Laxness criou uma obra carregada de atmosfera, muito graças ao modo como trabalhou o realismo, por meio de uma mescla entre o género épico que bebe na mitologia islandesa e o realismo social, criando uma espécie particular de realismo mágico. A escrita é boa, e a densidade das personagens estimulante, contudo estas acabam sofrendo pelos problemas emanados da história.
"Gente Independente" (1934/1935) Haldór Laxness
A escrita de Laxness é em vários momentos muito conseguida, capaz de nos embalar e levar pela narrativa adentro. Os personagens vão sendo lapidados à medida que a narrativa progride, sempre com mais e mais camadas psicológicas que nos permitem perscrutar vontades e sentimentos. A relação do épico com o romance realista tanto é capaz de nos fazer planar através do belo do universo representado, como de nos indispor pelo grafismo das descrições de violência e sordidez. No campo da estrutura, sente-se alguma falta de coerência, provavelmente pelo facto do livro não ser uma obra integral, mas antes a união de quatro partes escritas por Laxness em tempos e lugares diferentes, como atesta o fim de cada livro. Ainda assim, existe uma diferença bastante desfasada entre os dois primeiros livros, em que se relatam as vivências de Bjardur com cada uma das suas mulheres, e os segundos quase inteiramente dedicados a discussões sobre organização política e económica.
Mas é a história que complica o resultado desta leitura, no modo como Laxness apresenta o mundo que vê e diz conhecer. Se o livro como um todo acaba dando a volta e parecer querer justificar-se, o massacre a que somos submetidos por via da personagem principal é deveras angustiante, e em minha opinião, totalmente injustificado. Não tenho nada contra livros sobre pessoas fracas ou más, desde que exista um objetivo, desde que exista algo por debaixo de toda essa maldade. De outro modo, acabamos a questionar-nos sobre a razão de se dedicar um livro a dissertar sobre alguém que não tem nada para nos ensinar, nem sequer momentos de prazer para oferecer, levando-nos a pensar se o autor crê naquilo que descreve ou se pelo menos percebe o enviesamento daquilo que nos apresenta.
*** SPOILERS ***
A razão pela qual questiono a história tem que ver com Bjardur, o personagem principal, o idealista e grande lutador pela independência, que é representando como um irascível individualista, um autêntico sociopata, para quem a família — filhos e mulheres — contam nada. Ao longo de mais de 500 páginas somos brindados com uma personagem anti-humana que contra tudo e todos, morram ou vivam, se mantém imutável, fiel aos seus princípios, completamente obstinado. É apenas nas últimas 20 páginas, depois de ter ficado sem nada, de toda a sociedade o ter descartado, que resolve dar o braço a torcer e fazer uma volta de 180º. Vejamos:
Bjartur
1. Deixa a primeira mulher sozinha numa casota isolada num lugar ermo, e vai dias inteiros com amigos para montanha. Quando esta lhe diz que tem medo, e pede para deixar ao menos o cão, diz-lhe que nem pensar, que se aguente.
2. Repete, e deixa-a uma segunda vez, mas agora com ela grávida, para ir atrás de uma ovelha. Não existindo ninguém com ela, esta morre sozinha durante o parto.
3. Impede os filhos, e a segunda mulher de terem uma vaca, que estes queriam por causa do alimento do leite. A comunidade oferece uma contra a sua vontade, mas quando esta engravida, mata o vitelo da vaca sem piedade.
4. Depois mata a vaca, apesar da segunda mulher lhe dizer que seria como a matar a ela. A sua segunda mulher acaba também por morrer do stress.
5. Envolve-se numa situação de abuso sexual da própria filha (que não é filha de sangue) que a sua consciência interrompe.
6. Um filho desaparece, passados vários meses Bjartur encontra o cadáver, toca-lhe com um pau, manda-lhe uma luva, e deixa-o ficar a apodrecer ao ar, não contando nada aos irmãos nem a avó.
7. Despacha o filho mais novo para os EUA, de um dia para o outro.
8. Volta a deixar a família sozinha, e manda um suposto professor bebedolas tomar conta dos miúdos, que acaba a engravidar a sua filha.
9. Quando descobre que a filha está grávida, ela que pela limitação da educação recebida quase nem percebeu o que lhe aconteceu, deserda-a, manda-a embora de casa.
10. Nas repetidas vezes em que o segundo filho lhe diz para visitarem a filha, trata o filho abaixo de cão.
11. Na fase final arranja uma governanta, e quando esta se começa a envolver emocionalmente e disposta a ajudar a família, manda-a embora sem qualquer razão.
12. Obriga a mulher e filhos a trabalhar 16 horas por dia.
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Ou seja, independente aqui, só Bjartur, toda a sua família era tratada como escrava, todos às suas ordens. É uma autêntica aberração, nada disto se pode justificar com base na ideia de se ser independente. Os ideais, políticos ou outros, não se sobrepõem à empatia humana, apesar do individualismo tender para tal. Mas Bjartur não é apresentado como individualista, antes como anarquista e com graves problemas do foro mental, não muito longe daqueles sociopatas do interior dos EUA que impedem as famílias de irem à escola, ou não têm televisão nem telefone para não serem importunados pelo governo.
Quanto ao Nobel, não o compreendo, mas também só li este seu livro, e a tradução, apesar de direta dos islandês, deixa-me com a impressão de não ser tão rica em vocabulário como será no original.