"God of War" (2018) não é uma experiência revolucionária, mas tal como já tinha acontecido na primeira série, iniciada na PS2, que também não o era, é um jogo capaz de utilizar várias componentes criativas dos videojogos em níveis de excelência e assim oferecer uma experiência bastante elaborada. Diria mais, que GoW tem vindo a servir para mostrar o que é possível fazer com a linguagem dos videojogos, dando conta, em cada novo jogo, dos parâmetros mais estáveis do meio. Ainda assim, e apesar de ser uma experiência, do ponto de vista estético, muito boa, tanto consegue apresentar elementos excecionais como elementos meramente satisfatórios. Nas próximas linhas detenho-me nos elementos que geram o contraste.
Atreus e Kratos apresentando as roupas e armaduras que lhes atribuí no final.
A) EXCECIONAL
1 - O tratamento da narrativa, desde o cruzamento de enredos a toda a relação destes com a arte de suporte aos personagens por via dos atores, assim como toda a arte de suporte ao ambiente desde a arte visual, à sonora e animação. É isto que torna "God of War" tão poderoso, e o reconhecimento por tal é oferecido nos créditos, com a equipa de Narrativa a surgir em primeiro lugar, logo após o diretor e produtores, seguida do Design, Programação e Arte (sobre as equipas e seus lugares na produção e desenvolvimento de videojogos ainda falarei noutro post).
Kratos
2 - A história, tanto do jogo como na sua relação com os jogos passados. A história não é decoração nem mero suporte ao jogo, a história é o pilar que sustenta a razão do jogo existir. Mas ela só se eleva a esse patamar pela presença de Atreus (filho de Kratos), que obriga a história a sair dos elementos externos de Kratos, que por via da mitologia nórdica são bastante coesos, para se focar no seu interior, algo que só é possível por via do filho, já que este funciona como autêntico espelho psicológico. Por outro lado, e agora entrando na história, existe uma coerência na manutenção da firmeza de Kratos, que é um deus, por oposição à belíssima progressão de carácter de Atreus que está em crescimento, mas que é não é apenas um deus (não revelo o resto porque entraria no detalhe da história).
Kratos e Atreus
3 - As performances dos atores, nomeadamente de Jeremy Davies como Baldur, que é talvez das melhores performances algumas vistas num videojogo, desde sempre. Interessante, como quanto mais avança o 3d e os jogos se vão tornando quase fotoreais, maior vai sendo a necessidade de atores reais. Nesse sentido, Sunny Suljic oferece uma belíssima transformação a Atreus ao longo de todo o jogo, já Christopher Judge (Stargate) mantém a firmeza de Kratos completamente inabalável.
Stranger e Kratos
Atreus, Baldur e Kratos
4 - O design dos combates, na sua fluidez e relação com as artes visuais e sonoras, capaz de oferecer pura adrenalina e ao mesmo tempo descargas de dopamina via progresso e impacto estético.
B) SATISFATÓRIO
1 - Os resquícios de um game design ultrapassado, nomeadamente pelas arcas que se vão encontrando em todo e qualquer canto e as batalhas que surgem a metrónomo. Este problema sente-se com maior força durante toda a primeira metade do jogo, em que se opta por atrair os fãs da série, e por isso não dedicar muito espaço à progressão narrativa.
2 - O design do espaço, com demasiadas áreas a impossibilitar o jogador de avançar sem que os elementos do terreno deem qualquer razão para tal. Ou seja, não só o jogo está ainda demasiado linear, como força o jogador a fazer o que quer ou necessita para fazer progredir a experiência. Isto é tanto mais evidente no facto de todas as interações com o mundo serem apenas possíveis quando surge o círculo, o que é um péssimo indicador do trabalho de design.
3 - Se a câmara está desenhada de forma magistral, com um constante vai-e-vem entre interativo e não-interativo, existindo um responsável na equipa especificado como "narrative camera animation", acaba por assumir uma preponderância tal, diria mesmo obsessiva no controlo da câmara, a ponto de por tudo e por nada, nos ser retirado o controlo do jogo apenas para poder gerar a experiência estética desejada.
4 - Esta obsessão por guiar, orientar, alinhar, no fundo forçar uma determinada experiência atinge o cume na total ausência de design de estruturas ou sistemas no campo da narrativa. A história oferece-se como experiência completamente fechada, com a agência num nível quase zero, ao jogador resta-lhe seguir e assistir passivamente ao desenrolar dos eventos.
Para que os amantes do jogo, e são muitos, a julgar pelo Metacritic, tanto dos críticos como dos jogadores, não digam que estou a ser injusto e que estou sozinho nestas críticas, deixo-vos com as notas de Adrian Chmielarz, diretor de "The Vanishing of Ethan Carter" (2014), com as quais me identifico bastante.
C) SÍNTESE
GoW é uma experiência deslumbrante, capaz de tocar as nossas teclas mais humanas, da exaltação à empatia. Enquanto artefacto, representa uma vitória das artes narrativa e visual sobre o design, com a história a tudo comandar, a arte a tudo obrigar, e o design simplesmente a aceitar em modo subserviente. No final senti-me dividido, mas nem por um momento arrependido do tempo investido.
Lisa Feldman-Barrett tem provocado imensas ondas no campo das ciências da emoção com a sua nova proposta sobre o modo como surgem as emoções. Se no mundo da ciência as suas abordagens vão sendo aceites mas bastante questionadas, dada a natureza de regulação da ciência que favorece a dúvida, no campo mais mediático, da chamada folk science, as suas abordagens têm sido recebido como revolucionárias e de extrema importância. É verdade que Barrett tem um currículo académico que lhe granjeia facilmente autoridade, e por isso a aceitação daquilo que diz como sendo cientificamente demonstrada e logo verdade. Do meu lado, darei aqui conta do ceticismo para com a sua teorização.
Barrett apresentou uma TED, escreveu dezenas de artigos e no ano passado lançou o livro “How Emotions Are Made: The Secret Life of the Brain” (2017), tudo para defender aquilo que ela define como uma teoria revolucionária das emoções, a que chamou de "theory of constructed emotion". Nessa teoria diz-nos que a teoria clássica da emoção está completamente errada: que as emoções não são universais, variam entre seres-humanos, e mais, não são inatas. Para Barrett, as emoções são meras construções mentais, simulações que fazemos a partir de experiências passadas. Para sentir uma emoção precisamos de julgar momento a momento para determinar a emoção que sentimos. Estas conclusões de Barrett advém do facto de ter passado as últimas décadas a tentar encontrar a "impressão digital" das emoções e não a ter encontrado. Ou seja, nos estudos que fez com fotografias de faces humanas encontrou demasiada variabilidade nas respostas; nos estudos que fez com a variação corporal e nos estudos que fez com os circuitos neuronais, igual. Barrett diz assim que até hoje não foi possível encontrar no corpo humano o lugar em que a emoção se define, e desse modo ela não existe de forma inata, sendo mera construção mental.
Esta abordagem de Barrett, do meu ponto de vista, enquanto investigador da emoção e cognição, levanta-me imensas dúvidas, algumas a partir de outros autores, outras como reação direta ao que é questionado pela autora, e que passo a elencar:
1 – Expressão Facial e Paul Ekman
Ekman é um dos mais reputados investigadores de emoção, em especial, da emoção facial. E é também um dos mais atacados por Barrett, porque segundo ela, nas suas replicações experimentais, nunca conseguiu encontrar os mesmos resultados que Ekman. Por sua vez Ekman, respondeu-lhe em 2014, de forma muito direta, com a imensidade de estudos que suportam o seu trabalho e as suas propostas, vale a pena ler. Barrett aceita que a leitura de expressões faciais possa ser demasiado subjectiva, e por isso realizou testes com sensores de variação muscular da cara, a partir dos quais concluiu que continua a existir demasiada variabilidade.
Ora estes estudos levantam-me vários problemas, primeiro porque a avaliação de emoção apenas por meio de uma fotografia é algo que só muito treino pode garantir, pela simples razão de que lhe falta a variabilidade temporal da cara. Uma emoção facial não tem a duração de um momento congelado no tempo, mas no mínimo, a variação da posição neutra até à posição da emoção, e depois o voltar ao neutral novamente. Ora, nós seres humanos estamos apenas dotados de capacidade para ler essa variação, e não instantes captados com máquinas fotográficas. É o mesmo que tentar ver o que acontece numa imagem de um filme quando o filme está em movimento, não conseguimos, temos de usar a tecnologia para parar o movimento. Por isso Ekman defende a necessidade de treinar as pessoas para lerem emoções.
8 pontos de Barrett vs. 152 marcadores usados por Tom Hanks para o filme "Polar Express" (2014)
Mas pior do que isto são os testes com sensores feitos por Barrett. Como vemos na fotografia, está a usar 8 sensores para captar a variação muscular. Mesmo aceitando que são sensores capazes de uma mais alargada sensibilidade, se compararmos com os sistemas de motion capture que temos criado para realizar animação facial com alguma qualidade, as quais recorrem a mais de 150 pontos, soa no mínimo ingénuo a experiência de Barrett. Mas agrava-se, porque se pensarmos que mesmo com esses 150 pontos, continuamos a não conseguir captar toda a essência do movimento da cara, e a ter problemas na representação facial em 3d, o qual é reconhecido como uncanny valley, então ficamos a pensar que falta muito trabalho a Barrett para chegar à identificação das expressões faciais por meios ditos objetivos.
2 – Marcadores somáticos de Damásio
Um segundo aspeto que me parece um pouco tonto na teoria de Barrett, até por ela a apresentar como se fosse algo completamente revolucionário, é que Damásio já tinha defendido que as emoções emergiam a partir de marcadores somáticos, que não são mais do que inferências do passado, preservadas no nosso corpo. Aliás, Barrett é bastante desleal aqui, porque o único lugar em que reconheceu semelhanças com a sua teoria foi numa página wiki de trabalho para o livro, já nos seus artigos e no livro, não existe qualquer menção aos marcadores somáticos. Na wiki, Barrett diz que descarta a teoria de Damásio, porque apesar de semelhante, Damásio defende as emoções como sendo inatas. Ora Damásio, como Ekman, Darwin e tantos outros, só defendem seis emoções como inatas — Alegria, Tristeza, Medo, Raiva, Nojo e Surpresa—, todas as outras Damásio defende como emoções sociais, ou seja construídas culturalmente.
Na verdade a teorização de Damásio é muito mais relevante porque defende os marcadores somáticos presentes no corpo e não apenas na mente como defende Barrett. Para Barrett a emoção é apenas uma resposta mental, enquanto para Damásio é todo um quadro somático do nosso corpo que nos permite sentir o impacto fisiológico da emoção (não esquecer as mais recentes descobertas em torno dos neurónios presentes na medula espinal, no coração, e no intestino.). E aqui agrava-se ainda mais a abordagem de Barrett apresentando-se como defensora do mais básico dualismo mente/corpo, aquele que Damásio procurou desmontar, e desde então tem sido aceite por boa parte da ciência.
Mas Barrett vai mais longe, no livro e na TED, atira à cara das pessoas que estas “não estão à mercê das emoções”, uma vez que essas são meramente criadas pelo cérebro. Que “nós não somos vítimas de circuitos de emoção primitivos e animalescos” porque é o nosso “cérebro que constrói as experiências emocionais, mesmo aquelas fora de controlo”. Ou seja, não só atira as questões inatas como todo o corpo fora. Onde é que na equação de Barrett entram as situações pós-traumáticas e as hormonas da testosterona, da ocitocina, da adrenalina ou da dopamina!?
3 – Emoção e Cognição
No terceiro ponto vejo um problema enorme, que é a total confusão entre cognição e emoção. Barrett usa princípios da Gestalt para definir o modo como se processa a identificação de etiquetas emocionais. Os princípios da Gestalt são operados por lógica, pela busca de padrões que o nosso cérebro opera, mas que se diferenciam imenso das sensações ou emoções que atuam sobre o nosso corpo como um todo. Aliás, Barrett usa e abusa de todas as teorias no campo visual, narrativo, da aprendizagem, assim como da psicologia — tal como a "appraisal theory" — mas nunca cita todo o trabalho feito nessas áreas. No fundo, arranjou uma interpretação sua para algo que diz que não tem explicação na neurociência, e fala dela sem ligar nenhuma a todos os restantes ramos do conhecimento que se têm dedicado a perceber como construímos conhecimento, como compreendemos o real, e como isso se diferencia dos modos como sentimos esse real.
4 – Expressões faciais em invisuais
Apesar de ter deixado este ponto para quarto, é talvez o mais impactante em toda esta teorização de Barrett, porque é uma evidência clara da insustentabilidade da teoria proposta. Ou seja, se as emoções e expressões faciais são respostas mentais construídas, apreendidas no tempo, por via dos pais e cuidadores, então como é que se explica que invisuais de nascença, possam expressar emoções com a cara do mesmo modo que pessoas com sentido de visão? Como é que estas pessoas aprenderam a gerar aquelas emoções? Como é que o seu cérebro sabe o que deve fazer com a cara?
Nestas imagens vemos como as expressões faciais são iguais. Mas algo que é muito interessante no estudo que apresenta estas imagens é que se verificou que os invisuais só apresentam a mesma expressão facial quando estão a sentir a emoção, e não quando lhes pedem para fazer a cara de uma determinada emoção, o que torna ainda mais evidente o facto da emoção ser um processo inato e automático, e não aprendido e consciente.
5 – Emoção como palavra!
Para Barrett só sentimos as emoções para as quais temos palavras. Se não soubermos definir o que sentimos, então não sentimos essa emoção. Aliás, neste mesmo sentido diz-nos que os
animais não sentem medo, que sentem apenas uma espécie de afeto! Ou seja, é preciso ter um sistema mental completo e dotado de expressão e comunicação para sentir! Seguindo esta ideia, uma criança a quem nunca tivesse sido ensinado o que é a tristeza, ou a alegria, ou o medo, poderia viver toda a sua vida sem sentir emoção. Então pergunto porque não temos a nossa espécie cheia de Spocks? Ou pior, porque raio continuam os animais a insistir em sentir emoções?!!!
Seguindo a teoria de Barrett, como podem estes cão sentir algo se ninguém lhes ensinou as palavras que definem as emoções que sentem?!
São tantos os problemas desta teoria, a ponto de ser a própria a aceitar que a sua teoria é apenas uma teoria — "the roles I’ve described for your various brain networks are not objective facts. They are concepts invented by scientists to describe the physical activity within a brain" — e que tem imensos problemas, apresentando vários buracos. No entanto, esta aceitação entra em choque com a sua vontade de estar constantemente a atacar as teorias que aceitam o lado biológico das emoções, e pior, apresentar a sua teoria como verdade absoluta e inquestionável.
Muito já se escreveu sobre "Kingdom Come: Deliverance" (2018) (KC:D), nomeadamente que é um jogo para jogadores pacientes porque se começa com muito poucas capacidades — enquanto mero plebeu não sabemos manejar espadas ou arcos — o que acaba por o tornar mais interessante para quem procura experiências mais realistas, para quem busca agência narrativa, ou seja, possuir autonomia e controlo sobre a progressão da experiência. Em termos temáticos e visuais, podemos rapidamente evocar “The Witcher 3: Wild Hunt” (2015), em termos de jogabilidade as referências vão mais para “The Elder Scrolls V: Skyrim” (2011) e “Fallout 3” (2008), ainda assim, KC:D vai além, não apenas porque se furta à fantasia da FC e da Magia, algo muito raramente visto, mas também porque constrói um dos mundos de jogo e história mais detalhados e intrincados de sempre, mantendo as escolhas e a emergência sempre bastante vivas. Por isso, não tenho dúvidas em afirmar que KC:D é um dos grandes jogos deste ano e da última década.
KC:D é mais do que um jogo de mundo aberto realista, ao seu lado “Legend of Zelda: Breath of the Wild” (2017) é mero brinquedo para crianças. A experiência gerada por este mundo não se limita a mera simulação, no caso de época, existe jogo e existe narração, claramente assentes em factos históricos dignos de qualquer grande romance histórico. Mas aquilo que diferencia totalmente KC:D de Zelda, é o design que junta jogo e narrativa capaz de os colocar ao mesmo nível, fazendo depender um do outro, criando uma experiência una, em que o jogador nunca pensa, “estou a jogar” ou “estou a ver uma história”, mas antes “habito este mundo e tenho de me dar a estas pessoas”. Dan Vavra em entrevista dizia: "My philosophy, let's say, is that the gameplay experience generally should be natural, believable, it could be complex, but shouldn't be complicated", e é isso mesmo que temos, e que fica facilmente demonstrado pela imensidade de verbos que o jogo utiliza, todos baseados em fenómenos perfeitamente naturais para um ser-humano: andar, correr, montar, comprar, trocar, caçar, regatear, roubar, tirar, enganar, fugir, render-se, aprender, treinar, obedecer, desobedecer, matar, lutar, reparar, lavar-se, esconder-se, tratar-se, comer, dormir, repousar, esperar, namorar, ajudar, procurar, investigar, etc. Isto explica também porque o jogo é muito mais do que combates e lutas, não senti nunca que estava farto de lutas como acontece em tantos jogos, porque elas são bastante espaçadas em todo o jogo (claro que no meu caso optei por ir desenhando o meu perfil mais pela "fala" e menos pela "força" o que ajuda a minimizar essas lutas). Mas por exemplo, os mini-jogos como o de dados que se podem jogar nas tavernas, foi a primeira vez que me dei ao trabalho de aprender as suas regras, jogar mesmo, e ter vontade de ganhar ao adversário dentro de um mundo virtual, senti completamente a ânsia pela incerteza do lançamento dos dados. Já o mesmo não posso dizer dos “lockpicks”, não consegui entrar na lógica, que pelo que li é muito mais acessível via teclado do que gamepad, mas graças ao sistema de jogo aberto pude jogar todo o jogo sem ter nunca de abrir uma única fechadura por esse método, o que só por si é uma demonstração impressionante do game design do jogo.
O guião final de KC:D tem cerca de 1 milhão de palavras. Na imagem podemos ver o papel ocupado quando impresso.
Na intersecção entre o design e a arte temos o guião, parte escrita parte estrutura de jogo, no qual é preciso destacar os imensos conflitos desenhados para sustentar o nosso interesse ao longo de todo o jogo. Claro que se sente por vezes uma narrativa um tanto artificial pela força dos padrões de Hollywood, influencia clara do script doctor contratado, mas no geral, os 7 escritores sob o comando de Vavra deram muito bem conta do trabalho. Principalmente nos diálogos que demonstram uma relação com os costumes da época, dos seus interesses e diferenças, fazendo com que estejamos sempre interessados em ouvi-los para compreender melhor o mundo para onde viajámos. Do mesmo modo a descrição e resolução dos problemas dos personagens e sua especificação no design de jogo é algo a que não é alheio os mais de 20 consultores em História utilizados. No meio da imensidão de mundo e ações a realizar, muitas delas impõem tempos específicos, o que acaba por conseguir gerar todo um ritmo naquele mundo, e que por vezes apesar de toda a agência quase nos parece linear, ou melhor dizendo, parece o nosso próprio tempo naquele mundo, em que temos de fazer escolhas, mas essas fazem parte das condições daquela realidade, e é quase como se só tivéssemos uma opção porque estamos completamente absorvidos pela história e pela sua progressão. Tudo isto consegue fazer com que as horas se vão acumulando e o jogo só muito raramente acuse saturação narrativa, o nosso empenho no seu progresso é mantido até ao final.
7 escritores, vários consultores e um script doctor, tudo para que a narrativa funcione e suporte o jogo do início ao final.
Para perceberem um pouco melhor como funciona o sistema de escrita, simulação e emergência, vejam este pequeno trecho de uma das quests do início do jogo.
Se o design é brilhante e a escrita muito boa, a arte visual é sumptuosa. O mundo é enorme (16 km2), ainda assim passei dezenas de vezes por alguns dos caminhos e, no entanto, nunca senti o efeito de repetição, tal é a ordem de detalhe colocada na arte. Seja nos caminhos em pedra, seja na relva, seja nas construções, nas roupas, nos utensílios, nas armas, no sistema atmosférico, tudo segue referências reais e altamente pormenorizadas, no sentido de providenciar uma experiência intensa e rica de uma época efetiva, o final da Idade Média (sobre esta componente aconselho uma comunicação de Vavra que dá conta da componente histórica e sua importância artística para o jogo). Daria nota máxima a tudo neste campo, menos ao design de som e música, já que a opção por não saturar o ambiente de música, como acontece nas produções mais hollywoodescas, acaba por ser exagerada, atirando o som para o fundo, não servindo nunca o jogo como motivo. Não falo apenas de música para gestão emocional, mas também das paisagens sonoras naturais — do roçagar das árvores, do correr dos coelhos, dos veados, dos riachos, etc. Senti um pouco falta dessa componente, que tenho a certeza teria tido um enorme feito no incremento do ambiente experiencial, nomeadamente porque em momentos de jogo mais individuais e belos visualmente, teria incrementado o bucolismo das cenas. Aliás, ainda neste sentido, as vozes inglesas pecam também por não possuir um trago de maior autenticidade de época.
Comparações entre o real e os modelos implementados no jogo. Arrisco a dizer que o nível de detalhe colocado na modelação do mundo vai para além daquilo a que a Ubisoft nos tem habituado na sua série Assassin's Creed.
Mas os jogos não se fazem apenas de design e arte, requerem um terceiro elemento vital, a informática, e nesse campo não posso tecer louvores. Bem sei que se trata de uma pequena empresa, de um pequeno país europeu, mas ainda assim facilitaram demasiado. O jogo foi lançado em Fevereiro de 2018, carregadíssimo de bugs, o que lhes valeu dezenas e dezenas de más análises na imprensa internacional. Muitos analistas até gostavam do jogo mas a experiência, que relato acima, não era sustentada tecnologicamente à data. Para se ter uma ideia, eu comecei a jogar apenas em novembro, 10 meses depois, e já ia na versão 12, entretanto passei para a 13, e mesmo assim tenho de dizer que foi o meu jogo em consola com mais problemas informáticos de sempre. Saves que desapareciam; cutscenes cortadas a meio ou simplesmente que não me apareciam numa passagem, mas apareciam noutra; saltos entre ações necessárias de jogo sem que eu tivesse feito algo efetivo; cenários sem chão, paredes sem portas, personagens no ar. Tudo a fazer recordar o horribilis lançamento de “Assassins Creed: Unity” (2014), o qual só consegui jogar, também meses depois, após um patch de 17Gb. Na verdade, os problemas informáticos não são algo completamente alheio a este tipo de jogos, os immersive sims, por causa da complexidade envolvida. Desde sempre a Bethesda foi associada a problemas de bugs, nomeadamente com as séries “Fallout” e “Elders Scrolls” (veja-se o que está acontecer com o recém lançado "Fallout 76"), o que dá conta da questão subjacente, a complexidade do universo, nomeadamente aquela que a narrativa introduz, e que se fosse suportada tecnologicamente com certeza levaria mais do que 10% dos jogadores até ao final.
Não estamos a falar de uma grande área de jogo apenas, mas estamos a falar de simulação que se dá à agência do jogador, que tem ainda de permitir emergência, ou seja, reações do mundo de jogo não planeadas pelos designers, tudo em grande escala, ao que se junta uma estrutura narrativa imensamente detalhada, recortada e ramificada à qual se ligam os cenários, os personagens, as cenas e as cutscenes, tudo ao longo de dezenas de horas de modo a garantir que as sempre presentes escolhas e variações de abordagem de cada jogador funcionam. Aliás, esse é para mim talvez um dos grandes pecados de KC:D, a enormidade de produção de conteúdo. Vavra fala em 110 horas de voz off, só em cutscenes temos quase 9 horas de animação integral, eu fiz 103 horas de jogo para realizar apenas a Main Quest, e mais 3 ou 4 side quests. No YouTube existe um playthrough apenas da Main Quest, e apenas de uma perspetiva, com partes aceleradas e todos os momentos de espera cortados, e mesmo assim são precisas 17 horas. É verdade que, ao contrário da Bethesda que criou o seu próprio motor (Creation Engine), a Warhorse utiliza o CryEngine que sendo desenvolvido por terceiros, tem a vantagem de ser amplamente utilizado e por isso estar imensamente testado. No entanto, esse engine serve apenas a construção e renderização de cenas, para o design de jogo nas suas múltiplas frentes — missões, personagens, diálogos, objetos, locais, ações e interações, mapas, vozes, cutscenes, etc. — a Warhorse teve também de criar a sua própria ferramenta, o SKALD, que é o responsável pelo design assim como toda a gestão do pipeline de produção. Ou seja, grande parte dos problemas são originados nesta ferramenta, o que vem demonstrar mais uma vez o quão importante continua a ser a tecnologia e a informática enquanto arte de produção de videojogos.
Interface de SKALD, construção dos diálogos não-lineares. SKALD fez-me recordar o projeto europeu INSCAPE em que trabalhei, de 2004 a 2008, e que tinha como objetivo exatamente a construção de uma ferramenta de suporte à autoria de mundos narrativos interativos, algo que continua por definir e standardizar.
Apesar de tudo isto, KC:D exala paixão, espírito de missão e isso só é possível porque existe por detrás do jogo um líder, um diretor que busca dar forma e vida a toda uma visão, capaz de aguentar o projeto vivo durante 7 anos, e que é Dan Vavra (n. 1975; licenciado em Design). Este tem sido atacado por alguns comentários que foi fazendo sobre os media e nomeadamente sobre o GamerGate, mas se virem as suas várias entrevistas sobre o jogo, e o modo como trabalha em equipa e a sua abordagem contra a violência nos videojogos, verão como isso está longe de o caracterizar como pessoa. Daí o meu interesse em tentar perceber também como é que um jogo com estas dimensões pôde nascer num pequeno país Europeu, com a mesma população de Portugal, e fazendo uso da sua própria História. É que apesar de ser independente, estamos a falar de um jogo que custou, incluindo já despesas de marketing (o que pode ir de 30% a 50% nos dias de hoje), cerca de 35 milhões de euros, dos quais só 1 milhão veio pelo Kickstarter. Se tiverem o mesmo interesse que eu, aconselho-vos a ver o "Kingdom Come: Deliverance Documentary" (2018). Deixo a seguir alguns dos pontos do mesmo e que captei também em outras entrevistas, que me parecem essenciais para compreender o que aqui temos.
Dan Vavra começa, em 1998, num novo jogo, "Mafia" (2002), por mero acaso acabando a dirigir uma equipa de 9 pessoas, todos, ele incluído, sem qualquer experiência, nem de jogos nem de trabalho. Conseguem sucesso internacional e atraem um grande publisher, a 2K, para fazer uma sequela, "Mafia II" (2011). Mas como artista está pouco interessado em trabalhar sob as ordens da grande produção, por isso tenta ir à procura de outra sorte. Não emigra, nunca sai da Rep. Checa, começa a sua própria empresa. Para o efeito, desenha uma ideia assente numa abordagem inovadora, um RPG realista situado no centro da Europa no final da Idade Média. Com isso procura o primeiro financiamento antes de lançar qualquer desenvolvimento, que só começa em Setembro 2011. Em 2013 vão surgir os primeiros verdadeiros problemas quando o primeiro protótipo está pronto e se inicia o périplo pelos publishers internacionais, estes gostam mas respondem que não querem um jogo de História, não querem realismo, querem fantasia pura e visceral. Entra então o Kickstarter, não para financiar o jogo, mas para demonstrar que há mercado interessado naquele tipo de jogo. O oxigénio do Kickstarter permite passar o número de pessoas envolvidas, das 15 para as 40, e permite assegurar o interesse de mais financiamento e assim fazer chegar a equipa às 100 pessoas ao longo de 4 anos.
Só para fechar, deixo uma pequena lista que fiz há dias, dando conta de grandes jogos europeus que têm surgido nesta década, que dão cartas em todo o mundo, e que mostram que é possível fazer muito mais a partir de pequenos países como o nosso:
França - "Dishonored" (2012) Suécia - "Brothers: A Tale of Two Sons" (2013) Polónia - "This War of Mine" (2014) Polónia - "The Witcher 3: Wild Hunt" (2015) Dinamarca - "Inside" (2016) Holanda - "Horizon Zero Dawn" (2017) Suécia - "Wolfenstein II: The New Colossus" (2017) França - "Prey" (2017) Bélgica - "Divinity: Original Sin II" (2017) República Checa - "Kingdom Come: Deliverance" (2018)
Vi a versão homónima — "Never let me go" — cinematográfica quando saiu, em 2010, e lembro-me de não compreender a razão de tanto entusiasmo por parte da crítica. Recordo-me de ter gostado do ritmo e ambiente, da clara antítese para com outros filmes de ficção-científica pela ausência de futurismos tecnológicos, mas ao mesmo tempo nada da história, dos seus personagens, fez muito sentido para mim. Pensei na altura que o facto de não ter lido o livro me tinha deixado à porta do significado e por isso condescendi. Acabado agora o livro, sinto exatamente o mesmo que senti quando vi o filme, gostei do suspense, gostei da fragilidade e abandono, mas a mensagem continua distante. Li, entretanto, várias análises, incluindo a de James Wood e mais algumas académicas, mas não fiquei convencido com os argumentos apresentados em defesa da obra.
********** SPOILERS *************
O texto trata de um tempo igual ao nosso, mas numa realidade paralela em que a clonagem existe para servir as necessidades de transplantes de órgãos. Crianças clonadas, sem pais, são criadas e educadas em escolas até aos 16 anos, para depois seguirem, primeiro um processo de ajuda aos colegas mais velhos em pós-operatórios e períodos de convalescência entre extrações de órgãos, e depois passarem também a ser dadores, processo que pode chegar até à quarta ronda de extração, altura em que por norma, "completam o ciclo", morrem.
Olhando para esta síntese, temos uma premissa regular de ficção-científica, que trabalha um tópico quente do início deste milénio, a clonagem, e procura realizar alguma crítica. Contudo o tratamento do tópico por parte de Kazuo Ishiguro deixou-me completamente incrédulo sobre todo o cenário apresentado. É interessante que Ishiguro, apesar de trabalhar a mesma premissa do filme "The Island" de Michael Bay, que saiu exatamente no mesmo ano do livro, tenha seguido uma abordagem completamente distinta. O filme de Bay segue uma história-conceito de Caspian Tredwell-Owen, que não foi desenvolvida para além do filme, no entanto a premissa é muito próxima de "Never Let Me Go". Não interessa o tradicional "quem copiou quem" até porque tendo saído no mesmo ano, os tempos de produção não permitiriam cópias, mas interessa, mais ainda a esta distância no tempo, verificar como o tema mexia com a sociedade desse tempo, a ponto de dois objetos culturais terem sido criados e terem conseguido gerar grande impacto. Em 2003 a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado (1996), morria gerando grande comoção e discussão internacional em redor da clonagem, tornando os tempos propícios à criação de alegorias.
Indo agora ao cerne das minhas objeções. “Nunca me deixes” apresenta-se como uma alegoria, o que serve a todo o tipo de interpretações, desde os que defendem que Ishiguro usa a clonagem como mero pretexto para dissertar sobre a nossa própria mortalidade, aos que consideram que funciona como crítica ao processo e seus impactos. Muito honestamente, considero a alegoria completamente falhada, por falta de sustentação do cenário apresentado. Clones ou não, refletiam, questionavam-se, tinham curiosidade pelo pensar do outro, mas eram incapazes de questionar o seu desígnio? A única explicação é que sendo clones, eram apenas em parte humanos, com genes transformados para se comportar como animais domesticados, mas assim sendo então qual o valor da alegoria?
Por várias vezes parei para comparar com outras alegorias, um dos processos muito usado por Saramago, mas a conclusão era sempre a mesma, não se podem criar alegorias para servir de espelhos conceptuais, que na base comparativa estejam adulteradas. A alegoria deve partir das mesmas condições do conceito que se pretende discutir, e depois então transformar as propriedades ou condições contextuais para apresentar os impactos possíveis. Ora neste caso temos um grupo de crianças impossíveis. Mesmo assumindo a ideia de órfão, são apresentadas como humanos ausentes de curiosidade, ausentes de ímpeto do ser — quem sou eu? porquê? como? Mesmo a busca pelos “possíveis” que seria algo fundamental num humano regular, querer conhecer a sua origem, clonado ou não existe sempre uma origem, é apresentado como mero fait-divers, pouco relevante!
Claro que poderia existir um conjunto de personagens mais acomodados, mais resignados, menos despertos, mas todos! Não existe um único personagem que questione! E no entanto eles não são mantidos fechados num mundo à parte, eles leem literatura, clássicos instigadores, eles veem cinema, seguindo os comportamentais clássicos de Hollywood. Não lhes faltam modelos para despertar a imaginação, para questionar a diferença entre eles e os outros, e essencialmente o porquê dessa diferença. Ao mesmo tempo, a escola em que são educados e vivem, assim como a partir dos 16 anos, a herdade em que aguardam serem chamados para cumprir os seus supostos papéis, não são guardadas, não existe qualquer sistema de repressão ou controlo. Eles estão ali porque para ali foram levados, e nada mais.
A alegoria é um total falhanço em termos de compreensão do que sustenta a existência humana. Erra completamente ao retirar aos personagens qualquer motivação, qualquer sentimento de auto-determinação, como se fossem meros envelopes de carne, vacas e porcos, à espera de seguir para o matadouro. Como é que se podiam apaixonar se não se sentiam como indivíduos? Isto é tanto mais ridículo quando o desígnio de Hailsham, um colégio especial como ficamos a saber no final através da personagem Madame, tinha por objetivo demonstrar que eles eram tão humanos como os outros. Chegado aqui, poderia até questionar se não teria sido essa a ideia de Ishiguro. Ou seja, partir de um processo de clonagem direcionado apenas para a produção de envelopes de orgãos, mas ausentes das essências do sentir humano. Mas nada disso é abordado, quando se fala nesta escola com boas condições para os clones, o contraponto não é que eles são desprovidos de sentir, mas antes que a sociedade prefere ignorar a sua existência, e por isso não existe como oferecer-lhes melhores condições. Por outro lado, se Ishiguro tivesse ido ao ponto do design da consciência dos clones, seria no mínimo estranho que o único elemento extirpado fosse a auto-determinação. Para quê manter toda a complexidade passional e desejo sexual quando não existia capacidade de reprodução. Ver o sexo como um prazer que se lhe permitia é tão primário, completamente incapaz de compreender o reverso totalmente masoquista. Contudo, nada disto está em discussão nesta obra, por isso não adianta estar aqui a realizar interpretações sobre algo que o autor não se dignou a pensar, ou se o fez, foi incapaz de colocar no texto.
Fechando, o livro lê-se muito bem, leva-nos até à última página sempre com a ânsia por saber mais, por compreender melhor quem são aqueles indivíduos, porque vivem ali e como, mas se nós leitores nos preocupamos, eles não. Se sentimos empatia, percebemos no final que isso é algo ausente no desenho dos personagens. Por outro lado, a escrita está longe de ser de um nível Nobel, já que é pouco estruturada e repetitiva, mais ao nível de um romance Young Adult. Mesmo admitindo que objetiva a mostrar o mundo pelos olhos da personagem, ela já é adulta quando fala e recorda, e não é propriamente uma personagem desconhecedora de cultura literária.
"Sami Blood" apresenta memórias que muitos suecos prefeririam esquecer, capazes de colocar o governo de 1930 ao lado dos seus pares alemães, os nazis, nomeadamente pela suposta cientificidade do processo de inferiorizarão de povos apenas pela geografia, no caso o povo da Lapónia. Somos facilmente levados a pensar no modo como os Europeus trataram os indígenas norte-americanos, sul-americanos, ou australianos, para não falar de África, mas estamos já em 1930. Usar a ciência, toda a metodologia e alicerce do pensamento racional, para excluir o outro, para o inferiorizar e descriminar, é algo absolutamente aterrador.
“Sami Blood” apresenta a Lapónia nos anos 30, a terra das renas e hoje em dia do Pai Natal, pela mão de Elle-Marja, uma jovem inteligente e auto-determinada que é integrada num colégio interno, onde vai viver uma traumática experiência "científica" imposta pelo estado Sueco para catalogar o povo Sami. Contra tudo e todos abandona a escola, abandona a irmã, a família e o seu povo, e assume uma nova identidade sueca para poder emancipar-se.
O racismo não é determinado pela cor, nem sequer por qualquer outra diferença fisiológica, é simplesmente determinado pela não pertença ao grupo dominante, e pela falta de empatia do grupo majoritário para com o minoritário. É algo contra o qual temos de lutar de forma consciente, já que os instintos e emoções que nos regulam tendem a facilmente deixar-se manipular pelos instintos de proteção de grupo e comunidade. Quando até recorrendo ao método científico nos deixamos ludibriar por esses instintos, torna-se vital atuar pro-ativamente em defesa das minorias.
O filme apresenta não só as belíssimas paisagens do norte da Suécia, mas oferece-nos um guião impactante, sem pudores, carregado aos ombros por duas poderosas interpretações, as irmãs Lene Cecilia Sparrok e Mia Sparrok.
Para alguns, o passado de Tara Westover não é tão negro como o pintam as badanas e os blurbs no livro, porque em sua casa havia televisão e telefone, ou havia dinheiro para ela ir para a Universidade, e até para fazer estadias fora dos EUA numa universidade inglesa (ignorando as bolsas a que recorreu). Contudo esses comentários passam ao lado daquilo que este livro verdadeiramente nos conta. Não é o tamanho do buraco de onde a Tara saiu que importa, é a sua jornada e o seu efeito transformador, é a luta contra as crenças da sua família em nome de uma Educação. Porque o livro não se chama "Educated" porque a Tara fez um doutoramento, o título vai ao âmago do livro, tal como a ilustração da capa americana, a Tara foi obrigada a atraiçoar os seus valores essenciais enquanto pessoa, definidos pelos seus criadores e cuidadores, para obter a sua Educação. Porque a sua Educação não foi mera montanha de esforço, foi um caminho de não-retorno.
"Tara Westover tinha 17 anos quando pela primeira vez entrou numa sala de aulas. Nascida numa família de sobrevivencialistas nas montanhas de Idaho, preparou-se para o fim do mundo armazenando pêssegos enlatados em casa e dormindo sempre com a sua "bolsa-pronta-para-o-pior". No verão, ensopava ervas para a mãe, uma parteira e curandeira, e no inverno recuperava ferro-velho para o pai. O pai proibia os hospitais, por isso nunca chegou a ver qualquer médico ou enfermeira (..) Um dia, sem qualquer educação formal, Tara começou a educar-se a si mesma."
Talvez o discurso ao longo do livro, com Tara a apresentar tudo com a maior das normalidades, mesmo quando de pura violência se tratava, ou de lavagem cerebral ou ainda de coação, não tenha facilitado a perceção do que estava em causa. Talvez a excecionalidade das suas capacidades e de alguns dos seus irmãos nos surpreenda e faça levantar o sobrolho. Mas o que me parece ter maior efeito nesta leitura é a dificuldade que temos em compreender o quanto o ser-humano é moldável, e o quanto os pais têm capacidade para modelar e condicionar o erguer das pessoas que são os seus filhos. E que por mais mal tratados que sejam, um filho não renegado, não tem nenhum outro lugar do mundo para onde voltar, para onde se dirigir, a quem seguir. Mais ainda, quando convencido de que o mal-trato é para seu bem, para o proteger e dar-lhe o melhor que o mundo tem para lhe oferecer. Neste sentido, não é por mero acaso que Tara se dedique a John Stuart Mill e cite os conceitos de liberdade positiva e negativa de Isaiah Berlin no livro.
O pai de Tara sofria de claras psicopatias, era uma pessoa que acreditava no fim do mundo e fazia toda a sua família trabalhar para armazenar viveres e recursos para o dia em que o mundo terminasse. O pai de Tara acreditava que a Escola servia apenas para endrominar os cidadãos com ideologia do governo, assim como os hospitais não tratavam, antes envenenavam as pessoas. Os seus filhos foram treinados para acreditar nisso, e acreditar nele. Quando a Tara chegou à Universidade, sem nunca ter andado na escola, nem ter aprendido em casa nada além das escrituras Mormons, ela não sabia o que era o Holocausto ou que a Europa era um continente. O mundo de Tara era a pequena aldeia no interior dos EUA, e em essência o mundo que o seu pai para ela tinha construído. Quando confrontada com outras versões do mundo, tudo aquilo que assumia como realidade colapsou.
Isto levanta a questão complexa do que devemos fazer enquanto comunidades e estado. Aceitar que pais, apenas porque deram à luz, tenham o direito de distorcer as mentes de crianças e destroçar os seus futuros, ou agir previamente para que sejam dadas as mesmas oportunidades a todos os cidadãos? Por outro lado, a intromissão a este nível social é de tal modo intrusiva que coloca em causa a base da liberdade das pessoas, a liberdade de ser diferente, de acreditar em ideais distintos, de não ter de obedecer a padrões económico-financeiros iguais para todos. E acreditando eu tão profundamente nesta liberdade, não consegui deixar de sentir a mágoa do sofrimento de Tara e dos seus irmãos. Porque se os pais têm todo o direito de ser como quiserem, também deveriam ser responsáveis por oferecer a oportunidade aos seus filhos de serem um dia o que quiserem.
"A minha vida era-me narrada por outros. As suas vozes eram categóricas, enfáticas, absolutas. Nunca me ocorrera que a minha voz pudesse ser tão forte como a deles (..) É estranho como damos às pessoas que amamos tanto poder sobre nós." (Pág. 229 - 232)
Por outro lado, esta história é poderosa por demonstrar como a escola básica e secundária não é tudo nas nossas vidas. Porque alguém que apenas tinha lido livros bíblicos e mal sabia fazer contas aos 17 anos, conseguiu trabalhar afincadamente, recuperar 12 anos de "atraso", e em 10 anos não só licenciar-se mas também se doutorar em História (um outro seu irmão, com um pouco de educação formal, seguiu o mesmo caminho que Tara e acabaria a doutorar-se em Engenharia Mecânica). Ou seja, este exemplo vem também colocar o dedo numa ferida que temos discutido vezes sem conta, o valor efetivo da escola. Até que ponto esta não é mesmo o tal resquício da revolução industrial, desenhada para nos manter ocupados e aprender a respeitar a autoridade. Ou seja, até que ponto metade da escola e das disciplinas que oferecemos às crianças e adolescentes, não seriam mais do que suficiente para um dia poderem vingar nas suas áreas. Bem sei que parece mais fácil do que é. Tara nunca teria toda esta motivação e capacidade de esforço e sofrimento, não tivesse passado por uma vida tão dolorosa, e da qual poderia apenas escapar se se esforçasse pela Educação, ao que se junta ainda a filosofia de vida do seu pai, que defendia que cada pessoa é capaz de aprender tudo o que quiser sozinho, melhor do que sendo ensinado por outra pessoa. Num quadro normal, uma criança sem esta estrutura de habituação à negação das suas necessidades e ao esforço, só muito dificilmente aceitaria mais tarde realizar o esforço enorme que seria necessário para realizar um curso universitário.
Quanto à escrita, sendo este um primeiro livro de uma pessoa apenas habituada a escrever em termos académicos, é bastante boa. Rica e diversa, capaz de imprimir ritmo e envolver. A estrutura assente em episódios por capítulos funciona também muito bem, já que muitos dos episódios acabam por ser bastante tensos, plenos de conflito e por isso agarram a nossa atenção. Contudo não é um livro perfeito. Como já disse acima o discurso está de algum modo atenuado, como que se por vezes fosse apresentado por alguém à distância. Por outro lado, existe uma sensação de repetição no que vai acontecendo, e isso deve-se ao facto de se repetir na vida real, mas existem formas de trabalhar a repetição, nomeadamente pela estrutura e aglomeração ou eliminação de eventos, o que nem sempre é realizado aqui, criando em partes alguns ciclos de situações que nos enfadam e até, em certa medida, nos afastam do universo do livro e da autora. Contudo, é um excelente primeiro livro.
"Educated" já foi editado em Portugal, pela Bertrand, como "Uma Educação", numa tradução de Cláudia Brito.
Apresentei ontem uma keynote na conferência 2nd Conference on Pathologies and Dysfunctions of Democracy in Media Context, na Universidade da Beira Interior, dedicada ao fenómeno do deepfake e seus potenciais impactos políticos e culturais do ponto de vista da linguagem audiovisual. Em "Deepfake and the future of Audiovisual Simulacra" começo por traçar um paralelo com as edições fotográficas produzidas pelos regimes soviéticos, avançando depois para o papel da fotografia na criação de sentido, de comunidade e crença. A partir dessa perspetiva apresento o audiovisual como auto-suficiente, dotado de capacidades de simulacro, ou seja, capaz de servir de substituto de realidade, a partir do que traço algumas implicações futuras.
A palestra gerou uma discussão interessante, defrontando-se diferenças entre ficção e realidade, assim como o momento em que entramos em descrença e deixamos de acreditar no que quer que seja, pelo lado do Jorge Palinhos, ou ainda da importância e força das comunidades como "amortecedores sociais" pelo lado do Eduardo Camilo para suster os impactos do deepfake, ou ainda a importância cada vez maior da literacia audiovisual nas escolas pelo Pedro Pinto de Oliveira. O João Correia trouxe para a discussão o mundo cada vez mais constituído por crenças assentes na paisagem audiovisual.
Na semana passada participei no encontro internacional VPCT2018 – A voz dos professores de C&T, para o qual fui convidado para falar das tecnologias que o futuro reserva ao professor de C&T, e dar conta das necessidades atuais e futuras na preparação dos professores. Participei num primeiro momento, 8 novembro, numa mesa redonda com os professores Jaime Carvalho Silva e Niza Costa, onde apresentei um mapeamento das tecnologias que já estão presentes na sala de aula, as do futuro imediato, e as mais futuristas, tudo num único mapa que aqui deixo.
No segundo dia, 9 novembro, apresentei a keynote "Complementaridade Tecnológica e o Fator Humano", na qual procurei refletir sobre o estado atual e próximo em termos tecnológicos, tendo em contas as necessidades de competências dos alunos, e aquilo que poderá fazer a diferença para o professor de C&T na relação com as próximas gerações. Deixo aqui os slides dessa keynote.
Podemos não ligar a prémios, mas quando um livro é reconhecido com um Man Booker em 1981, e passados 12 anos, em 1993, na comemoração dos 25 anos do Booker, é escolhido como o "Booker of Bookers", e passados 27 anos, em 2008, na segunda comemoração especial dos Bookers, dedicada a festejar os 40 anos do prémio, volta a ser escolhido como "The Best of the Booker", teremos poucas razões para duvidar de que algo especial se apresenta nessa obra. E no entanto quando confrontamos estes dados com o nome do autor, Salman Rushdie, surpreende-se uma boa parte da audiência já que o nome é sobejamente conhecido, mas não por este livro, que foi apenas o seu segundo livro, mostrando mais uma vez como o efeito popular diz tão pouco sobre as obras. Aliás, essa falta de reconhecimento popular, também não se espelha na academia, onde "Os Filhos da Meia-Noite" é uma das obras mais estudadas nas universidades anglo-saxónicas. Dito tudo isto, fica de certo modo enquadrado o reconhecimento do livro, e permite-me avançar para a descrição da minha experiência com a obra que foi bastante impressiva.
"Os Filhos da Meia-Noite" (1981) de Salman Rushdie
Confesso que apesar da popularidade do autor, de que conhecia apenas a 'fatwa' ditada pelo seu livro "Os Versículos Satânicos" (1989) mas não tinha lido ainda nada, apanhou-me totalmente de surpresa. Já sabia tratar-se de realismo mágico, um género do qual nem sou particularmente fã, embora o género não dite a forma, sendo na forma que Rushdie mais impressiona, e no entanto quando olhamos para o pináculo do género, "Cem Anos de Solidão" (1967), é também aí a forma algo muito relevante, e "Os Filhos da Meia-Noite" segue e ombreia, colocando Salman Rushdie e Gabriel García Márquez, apesar de em continentes diferentes, no mesmo patamar.
Apesar de colocar Rushdie ao lado de Marquez, existe algo que os separa profundamente, é que Rushdie trabalha diretamente a partir da História, podendo quase dizer-se que o romance é histórico, já que as datas e os principais eventos e personagens da História da Índia são todos reais. Ou seja, o seu realismo mágico ganha um tom distinto, porque não entramos numa realidade completamente paralela, antes somos convidados a atravessar a realidade ao lado de personagens provindos, eles sim, de realidades paralelas. Ou seja, o livro procura retratar o surgimento da Índia enquanto país independente, e fá-lo através dos olhos de uma personagem dotada de capacidades dignas de um romance de ficção-científica (originadas no facto de ter nascido na meia-noite em que se iniciaria a independência da Índia, 15 de agosto de 1947), que vão servindo a comédia e sátira da sociedade indiana em todos os seus quadrantes, da religião à política, passando pelos militares e relação com os ingleses, assim como toda diferença entre classes (não faltam influências portuguesas nomeadamente em nomes de personagens).
Se tudo isto é muito interessante, aquilo que verdadeiramente me impactou nesta obra foi a sua forma escrita. Densa, pode-se dizer muito densa, e no entanto altamente acessível, o que é desde logo um feito. Esteja em modo descritivo, explicativo ou até dissertativo que por vezes assume rasgos de fluxo de consciência, Rushdie nunca se esquece do leitor, mantendo-o sempre dentro do ciclo do que vai sendo discutido (talvez menos no primeiro terço do texto, enquanto não entramos na lógica do autor), para o que recorre a pequenas redundâncias ou chamadas de atenção muito bem posicionadas, que não gera qualquer sensação de repetição mas antes funcionam como recompensa porque confirmam que estamos a entender o que nos está a ser contado.
A densidade torna o processo de leitura lento, com o texto a exigir muita atenção, já que cada parágrafo, cada linha, trazem sempre novos detalhes, o que obriga a uma leitura precisa, que impede o natural processo de leitura em blocos, capacidade que vamos desenvolvendo com a experiência de leitura que nos oferece competências que permitem antecipar o que sucede a cada palavra ou a cada conjunto de palavras, e por vezes até frases completas, bastando uma rápida sondagem da linha de texto para apreender o seu sentido. Rushdie consegue isto muito graças ao facto de não ter barreiras entre ficção e fantasia, o que lhe permite discorrer de modo, por vezes completamente alucinatório, explodindo em diversas perspectivas pequenos eventos, com descrições espaço-temporais ricas ao que junta personagens, que parecendo estereotipadas, são elas próprias também imensamente ricas, plenas de camadas contraditórias entre desejos e anseios.
"Procurava ela nesse tempo afastar da lembrança a aventura do hipódromo; mas não conseguia escapar à sensação de pecado que os cozinhados da mãe nela tinham desenvolvido; e não lhe era difícil ver nos calos uma espécie de castigo. Não só por em tempos ter penetrado no templo de Mahalaxmi, mas também pela impossibilidade de libertar o marido dos certificados alcoólicos cor-de-rosa; e pelos modos rudes e pouco femininos de Macaca de Cobre; e pelo nariz descomunal do filho. Quando hoje penso nela, tenho a impressão de que à volta da sua cabeça começou a gerar-se uma bruma de culpabilidade; a sua pele escura segregava uma névoa negra que lhe toldava o olhar." (p.150) pequeno excerto exemplificativo da escrita de Rushdie
"Os Filhos da Meia-Noite" merece todo o estudo que lhe tem sido dedicado. Parei várias vezes a leitura para enquanto levantava os olhos me deslumbrar interiormente com o virtuosismo de Rushdie, com a forma como conseguia entrosar tantos eventos, ideias e sentimentos em tão poucas linhas, e como isso nunca era precedido ou seguido de momentos mais lentos ou menos densos, como se Rushdie tivesse uma necessidade de contar e contar mais e mais, e fosse possuidor de um poço infinito de ações e desenvolvimentos para relatar todo o mundo que passava pela sua imaginação. De certo modo, e apesar da História da Índia me ser algo distante, sinto que Rushdie plasmou o pulsar indiano nesta particular forma, nomeadamente quando olhamos à imensidade do país, com mais de mil milhões de cidadãos e a sua infinitude de deuses, que acaba proporcionando dificuldades à gestão do país e claro algum sentimento de caos contínuo. Por tudo isto, e se acessível, não sendo uma obra fácil é uma experiência verdadeiramente singular.