abril 05, 2020

Interconexões criativas de Alien

“Memory: The Origins of Alien” (2019) é um documentário sobre um filme marcante do final do século XX, “Alien” (1979), mas mais do que isso, é um documentário sobre a arte cinematográfica, não tanto sobre produção, realização ou receção do público, mas essencialmente sobre o processo criativo, a sua ideação e design. Alexandre O. Philippe, o realizador, fez um trabalho notável na escavação de informação e geração de pistas e ligações que vão desde a infância do guionista, Dan O' Bannon, até às mais elaboradas personagens da Grécia Antiga. É uma hora e meia de descoberta e demonstração das interconexões e interdependências que se jogam no processo criativo, nas afinidades e sincronicidades entre indivíduos e suas relações com todo o imaginário colectivo. Obrigatório.
O documentário torna claro como Alien emergiu de um mundo de mitos e histórias, textos e imagens, sons e movimentos, filtrados por três mentes brilhantes: Dan O' Bannon, HR Gigger e Ridley Scott. Dan criou o ninho de onde brotou a semente que foi depois acarinhada por Giger e finalmente traduzida por Scott para a obra que hoje conhecemos. O filme desde sempre apelou ao nosso olhar contemplativo, obrigando-nos a ir ao fundo das nossas referências, mas vê-lo à luz de toda esta informação, ganha dimensões ainda maiores, e afunda-se ainda mais dentro de nós, parecendo querer tocar em quase tudo aquilo que somos, como se conseguisse de algum modo ser ele próprio um personagem, rico e multifacetado, um artefacto vivo, denso e infinitamente enredado em todos os pontos e momentos da sua geração.


Deixo-vos apenas uma lista do que fui apontado ao longo do filme: Dan O' Bannon, John Carpenter, H. P. Lovecraft, "Seeds of Jupiter" (1951), Série B dos anos 1950, “Dark Star” (1974), Roger Corman, “The Thing” (1951, 1982), HR Giger, imaginário do Antigo Egipto, Ridley Scott, “Fury” (1944) de Francis Bacon, "Oresteia" (458 a.C) de Ésquilo, imaginário da Antiga Grécia, “Narcissus” (1897) e “Nostromo” (1904) de Joseph Conrad, imaginário da disparidade entre classes, etc. etc. E muitas imagens.


abril 04, 2020

"Human Diversity: Gender, Race, Class, and Genes" (2020)

Talvez venha a ser o último livro de Charles Murray (77), denotando um tom imensamente cuidado e calculado na introdução das suas ideias, como se quisesse redimir-se de pecados do passado e deixar um legado do seu melhor. Com alguma pena, não posso dizer que o tenha conseguido. Murray não é ofensivo como foi antes, mas não conseguiu descolar-se das metodologias que o conduziram ao beco anterior. Continua obcecado com as categorias biológicas universais, e dali não parece conseguir arredar-se. Definiu dez pontos cruciais para debater o livro, mas nenhum acrescenta qualquer novidade ao conhecimento atual, e menos ainda parece contribuir para afirmação do próprio título do livro, "Human Diversity" (2020).
Opto por analisar os dez pontos, não um a um mas divididos entre os quatro grandes grupos que orientam toda a abordagem de Murray: “Gender, Race, Class, and Genes”.

Diferenças de género
"1. Sex differences in personality are consistent worldwide and tend to widen in more gender-egalitarian cultures.
2. On average, females worldwide have advantages in verbal ability and social cognition while males have advantages in visuospatial abilities and the extremes of mathematical ability.
3. On average, women worldwide are more attracted to vocations centered on people and men to vocations centered on things.
4. Many sex differences in the brain are coordinate with sex differences in personality, abilities, and social behavior."
O maior problema destas afirmações é que sendo verdade não o são. Ou seja, se eu olhar para os sexos como médias, isto está correto, mas se eu olhar para as pessoas, e apenas depois para os sexos, vou encontrar muitas pessoas de cada sexo que não encaixam em nenhuma destas propostas. Ou seja, estamos a usar médias de pessoas para colar rótulos em milhões de seres humanos que não se reveem em tal! Pode chamar-se ciência a isto? Por muitos factos e dados que recolhamos, como é que posso dizer que os portugueses gostam de vinho e os alemães de cerveja, percebendo que nem todos os portugueses gostam de vinho, nem todos os alemães gostam de cerveja?

O que é grave é que esta segunda afirmação é irrelevante e os cidadãos de cada país até se riem. Mas dizer a uma mulher ou a um homem, que as mulheres e os homens são ou funcionam de uma forma, e nenhum deles o ser ou funcionar dessa forma, só contribuirá para criar uma crise pessoal de identidade. Quem é a mulher ou homem que se sente bem na pele do diferente? O problema é ainda agravado quando nenhum deles é mais diferente do que os outros, antes são todos diferentes.

Admito que no início deste século, quando comecei os meus estudos de graduação, me deixei fascinar por estas médias. Poder dividir o gosto humano em duas categorias, nomeadamente pelo cinema e videojogos, dava-me imenso jeito na hora de analisar audiências e compreender as mesmas, separar o que atraia mais as mulheres e os homens, simplificava tremendamente algo que é extremamente complexo. Contudo, à medida que fui amadurecendo a minha investigação, fui encontrando muitos e muitos casos que não tinham qualquer relação com a teorização. Confesso que passei inicialmente por um abandono das categorias de género para me fixar nas hormonas (testosterona – ocitocina) , para logo a seguir compreender que só estava afundar-me cada vez mais na teia biológica, perdendo mais ainda a relação que ligava as pessoas aos artefactos. Por isso, quando quis aprofundar o modelo de engajamento humano, acabei por fugir da biologia, género e hormonas. Depois de perceber que a biologia servia pouco a minha ânsia por compreender o comportamento humano, optei por fazer o caminho inverso. Comecei a identificar os comportamentos, as ações, as decisões e a partir dessas a criar catálogos de categorias conceptuais. As categorias eram assim emanadas das ações e não da mera fisiologia, podendo ser atribuídas a qualquer ser-humano, independentemente do seu género ou etnia.

De certo modo, isto que aqui confronto, é conhecido em filosofia pela diferença entre essencialismo e nominalismo. O primeiro acredita que as formas, desde Platão, possuem condições essenciais que as definem inexoravelmente. Já o nominalismo, considera que não existem categorias universais, que cada forma é sempre particular e diferente das demais. Eu vejo ambas como extremos, já que existem nuances que aproximam as mulheres das mulheres, e os homens dos homens, nomeadamente a sua biologia, mas considero que em termos cognitivos cada um tende para a total individualidade. Deste modo, quando crio categorias de pessoas que gostam do mesmo, entro pelo "conceptualismo", e não assumo que todos gostam da mesma forma, ou que por gostarem de A, não vão gostar de B, antes uso essas categorias como meras aproximações a uma melhor compreensão das pessoas, nunca como gavetas que encerram pessoas em toda a sua extensão.

Diferenças étnicas 
"5. Human populations are genetically distinctive in ways that correspond to self-identified race and ethnicity.
6. Evolutionary selection pressure since humans left Africa has been extensive and mostly local.
7. Continental population differences in variants associated with personality, abilities, and social behavior are common.
8. The shared environment usually plays a minor role in explaining personality, abilities, and social behavior."
O problema é o mesmo do género. Usa-se uma categoria biológica para triar pessoas, não se percebendo a relevância de tal, a não ser o de etiquetar pessoas à partida antes de elas poderem dizer quem são, o que querem, como querem.

Por outro lado, aqui temos um problema adicional, o ponto 6 contradiz o 8. Eu não defendo que a experiência consegue facilmente mudar alguém durante a sua vida, mas a experiência molda completamente comunidades inteiras no tempo. Por outro lado, na fase inicial do nosso crescimento e amadurecimento a experiência pode chegar a impactar tanto ou mais do que os genes, como diz Sapolsky:
“The brain is heavily influenced by genes. But from birth through young adulthood, the part of the human brain that most defines us (frontal cortex) is less a product of the genes with which you started life than of what life has thrown at you. Because it is the least constrained by genes and most sculpted by experience. This must be so, to be the supremely complex social species that we are. Ironically, it seems that the genetic program of human brain development has evolved to, as much as possible, free the frontal cortex from genes.” in "Behave" (2017)
Diferenças de classe
"9. Class structure is importantly based on differences in abilities that have a substantial genetic component."
Aqui temos problemas enormes. Os estudos do IQ demonstram que a hereditariedade não otimiza, mas tende a fazer voltar à norma (ex. o filho de alguém com grande IQ, não será alguém com ainda maior IQ, mas alguém que tenderá a voltar aos valores médios). Mas acaba sendo o própro Murray a admitir que não é o IQ que separa as pessoas, apesar de logo a seguir afirmar que é. Por outro lado, isto ignora de forma brutal e inadmissível tudo aquilo que sabemos sobre Hierarquia e Poder na ordem social. Eu bem sei que o maior estudioso sobre Poder é Foucault, mas não é preciso ir tão longe. Podemos citar alguém contemporãneo, sem relação com filosofia, o economista Thomas Piketty e o seu livro de 2013, "O Capital no século XXI", para ver como o capitalismo produz imensos desvios sociais, exatamente pelo poder conferido pelo capital.

Diferenças de genes
"10. Outside interventions are inherently constrained in the effects they can have on personality, abilities, and social behavior."
Repetição do ponto 8. Deixo uma prova simples, o modo como hoje a Europa olha e atua face à homossexualidade é, em percentagem de atitude das pessoas, oposta ao modo como olhava e atuava em 1950.


Notas finais

Eu quis ler este livro, não só porque o tema me interessa, mas também porque o autor do livro escreveu um livro de que gosto particularmente “Human Accomplishment: The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C. to 1950” (2003). Claro que tinha também escrito o outro livro polémico, “The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life” (1994). Mas por saber disso já vinha prevenido, e vinha de espírito completamente aberto, porque não concordo com muito do discurso genérico do feminismo, apesar de concordar com a abordagem. Ou seja, sei que só se mudam coisas por tomadas de ação fortes e duras, com apenas falinhas mansas e factos nada muda. Mas isso não quer dizer que eu aceite tudo o que estes movimentos me apresentam como verdades.

Ora um dos problemas que a abordagem que discuti acima coloca é que se eu me oponho ao uso das categorias de género e etnia para catalogar Qualidades dos seres humanos, então também tenho de me opor ao seu uso para catalogar Desigualdades. São bem conhecidos os estudos que dão conta dos pagamentos diferenciados entre homens e mulheres, ou da discriminação entre etnias. O problema é que esses estudos usam exatamente a mesma metodologia destes aqui. Ou seja, colocam homens e mulheres em dois sacos, e etnias em vários sacos, medem e comparam, e no final dizem que A ou B é pior ou melhor tratado. Ora isto coloca-nos face a um problema de duplicidade de critérios.

Se acredito na diversidade humana, então não posso usar categorias biológicas, abstraídas de toda a componente social, para discutir fenómenos sociais. Isto é um problema, tal como é um enorme problema do livro que por sinal tem o título de "Diversidade Humana", que em vez de se focar na diversidade foca-se apenas na universalidade. Diga-se que Murray vai sempre alertando que existem muitos casos fora dessa universalidade, mas isso ele também já tinha feito em "Bell Curve", o que não invalida que depois escreva aquelas chavões universalmente aberrantes, porque no fundo é nisso que acredita.

março 24, 2020

“O Mar, o Mar” de Iris Murdoch

“O Mar, o Mar” (1978) é um romance feito de múltiplas camadas concebidas num entrosamento de modos, o explícito, ocupado com as necessidades narrativas de manter a história viva e apelativa ao longo de centenas de páginas, e o implícito, de questionamento reflexivo inerente à veia filosófica da autora. Murdoch foi professora de filosofia na Universidade de Oxford, sendo reconhecida tanto pela sua ficção como pelo seu trabalho filosófico. Dito isto, o livro não é nenhum tratado de filosofia, mas não deixa de ser uma obra imensamente densa, talvez até mais pela profundidade descritiva do que propriamente pelas argumentações. Nesse sentido, a escrita de Murdoch recorda Proust através do modo como descreve cenas interiores, pensamentos e memórias, na sua miríade de detalhes, como avança e recua dentro dos personagens, pondo a nu a diferença liminar entre o real exterior e alegadamente objetivo, e o mundo subjetivo criado na cabeça de cada um de nós.
O protagonista é um encenador de teatro, célebre, que na entrada da idade de reforma se retira de Londres para habitar sozinho, numa casa à beira-mar completamente isolada, sem eletricidade nem água. Apesar de desejar estar sozinho, Charles Arrowby acaba por encontrar muitos dos principais personagens da sua vida, tanto recente, como da sua infância, o que vai provocar enormes tumultos interiores, que tornarão evidente o tipo de pessoa que temos em cena, dando a entender que existe ali pouco que se possa qualificar de boa pessoa, mas no entanto vamos avançando e compreendendo que má pessoa também não é, porque no fundo é apenas um humano. Murdoch penetra pelo pensamento de Arrowby adentro e dá-nos a ver e a sentir o mundo da indecisão, da incerteza, da dúvida, do questionamento e ao mesmo tempo o da certeza, do autoritarismo, do desprezo e da discriminação. A leitura senta-nos no ombro do personagem e deixa-nos ouvir e sentir tudo o que ele pensa, o que acaba por inevitavelmente se colar a nós, às nossas próprias incertezas e desejos. Não admira que Murdoch seja comparada a Dostoiévski ou Tolstói, ou nutra grande amor por Shakespeare.

A escrita apesar de apresentar um vocabulário acessível é bastante densa, mas é exatamente por meio dessa densidade que se produz uma aura reflexiva que nos transporta continuamente para o domínio do pensar. Apesar de toda a ação se passar numa casa junto a uma praia de rochedos em que os personagens podem banhar-se, passamos a maior parte do tempo dentro de ideias, quase desligados da realidade espacial-temporal, com muitas cenas a fazer-nos recordar os mundos-história dos filmes de Ingmar Bergman.

Existem algumas partes que me parecem interessantes reter, nomeadamente o modo como olham para a arte, no caso particular do teatro, mas também como discutem a nossa ilusão de realidade, ou ainda como nos introduz à discussão dos nossos anseios e desejos. Aliás, para mim, todo o livro acaba sendo isso, uma introdução aos problemas da crença no desejo de Ser. Porque passamos vidas inteiras em busca do nosso próprio eu, de uma suposta felicidade, sem considerar que essa mesma busca, ou essa mesma felicidade, pode não corresponder àquilo que verdadeiramente queremos, mas apenas àquilo que nos parece que verdadeiramente desejamos. É daqui que emergem as maiores incertezas sobre nós mesmos, somos alguém, mas não sabemos que alguém é esse que somos, temos intuições, fazemos inferências e lançamos suspeitas, mas ao longo das nossas vidas vamos aprendendo que muito daquilo porque tanto ansiámos e acabámos por conseguir afinal não era assim tão importante...

Deixo alguns excertos em inglês, a única versão digital que tenho, apesar de ter lido o livro na edição da Relógio d'Água numa tradução para português de José Miguel Silva.

Sobre o teatro:
“The theatre is an attack on mankind carried on by magic: to victimize an audience every night, to make them laugh and cry and suffer and miss their trains. Of course actors regard audiences as enemies, to be deceived, drugged, incarcerated, stupefied. This is partly because the audience is also a court against which there is no appeal. Art’s relation with its client is here at its closest and most immediate. Drama must create a factitious spell-binding present moment and imprison the spectator in it. The theatre apes the profound truth that we are extended beings who yet can only exist in the present. It is a factitious present because it lacks the free aura of personal reflection and contains its own secret limits and conclusions. Thus life is comic, but though it may be terrible it is not tragic: tragedy belongs to the cunning of the stage. Of course most theatre is gross ephemeral rot; and only plays by great poets can be read, except as directors’ notes. I say ‘great poets’ but I suppose I really mean Shakespeare. It is a paradox that the most essentially frivolous and rootless of all the serious arts has produced the greatest of all writers.”
Nós e a realidade
“We are such inward secret creatures, that inwardness is the most amazing thing about us, even more amazing than our reason. But we cannot just walk into the cavern and look around. Most of what we think we know about our minds is pseudo-knowledge. We are all such shocking poseurs, so good at inflating the importance of what we think we value.”
“Time can divorce us from the reality of people, it can separate us from people and turn them into ghosts. Or rather it is we who turn them into ghosts or demons. Some kinds of fruitless preoccupations with the past can create such simulacra, and they can exercise power, like those heroes at Troy fighting for a phantom Helen.”
“in a few weeks or a few months you’ll have run through it all, looked at it all again and felt it all again and got rid of it. It’s not an eternal thing, nothing human is eternal. For us, eternity is an illusion. It’s like in a fairy tale. When the clock strikes twelve it will all crumble to pieces and vanish.”
“The worshipper endows the worshipped object with power, real power not imaginary power, that is the sense of the ontological proof, one of the most ambiguous ideas clever men ever thought of. But this power is dreadful stuff. Our lusts and attachments compose our god. And when one attachment is cast off another arrives by way of consolation. We never give up a pleasure absolutely, we only barter it for another.”

Nota quantitativa no GoodReads.

março 14, 2020

COVID-19: comunicação de ciência

Nos últimos dias, quase todos vimos o diagrama animado "Flatten the Curve" (alisamento da curva), que relaciona o número de doentes com COVID-19 com o capacidade de resposta dos hospitais em cada momento. A razão porque o temos visto tantas vezes tem mais que ver com comunicação de ciência do que com ciência. Ou seja, o gráfico foi um dos melhores elementos de comunicação multimédia elaborados nas últimas semanas para o combate preventivo requerido por médicos e investigadores.
Gráfico 1, baseado numa proposta preventiva para evitar o que aconteceu em Itália e Wuhan

O diagrama surgiu pela primeira vez no dia 8 de março na revista online, The SpinOff, da Nova Zelândia, num artigo escrito pela professora de microbiologia Siouxsie Wiles, no qual dava inicialmente conta do surto na cidade de Wuhan, recorrendo a gráficos científicos, como os abaixo. Após essa discussão, propunha uma resposta comunitária, baseada num artigo de Anderson et a. (2020), publicado na Lancet, mas também em práticas que vêm sendo propostas há décadas, e que consistia na ideia de todos contribuirem, aumentando os cuidados de higiene, para assim se conseguir baixar ou alisar a curva de casos, para que os hospitais conseguissem dar resposta a todos os doentes graves em tempo útil. Essa solução foi então trabalhada pelo ilustrador Toby Morris, acabando no gráfico que hoje todos conhecemos como "Flatten the Curve" (no topo).
Gráfico com os dados do surto do vírus em Wuhan. Para consumo de especialistas.
Gráfico criado a partir das ações de controlo do surto em Itália. Para consumo de especialistas. [Fonte]

Da análise do diagrama animado e comparativo com os gráficos criados exclusivamente por investigadores para consumo da comunidade científica, temos vários pontos a salientar:
  1. Simplicidade: diminuição da quantidade de informação presente em redor das curvas do gráfico.
  2. Movimento: a animação torna realista o efeito no tempo da mensagem, produzindo evidência e eficácia comunicativa.
  3. Forma gráfica: uso de traço e cor cartoonescos, criam proximidade e reconhecimento de formas, levando a crer que é algo que podemos compreender.
  4. Empatia - Por fim, não se limitaram a apresentar as duas curvas, introduzirem dois personagens que servem para dar indicações, mas mais do que isso, servem para criar empatia com algo que é profundamente abstracto, os diagramas e números.
O gráfico tornou-se representativo das políticas de ataque e prevenção sendo hoje usado como ilustração das mesmas pela Wikipedia, na página que reune toda a informação sobre a pandemia. Entretanto, como surgiram vários questionamentos sobre esta resposta preventiva, nomeadamente sobre a intensidade de ação e efeitos no tempo, Wiles voltou a trabalhar com Morris, agora baseados nos modelos usados por Singapura, Coreia do Sul e defendidos por movimentos internacionais como #StayTheFuckHome. Para tal, adaptaram o primeiro gráfico para ilustrar o impacto de diferentes medidas no tempo, intitulado Stop The Spread (ver abaixo), que foi publicado hoje no TheSpinOff.
Gráfico 2, baseado em modelos preventivos implementados por Singapura e Coreia do Sul.

março 08, 2020

Da Natureza das Coisas

De Rerum Natura” é a obra-prima do poeta-filósofo Tito Lucrécio Caro (94-55 a.C). Se quiserem saber mais sobre a história e relevância deste texto que quase se perdeu nos meandros das parcas bibliotecas da Idade Média, aconselho vivamente a leitura de “The Swerve: How the World Became Modern” (2011) de Stephen Greenblatt. Mas se foi por meio de Greenblatt que me iniciei na leitura de Lucrécio, a quem agradeço, foi por meio da belíssima tradução de Agostinho da Silva (1962), para prosa em português, que cheguei ao conhecimento das palavras e pensamento de Lucrécio. Dizer ainda que se a obra se apresenta como poema, ele é mais porque é também ensaio, não apenas filosófico, mas também científico, e por isso não admira todo o ardor que Montaigne sentia por Lucrécio, explicando também o facto de se ter passado a designar a obra como poema-didático. Em suma, podemos dizer que a obra de Lucrécio é talvez o primeiro trabalho de sempre de Comunicação de Ciência. Mais do que filosofar, argumentar ou calcular, Lucrécio estava focado em dar a conhecer as ideias dos seus mestres — Demócrito (460-370 a.C.) e Epicuro (341-270 a.C.) — não se tendo poupado em esforços de comunicação, nomeadamente de persuasão, o que explicará o facto de ter sido escrito em verso.
Ilustração de Jennifer Luxton

Para além do impacto desta obra nas ideias dos períodos da Renascença e do Iluminismo, discutido por Greenblatt, é talvez ainda mais importante, porque responsável por esse impacto, o facto de ser o meio que permitiu que o pensamento de Demócrito e Epicuro tivesse chegado até nós. Ambos os pensadores são hoje imensamente reconhecidos no modo como anteciparam uma visão do mundo pós-religião, humanista, centrado no pensamento científico, nomeadamente pelo atomismo e o materialismo. Contudo, a maior parte dos seus escritos perderam-se, tendo restado o trabalho de Lucrécio como portador. Antes de avançar sobre o livro em si, a escrita e estrutura, devo realizar uma breve discussão destas correntes de pensamento, não apenas por serem o núcleo do poema de Lucrécio, mas por serem o núcleo daquilo que hoje assumimos como modo humanista de compreender o mundo que nos rodeia.

Comecemos por compreender que Demócrito estava nas antípodas de muitos dos que se dedicavam a compreender a realidade, entre os quais, Platão e Aristóteles. Para estes últimos, a realidade requeria explicações, sentido e significado. O mundo não poderia simplesmente existir, não se pode ser sem um propósito, uma razão ou uma causa última. Daí que os Deuses nunca tenham abandonado o Olimpo, nem Roma, tendo apenas se monoteisado e aguardado quase dois milénios para que a ciência os começasse a retirar da equação. Vale a pena releitura de “História da Filosofia Ocidental” (1945) de Russell.

Demócrito defendia um mundo constituído por pequenas e indivisíveis partículas, a que deu o nome de átomos. Nestes residiria a componente última e explicativa da realidade. Não adianta procurar além do mundo físico, pelo menos sem antes compreender esse mundo. Neste sentido, Demócrito propõe o materialismo por meio do mecanicismo, questionando: que causas dão origem a cada evento? Se nos centrarmos em saber como acontecem as coisas, como estão interligadas, e compreendermos como a sua interdependência faz o mundo avançar, deixaremos de procurar causas externas sem qualquer sustentação empírica.

Claro que podemos sempre questionar: porquê átomos indivisíveis? E é aqui que Lucrécio faz a sua melhor investida, oferecendo uma argumentação sólida na defesa do atomismo de Demócrito, sustentado no materialismo de Epicuro. Assim, temos que tudo no mundo se desmorona, tudo decai, nem mesmo as pedras mais duras resistem à força da erosão da água e da passagem do tempo. As coisas tendem a misturar-se, tal como acontece com a lama que surge da mistura entre terra com água, que depois nos garante os adobes e tijolos, até que tudo volta a desintegrar-se. No entanto, tudo aquilo que se desintegra tende a dar novamente origem a coisas iguais a si. Existe um ciclo que se mantém inalterado, de decadência e renascimento, que contrasta com a expectável ideia de tudo decair no tempo até ao infinito. Porque não temos um universo constituído por mero caldo de grãos? Para Lucrécio, porque coisas nascem de outras iguais a si, tal qual sementes, as coisas possuem em si determinadas configurações capazes de oferecer futuras e concretas estruturas. São essas configurações últimas, não divisíveis que preservam a ordem da realidade, e permitem que esta se mantenha em pé. De certo modo, Lucrécio antecipava aqui as propriedades químicas, ou aquilo que hoje aceitamos como Tabela Periódica de elementos químicos. Lucrécio discute ainda a necessidade do vazio, ou seja, a existência de espaço entre átomos que garantiria diferentes uniões entre os mesmos e proporcionaria a criação de infinita variação, oferecendo o sólido, mas também o fluído o e o gasoso. Do mesmo modo, oferecia, por via da teoria da declinação (declínio na trajetória dos átomos entre colisões) a impossibilidade da permanência das condições de geração do totalmente igual ou idêntico ao anterior, explicando a incerteza e o livre-arbítrio do elementos, do ser-humano e do universo.

Repare-se como tudo isto suporta o materialismo, que nada tem que ver com as ideias que os antagonistas, na generalidade religiosos, continuam a colar-lhe do hedonismo. Ser materialista, nada tem que ver com o desejo de coisas. O materialismo conduz-se pela simples crença nas coisas enquanto entidades próprias, sem explicações exteriores. Por esta razão o epicurismo defende a procura pela satisfação do prazer, como modo de dar resposta à condição natural dessas coisas. Para o efeito, Lucrécio convoca então o estoicismo, juntando dois sistemas de pensamento, que para muitos parecem inconciliáveis, para criar as bases do que viria a ser o Humanismo (ver “Sapiens” de Harari). Ou seja, o materialismo funciona com base na virtude, o seguimento das leis naturais, que segundo Lucrécio seriam providenciadas por uma Vénus, deusa do Amor, que guia o sentido daquilo que somos enquanto parte da natureza. Buscamos o prazer, não pelo prazer, mas pelo amor pelo outro, para que da nossa semente, nova semente continue aquilo que somos. É esta combinação teórica que permite a Lucrécio tornar a alma material, perecível, defender que depois de morrer nada mais há, deixamos de existir, restando-nos aqueles que ficam, aqueles que deixamos. Lucrécio mata assim o medo da morte que suportava, e suporta ainda, o grande fundamento das religiões no agrilhoar da liberdade do Ser, e prepara o terreno para Darwin.
À esquerda, a edição da Globo de 1962, traduzida por Agostinho da Silva, em prosa. À direita, a edição da Relógio d'Água de 2015, traduzida por Manuel Cerqueira, em verso e bilingue.

Sobre a escrita e mesmo o conteúdo, é preciso ter em atenção que tem mais de dois mil anos, e muito do que se escreve e modo como se escreve está bastante ultrapassado. Não estamos a ler um livro de divulgação científica de hoje, nem sequer do século passado. A nossa admiração faz-se mais pela sua relevância histórica, pela visão e antecipação, e acima de tudo pela liberdade de espírito na concepção de ideias desligadas do poder vigente. Não foi por mero acaso que o livro quase "se perdeu" durante 1500 anos. Por outro lado, como diz Greenblatt no final da sua obra de homenagem a Lucrécio, o trabalho deste foi concluído, os seus escritos deram frutos, os seus sucessores criaram todo um novo mundo, as ideias deram novas ideias, o seu livro foi ultrapassado e pode agora regressar a meros átomos.

Para finalizar. O livro está dividido em seis grandes capítulos, denominados de Livros, que alguns estudiosos intitulam da seguinte forma :

  1. Os constituintes permanentes do universo: átomos e vazio
  2. Como os átomos explicam os fenómenos
  3. A natureza e mortalidade da alma
  4. Fenómenos da alma
  5. O cosmos e a sua mortalidade
  6. Fenómenos cósmicos

Desta listagem facilmente se depreendem três grandes partes — os átomos; a alma; e o Cosmos — que por sua vez se dividem entre dois grandes focos ou abordagens: o que lhes dá vida e o que os conduz à morte. Tudo é feito de vida e morte, constituindo o ciclo que sustenta tudo aquilo que somos, aquilo que nos dá vida, e aquilo que constitui o Universo.

março 07, 2020

Dos pais orfãos

"O Filho" (2011) de Michel Rostain é um livro sobre a quebra irreversível, por via da morte, do mais importante laço humano — entre pais e filhos — visto a partir dos olhos de um filho que parte deixando os pais vivos. A natureza pressupõe a quebra e prepara-nos para ela por via de um ciclo de envelhecimento, contudo esse ciclo pressupõe apenas um cenário: primeiro partem os pais. Quando os filhos partem primeiro, dá-se um choque insuportável porque contra-natura, que impede o humano de dar significado ao sucedido, o que acaba por bloquear e coartar o seu próprio ciclo natural.

Editado em Portugal pela Sextante

Vivemos num mundo completamente diferente do de todos os nossos antepassados. Até meio do século XX, os dados mundiais demonstram que 50% das crianças morriam antes dos 15 anos (ver gráfico), ora isto diz-nos que praticamente todos os nossos antepassados passaram por esta “maldade”. Cheguei a ponderar a ideia de que no passado o facto de a morte de crianças ser comum, o ser-humano, pai e mãe, suportariam melhor essa dor. Contudo quando olhamos para os dados, e quando lemos alguns relatos do passado e os de hoje percebemos que não. Na verdade, a natureza não mudou, o vínculo mãe-filho e pai-filho é muito mais antigo que um par de milénios, ou mesmo uma dezena, pela simples razão de que ele é o sustentáculo da espécie. Ou seja, se a natureza não forçasse a dependência emocional dos pais face aos filhos, os filhos não morreriam em taxas de 50%, mas antes se aproximariam dos 100%, já que enquanto bebés e crianças somos completamente dependentes dos nossos cuidadores.
Por outro lado, apesar das taxas de mortalidade infantil terem baixado drasticamente, a perda de um filho é algo muito mais comum do que temos noção, ou gostaríamos de admitir. Repare-se nesta pequena lista de pessoas conhecidas que perdeu filhos, ainda jovens — Eric Clapton, Prince, John Travolta, Keanu Reeves, Marlon Brando, Robert Plant, Roald Dahl, Roy Orbinson, Shakespeare, Victor Hugo, Abraham Lincoln (sobre o qual escreveu George Saunders recentemente). Contudo, se passarmos a uma análise macro, o cenário agrava-se e impacta fortemente já que nos dias de hoje morrem ainda, todos os dias, 15 mil crianças (até aos 5 anos) (ver gráfico). Um número que se traduz, no final de cada ano, em quase 6 milhões de filhos mortos, algo que enquanto sociedade tendemos a ignorar, apesar de ser um número apenas superado por aqueles que morrem com mais de 75 anos.

E assim, mais uma vez me dou conta do facto de que não é relevante existirem ao lado pessoas que também perderam os filhos, isso não torna as pessoas imunes à dor, alivia, mas apenas superficialmente. Torna mais suportável, mas continua a não oferecer sentido. O facto de os outros sentirem o mesmo, cria novos laços pela relação de proximidade na igualdade de circunstâncias, nomeadamente pela mútua compreensão que produz afinidade, mas o significado continua ausente. Mas talvez por isso, mais do que saber que existem outros, seja preciso ouvir esses outros, conhecer aquilo que sentem, seja num livro, filme ou relato, porque se está sedento de sentido, restando a esperança de que esses outros possam ter-se aproximado, de algum modo, desse sentido, podendo oferecer parte da sua luz. E é aqui que reside parte da enorme relevância de livros como "O Filho" (2011) de Michel Rostain, que ao discutir abertamente o assunto, sem pudores, gera um efeito balsâmico, quase terapêutico, a quem ainda busca por sentido.

No campo da forma, a escrita de Rostain é ligeiramente poética, com uma estrutura dotada de bom fluxo, mas é um primeiro romance. O relato não é totalmente ficcional, nem totalmente documental (desde logo impossível por termos um narrador que está morto), Rostain pegou no seu próprio trauma e resolveu escrever sobre ele, ficcionar a sua dor. Mas mais importante do que tudo isso, ao fazê-lo, ao criar sobre algo que não compreendia e carregava dentro de si, conseguiu produzir novos significados sobre aquilo que não tinha sentido e isso inevitavelmente trouxe-lhe alguma paz interior. Não é por acaso que as práticas terapêuticas tendem a sugerir atos de criação para aliviar o luto. Do mesmo modo não é por acaso que Rostain termina o livro com a seguinte frase: "Consegue-se viver com isto".


GoodReads: 4/5

março 01, 2020

Viajando com Daytripper

Acabo de reservar um lugar para "Daytripper” (2010) ao lado de "Blankets" (2003), "Fun Home" (2006), "Arrival" (2007) e "Portugal" (2010). Em termos narrativos, é o mais pós-moderno de todos, pela enorme fragmentação do contar de histórias, contudo no sentimento qualifica-se do mesmo modo: humanamente intenso. Mas se é pós-moderno não o deve à literatura do movimento, mas antes ao génio inventivo de Machado Assis que em 1881 nos dava Brás Cubas, o personagem, autor-defunto, que escreve a sua biografia e serve aqui de mote ao personagem principal, Brás, de "Daytripper” que escreve obituários para o jornal.
Ao longo do livro assistimos a múltiplos nascimentos, mortes e renascimentos de Brás, viajando no tempo, para frente e para trás, a ponto de nos começarmos a questionar sobre o que é afinal a vida, o que representa ela para nós, se num momento estamos vivos e no seguinte deixamos de existir. Somos uma espécie que conseguiu chegar a ponto de se reconhecer, de se indagar e por vários meios tentar compreender a realidade, mas continuamos sem compreender o essencial, continuamos sem resposta para a questão principal, mas talvez por isso mesmo continuemos a produzir arte, arte que é relevante tanto para quem a cria como para quem a experiencia.
"O ponto de partida do Daytripper? Olhe… A história real, sem explicação mais excêntrica, é assim: a gente morava num apartamento e a um quarteirão do apartamento tinha uma favelinha. Não era assim um negócio super violento como se ouve no Brasil mas era uma favelinha. Do meio da janela do meu banheiro, era a vista para a favelinha. Uma vez, eu estava no banheiro e pensei: “Imagina se um dia acontece uma coisa ali e vem uma bala perdida e pega em mim”. E aí, eu pensei nessa coisa de que você pode morrer a qualquer momento, de qualquer jeito, e que a gente podia um dia fazer uma história onde o mesmo personagem morre, várias vezes, de jeitos diferentes, em momentos diferentes. E foi isso." Gabriel Bá, em entrevista, 2010.
"A Vida é como um Livro..."

É um livro curto, 256 pranchas passam demasiado rápido, mas o sentir instilado nos personagens é tão intenso que muito depois de o terminar continuamos a sentir que estamos ainda imersos no mundo de "Daytripper" de Fábio Moon e Gabriel Bá. Não consigo explicar propriamente como o conseguem, existe algo relacionado com o familiar, a família e a familiaridade que se vai criando ao longos das páginas, que torna fácil ligarmo-nos aos personagens, para com eles sentir o fundo da tristeza quando um deles parte, e ao mesmo tempo a alegria do virar de página para o voltar a reencontrar, como se a vida pudesse ser feita de continuas novas chances.

fevereiro 25, 2020

O Viés de Lucrécio

“The Swerve: How the World Became Modern” é um livro de divulgação científica centrado na teoria dos estudos literários que defende a obra “Da Natureza das Coisas”, de Lucrécio, como um dos principais motores do período da Renascença e consequentemente da Ciência, apontando o poema como pilar da criação do mundo moderno. O poema de Lucrécio foi publicado por volta de 55 a.C, sendo que a razão pela qual se sugere esta relação com o renascentismo tem que ver com o facto de ter praticamente desaparecido durante toda a Idade Média, tendo sido apenas recuperado em 1417 por Poggio Bracciolini, num mosteiro alemão, a partir do qual se fariam as cópias que o trariam até nós. Sendo um livro de divulgação, Stephen Greenblatt escolhe como foco exatamente Bracciolini, e toda a história em redor da redescoberta de “De Rerum Natura”, criando um livro de não-ficção romanceado, fazendo lembrar muitas vezes Umberto Eco e Dan Brown. O relato teve direito a Pulitzer e National Book Award, ambos na categoria Não-ficção.
Começar por dizer que a teoria — impacto de Lucrécio na Renascença — não é invenção nem descoberta de Greenblatt, é antes parte de uma corrente de estudos que se têm dedicado a compreender o modo como surgiu, desapareceu e voltou a aparecer na história o poema de Lucrécio. Assim no campo académico podemos aprofundar a discussão nos livros “The Cambridge Companion to Lucretius” (2007) editado por Stuart Gillespie e Philip Hardie e no livro “The Return of Lucretius to Renaissance Florence” (2010) de Alison Brown. Sendo este tipo de trabalho realizado a um nível interpretativo, como não podia ser de outro modo, já que não é possível aferir o que teria pensado, e até mesmo lido, cada um dos grandes nomes da Renascença, acaba sendo uma teoria dada a grande discussão. Ou seja, os estudiosos podem evocar Lucrécio em inúmeros autores, tendo alguns citado diretamente a obra Lucrécio, como acontece em Montaigne, mas não podem oferecer evidências concretas do impacto das ideias de Lucrécio nesses autores, e menos ainda em todo um movimento que demorou séculos a surgir, tendo o mesmo iniciado-se antes desta descoberta, com grandes obras como a “Divina Comédia” (1321) de Dante. Contudo, isso não faz da teoria algo menos interessante, relevante, e ainda menos apelativa. Na verdade, o conteúdo da mensagem de Lucrécio está completamente sintonizado com as razões que suportaram o surgimento da Renascença e nos daria depois o Iluminismo. Leiam-se as principais ideias subjacentes a “De Rerum Natura”, listadas por Greenblatt:
. “Everything is made of invisible particles”.
. “The elementary particles of matter-"the seeds of things"-are eternal.”
. “The elementary particles are infinite in number but limited in shape and size.”
. “All particles are in motion in an infinite void.”
. “The universe has no creator or designer.”
. “Everything comes into being as a result of the swerve.
. "The swerve is the source of free will."
. "Nature ceaselessly experiments."
. "The universe was not created for or about humans."
. "Humans are not unique."
. "Human society began not in a Golden Age of tranquility and plenty, but in a primitive battle for survival."
. The soul dies."
. There is no afterlife."
. “Death is nothing to us.”
. “All organized religions are superstitious delusions.”
. “Religions are invariably cruel.”
. “There are no angels, demons, or ghosts.”
. “The highest goal of human life is the enhancement of pleasure and the reduction of pain.”
. “The greatest obstacle to pleasure is not pain; it is delusion.”
. “Understanding the nature of things generates deep wonder.”
Sobre o conjunto das ideias aqui expressas, podemos dizer que formam o núcleo do Humanismo, ou seja da herança prestada pelo Iluminismo que nos daria a Revolução Industrial, e tal como diz Greenblatt, “o mundo moderno” que hoje conhecemos. Por isso, podemos até desconfiar do suporte científico à teoria, dos académicos das ciências literárias, mas não podemos deixar de lhe reconhecer sentido e mérito. O "swerve" era para Epicuro (autor grego seguido por Lucrécio, de quem restam poucos registos) o viés no movimento dos átomos, que originava variação e alteração, impossível de prever e que desse modo restringia a possibilidade determinística, criando o acaso, abrindo lugar ao livre arbítrio. Greenblatt, não perde a oportunidade de ligar esse "swerve", ao modo como "De Rerum Natura" desapareceu e voltou a surgir no nosso mundo por um grande acaso.

Posto isto, tenho de dizer que aquilo que mais me espantou, nos múltiplos ataques realizados a Greenblatt, não foram a propósito da fragilidade da teoria, mas essencialmente a propósito da linguagem, da falta de rigor, e nomeadamente falta de respeito pela Idade Média. Mas à medida que fui lendo os ataques fui percebendo que tínhamos ali algo além desse não reconhecimento. É sabido que nas últimas décadas tem existido um enorme movimento para recuperar a história da Idade Média e apresentar a mesma como um período que não terá sido tão mau como nos quiseram fazer crer no passado recente. Tenho de dizer que simpatizo com este movimento, porque por muito pouco que se tenha feito, fez-se, foram 1000 anos de vivência que nos trouxeram a um segundo grande milénio, por isso nem tudo pode ter sido mau. Contudo, quando começo a ver académicos a embandeirar excessivamente em defesa da Idade Média, fico de pé atrás. As evidências são tão avassaladoras que não é sustentável qualquer comparação mínima entre esse período, o anterior (Grécia e Roma antigas) e posterior (Renascimento).

Diagrama criado por Emil O. W. Kirkegaard, em 2017, a partir da obra historiográfica "Human Accomplishment: The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C. to 1950" (2003) em que Charles Murray lista cerca de 4000 individualidades que marcaram a nossa História, e no qual se vê o declínio da Europa, restando a história destes séculos nos ombros da China e Arábia. Para os que desconfiam da honestidade de Murray, podem sempre verificar os dados no Pantheon do MIT.

Tenho de dizer que os ataques promovidos em várias recensões do livro, em revistas internacionais de referência, são no mínimo ridículos, e só consigo pensar que quem o faz, o faz como forma de defesa da religião, nomeadamente do cristianismo. O que faz sentido, já que é à religião que temos de pedir contas por muito daquilo que seria toda aquela escuridão. Impressiona ver como o ano zero marca o declínio do Império Romano, ao que se sucederiam mil anos de completo vazio em toda a Europa. Se analisarmos listas dos feitos civilizacionais, da arquitetura à filosofia e ciência veremos a pujança dos Império Egípcio, seguido do Grego e Romano, ao longo de 3000 anos, e depois disso temos um ano zero em parece que tudo termina, e temos de esperar 1000 anos para ver novamente o ser humano a florir. Claro que Greenblatt põe o dedo na ferida, nem poderia ser de outra forma, pois olhando a lista de ideias de Lucrécio, expostas acima, torna-se muito simples compreender o que terá acontecido ao livro, e a razão porque terá praticamente desaparecido durante aquele período. Não posso deixar de me rir com a resposta que o próprio Greenblatt deixa como comentário a um desses ataques:
"I plead guilty to the Burckhardtianism of which John Monfasani accuses me.  That is, I am of the devil’s party that believes that something significant happened in the Renaissance.  And I plead guilty as well to the conviction, regarded by my genial and learned reviewer as ‘eccentric’, that atomism – whose principal vehicle was Lucretius’ De rerum natura – was crucially important in the intellectual trajectory that led to Jefferson, Marx, Darwin, and Einstein." (Reviews in History, 2012)
Compreendo que incomode os académicos, e não académicos, religiosos. Basta ver algumas das recensões que se encontram aqui no Goodreads ao próprio “De Rerum Natura”, o modo como se evocam os argumentos mais ridículos para destruir Lucrécio. E desse modo percebemos, como passados 2000 anos mudámos pouco e continuamos a debater-nos com os mesmos problemas. Por isso, não admira toda a polaridade política que grassa na América do Norte e do Sul, e que aos poucos tem procurado entrar na Europa. O conhecimento, a ciência, estão ao alcance de qualquer um, mas dão trabalho e não é são recompensas imediatas, falta-lhes o autoritarismo, a submissão e as hierarquias, falta-lhes estrutura que sustente as pessoas em grupos, o lado social e mesquinho. Nada interessa mais às pessoas do que fazer parte do grupo, de acreditar no mesmo que acredita o vizinho, mesmo sabendo que não é verdade, é preferível estar no mesmo barco, e ir ao fundo acompanhado, do que ficar sozinho.

Voltando a "Swerve", tenho de dizer que ao longo da experiência da leitura, e à medida que fui entrando mais e mais dentro de Lucrécio, a ponto de ter começado a ler o livro que já queria ter lido, mas tinha tido receio pela sua complexidade, fui sentindo que muito daquilo que me fez entrar no mundo da ciência, nomeadamente por via de Carl Sagan, já estava aqui, em Lucrécio. Respira-se um mundo feito de ideias, de argumentação e contra-argumentação, sustentado nas evidências e hipóteses. Um dos momentos mais altos surge perto do final quando Greenblatt introduz a reverência e carinho de Montaigne por Lucrécio e pensamos, sentimos, vemos, como o poema, o poema didático de Lucrécio, foi também responsável pela criação da forma do Ensaio. Como chegariam as suas ideias a Newton, Darwin e Einstein. Enquanto lia as palavras de Lucrécio só pensava no fascínio que tinha sentido recentemente ao ler Mlodinow ou Rovelli e no pouco de novo que estes afinal nos tinham trazido, ainda que sustentados em melhor ciência, face ao que Lucrécio e Epicuro anteciparam há mais de 2000 anos. Impressiona este andar em círculos, mesmo sabendo que o conhecimento verdadeiro só se constrói pela continua insistência e demonstração, porque perturba perceber o quanto é preciso lutar contra muitos daqueles que continuam a viver na obscuridade e a tudo fazer para que os outros com eles padeçam da mesma cegueira.

fevereiro 22, 2020

"The Magus" de John Fowles

"The Magus" (1965) é um romance de género, encaixando perfeitamente no domínio dos thrillers psicológicos, ainda que escrito nos anos 1960 e por isso claramente rodeado de tiques culturais da época, o que por vezes faz com que se movimente por ambientes mais próprios ao drama psicológico. O livro é por vezes catalogado como dirigido a um público adolescente, contudo tal não é sustentado, apesar de apresentar um universo de aventuras e muitas vezes pouco refletido, isso terá mais que ver com o facto de ser a primeira obra escrita pelo autor do que com a sua intenção de comunicar diretamente para esse público. Dito isto, é um livro que se lê muito bem, desde logo porque John Fowles é um mestre na arte de contar histórias, conseguindo levar-nos a virar páginas sem darmos por isso. Quanto ao conteúdo, àquilo que Fowles teria para dizer, é algo mais complicado, mas que procurarei elucidar nos parágrafos seguintes.
Capa da primeira edição que dá conta dos cenários esotéricos criados por Fowles

Cheguei a este livro por meio de pesquisas por livros que fazem uso de condições de jogo no desenho da narrativa. A partir daí, os resultados das resenhas que li davam conta de um livro de grande interesse, capaz de surpreender e apresentar grandes respostas, um livro que torce a mente do leitor e o deixa a refletir. Por outro lado, conhecia o autor pela sua obra mais famosa “O Colecionador”, que ainda não li. Confesso, que logo nas primeiras páginas fiquei completamente agarrado pelo estilo de escrita. Muito direta, clara e simultaneamente misteriosa. Fowles escreve de uma forma aparentemente simples, parecendo que está a relatar a maior banalidade, contudo ao fazê-lo vai omitindo imenso sobre o que se está a passar, e são essas omissões que agarram a nossa imaginação, que nos prendem ali, para tentar a partir das linhas e páginas subsequentes descortinar totalmente o que está a acontecer. Contudo, ao fim de 1/3 comecei a sentir algum cansaço, apesar da escrita me manter ali, o motivo daquele universo parecia não mexer para lado nenhum, mas mantive-me porque das resenhas que tinha lido, era relatado isto mesmo, e fortemente aconselhado a continuar a leitura até ao final, o que acabei fazendo, apesar da extensão do livro.

Depois de terminar, dei por mim a questionar-me sobre o que tinha acabado de ler. Tudo o que foi sendo apresentado, foi sucessivamente questionado pelo texto e reapresentado sob outras perspetivas e possibilidades. Confesso que é difícil, e mesmo chato continuar a escrever sem tornar o enredo um pouco mais claro, além de que tal acaba por apenas contribuir para o modo misterioso como escreve o autor, e assim incitar a que se vá ler. Por isso ter acontecido comigo, vou tentar ser um pouco mais claro, sem contudo revelar essências da história.

Assim, contextualizando, os acontecimentos centrais dão-se numa ilha grega, quando o nosso protagonista, britânico solteiro e formado em Oxford, vai trabalhar para um colégio tipo inglês nessa ilha. Nicholas Urfe, o nosso jovem professor, encontra alguns concidadãos a viver na ilha, trava amizade com eles, a partir do que vão surgir um conjunto de eventos esotéricos que envolvem pessoas que aparecem e desaparecem, hipnotismos, seduções imersas no luxo, mas tudo isso vai sendo simultaneamente envolvido em grandes doses de racionalização e argumentação e até alguma ciência. Ou seja, Fowles cria um universo perfeitamente paradoxal, no qual pode exercer o seu total controlo para manipular o leitor, e levá-lo a acreditar em coisas diferentes, no virar de cada novo capítulo. Daí que o autor tenha tido como nome inicial para o livro, "Godgame". Ao longo do livro, somos continuamente postos a prova, desconfiamos de tudo, não sabemos a razão de nada, e chegado ao final do livro continuamos sem nada saber.

Posso dizer que ainda investi algum tempo a tentar dar conta da grande ideia ou mensagem que Fowles tinha para passar, mas rapidamente desisti, pois percebi que era uma miragem. Fowles escreveu este livro como experimento de escrita, tanto que não o publicou imediatamente, só depois de publicar um primeiro livro de contos. O livro decalca muito de perto a vida de Fowles, dando conta da dificuldade do autor em se desprender do seu mundo, tendo usado a escrita como modeladora de experiências, o que acaba a confundir-se com o próprio livro, e provavelmente sem se aperceber, acaba por tornar o livro algo distinto. Ou seja, no livro temos um grupo de pessoas que geram experiências e colocam as pessoas à prova, neste caso, Fowles cria o livro para colocar o leitor à prova. Desta forma, o livro torna-se relevante no meio literário não pelo que tem para dizer, mas antes pelo modo como simula no processo de leitura, exatamente a experiência que vai descrevendo. Por isso não admira que o livro surja por vezes citado como meta-ficção, apesar dessa poder apenas ser realizada na imaginação do leitor.

Em suma, é uma leitura prazeirosa, mas não posso dizer que surpreenda, ou seja capaz de elevar a experiência a níveis de espanto. Sim, mantem-nos às escuras e cria em nós uma vontade de chegar “à verdade”, mas ao mesmo tempo denota em excesso as manias dos anos 1960, dos esoterismos e psicanálise aos transcendentalismos. Por isso mesmo acaba denotando um certo pendor adolescente, pouco interessado em produzir um cenário mais sólido e ligado à realidade. Contudo, esta seria sempre a abordagem de Fowles nos seus romances, como ele diria nas entrevistas, já que ele não acreditava na ficção como algo indicado ao relato de ideias sérias. Aliás, ele diria mesmo sobre este livro em concreto: "It must remain a novel of adolescence, written by a retarded adolescent" (1977). Apesar disso, disse também algo que me deixou a refletir, nomeadamente sobre o seu percurso enquanto escritor:
“No one in my family had any literary interests or skills at all. I seemed to come from nowhere. I didn't really have a happy childhood. What bored me about my mother was her lack of taste. My father's great fault was that he hated France from his experiences in the war, at Ypres. And he liked Germany. We had a geographical falling out. I deviated at the wrong branch of European culture. When I was a young boy my parents were always laughing at "the fellow who couldn't draw" - Picasso. Their crassness horrified me.” (1977)