abril 04, 2020

"Human Diversity: Gender, Race, Class, and Genes" (2020)

Talvez venha a ser o último livro de Charles Murray (77), denotando um tom imensamente cuidado e calculado na introdução das suas ideias, como se quisesse redimir-se de pecados do passado e deixar um legado do seu melhor. Com alguma pena, não posso dizer que o tenha conseguido. Murray não é ofensivo como foi antes, mas não conseguiu descolar-se das metodologias que o conduziram ao beco anterior. Continua obcecado com as categorias biológicas universais, e dali não parece conseguir arredar-se. Definiu dez pontos cruciais para debater o livro, mas nenhum acrescenta qualquer novidade ao conhecimento atual, e menos ainda parece contribuir para afirmação do próprio título do livro, "Human Diversity" (2020).
Opto por analisar os dez pontos, não um a um mas divididos entre os quatro grandes grupos que orientam toda a abordagem de Murray: “Gender, Race, Class, and Genes”.

Diferenças de género
"1. Sex differences in personality are consistent worldwide and tend to widen in more gender-egalitarian cultures.
2. On average, females worldwide have advantages in verbal ability and social cognition while males have advantages in visuospatial abilities and the extremes of mathematical ability.
3. On average, women worldwide are more attracted to vocations centered on people and men to vocations centered on things.
4. Many sex differences in the brain are coordinate with sex differences in personality, abilities, and social behavior."
O maior problema destas afirmações é que sendo verdade não o são. Ou seja, se eu olhar para os sexos como médias, isto está correto, mas se eu olhar para as pessoas, e apenas depois para os sexos, vou encontrar muitas pessoas de cada sexo que não encaixam em nenhuma destas propostas. Ou seja, estamos a usar médias de pessoas para colar rótulos em milhões de seres humanos que não se reveem em tal! Pode chamar-se ciência a isto? Por muitos factos e dados que recolhamos, como é que posso dizer que os portugueses gostam de vinho e os alemães de cerveja, percebendo que nem todos os portugueses gostam de vinho, nem todos os alemães gostam de cerveja?

O que é grave é que esta segunda afirmação é irrelevante e os cidadãos de cada país até se riem. Mas dizer a uma mulher ou a um homem, que as mulheres e os homens são ou funcionam de uma forma, e nenhum deles o ser ou funcionar dessa forma, só contribuirá para criar uma crise pessoal de identidade. Quem é a mulher ou homem que se sente bem na pele do diferente? O problema é ainda agravado quando nenhum deles é mais diferente do que os outros, antes são todos diferentes.

Admito que no início deste século, quando comecei os meus estudos de graduação, me deixei fascinar por estas médias. Poder dividir o gosto humano em duas categorias, nomeadamente pelo cinema e videojogos, dava-me imenso jeito na hora de analisar audiências e compreender as mesmas, separar o que atraia mais as mulheres e os homens, simplificava tremendamente algo que é extremamente complexo. Contudo, à medida que fui amadurecendo a minha investigação, fui encontrando muitos e muitos casos que não tinham qualquer relação com a teorização. Confesso que passei inicialmente por um abandono das categorias de género para me fixar nas hormonas (testosterona – ocitocina) , para logo a seguir compreender que só estava afundar-me cada vez mais na teia biológica, perdendo mais ainda a relação que ligava as pessoas aos artefactos. Por isso, quando quis aprofundar o modelo de engajamento humano, acabei por fugir da biologia, género e hormonas. Depois de perceber que a biologia servia pouco a minha ânsia por compreender o comportamento humano, optei por fazer o caminho inverso. Comecei a identificar os comportamentos, as ações, as decisões e a partir dessas a criar catálogos de categorias conceptuais. As categorias eram assim emanadas das ações e não da mera fisiologia, podendo ser atribuídas a qualquer ser-humano, independentemente do seu género ou etnia.

De certo modo, isto que aqui confronto, é conhecido em filosofia pela diferença entre essencialismo e nominalismo. O primeiro acredita que as formas, desde Platão, possuem condições essenciais que as definem inexoravelmente. Já o nominalismo, considera que não existem categorias universais, que cada forma é sempre particular e diferente das demais. Eu vejo ambas como extremos, já que existem nuances que aproximam as mulheres das mulheres, e os homens dos homens, nomeadamente a sua biologia, mas considero que em termos cognitivos cada um tende para a total individualidade. Deste modo, quando crio categorias de pessoas que gostam do mesmo, entro pelo "conceptualismo", e não assumo que todos gostam da mesma forma, ou que por gostarem de A, não vão gostar de B, antes uso essas categorias como meras aproximações a uma melhor compreensão das pessoas, nunca como gavetas que encerram pessoas em toda a sua extensão.

Diferenças étnicas 
"5. Human populations are genetically distinctive in ways that correspond to self-identified race and ethnicity.
6. Evolutionary selection pressure since humans left Africa has been extensive and mostly local.
7. Continental population differences in variants associated with personality, abilities, and social behavior are common.
8. The shared environment usually plays a minor role in explaining personality, abilities, and social behavior."
O problema é o mesmo do género. Usa-se uma categoria biológica para triar pessoas, não se percebendo a relevância de tal, a não ser o de etiquetar pessoas à partida antes de elas poderem dizer quem são, o que querem, como querem.

Por outro lado, aqui temos um problema adicional, o ponto 6 contradiz o 8. Eu não defendo que a experiência consegue facilmente mudar alguém durante a sua vida, mas a experiência molda completamente comunidades inteiras no tempo. Por outro lado, na fase inicial do nosso crescimento e amadurecimento a experiência pode chegar a impactar tanto ou mais do que os genes, como diz Sapolsky:
“The brain is heavily influenced by genes. But from birth through young adulthood, the part of the human brain that most defines us (frontal cortex) is less a product of the genes with which you started life than of what life has thrown at you. Because it is the least constrained by genes and most sculpted by experience. This must be so, to be the supremely complex social species that we are. Ironically, it seems that the genetic program of human brain development has evolved to, as much as possible, free the frontal cortex from genes.” in "Behave" (2017)
Diferenças de classe
"9. Class structure is importantly based on differences in abilities that have a substantial genetic component."
Aqui temos problemas enormes. Os estudos do IQ demonstram que a hereditariedade não otimiza, mas tende a fazer voltar à norma (ex. o filho de alguém com grande IQ, não será alguém com ainda maior IQ, mas alguém que tenderá a voltar aos valores médios). Mas acaba sendo o própro Murray a admitir que não é o IQ que separa as pessoas, apesar de logo a seguir afirmar que é. Por outro lado, isto ignora de forma brutal e inadmissível tudo aquilo que sabemos sobre Hierarquia e Poder na ordem social. Eu bem sei que o maior estudioso sobre Poder é Foucault, mas não é preciso ir tão longe. Podemos citar alguém contemporãneo, sem relação com filosofia, o economista Thomas Piketty e o seu livro de 2013, "O Capital no século XXI", para ver como o capitalismo produz imensos desvios sociais, exatamente pelo poder conferido pelo capital.

Diferenças de genes
"10. Outside interventions are inherently constrained in the effects they can have on personality, abilities, and social behavior."
Repetição do ponto 8. Deixo uma prova simples, o modo como hoje a Europa olha e atua face à homossexualidade é, em percentagem de atitude das pessoas, oposta ao modo como olhava e atuava em 1950.


Notas finais

Eu quis ler este livro, não só porque o tema me interessa, mas também porque o autor do livro escreveu um livro de que gosto particularmente “Human Accomplishment: The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C. to 1950” (2003). Claro que tinha também escrito o outro livro polémico, “The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life” (1994). Mas por saber disso já vinha prevenido, e vinha de espírito completamente aberto, porque não concordo com muito do discurso genérico do feminismo, apesar de concordar com a abordagem. Ou seja, sei que só se mudam coisas por tomadas de ação fortes e duras, com apenas falinhas mansas e factos nada muda. Mas isso não quer dizer que eu aceite tudo o que estes movimentos me apresentam como verdades.

Ora um dos problemas que a abordagem que discuti acima coloca é que se eu me oponho ao uso das categorias de género e etnia para catalogar Qualidades dos seres humanos, então também tenho de me opor ao seu uso para catalogar Desigualdades. São bem conhecidos os estudos que dão conta dos pagamentos diferenciados entre homens e mulheres, ou da discriminação entre etnias. O problema é que esses estudos usam exatamente a mesma metodologia destes aqui. Ou seja, colocam homens e mulheres em dois sacos, e etnias em vários sacos, medem e comparam, e no final dizem que A ou B é pior ou melhor tratado. Ora isto coloca-nos face a um problema de duplicidade de critérios.

Se acredito na diversidade humana, então não posso usar categorias biológicas, abstraídas de toda a componente social, para discutir fenómenos sociais. Isto é um problema, tal como é um enorme problema do livro que por sinal tem o título de "Diversidade Humana", que em vez de se focar na diversidade foca-se apenas na universalidade. Diga-se que Murray vai sempre alertando que existem muitos casos fora dessa universalidade, mas isso ele também já tinha feito em "Bell Curve", o que não invalida que depois escreva aquelas chavões universalmente aberrantes, porque no fundo é nisso que acredita.

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