junho 22, 2019

Filmando o sentir humano

Vi há duas semanas “Everybody Knows” (2018) e vi hoje “The Wild Pear Tree” (2018), de ambas as experiências guardo sentires em forma de hipérbole. Asghar Farhadi  e Nuri Bilge Ceylan são os meus realizadores preferidos desta última década. Não são apenas realizadores, são também quem escreve os filmes, e isso faz toda a diferença. Ambas as obras usam o meio, do cinema, para expressar o sentir mais humano possível. Não falo de drama, nem tragédia, não existe aqui puxar à lágrima, à tristeza ou sofrimento para gerar empatia, mas do sentir que todos sentimos em todos os momentos, emergente dos questionamentos a que não podemos escapar enquanto seres conscientes. Nem Ceylan nem Farhadi têm qualquer pretensão de dar respostas, mas apenas e só plasmar esse mesmo sentimento para que possamos ver-nos ao espelho e compreender que não estamos sozinhos.



Imagens de “The Wild Pear Tree” (2018)

“Everybody Knows” centra-se nas relações familiares, imagem de marca do autor, pode-se mesmo dizer que é a sua obsessão, explorar as pequenas quezílias que testam a força das relações, a força do que une pelo sangue, filhos e pais, assim como pela experiência, maridos e esposas. Farhadi desenha os seus filmes como se fossem acessos temporários a vidas e conflitos reais que decorrem num qualquer lugar, colocando-nos no lugar privilegiado da primeira fila para a tudo podermos assistir em  primeira-mão. E apesar de não serem nossa família dificilmente não compreendemos, não sentimos o que sentem. Farhadi não se socorre da estratégia clássica do arco narrativo, com princípio, meio e fim, mete-nos antes dentro do conflito em ebulição e faz-nos viver com eles, no final retira-se e retira-nos, sem respostas nem fechamentos. Cabe ao espectador compreender tudo aquilo por onde acabou de passar e sentir.



Imagens de “Everybody Knows” (2018)

Ceylan não é muito diferente, ainda que tenda a seguir uma estrutura mais progressiva, sem no entanto se coibir de lançar rasgos de fluxo de consciência por entre sonhos que por vezes nos deixam perdidos, ou rasgos de dissertação filosófica pura. Ou seja, tecnicamente é bastante diferente de Farhadi, mas não deixa de procurar tocar os mesmos modos do humano que este. Ceylan foca-se mais no indivíduo, no modo como o mundo o pressiona e com ele se relaciona, como ele se desenvolve, evolui e progride. Deste modo acaba servindo-nos experiências mais melancólicas, introspectivas. Neste “The Wild Pear Tree” atravessamos três gerações pelos olhos de um jovem a entrar na fase adulta, acabado de sair da universidade, sem saber o que se segue na sua vida, com o sonho de publicar um livro, num confronto entre o citadino e o rural, entre a educação e a religião.

junho 20, 2019

“Pão de Açúcar” (2018)

Não posso dizer que tenha ficado desiludido, um segundo romance, depois de uma obra de excelência e premiada, representa sempre um enorme peso e responsabilidade para alguém que ainda neste segundo romance se mantém bastante novo para o tipo de mundos que a literatura a este nível exige. “Pão de Açúcar” não chega a ser Romance, é um exercício de escrita, bem conseguido tecnicamente, capaz de agarrar o leitor e levá-lo ao longo das 200 páginas encurtadas pelas largas margens e caracteres grandes. É uma história que exigiu bastante pesquisa ao autor, mas ainda assim todo o enquadramento estava definido à partida, diga-se mesmo já amplamente esboçado pelo extensíssimo artigo (20 páginas) de Catarina Marques Rodrigues, “Gisberta, 10 anos depois”, para o Observador.


Cabral cumpre, em parte, com o que se tinha comprometido, dar vida às vidas dos jovens envolvidos naqueles derradeiros dias. Lendo os jornais o que temos é apenas a ideia de miúdos sem nada na cabeça, dispostos a tudo para magoar os outros, sem empatia nem sentimentos, na falta de mais dados especulamos a partir dos efeitos, e vemos na nossa cabeça um bando de energúmenos. A obra de Cabral refaz esta ideia, não desculpando, mas racionalizando sustentando com emoção e realidade vivida alguns dos jovens envolvidos. Posso dizer que consegui chegar bastante perto dos jovens, dos seus mundos, das suas realidades, sentir as suas dúvidas, incertezas e medos do mundo vivido no dia-a-dia. Inevitável pensar em “Deus das Moscas” e olhar para um grupo de jovens que sem regra nem direção acaba seguindo a força do mais forte e o efeito de grupo. Cabral faz-nos sentir o lugar e os seus habitantes, onde viveram aqueles miúdos, os seus devaneios pela cidade do Porto, assim como o prédio abandonado, somos completamente transportados para lá.

Mas era necessário este livro? Senti-me a maior parte do tempo um voyeur. Existe ali uma história, sem dúvida, mas devemos questionar-nos se produzindo obras sobre estas contribuímos para algo mais além do prazer do sofrimento de outrem. Repare-se que não precisamos de um livro para chamar a atenção, o assunto foi amplamente dissecado pelos media, e o artigo referenciado acima foi feito para recordar os 10 anos. Ou seja, o que podia um livro dar-nos mais? Conhecer melhor os envolvidos? Correto, mas com que objetivo, desculpá-los, ou aceitar a normalidade do acontecido? Repare-se que não é um assunto ficcionado para testar temperamentos ou efeitos da fraca educação (que é parcamente definida no livro), trata-se de um caso real, com pessoas que existem e sobre as quais devemos ter uma posição enquanto sociedade. Humanizar é preciso, mas enquanto sociedade precisamos de balizas concretas sobre o que podemos aceitar e o que não podemos de forma alguma. Um livro destes coloca tudo em questão, faz-nos questionar, faz-nos sentir impotentes porque co-culpados pela falta de apoio que aqueles jovens tiveram nas suas infâncias, ou da aparente falta de apoio que Gisberta teve. Mas tudo isto não o sabíamos já antes de ler este livro? Onde está o rasgo da arte para nos despertar do sentimento cliché, para nos transformar? Tenho de dizer que não me preencheu enquanto obra, enquanto Romance, longe disso.

Falando da escrita, é boa apesar de não ser excecional. Cabral consegue algo difícil, encaixar um pensar e diálogos que tinham de ser bastante incompetentes e até incongruentes, num texto de grande elegância, sem que duvidemos todo o tempo da sua veracidade. O mesmo se pode dizer da crueza e calão que vão surgindo, mas muito longe daquilo que é a realidade destes universos. Nota-se um esforço de aproximação aos contextos e à potencial escrita, mas ainda assim muito longe do que seria verdadeiramente um texto escrito por alguém saído daquelas condições. Muito do que se lê percebe-se impossível de germinar ali, mas não deixa de parecer provir daquele mundo, daquele universo, por isso algo foi bastante bem feito por Afonso Cabral para nos fazer sentir deste modo.

junho 12, 2019

Algo em que acreditar? A educação, sempre

Não querendo entrar na discussão que já vai grande sobre o João Miguel Tavares (JMT) e o 10 de junho, nem para laurear nem para desfazer, porque o seu discurso no geral parece-me bastante interessante, mas tendo-o lido depois de ouvir tantos comentários, quero apenas frisar um ponto do discurso, que apesar de bem trabalhado nas palavras e como clara intenção de defesa pessoal acaba por se contradizer.

Melhorámos muito, mas estamos ainda longe, falta outro tanto pelo menos...


Começa JMT por dizer:
"Os pais lutavam por isso – lutavam menos por eles, do que pelas suas crianças, para que elas tivessem uma vida melhor, estudassem, fossem “alguém”. Os seus filhos chegariam às universidades. Estudariam dezasseis, dezassete, vinte anos, se fosse preciso."
E termina a dizer:
"E se alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar a sua vida aos filhos. Currículo tem tanto o cientista que dedica o seu tempo à investigação como o reformado ou o jovem que dedicam o seu tempo a ajudar os outros."

Ousar pôr numa balança dois elementos tão díspares — os que estudaram e os que fazem ciência — com — os que tomam conta dos filhos e dos outros — é um paradoxo no discurso de JMT, porque é ele mesmo quem defende a Educação como Elevador Social, é ele quem descreve como os nossos pais tiveram um projeto de vida: Estudar os seus filhos. Os pais não investiram tudo o que tinham para os filhos apenas tomarem conta dos seus próprios filhos, isso é aquilo que já lhes compete enquanto cidadãos, os nossos pais quiseram que estudássemos para que fossemos mais, tivéssemos uma profissão e conseguíssemos ir além deles.


Percebo que JMT pretendia dar uma estocada em todos aqueles que questionaram o seu currículo para presidir ao 10 de junho, mas ao fazê-lo desta forma atirou o bebé junto com a água. JMT acaba por dizer que agora que já somos todos "doutores", porque a geração anterior se esfalfou para isso, isso já não é assim tão importante. Chegados a "doutores" encontrámos o desencanto, perdemos a esperança, não valeu a pena, e pior, ficámos sem sonhos para vender aos nossos filhos! Por isso, o melhor será voltar ao antes e sonhar outra vez. Talvez sem querer, acabou caindo no discurso populista do "não precisamos de especialistas" ou "temos licenciados e doutores a mais" que nos tem sido vendido por todos os líderes populistas bem conhecidos.

No ensino superior melhorámos mais rápido, mas porque a fasquia a atingir é menor. Mas não é razão para desencantar, sem esta subida o que digo abaixo não existiria.

Julgo que JMT em vez de se ter focado em pedir, "Dêem-nos alguma coisa em que acreditar", devia ter-se focado em dizer o que precisamos para continuar a acreditar, seguindo Kennedy em vez de Trump. Sei que JMT terá pensado que dar sonhos exteriores — mais riqueza, mais conquistas, mais isto e aquilo — seria sempre fraco, por isso focou-se nas pessoas, no seu interior, na entre-ajuda. Sim, esse deve ser o bem maior, mas é apena a rede funcional sem a qual não existiríamos como país, sobre esta precisamos de algo mais, precisamos de objetivos maiores do que aqueles já anteriormente alcançados. Porque a entre-ajuda estava lá antes quando conquistámos o 25 de Abril, entrámos na CEE, entrámos no Euro, e estava lá também quando organizámos a Expo 98, o Euro 2004, quando ganhámos o Euro 2016 e a Eurovisão 2017. Mas tudo isto só foi possível porque os níveis de Educação do país se elevaram tremendamente, se criaram ordens, sociedades, associações e academias de ciência e artes, assim como de turismo, de futebol, de música, de moda ou videojogos e tal só foi possível porque antes se criaram muitos cursos profissionais e superiores, com professores muito mais formados, em dezenas de profissões antigas que o país nunca tinha conseguido sequer formar, entre outras tantas novas que antes nem sequer existiam, e tudo isto depois tornou possível o surgimento de  pessoas com conhecimento e condições para garantir um país muito mais qualificado — capaz de criar empresas, festivais, concursos, eventos, obras e produtos não apenas nacionais mas internacionais — para que alguns de nós pudessem brilhar e ganhar, mas ao ganhar fossem além, elevassem a fasquia e dissessem que era possível fazer ainda mais.

junho 02, 2019

História da Filosofia Ocidental (1945)

O melhor do livro é sem dúvida o derrube de vários mitos e ideias criadas no imaginário ocidental a propósito da extensa linha temporal de filósofos que liga Sócrates a Russell. Pode-se dizer que se aprende imenso, que no final da leitura se vê a produção de conhecimento, e os seus principais responsáveis, a uma luz totalmente distinta. Apesar de sabermos que temos de colocar algum travão nas impressões imediata, já que Russell não se coíbe nunca de ser crítico, mesmo quando está a falar de milhares de anos atrás, em contextos sociais completamente opostos àquele em que hoje vivemos. Leia-se com calma, sempre com o filtro crítico ativo, preparado para por vezes ter de dar a volta a cabeça tentando compreender o que Russell nos quer dizer, mas acima de tudo leia-se pelo prazer de viajar pela história das ideias.


Para se poder criar um bom crivo crítico desta leitura é preciso começar por compreender a bagagem de Russell, alguém que começou por estudar matemática e filosofia naquilo que mais une ambas as disciplinas, a lógica, a partir do que viria lançar a corrente de pensamento que ficou conhecida como: filosofia analítica. Como se depreenderá, este cenário faz de Russell um positivista, e é exatamente por isso que precisamos de ler todo o livro com algumas cautelas. O positivismo funciona a partir de propriedades imensamente relevantes no que toca à criação de conhecimento, assente numa base em que a argumentação lógica é o cerne, contudo padece de alguns problemas. Desde logo, os positivistas assumem que tudo tem de ter uma lógica, que tudo tem de ter uma causa, que o conhecimento se constrói à imagem de uma equação matemática que tudo pode explicar. Na verdade, existem domínios em que esta forma de inquirir faz sentido, contudo não é passível de se poder aplicar a toda a realidade, menos ainda quando entramos na órbita da definição do ser-humano.

Por isso, não é de estranhar que Russell ataque praticamente todos os filósofos que lista ao longo das várias centenas de páginas. Russell realiza a sua História como arguente de provas, estando sempre à procura nas teses dos outros de problemas e defeitos, falhando demasiadas vezes no enaltecimento dos seus feitos e contributos, agravando as acusações realizadas pelo olhar totalmente racional que usa. Ou seja, a sua filosofia analítica não comporta espaço para uma análise contextualizada pelo tempo em que as ideias foram produzidas, interessado apenas no como se comportam essas ideias quando passadas pelo filtro da lógica atual. Deste modo Russell começa logo por atacar fortemente Sócrates, seguido de Platão, e até mesmo Aristóteles que diz admirar, e a quem tece alguns dos maiores elogios, acaba bastante mal-tratado. Por vezes, é preciso dar alguma razão a Russell, a "República" de Platão é realmente um manifesto em defesa do autoritarismo, mas daí a dizer que Sócrates provavelmente nunca existiu e pode ter sido inventado por Platão... Noutro campo, e graças à sua veia crítica, é interessante ver como desmonta os mitos de Esparta, nomeadamente o seu criador Plutarco.

Repare-se também como Russell imbuído do seu espírito lógico descarta totalmente Seneca, numa única linha, simplesmente porque este foi imensamente rico, o que para Russell choca totalmente com os valores professados. Adianto que me deixei convencer alguns dias por esta abordagem, mas refletindo sobre alguns dos personagens mais ricos da nossa contemporaneidade como Warren Buffet ou Bill Gates, podemos ver como o facto de ser rico não é incompatível com os valores estóicos. O problema dos sistemas estritamente lógicos é que não admitem exceções. Do mesmo modo, ou talvez ainda mais agressivamente, Russell ignora completamente a Fenomenologia, apesar de no entanto nos apresentar nos dois últimos autores, toda a escola do Pragmatismo, ainda que essa sua apresentação sirva apenas para demonstrar o quão errada estava, para Russell.

Repare-se que aquilo que Russell apresenta e aquilo que ignora não é fruto de falta de espaço, Russell chega a dedicar um capítulo a Byron, um poeta. Por isso, na verdade aquilo que Russell faz é montar uma História que vá de encontro à sua mundovisão, e nesse sentido fá-lo com grande qualidade, já que não se limita a trabalhar ideias e conceitos, contextualiza, nalguns casos de modo muito profuso, com o sentir social e seus impactos políticos. Aliás, é por isso mesmo que cita Byron, pelo impacto que teve no desenvolvimento do romantismo que por sua vez viria a contaminar todo um século intelectual. Mas não deixo de considerar estranho que alguém profundamente ateu, e determinado na defesa do racional lógico, invista tanto tempo do livro à discussão da filosofia católica. Sobre este último ponto, tenho de dizer que é algo que sempre me tinha feito alguma confusão, o modo como a filosofia estava tão carregada de religião, de deuses ou forças universais que tudo explicavam. Russell interessantemente não embarca, antes expõe o problema como um dos maiores da filosofia: paradoxalmente os pensadores mais racionalistas eram quem mais acreditava numa entidade externa, já que ao definirem o universo como um sistema lógico, em que tudo tinha de obedecer a um conjunto de regras perfeitas, matematicamente puras, os tornava reféns de uma entidade superior, a única capaz de gizar tal molde. Seria apenas com Darwin, e a partir do seu evolucionismo que faria surgir a teoria do Big Bang, que os racionalistas se conseguiriam desprender dessa entidade.

O livro é extenso, mas considero que uma parte demasiada grande foi dedicada à pre-história da filosofia e aos seus intervalos, isto porque ao chegar à Filosofia Moderna, final da era medieval, renascentismo, iluminismo e atualidade, teria sido bom dedicar-lhe muito mais espaço. São muito, demasiado curtas, as discussões sobre Descartes, Spinoza, Hume, Kant, James e Dewey e ficaram de fora nomes que mereciam ter sido chamados à discussão, nomeadamente homens da ciência, que como o próprio Russell diz, passou a fazer parte da própria história da filosofia: Galileu, Newton, Einstein. Por outro lado, a História termina em 1945, o que deixa de fora muito do que se germinava nesses anos e viria a ganhar relevo, para além de toda a segunda metade do século XX. Ainda assim, o trabalho realizado por Russell é imensamente detalhado, mais ainda se tivermos em atenção que foi feito sem recurso à internet que hoje a tudo dá acesso imediatamente, e num tempo de segunda guerra mundial.

Deixo um testemunho do próprio Russell sobre os vieses que lhe apontam no livro, que deixou num apontamento na sua autobiografia:
"I regarded the early part of my History of Western Philosophy as a history of culture, but in the later parts, where science becomes important, it is more difficult to fit into this framework. I did my best, but I am not at all sure that I succeeded.

I was sometimes accused by reviewers of writing not a true history but a biased account of the events that I arbitrarily chose to write of. But to my mind, a man without a bias cannot write interesting history – if, indeed, such a man exists. I regard it as mere humbug to pretend to lack of bias. Moreoever, a book, like any other work, should be held together by its point of view. This is why a book made up of essays by various authors is apt to be less interesting as an entity than a book by one man. Since I do not admit that a person without bias exists, I think the best that can be done with a large-scale history is to admit one’s bias and for dissatisfied readers to look for other writers to express an opposite bias. Which bias is nearer to the truth must be left to posterity.”
 Russell, (1968), "Autobiography", p. 444


Nota: A leitura foi feita entre a edição audio em inglês da Audible e a edição em livro em português da Relógio d'Água. Muitas vezes me vi obrigado a parar o audio, para poder mais tarde retomar a leitura no papel e em maior sossego para confrontar e compreender as ideias.

Resenhas consultadas:
"A History of Western Philosophy reviewed" (1947) de Isaiah Berlin

maio 30, 2019

Ciência do movimento visual

Por esta altura já todos percebemos que vivemos numa realidade criada pela nossa cognição, montada sobre muitas ilusões, desde a história do vestido azul e dourado às imagens estáticas que se movem, passando pelos vieses cognitivos, tudo distorções sobre o modo como interpretamos o real que decorrem da ligação entre os nossos sistemas perceptivo e cognitivo. Contudo existe sempre espaço para novas surpresas e esta que a Wired nos traz agora é bastante interessante, nomeadamente para todos os que trabalham no domínio da imagem em movimento, particularmente em animação.



No vídeo podemos ver como o processamento visual das imagens na mesma frequência do movimento, permite aceder movimentos completamente distintos, incluindo alterações de direção de movimento. Claro que quem trabalha no audiovisual já viu isto, basta pensarem na última vez que filmaram uma roda de bicicleta ou de um carro, ou quando filmamos plataformas giratórias como as dos parques infantis. Mas ver o efeito na água é não só mais instigante como nos permite compreender muito melhor o que está a acontecer com o nosso cérebro quando ele está a processar o movimento que recriamos por meio dos 12 ou 24 frames. A percepção capta as imagens e a cognição interpreta as mesmas, quando os objetos mudam de lugar, a cognição cria uma história mental que explica que estão em movimento e que esse movimento decorre numa determinada direção. Por isso, se na percepção ocorrer alguma variação incoerente pode acontecer que o nosso cérebro comece a ver movimentos contrários aos que estão verdadeiramente a acontecer.


"Inside the Science Behind This Crazy Water-Based Illusion" (2019) da Wired

maio 28, 2019

As Duas Culturas (1959)

Este livro foi feito a partir de uma palestra dada por C.P. Snow em 1959, tendo gerado imensas ondas em toda a academia, muitas delas contra Snow, condenando-o por contribuir para o aumento da divisão que queria ilustrar entre ciências e humanidades. Devo confessar que fiquei surpreso por ler tais condenações, ainda mais quando feitas por pessoas como Stephen Jay Gould, e não menos fiquei ao procurar comentários mais recentes e encontrar pessoas defendendo que Snow se limita a afirmar o óbvio, para a seguir dizerem que as coisas são muito simples e deveríamos ser todos capazes de nos entendermos. Isto demonstra uma atitude baseada em ideais e não numa análise minimamente objetiva da realidade.


Talvez se fosse há alguns anos eu teria concordado com a ideia de que todos os grupos de pensadores se deveriam entender, independentemente da abordagem ao real que fazem, mas hoje, isto parece-me no mínimo ingénuo. Acreditar que Aristóteles discordou em quase tudo do seu professor Platão apenas por birra, só pode ser tonto. As suas discordâncias estão exatamente na génese daquilo que Snow aqui identifica, e têm que ver com as motivações e personalidades de cada um que os levaram a construir modelos da realidade distintos, no caso, opostos. Ou seja, não penso o mundo a partir de uma tábua rasa e do conhecimento que experiencio ou me transmitem, mas filtro-o através daquilo que sou, e do modo como desejo transformar o mundo que me rodeia.

É verdade que o livro não ajudou, porque Snow não ajuda, nada mesmo. Não há um método na divisão, nenhuma definição sequer é apresentada sobre ambos os lados, nenhuma caracterização dos diferentes perfis é apresentada, nenhuma análise social é feita, menos ainda qualquer traçado comportamental, cognitivo ou emocional é apresentado. Deste modo, Snow cria um argumento meramente no ar, a partir de uma ideia do senso comum que segue o erro, hoje clássico, de caracterizar pólos a partir de médias. Vemos muito isto quando se quer classificar atividades em termos de orientação: homem ou mulher. Nestes casos usam-se curvas de Bell que nos mostram que existem maiorias de homens que gostam de A e maioria de mulheres que gostam de B, e por isso diz-se que os homens gostam de A e as mulheres gostam de B. O problema destas abordagens é que esquecem que junto ao pico da média dessas curvas, existe uma divisão, e para um desses lado, existem faixas enormes de homens e mulheres que não se identificam, que não encaixam nessas classificações simplistas. E foi isso que aconteceu com este texto de Snow, porque usar cientistas contra estudiosos de literatura, não podia dar outra coisa se não um mar de cientistas que adora literatura, e um mar de estudioso literários que manifestam interesse pelas ciências, e que por isso consideram toda a conversa de Snow ridícula.

Se Snow tivesse apresentado um divisão por interesses, objetivos ou metas em vez de classificar as pessoas em etiquetas genéricas, teria com certeza conseguido gerar uma discussão mais equilibrada em redor desses argumentos, em vez de colocar grupos sociais uns contra os outros. Por outro lado, se o tivesse feito não teria conseguido chamar tanto a atenção, só um nicho se teria interessado pela discussão, e o livro talvez tivesse caído rapidamente no esquecimento.


Nota sobre a tradução: Acabei desistindo desta edição portuguesa, mas depois de pegar na original de Snow, percebi que o problema não era da tradução, o atabalhoamento da discussão está mesmo no original, talvez por se tratar de um texto transcrito de uma comunicação. Ainda assim considero que Snow poderia, deveria, ter revisto o texto antes de o deixar publicar.

Mitos da Investigação Fundamental e Aplicada na Europa e Portugal

Existe uma ideia, recente em Portugal, de que as Universidades devem ser os motores da inovação do país, que devem ser as responsáveis por toda a investigação nacional, desenvolvendo-se ali o futuro do tecido industrial nacional. Ora isto é uma ideia sem pés nem cabeça. Diga-se que para isto muito contribuíram as faculdades de Engenharia, do IST à Universidade de Aveiro, ao desenvolverem modelos cada vez mais próximos da indústria, ou seja, aplicados, mas que estão longe de poderem servir de modelos a aplicar a toda a Universidade Portuguesa como modus operandi. Antes de explicar porquê, vou apresentar alguns dados que desmontam algumas ideias feitas, ou mitos.

Apenas 6% do investimento em investigação nas universidades americanas provem da indústria, a maioria (60%) vem do estado, e outra fatia vem das propinas dos alunos (25%).

Nos EUA a investigação nas Universidades é sustentada pelo Estado, como se vê neste gráfico acima, apenas 6% do investimento em investigação feita nas Universidades provém da indústria. E isto inclui universidades privadas como MIT, Stanford, etc. Ou seja, a ideia de que a Universidade na Europa, e a portuguesa, deveriam ser auto-financiadas por recurso a investigação feita com as empresas, porque é assim que se faz nos EUA, é um Mito.

O investimento americano total em investigação é maioritariamente feito pela indústria. o que contrasta desde logo com o gráfico acima, demonstrando que a investigação nos EUA se faz nas empresas, não nas universidades.

Olhando para a R&D americana, o seu verdadeiro pulmão está na indústria. É verdade que é ela quem mais paga para que se faça investigação, mas ela não paga às Universidades para a fazer. Essa investigação é feita nas empresas. Na HP, IBM, GM, Google, Apple, etc. etc. Porquê? Porque estamos a falar de uma investigação diferente, daquela que deve ser feita nas Universidades.

Repare-se ainda como na Europa, o programa H2020 (2014-2020) mudou completamente a agulha do investimento, pondo muito mais dinheiro nas empresas, assumindo-se cada vez mais as empresas como coordenadoras de projetos, ao contrário do que acontecia nos programas quadro anteriores. Ou seja, procura-se o modelo americano, mas apenas pela divisão dos dinheiro, já que quando olhamos ao gráfico abaixo, percebemos que a essência não mudou, a quantidade de investimento na Europa já foi ultrapassada pela China.  Este gráfico, mostra que temos na Europa ainda a ideia de que a investigação deve vir das universidades, porque aí pode sair a custo zero para as empresas. Mas o que isso está a fazer é que a Europa continua a investir muito pouco em R&D e está a ficar cada vez mais atrasada no desenvolvimento industrial.

O investimento europeu global em investigação continua estagnado abaixo dos 2%, quando a meta dos 3% vem sendo apregoada há quase 20 anos. Entretanto fomos ultrapassados pela China.

Mas reparemos agora mais em concreto em Portugal, e voltemos à questão de partida. A razão pela qual não acredito na investigação de um país alicerçada exclusivamente na Universidade é porque a universidade não é uma empresa, e a investigação que uma precisa é diferente da que a outra precisa. A universidade não pode fazer-se apenas de Engenharia ou Design, ou seja Investigação Aplicada, precisa, e muito, de Investigação Fundamental. Ora as empresas não fazem, nem querem saber da investigação fundamental, aquela em que se discute se A deve ser mesmo A, ou se podia ser B. A indústria só quer saber se A dá dinheiro ou não, é indiferente definir A como A ou como B, desde que funcione. Mas ambos os domínios são necessários, pois sem os avanços no aprofundamento dos fundamentos da ciência, a componente aplicada acaba por estagnar.

Investimento em Investigação Aplicada (R&D) por sector na Europa, EUA, China e Rússia. Repare-se como Portugal apresenta quase uma igualdade de investimento entre as Universidades e Empresas, e como isso não é seguido em mais país nenhum, a não ser a Sérvia e Macedónia.

Ora o problema é que Portugal não teve criação de suficiente tecido industrial, e por isso não tem indústria para sustentar a investigação aplicada. Por outro lado, se começarmos a colocar o esforço de toda essa investigação aplicada nas nossas universidades, corremos o risco de cada vez mais nos limitarmos a aplicar a ciência fundamental que as Universidades exteriores criam. Isto foi bastante visível na última abertura de concursos investigação da FCT que deu primazia a projetos não pela componente científica mas pelo seu impacto socioeconómico. E podemos até perceber que não tendo as condições dos outros países, a Universidade deve ajudar, como têm feito e bem as Faculdades e Departamentos de Engenharia e Design, mas têm de haver avanços claros por parte da indústria nacional sem depender das universidades. As universidades podem ser chamadas a contribuir para a ideação e inovação, mas não devem continuar a servir a implementação, como vem acontecendo, por falta de recursos especializados na indústria.

Por outro lado, esta discussão é maior que Portugal, já que ela surge muito colada aos atuais modelos tecnológicos, e Portugal por acordar tão tarde apanhou o barco que encontrou no cais. Ou seja, a Engenharia e o Design assumiram o controlo e o poder, são estas que regulam o grande desenvolvimento mundial tecnológico, e oferecem os maiores avanços técnicos e industriais, mas, e este mas é enorme, elas vivem de todas as restantes ciências, tanto da vida, como sociais, e mesmo das artes. São as inovações na Física, na Biologia, na Psicologia, na Economia, na História ou nas Artes que permitem à Engenharia e Design estarem continuamente a brilhar, pegando no conhecimento em bruto e encontrado formas de o aplicar tornando o conhecimento teórico em práticas úteis à sociedade. Por isso precisamos de Universidades fortes a produzir ciência fundamental e não ciência aplicada. Porque não podemos esquecer que sem uma Universidade forte em ciências e artes fundamentais não só não teremos inovação para alimentar a engenharia e o design, como não conseguiremos criar os melhores recursos humanos que sustentem o desenvolvimento da nossa indústria.


Ligações para os dados usados:
R & D expenditure, EC Europe, 2019
Historical Trends in Federal R&D, 2019

maio 25, 2019

"Mindfoolness" (2019)

Trago uma curta estreada esta semana na rede que apresenta uma elevada qualidade técnica associada a um twist narrativo com capacidade para impactar fortemente o espectador. Não sendo recomendado a menores ou pessoas mais sensíveis, tem potencial para nos lançar em múltiplas direções de questionamento, desde o valor da arte ao sentido da vida até algumas práticas que procuram oferecer-lhe respostas. "Mindfoolness" (2019) foi criado por um grupo de estudantes e ex-estudantes — Inês Graça, Joana Beja, João Garcia Neto, Rúben Duarte, Ricardo Mendes — do DeCA/UA, e venceu esta mesma semana o grande prémio do festival Made in DeCA 2019.


O trabalho eleva-se no campo do audiovisual, com nota máxima, nas componentes de Realização e Cinematografia, apresentando uma Montagem e Sonorização boas, mas de menor qualidade, sendo tudo envolvido por uma história original e minimal, trabalhada por meio de uma narrativa no formato de thriller que mantém o espectador colado até ao final do genérico.

Chamo a atenção para a composição de cena e enquadramento, nomeadamente o modo como operam em sintonia com a narrativa. A composição do espaço e objetos comunicam de forma muito eficiente aquilo que a trama pretende, sendo apresentados por meio de um enquadramento ultra-largo que trabalha bem todo esse espaço e labora de forma bastante hábil toda a encenação que mostra e esconde o foco da nossa atenção. Criado o impacto estético, a história desenvolve-se de forma fluída, quase sem necessidade de se esforçar, até que toma as rédeas do filme, tira o tapete ao espectador e obriga-o, de um momento para o outro, a mudar o modelo mental, passando da apreciação estética para a resolução do nó narrativo.

"Mindfoolness" (2019) de Inês Graça, Joana Beja, João Garcia Neto, Rúben Duarte, Ricardo Mendes

maio 21, 2019

Quando é necessário dizer Não

Há cerca de um mês fui convidado para realizar uma palestra no evento Pint of Science que decorre este ano pela segunda vez em Portugal, em várias cidades, incluindo Aveiro. Aquando do convite fiz alguma pesquisa sobre a organização após o que aceitei participar. Entretanto fui confrontado com o facto do evento, organizado na cidade do Porto, estar a promover palestras que defendem o Reiki como terapêutica de tratamento do cancro (ver programa do Porto e vídeo). Este cenário colocou-me face a um dilema: ir ao evento significaria pactuar com aquilo que se promove nessa palestra; não ir, significava não cumprir com a palavra que tinha dado. Após alguma reflexão e face a nenhuma alteração de programa, apesar dos alertas realizados pela comunidade nacional, decidi cancelar a minha participação. Deixo algumas palavras que sustentam a minha atitude, sabendo que não repararão a minha falta, ainda assim espero que contribuam para uma discussão que é preciso continuar a fazer.


A ciência é um domínio frágil, os seus praticantes operam numa base de humildade permanente face ao conhecimento, aceitando por isso o questionamento constante dos seus princípios. Juntamente com isto, atravessamos toda uma era complexa de enorme e facilitado acesso ao conhecimento que em vez de tornar a sociedade mais informada e capaz de lidar com a ciência, tornou-a mais rude e desconfiada, nomeadamente de toda e qualquer fonte de autoridade. "Se tenho acesso ao conhecimento todo por via da internet, não preciso de especialistas para nada, posso saber o mesmo que eles sabem". "Basta-me umas horas de pesquisa e sei tanto como o meu cardiologista, ou como o meu advogado, ou como o especialista em aquecimento global". No fundo, temos na nossa frente aquilo que os teóricos do pós-modernismo vinham defendendo há décadas: uma sociedade de valores e princípios altamente fragmentada, descrente de qualquer autoridade ou meta-narrativas, vivendo numa realidade líquida em contínua e acelerada mutação.

Tudo isto sendo problemático, não o seria tanto se não fosse usado e abusado por políticos sem escrúpulos. Personagens como Trump, Bolsonaro ou os líderes da extrema-direita europeia tornaram-se populares graças a uma atitude de total desrespeito para com toda e qualquer autoridade instituída. Usam o princípio de que não existem certezas, de que existem cientistas que publicaram um ou outro artigo com reservas como se isso fosse suficiente, ou sequer evidência de algo, para atirar mantos de total descredibilização sobre todos os consensos da Ciência, para a coberto dos mesmos poderem promover as suas próprias agendas ideológicas, mas principalmente económicas.


E ainda assim, poderíamos enquanto membros da comunidade, desejar não nos imiscuir da política, que é um meio complexo, feito de ataques continuados, muitos deles pouco refletidos e menos ainda verdadeiramente sentidos, e que por isso mesmo não valeriam o nosso tempo. Contudo, o problema é grave, porque não se trata apenas de políticos à procura de benefício próprio, estas suas agendas têm impactos brutais sobre a sociedade, e até sobre o próprio planeta. Temos hoje milhares de pais a porem em risco milhares de crianças ao não vacinarem e ao apelarem à não vacinação. Temos milhares de pessoas que se colocam em risco e colocam outros em risco ao apelarem ao não tratamento químico de cancros. Temos milhares de pessoas que defendem que vivemos num planeta “plano”, mas pior, defendendo a inexistência de qualquer aquecimento global, usando a simples ideia de que tudo é questionável, e que a ciência não tem resposta para tudo. Claramente que a ciência não tem resposta, nem pretende ter, para tudo, mas as respostas que tem precisam de ser defendidas, e não colocadas à mercê dos ataques de quem não está minimamente habilitado ou sequer interessado na ciência. Assumir que tudo é igual, e todos têm direito à palavra com o mesmo grau de autoridade, deixou de ser uma condição aceitável, correndo o risco de tudo perdermos.

Temos que promover a ciência, temos de a defender, e isso implica tomar posições que por vezes são difíceis. Neste caso, os organizadores do evento no Porto preferiram o caminho mais fácil, defender as escolhas que tinham feito inicialmente, obrigando a que os investigadores ficassem com a escolha mais difícil, dizer que Não.


Notas Adicionais:
A tomada desta decisão foi feita no âmbito de um diálogo aberto com os organizadores do evento na cidade de Aveiro, que acabaram por compreender e aceitar a minha posição, manifestando a sua impossibilidade de atuação dada a autonomia que cada cidade organizadora do evento detém.

Do meu lado, esclarecer ainda que esta minha posição não deve ser lida como fundamentalismo científico, algo contra o qual tenho manifestado por várias vezes a minha posição, como se pode ver no texto que aqui publiquei no final de abril, "SciMed e a humildade em ciência".


Ler mais:
A Ciência não é Crença, Virtual Illusion
O Reiki funciona?, FFMS
Carta aberta à Pint of Science Portugal, Comunidade Céptica Portuguesa