosofia de vida do seu pai, que defendia que cada pessoa é capaz de aprender tudo o que quiser sozinho, melhor do que sendo ensinado por outra pessoa. Num quadro normal, uma criança sem esta estrutura de habituação à negação das suas necessidades e ao esforço, só muito dificilmente aceitaria mais tarde realizar o esforço enorme que seria necessário para realizar um curso universitário.

Quanto à escrita, sendo este um primeiro livro de uma pessoa apenas habituada a escrever em termos académicos, é bastante boa. Rica e diversa, capaz de imprimir ritmo e envolver. A estrutura assente em episódios por capítulos funciona também muito bem, já que muitos dos episódios acabam por ser bastante tensos, plenos de conflito e por isso agarram a nossa atenção. Contudo não é um livro perfeito. Como já disse acima o discurso está de algum modo atenuado, como que se por vezes fosse apresentado por alguém à distância. Por outro lado, existe uma sensação de repetição no que vai acontecendo, e isso deve-se ao facto de se repetir na vida real, mas existem formas de trabalhar a repetição, nomeadamente pela estrutura e aglomeração ou eliminação de eventos, o que nem sempre é realizado aqui, criando em partes alguns ciclos de situações que nos enfadam e até, em certa medida, nos afastam do universo do livro e da autora. Contudo, é um excelente primeiro livro.

"Educated" já foi editado em Portugal, pela Bertrand, como "Uma Educação", numa tradução de Cláudia Brito.

novembro 04, 2018

A importância das escolhas nos jogos narrativos

“Detroit: Become Human” (2018) vai muito para além do mero entretenimento, por baixo dessa capa aparente de filme de Hollywood de ficção científica, lança-nos num mar de reflexões sobre a inteligência artificial e a robótica, que vão desde a motivação para a singularidade na IA (autonomização do ser) às necessidades e vontades associadas pela robótica (existência física) terminando na relação com o humano. À superfície parece oferecer pouco mais do que aquilo que já nos foi oferecido em filmes como “Bicentennial Man” (1999), baseado no conto homónimo de Asimov, “A.I. Artificial Intelligence” (2001) de Spielberg e Kubrick, “I, Robot” (2004) de Alex Proyas ou “Ex Machina” (2014) de Alex Garland, e no entanto, o facto de se tratar de um videojogo baseado em narrativa interativa, coloca-nos face a uma experiência completamente distinta, simplesmente porque somos obrigados a tomar partido.


Detroit apresenta um universo ficcional futurista, no qual os andróides convivem com os humanos em todo o lado, do mesmo modo que muitas outras tecnologias — dos carros aos sistemas de apoio ao humano — com a diferença de terem a mesma fisionomia que um humano, porque lhes facilita o apoio a essas tarefas mais humanas. Contudo, essa forma humanoide associada a capacidades sociais, afetivas e cognitivas torna-os excessivamente humanos a ponto de serem apenas permitidos nos EUA, enquanto o Canada e outros países mantém a sua proibição.


Ainda sobre o universo, e tendo em conta que se trata de narrativa interativa, reportar que Cage levou as suas possibilidades muito para além daquilo que nos tinha dado nos seus jogos anteriores —  “Fahrenheit” (2005), “Heavy Rain” (2010) ou “Beyond: Two Souls” (2013) —, aqui praticamente todas as nossas escolhas e decisões têm consequências, e essas conseguem aparentar ser ilimitadas. O melhor exemplo disso é que o cerne narrativo, constituído de três personagens andróides que devem carregar toda a história aos ombros do início ao final, na minha primeira passagem completa pelo jogo, morrem os três, nenhum chega ao fim, algo que pelas estatísticas apresentadas acontece muito pouco, mas demonstra a enorme elasticidade da ficção interativa apresentada. Note-se que podemos rejogar cada capítulo e alterar as consequências, contudo somos aconselhados, no jogo, a fazer um primeiro playthrough completo sem rejogar qualquer decisão, que foi o que fiz, mesmo quando em algumas decisões, por me sentir demasiado pressionado para decidir, decidi coisas com que não me identificava totalmente. Aconselho vivamente a que façam o mesmo, pois é dessa primeira experiência completa sem rejogar que poderão extrair os maiores impactos da experiência da narrativa interativa proposta.



Do ponto de vista tecnológico e empático, é interessante verificar como apesar de muitos arautos da tecnologia defenderem a proximidade do momento de singularidade, ou da possibilidade de substituir professores por robôs, num videojogo criado em 2017, em que ironicamente os três principais personagens são andróides, ainda estamos completamente dependentes de humanos, não só para lhes dar forma mas para garantir as performances de corpo e voz.

Porque jogar é experienciar, é viver de forma simulada e virtual. Ou seja, colocados dentro daquele universo de possibilidades, somos questionados e interrogados, somos colocados face a questões que ainda não existem no mundo atual, e para lhes responder só nos resta procurar dentro de nós as respostas. Puxar pelas nossas convicções, princípios e morais, mas também todo o conhecimento que detemos sobre as matérias (neste caso o meu conhecimento sobre o design e implementação de máquinas e formação dos seus sistemas de IA), confrontando argumentos para responder às situações, ainda que hipotéticas e ficcionais, colocadas pelo jogo. Sentimos que “Detroit” nos coloca contra a parede, no que à relação futura entre humanos e andróides dotados de consciência IA concerne, porque atira sobre nós toda a responsabilidade sobre como lidar com eles, obrigando-nos a decidir e a reagir. E se durante o jogo, um pouco pelo que considero excessivo design de pressão sobre o jogador ainda que sirva bem a dramatização necessária ao contar de uma história, senti as decisões por vezes mais distantes, no final do jogo elas caíram-me todas em cima.

Marcha de andróides lutando pelos seus direitos

Por exemplo, ter deixado morrer os três personagens não foi algo simples, impactou a minha experiência, criou frustração mas foi além, porque o jogo não se fica, não se resume a um mero “game over”, algo que Cage detesta nos videojogos. As ausências dos personagens tornaram-se parte do meu universo jogado, e a minha culpa pela sua perda foi transposta para os eventos que continuaram a suceder-se, o que se foi agravando quanto mais as suas ausências se foram tornando consumadas em mim. Mas isto também levanta enorme peso na discussão da autoria, do que tem para dizer um autor, e aqui Cage luta claramente nessa fina linha entre o quanto está disposto a oferecer-nos de controlo sobre os eventos e aquilo que nos quer dizer com a sua obra. Li em algumas resenhas, caracterizações de inconsistência narrativa, ou seja, que Cage não saberia ou não teria conseguido construir uma mensagem completa. Contudo, por muito que me custe dizer, mais ainda tão habituado a defender a intenção autoral no cinema e na literatura, aqui a intenção autoral não pode prevalecer sempre, correndo o risco da interatividade não passar de ilusão. Por isso se o jogo parece mover-se entre barricadas ideológicas ao longo da experiência, deve-se mais àquilo que vamos decidindo fazer, porque o jogo permite que façamos, e menos a uma vontade ou falta de determinação do autor e do jogo em passar uma ideia redonda. Aliás, se dúvidas houvesse sobre a determinação do autor bastaria recuar a 2012, "ver a demo/curta "Kara" e perceber como "Detroit" não surgiu de um simples desejo de fazer mais um jogo, mas vem carregado de intenções (entrevista com Cage).

"Kara" (2012) de David Cage

Posto isto, o jogo consegue algo que nem o livro nem o filme conseguem, levando-me a considerar que retirei desta experiência, algo que é notável para um videojogo, uma melhorada compreensão da minha relação com a tecnologia e sua hipotética singularidade futura. O jogo puxa imenso pela nossa ambivalência, usa truques para confundir o nosso sentir para com os andróides, que servem também para que possamos ir traçando o nosso caminho. Já estamos habituados, no cinema, ao desenho de situações de pura empatia para com os andróides, mas aqui somos também brindados com situações completamente contrárias, e somos conduzidos a passar pelos dois sentimentos, o que consegue mexer com algumas das nossas convicções. Existem algumas questões apresentadas de modo muito simplista, nomeadamente o modo como a generalidade dos humanos vai reagindo, algo que como já se disse, não é alheio ao modo como vamos jogando, ou seja, à medida que vamos jogando a narrativa vai-se ajustando e naturalmente partes dessa vão sendo secundarizadas. Contudo, pelo que vi de possibilidades jogadas por outros, é possível aceder a maior elaboração dessas partes, dita mais simplistas, rejogando partes mais decisivas que alteram o rumo dos eventos finais.

A primeira sequência do jogo, de resposta a um rapto, abre muitíssimo bem o tom do jogo, e nem queria acreditar quando vi na net que podia ter 6 finais completamente distintos.


Ao contrário dos jogos anteriores de Cage, e talvez motivado pelo facto de termos as árvores de nós narrativos a serem apresentadas no final de cada capítulo, mas especialmente porque as variações narrativas são tão acentuadas, sinto o desejo de voltar e rejogar, de voltar a experienciar, de decidir de outras formas para confrontar as minhas decisões naquele universo.

outubro 20, 2018

Algoritmo Mestre

Confesso que parti para "The Master Algorithm" (2015) com várias reservas: a primeira prendia-se com a dificuldade de trazer um assunto desta complexidade para uma discussão leiga; a segunda tinha que ver com a minha desconfiança sobre a possibilidade efetiva de se criar um algoritmo único, de tudo capaz. No final do livro tenho de dizer que Pedro Domingos, professor na Universidade de Washington, fez um belíssimo trabalho, não só o livro é acessível como nos abre o apetite para o tema. O que mais gostei, e acaba sendo o cerne do livro, foi da descrição das metodologias que estão a ser seguidas para que a máquina possa aprender, não por serem exóticas mas antes pelo contrário, por responderem por métodos que nós próprios, humanos, também temos vindo a utilizar para construir conhecimento.


Domingos abre o livro com uma constatação que por mais óbvia que seja nos continua a surpreender, o Machine Learning (ML) já faz parte das nossas vidas, e muito daquilo que fazemos no nosso dia-a-dia já é controlado por ele. Desde o modo como pesquisamos e encontramos livros na Amazon e filmes no Netflix, às informações e notícias que vão surgindo no feed do nosso Facebook ou Instagram, aos sites e links que o Google nos indica em cada pesquisa. Onde existirem bases de dados  grandes, o ML estará lá a trabalhar para nós. Enquanto espécie animal somos a espécie mais inteligente no planeta, contudo no que toca a processar dados, em volume e rapidez, temos poucas ou nenhumas hipóteses com os algoritmos processados por máquinas.

Domingos começa por discutir as diferentes fases do processamento do conhecimento no nosso planeta — "Evolução", "Experiência" e a "Cultura". A evolução deu-nos o DNA, o primeiro modo de construção de conhecimento no planeta, capaz de codificar vida. Seguiram-se os neurónios que codificavam toda a experiência percetiva em conhecimento que podia ser re-utilizado para navegar no planeta. Na terceira fase surge então a cultura, ou seja, a produção de conhecimento pelo ser humano. Domingos refere que cada uma destas fases foi sempre muito mais rápida que a anterior, apresentando de seguida, aquilo que considera ser uma 4ª fase, a do conhecimento produzido pelos computadores. Esta última fase levantou-me algumas dúvidas. Ou seja, considero que só poderemos colocar na equação de produtores de conhecimento os computadores, no momento em que eles nos começarem a dar conhecimento original. É verdade que os últimos sistemas desenvolvidos para jogar Go ou Xadrez, têm apresentado jogadas completamente novas, e momentos de criatividade em nada semelhantes ao que conhecíamos no humano, contudo parece-me que ainda é cedo para considerarmos estes resultados como inovação própria, ou externa ao humano. Ou seja, o que temos para já, do meu ponto de vista, ainda é conhecimento produzido por meio de ferramentas que são parte da Cultura. Veremos como evolui depois tudo.

Domingos diz-nos que cada nível destes representou sempre aumento de velocidade na produção de novo conhecimento.

Domingos prossegue a discussão apresentando então as 5 grandes metodologias para descobrir o conhecimento que hoje estão a ser utilizadas pelos criadores de ML: "Symbolists, Connectionists, Evolutionaires, Bayesians, Analogizers". O livro dedica uma secção completa a cada área, e aqui tenho de dizer que nem sempre foi fácil seguir Domingos, mas também porque não quis dedicar o tempo suficiente que cada uma das secções requereria se eu estivesse verdadeiramente motivado para aprofundar o estudo do ML. Se a motivação e a necessidade estiverem presente, o livro com mais algumas pequenas pesquisas na web poderá ser fundamental para ajudar quem deseje entrar no domínio. Aproveito para deixar aqui a abordagem proposta por cada uma das 5 variantes:

1. Symbolists - Logic - Inverse Deduction
Busca por preencher as falhas no conhecimento existente. Começa-se por um conjunto de premissas e conclusões e faz-se dedução invertida para tentar descobrir o que falta.

2. Connectionists - Neuroscience - Backpropagation
Emulação do cérebro, também conhecido por "deep learning", em que se criam redes artificiais de neurónios que desencadeiam relações a partir das conexões.

3. Evolutionaires - Evoluationary Biology - Genetic Programming
Simulação da evolução, busca-se emular o funcionamento e lógicas do DNA.

4. Bayesians - Statistics - Probabilistic inference
Redução Sistemática de Incerteza, utilizando a probabilística.

5. Analogizers - Psychology - Kernel machines
A busca de semelhanças entre anterior e atual, com vários modelos para encontrar as semelhanças.

Esquema retirado da rede.

Como podemos ver, estes são alguns dos métodos que temos utilizado para produzir conhecimento sobre a realidade e que estão agora ao serviço das máquinas. O desejo dos investigadores da área, de construir um algoritmo mestre que possa de algum modo construir os seus próprios métodos de aprendizagem, não é mais do que a singularidade discutida por Ray Kurweil, correspondente a um dos maiores medos da nossa espécie. O momento em que as máquinas se tornem conscientes e passem a ser como nós, ou pior ainda, nos ultrapassem, seguindo o "Homo Deus" de Harari. Domingos é bastante otimista neste sentido, e diz ter dúvidas sobre essa possibilidade. O principal argumento que apresenta é a "falta de vontade" da máquina. Diria que há alguns anos teria concordado, hoje não. A vontade não é algo não implementável, menos ainda num sistema autónomo com capacidade para aprender. Se existe algo que não vai faltar às máquinas é a vontade, porque implementadas as necessárias rotinas para continuar a aprender, elas tenderão a incutir vontade. E não faltam notícias (1, 2) nos últimos anos sobre situações destas, em que os sistemas de ML desatam a realizar coisas inesperadas, seguindo aquilo que a sua aprendizagem os vai motivando a fazer.

Para quem quiser entrar desde já nesta discussão sem ter de esperar pelo livro, o Pedro Domingos fez uma comunicação na Google muito boa, na qual resume todo o livro em 50 minutos. Aconselho vivamente e deixo-a aqui abaixo.

Pedro Domingos "The Master Algorithm" (2015) na Google

outubro 14, 2018

Design de comportamento

"Hooked" (2014) é mais um livro que procura o santo Graal do design de experiência: um modelo capaz de criar engajamento ótimo com qualquer aplicação, processo, serviço ou produto. O livro é interessante, dando conta de muito do que se vai fazendo na área, embora não aprofunde nada de novo (mesmo tendo em conta o ano de publicação, 2014), para quem já esteja dentro do UX ou IxD e tenha lido as referências da área. Recupera um conjunto de teorias e modelos, e tenta o seu mix. É mais uma proposta modelo, e como tal merece a nossa atenção, pois pode servir a determinados grupos ou para determinadas situações.


O modelo proposto por Eyal é designado de "Hook Model" (Modelo do Gancho, que agarra os utilizadores), e de uma forma genérica bebe nas mais elementares teorias da psicologia e persuasão, desde os condicionadores de B.F. Skinner aos princípios de influência de Cialdini, passando pelos vieses cognitivos de Daniel Kahneman ou Ariely. O modelo proposto é circular e procura induzir hábito, ou seja, não se limita ao engajamento, quer criar hábitos nos consumidores, para o que propõe 4 elementos em sucessão: Estímulo, Ação, Recompensa Variada e Investimento.

"Hook Model" de Nir Eyal

Funcionamento: O utilizador recebe um estímulo (trigger) que o conduz até ao produto. O produto sendo de fácil compreensão leva a que o utilizador o utilize (action). O utilizador recebe uma recompensa por o ter usado, de preferência não esperada (variable reward). O utilizador acaba por investir no produto, realizando tarefas (investment). Tudo junto cria um ciclo que acaba por trazer o utilizador de volta. O livro centra-se em desmontar os 4 elementos.

Triggers (estímulos)
São aquilo que fazem despontar o produto do meio dos outros. Podem ser Externos ou Internos. Os primeiros respondem pela normal publicidade ou presença em locais de grande ou fácil acesso, ou pela pressão de grupo de amigos ou familiar, ou ainda status. Os segundos, vão diretos às emoções e necessidades da pessoas. O Google responde à nossa necessidade de informação, o facebook à necessidade de mexerico, o telemóvel à necessidade de estar em contacto com os outros em qualquer lugar, etc. Estes acabam por ser mais desenvolvidas no elemento seguinte, por via da "motivação".

Actions (ações)
Respondem por um dos aspetos centrais do design de interação, que é aquilo que leva alguém a agir, já que sem ação do utilizador não existe interação. Para este ponto Eyal vai buscar  Deci, Fogg e Kahneman, embora com pena minha praticamente não use Deci, apesar de ser um dos maiores especialistas em motivação, ainda assim usa uma citação dele que não posso deixar de colar aqui: "motivation (is) the energy for action". Baseia depois todo a sua proposta no Modelo de Comportamento de Fogg que defende a ação como desencadeada a partir da correta correlação entre dois elementos: Motivação e Capacidade. Ou seja, para que o utilizador aja é necessário estar munido de motivação para a ação, mas é ainda necessário possuir as capacidades requeridas pela ação. A correlação permite então fazer variar a presença de distintos níveis de motivação e capacidades, uma em função da outra.

Modelo de Comportamento de BJ Fogg. Fogg foi um dos primeiros investigadores a estudar a persuasão pelas tecnologias da comunicação, tendo começado nos anos 1990 em Stanford, sob orientação de investigadores de relevo, tais como Clifford Nass, Philip Zimbardo, Terry Winograd e Byron Reeves.

Assim para o eixo da Motivação, Fogg dá-nos o que chama de "core motivators": "seeking pleasure and avoiding pain"; "seeking hope and avoiding fear"; "seeking social acceptance while avoiding social rejection”. Mas estes se analisados em detalhe e profundidade acabam por não ser mais do que aquilo que Deci propõe na sua teoria da auto-determinação em 3 vectores: autonomia, competência e relacionamento. Para o eixo da Capacidade, Fogg propõe 6 Elementos da Simplicidade. A ideia desta abordagem passa por tentar identificar nos utilizadores, por parte do designer, qual é o elemento que está a criar dificuldade à ação do utilizador:
Time — how long it takes to complete an action.
Money — the fiscal cost of taking an action.
Physical effort — the amount of labor involved in taking the action.
Brain cycles — the level of mental effort and focus required to take an action.
Social deviance — how accepted the behavior is by others.
Non-routine — How much the action matches or disrupts existing routines.
No fundo se atentarmos no trabalho de Fogg, vemos como segue Deci em toda a linha, acabando por eleger para o seu conceito de "design persuasivo" o segundo elemento, "competência", como o mais relevante. No entanto, Eyal não se fica por Fogg, porque aponta os seus elementos como racionais, juntando-lhes então os vieses cognitivos de Daniel Kahneman, por, segundo ele, oferecerem uma dimensão emocional. Não concordando com esta divisão, e referindo que alguns destes princípios surgem como fundamentais no trabalho de Roberto Cialdini, não posso deixar de referir que são imensamente válidos e claramente contribuem para ação: "The Scarcity Effect",  "The Framing Effect", "The Anchoring Effect", "The Endowed Progress Effect". Para saber mais sobre estes efeitos e desvios cognitivos recomendo, quase com sentido de obrigatoriedade para designers, a leitura do livro "Thinking, Fast and Slow" de Kahneman.

Variable Reward (Recompensa Variada)
Se o utilizador executa a ação pretendida, o sistema tem de oferecer feedback, e para Eyal, o melhor feedback é uma recompensa, que pode ser ainda melhor se for variável, ou seja, não for esperada nem for sempre igual. Aqui entramos na fase do Cão de Pavlov (condicionamento clássico) e dos Ratos e Pombos de Skinner (Condicionamento operante), que daria origem à primeira grande corrente da psicologia, o Behaviorismo, mais tarde posto em causa pela sua excessiva simplificação do comportamento humano. Basicamente, o que todos estes experimentos nos dizem é que a recompensa de comportamento ativa o neurotransmissor de dopamina que desencadeia o prazer e nos faz sentir imensamente satisfeitos. Eyal agarra-se aos experimentos de recompensa variável por estes demonstrarem maior efeito no tempo, já que a recompensa igual ou previsível rapidamente satura fazendo cair o nível de dopamina, o que é um problema na criação de hábito que requer tempo. 


Neste campo Eyal não cita qualquer trabalho, mas trabalha claramente ao nível da Hierarquia das Necessidades de Maslow, ao propor uma abordagem de recompensas com 3 vectores: "the hunt", "the tribe" e "the self". A necessidade coletora como fundamental para saciar as necessidades fisiológicas; a necessidade do outro, para saciar a gregariedade inerente ao humano; e o Eu, para saciar as necessidade de auto-realização. Os exemplos que Eyal retira da paisagem tecnológica atual são imensamente ilustrativos. Para a caça e coleção, apresenta o conhecido efeito de "infinite scroll" usado pelo Facebook, Instagram, Twitter etc. que colam os utilizadores ao produto quase de forma hipnótica, na ânsia por querer saber que imagem ou notícia vai vir a seguir. No caso da tribo, Eyal cita Bandura, e a sua teoria de aprendizagem social, para explicar o "Like" do Facebook e todos os mecanismos desenvolvidos por este para criar teia social e assim ganhar em engajamento . Por fim, para o Eu, Eyal vai buscar os videojogos e todo o seu design de progresso e reconhecimento de competências pela experiência, que em muitos jogos é mesmo definido por "experience points".

Investment (Investimento)
Este é o último nível do modelo Hook e é um dos menos referenciados noutros modelos, embora seja um dos mais populares em termos do design atual, e um dos mais antigos no que toca à persuasão embora com designações distintas. Basicamente falamos do envolvimento do utilizador ao ponto deste começar a investir tempo ou esforço (Exemplos: começar a fazer uma lista de filmes de que gosta numa App; começar a fazer lista de amigos; começar a jogar um jogo, etc.) que o leva para um nível engajamento com a aplicação do qual ele depois dificilmente se consegue desligar. Este modo funciona tanto do ponto de vista do esforço per se, como pelo efeito de grupo que nos questiona se mudamos de opinião. Cialdini define isto como coerência e comprometimento, quando estabelecido a pessoa tem dificuldade em sair do mesmo. Já Dan Ariely fala do "Efeito Ikea", em que o contributo do nosso trabalho para a construção final do produto o torna mais nosso, e nos dá mais prazer. E Chris Anderson fala do "freemium", que nos anos recentes ficou conhecido no mundo dos jogos como "free-to-play", e que terá nascido no início do século XX com a oferta de livros de receitas que exigiam Jell-O, gelatina em pó, e levavam as pessoas a comprar a mesma para poderem experimentar a receita. Eyal defende assim que esta etapa final no ciclo do Hook, permite gerar a cola necessária — tanto interna pelo esforço, como externa pelo que os outros pensam de nós — para que o hábito se instale e permaneça.

Uma nova proposta visual do modelo por Antedote

Isto é a essência do livro resumida e sem exemplos, o resto do livro são casos e exemplos, um dos quais tem um capítulo dedicado com imenso detalhe, e que diferencia a experiência da Bíblia em papel da experiência via app. O mais interessante deste caso são as interpretações dos comportamentos que podem ser lidos via app que debita dados em tempo real daquilo que os utilizadores fazem com a mesma. Eyal usa toda essas leituras para colocar em evidência o modo como o seu modelo Hook surge na base do engajamento produzido pela app.


Nota: Todas estas teorizações apontam para aquilo que na gíria se define como "dark side" das ciências de comunicação, como tal devem ser utilizadas tendo por base os mais elementares princípios éticos. Mais, a não observação desses princípios, que tem acontecido quando nas mãos dos menos escrupulosos, acaba por não trazer grandes benefícios por todo o efeito negativo que acaba por gerar no médio-prazo para a instituição ou marca.


Referências relevantes:

Deci, E. L., & Flaste, R. (1995). Why we do what we do: The dynamics of personal autonomy. GP Putnam's Sons.

Fogg, B. J. (2009, April). A behavior model for persuasive design. In Proceedings of the 4th international Conference on Persuasive Technology (p. 40). ACM.


Kahneman, D., & Egan, P. (2011). Thinking, fast and slow. New York: Farrar, Straus and Giroux.

Cialdini, R. B. (1987). Influence. Port Harcourt: A. Michel.