agosto 28, 2018

A primeira história do Cânone

O “Épico de Gilgamesh” data de, aproximadamente, 2000 A.C., perfazendo 4000 anos de história. Terá surgido aquando do fim da primeira civilização conhecida, a Suméria, e o seu desaparecimento pela unificação com o Império Acádio, situado no sul da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, lugar que é hoje conhecido como sul do Iraque. As primeiras pinturas realizadas em cavernas tal como as primeiras esculturas, ambas na Europa, datam de há sensivelmente 40 mil anos. A proto-escrita surgiu há 10 mil anos, mas a primeira língua escrita, o cuneiforme, surgiu apenas há 5 mil anos, ainda no auge da Suméria. De todos estes dados é impossível não extrair duas conclusões que formam uma: a complexidade da literatura só foi possível de se desenvolver com a estabilização da civilização, e assim temos que a literatura não é fruto de cada um de nós, seres individuais, a sua complexa e intrincada estrutura requer, exige, a presença de uma rede intensa de interação social.

Nas esculturas temos, potencialmente, Gilgamesh agarrando um leão, e o Grande Touro do Céu. Relevos retirados de um palácio do Iraque, do século VIII, agora presentes no Louvre.

Se as histórias elaboradas, na forma escrita, requerem um berço humano dotado de intensa ação cultural, o seu objeto acaba sendo ele próprio a intensificação desse berço e dessa ação. Isto foi compreendido desde cedo por governadores e imperadores, e o do Império de Acádio terá sido o primeiro com essa visão. O recurso à figura de Gilgamesh (um rei da dinastia suméria, 2800-2600 A.C.) terá surgido pelo facto de este ter sido, após a sua morte, deificado, o que conduziu à criação de odes e poemas que foram sendo aumentados no tempo. Assim, terá surgido este primeiro poema épico da nossa história, que junta vários poemas anteriores numa história maior, mais elaborada e completa, capaz de dar conta de feitos de um dos grandes da história.

Capa da edição da Vega, traduzida por Pedro Tamen a partir da edição de NK Sandars de 1960.

Na história, e mais ainda com este recuo é impossível ter certezas, muita da história que se faz é também ela própria literatura, ficcionamento do pouco que se conhece. Digo isto porque os sumérios não estavam sós, pouco distantes destes tínhamos os egípcios que reinaram junto do rio Nilo e criaram os seus próprios impérios imensamente poderosos. Não teriam construído pirâmides daquela grandiosidade sem grande poder sobre os milhares de pessoas necessárias à sua construção. Por isso é de estranhar não encontrarmos no cânone literário qualquer obra proveniente do Antigo Egipto. Do que pude explorar, e imaginando e ficcionando, fico com a ideia que se terão ficado pelas odes e cantos, e não terão conseguido ir além, pela razão de que não se conseguiram desprender da sua mitologia. Contar histórias requer descer ao nível do humano, definir um igual ao leitor, para que ele possa colocar-se no lugar e seguir atrás. Ora os egípcios, ao contrário dos sumérios, tratavam os seus Faraós já como deuses, e tudo o que escreviam ia no sentido da descrição de um mundo imaginário, de um além pleno de deidades. Repare-se como os gregos ultrapassaram este problema colocando os dois universos em paralelo, os deuses de um lado e os humanos do outro, tal como depois fizeram também os romanos.

A “História de Sinuhe” (2000 A.C.) é um dos textos egípcios mais antigos com estrutura narrativa, e o mais interessante da sua leitura acaba sendo a confrontação com o “Épico de Gilgamesh”, tendo surgido ambos na mesma época. Enquanto o poema egípcio se perde em mundos imaginários com homens deuses, o épico sumério dá-nos um homem, que apesar de falar com os deuses, padece de sofrimentos profundamente humanos: a amizade e o amor, o medo e a coragem, a mortalidade e a velhice, o sentido da vida. Muitos destes temas foram trabalhados, seguindo estruturas muito próximas, mais tarde por Homero em a Odisseia (ver "The East Face of Helicon", p.402), mas não só, todos estes temas continuam sendo atuais, porque estes temas são a essência da condição humana, formando a essência daquilo que a literatura representa.
“Não existe permanência. Será que construímos uma casa para que fique de pé para sempre, ou selamos um contrato para que valha por toda a eternidade? Acaso os irmãos que dividem uma herança esperam mantê-la eternamente, ou o período de cheia do rio dura para sempre? Só a ninfa da libélula é que se despe da larva e vê o sol em toda a sua glória. Desde os dias antigos, não existe permanência.” (Gilgamesh, p.61)
Por isso não admira que o livro surja como basilar no cânone, não por ser meramente a primeira história elaborada escrita, mas porque o seu conteúdo é basilar na formação daquilo em que nos tornámos quando decidimos viver em sociedades alargadas e criar civilizações capazes de transformar todo o planeta, para o melhor (ex. criação da arte e ciência, da cultura, aprendizagem e curiosidade contínuas, luta pela inclusão e diversidade de todas as raças e animais) e para o pior (ex. armas nucleares, alterações climáticas, etc.).

Voltando à relevância da obra para o império em que surgiu, devo dizer que os impérios se afirmam pelas armas, dobram pela força, mas não convertem sem histórias (o caso do Antigo Egipto apresenta particularidades geográficas — rio de um lado e deserto do outro — que o isolaram do resto do mundo durante milénios, confinando a sua realidade e imaginário e potencialmente a sua capacidade de contar histórias, como parece ter acontecido com as civilizações antigas do continente americano). É mais fácil percepcionar isto na religião cristã que está ainda muito presente à nossa volta, que não necessita, hoje, de armas para reinar, basta-lhe as histórias (aliás, atente-se no facto da história do dilúvio e da Arca de Noé aparecer em Gilgamesh, o que gerou imensa tensão aquando da sua descoberta, por colocar em questão os textos religiosos que davam essa mesma história com base em outros personagens, supostamente reais). Mas se pensarmos no maior império atual, os EUA, percebemos como o seu reinado não se afirma apenas por via de armas nucleares e tecnologia de ponta. Não tendo qualquer nova religião para oferecer, socorre-se do cinema para vender e inculcar os seus princípios e moral a uma escala global, a sua forma de viver, o “american way” tornou-se no desejado modelo e objetivo de todo o planeta. As armas servem apenas para vergar os políticos que tentem fazer face ao domínio, mas são as histórias que agregam e convertem, criam a crença e abrem caminho a manutenção dos impérios. E isto nada tem de inovador, como podemos ler desde “Gilgamesh” a qualquer outro Poema Épico, incluindo o de Camões.

Parte da Tábua V, encontrada apenas em 2011 [fonte]

Sobre as versões existentes, como acontece com muitas destas obras clássicas, os registos existentes estão incompletos, tendo sido encontradas variantes em vários locais ao longo de milénios, o que torna difícil conhecer a sua forma original. Por curiosidade, um dos mais recentes achados data de 2011, pelo Museu Sulaymaniyah do Iraque, de uma parte da Tábua V que permitiu alargar um dos principais episódios do Épico. Assim, e olhando ao panorama nacional apenas, temos duas versões muito interessantes, a primeira da editora Veja, traduzida pela excelência poética de Pedro Tamen, sem notas e baseada numa versão inglesa e em prosa de NK. Sandars, de 1960. A segunda, editada em 2017 pela Assírio & Alvim, traduzida diretamente dos textos originais por Francisco Luís Parreira, em verso e com notas. Parreira é doutorado em Ciências da Comunicação, o que não faz deste um especialista em Literatura ou História (tal como eu não sou). Se faço este reparo não é porque ache condição absoluta ser-se especialista nestas áreas para traduzir uma obra, mas deveria contribuir para uma maior humildade, o que não acontece no modo como na entrevista ao Público vai criticando as outras traduções, nomeadamente o modo como ridiculariza a tradução de Sandars, que apesar de não ter sido uma académica com afiliação, fez imenso trabalho de campo e publicou academicamente. Já não me devia surpreender com nada disto, uma vez que vi acontecer exatamente o mesmo com o clássico “As Mil e uma Noites”, em que o nosso mais recente tradutor em entrevista se assume a uma tal altura perante a obra que mais parece o seu autor. Dito isto, quero ler a tradução de Francisco Luís Parreira, não porque considero má a tradução de Sandars/Tamen, mas porque a sua leitura foi suficientemente boa para me fazer ir à procura de mais. O mesmo digo da tradução de Hugo Maia das “Mil e Uma Noites”, depois de ter lido a de Antoine Galland e ter gostado, irei ler a sua assim que a E-Primatur editar o segundo volume.

agosto 18, 2018

As 1001 histórias

O livro “As Mil e Uma Noites” é hoje parte do imaginário da humanidade. É uma das poucas obras exteriores ao ocidente, geograficamente, a ter neste penetrado e assumido estatuto de clássico e de texto canónico. Pela sua própria génese está ele próprio para além da definição geográfica, já que as histórias que o constituem provêm de vários países e continentes, desde a China à Índia, passando por África, focando-se maioritariamente em todo o Médio Oriente (Arábia e Pérsia), ao que se juntou, na reta final, também a mão europeia. Tendo em conta esta dimensão geográfica, facilmente se depreende que não foi uma obra criada por um autor único, daí que esta se considere fruto de autor anónimo. Como tal também não foi escrita num único ano, nem século, convencionou-se que a primeira versão terá surgido no século IX, mas desde então foram surgindo, em cada século, versões diferentes com acrescentos, alterações e variações, até à chegada da obra à Europa no século XVIII, sem que ainda hoje se possa definir qual a versão original e definitiva. Dito tudo isto, percebe-se também que um dos maiores atributos académicos deste texto assenta exatamente na sua arqueologia, tentar perceber a origem dos vários contos tanto no tempo como na proveniência geográfica, assim como na composição do próprio livro (serão mesmo 1001 contos? teriam uma ordem, qual? quais partiram da oralidade e quais da escrita?). Para todas estas questões faltam respostas conclusivas, o que desde logo abre todo um imenso cenário de investigação possível. Para a maior parte de nós, mais interessados no livro e suas histórias, do que na história arqueológica, não precisamos de o ler para o conhecer já que desde crianças somos presenteados com o seu universo — desde os livros infantis, à animação, cinema, teatro e jogos — mas, e por causa disto mesmo, a sua leitura acaba sendo imensamente prazerosa graças a toda essa nostalgia. É inevitável sentir alguns arrepios durante a leitura, pelo modo como vamos desenvolvendo associações entre o que lemos e as experiências passadas vividas com cada história, desde Ali Baba aos tapetes voadores, passando pelos sultões, génios e concubinas, aos mágicos poderes, e animais fantásticos em terras distantes e exóticas.

Edição de "As 1001 Noites" pelo Expresso e Alêtheia de 2017

No campo da análise estritamente literária, o livro oferece pouco mais além do seu interesse arqueológico e da popularidade global conquistada. O seu lado fantástico serve bem as histórias de aventuras e policiais, assim como o lado romance serve o amor, intriga e vingança, e nalgumas versões o erotismo. O texto em si constitui-se de imensa repetição, tanto de temas, como conflitos, personagens, cenários e claro estruturas narrativas. A exceção surge na instigante macroestrutura da obra, sempre citada e admirada como referência da literatura e que se resume no conceito de "frame story" ("história moldura"). Podemos então dizer que o maior atributo literário de " As Mil e Uma Noites" é a sua "história moldura", que acaba espelhando a nossa própria leitura, e que se define assim:
Um rei árabe, depois de traído pela mulher, inicia uma vingança que consiste em todos os dias desflorar uma virgem e no dia seguinte mandá-la decapitar. A chacina produz efeitos devastadores na região até que surge Xerazade que se propõe terminar com a mesma, a sua arma é: contar histórias. Assim, Xerazade casa-se com o Rei e durante toda a primeira noite conta-lhe uma história, chegando ao dealbar, não termina a história porque, diz ela, não tem mais tempo, deixando a conclusão pendurada (criando aquilo que hoje definimos como gancho narrativo ou "cliffhanger"), o Rei claro, adia a sua morte, para poder ouvir o final na noite seguinte, mas na noite seguinte Xerazade repete a estratégia, já que  inteligentemente vai contando as histórias por meio de elos que abre e fecha em função do controlo que pretende da atenção do rei. 

Parecendo simples, a moldura ganha enorme significado literário, pelo poder que metaforicamente concede à literatura, nomeadamente ao contar de histórias. No campo do desejo e prazer, temos o ouvir de histórias colocado ao nível dos prazeres da carne, com o Rei a preferir continuar a ouvir histórias em vez de consumar os prazeres da carne com virgens do seu reino. No campo político, as histórias assumem a capacidade de apaziguar a ira e a sede de vingança. Este último ponto é talvez o mais relevante, e olhando à evolução da sociedade, nomeadamente ao surgimento de novos media ao longo do último século, que têm servido para aumentar exponencialmente o contar de histórias, fazendo com que chegue a todo o lado e em doses maciças (livros, cinema, televisão, videojogos, etc.), e cruzando esta evolução com a contínua diminuição da violência entre humanos, como fica patente no trabalho de Steven Pinker, podemos assumir esta receita prescrita pelas “As Mil e Uma Noites” como válida. Deste modo podemos assumir as " As Mil e Uma Noites " como homenagem, diria mesmo, monumento literário ao contar de histórias.


Em termos de manutenção do interesse do leitor, as "As Mil e Uma Noites" presenteia-nos com todos os tipos de artifícios narrativos, principalmente aqueles que reconhecemos como mais ligados aos géneros de aventura, policial e fantástico. Desde os ganchos, já acima referidos, ao célebre "whodunit" ("who done it", ou seja, quem foi, ou quem matou), passando pelo hitchcokiano "MacGuffin" (objetos perseguidos pelos protagonistas sem grandes explicações, e muitas vezes irrelevantes para a trama), todos ao serviço do contar de histórias, da gestão do interesse e curiosidade dos leitores. Diga-se que são aqui usados de modo hábil, já que não raras vezes parei a olhar para as páginas, dizendo para mim, "que coisa estrambólica", e, no entanto, a curiosidade de saber o que se seguiria, mantinha-me ali preso ao virar de página. Estruturalmente a forma predominante é a dos ciclos de histórias dentro de histórias, criando matrioskas narrativas, tal como a própria história-moldura. Assumimos o lugar do Rei, ouvintes, seguindo atrás do contínuo debitar de histórias de Xerazade, com a nossa curiosidade sempre em busca de saciedade, que como “As 1001 noites” faz questão de demonstrar é insaciável, e por mais redundantes e repetitivas que sejam as narrativas acabam servindo o desejo intrínseco ao ser humano de querer conhecer e saber infinitamente mais.


Esta moldura-história é relevante, não pela originalidade, porque até já a "Odisseia" usava a abordagem, mas porque serve de cola a contos altamente díspares, ao contrário dos quadros da "Odisseia" que estão organizados para um fim, e assim mantém o nosso interesse sempre fresco já que de cada vez que uma história começa a perder-nos, entra Xerazade para nos recordar que está ali atenta ao nosso interesse. Não se espere, contudo, um diálogo profuso de Xerazade com o rei, ou melhor connosco, leitores, não esqueçamos que esta é uma obra fruto de vários autores e de vários séculos. Pedir-lhe essa força de unificação de enredo está para além das suas possibilidades. Por outro lado, também não se enalteça, como não raramente vemos fazer, as suas propriedades e originalidades, como já dissemos, milhares de anos antes tivemos "Gilgamesh", "Ilíada", “Odisseia”, “Eneida”, e tantas e tantas peças de teatro.


Quanto a versões, é difícil aconselhar. Passei os olhos por várias nacionais, brasileiras e inglesas, mas de tanta diferença entre elas acabei concluindo que cada tradutor opta por criar a sua. A mais referenciada, porque a primeira a dar-nos a conhecer o texto, é a de Antoine Galland, traduzida para quase todas as línguas, e foi essa que eu li na edição publicada pelo jornal Expresso com a Editora Alêtheia de 2017. É uma edição mais curta, com o texto imensamente limado, nomeadamente no campo do erotismo e violência, e por isso acusada hoje de faltar à verdade do texto original. Embora do que pude ler em edições, ditas traduzidas diretamente do Árabe sem arestas limadas, não vi propriamente nada de revolucionário. Em Portugal a E-Primatur publicou no ano passado o primeiro volume do que parece ser a primeira tradução nacional diretamente do árabe, por Hugo Maia. Li algumas entrevistas com o tradutor, e não gostei da arrogância no modo como aponta o dedo às outras edições, esquecendo que se “As Mil e Uma Noites” são o que são devem-no a todas essas múltiplas versões e não ao texto original. Porque o texto, dito original, está longe de poder definir-se como coeso, uno e fechado. Foram múltiplos os intervenientes no texto durante séculos, por isso nunca poderemos ter uma versão definitiva. Vou mesmo ao ponto de dizer que os contos de "Ali Baba e os 40 Ladrões" e "Aladino", de que parecem existir provas de terem sido acrescentados apenas no século XVIII por Galland, devam ser vistos como parte da tapeçaria que constitui a história da construção da obra.


“As Mil e Uma Noites” deve ser visto como conjunto de histórias que abre portas para um imaginário fantástico de puro divertimento, sem preocupações de aprofundamento moral ou outro, e por isso aconselhável a quem busca o escapismo, nomeadamente os mais novos (na versão menos crua). Ao contrário do que fui lendo em algumas resenhas, espero que não tentem ver nesta obra uma janela para a cultura do médio-oriente, pelo menos não a atual. Sim, existem proximidades, mas claramente ampliadas pela sede de exotismo, ponhamos muito sal na fervura, assim como devemos pedir aos nossos amigos persas e árabes que façam o mesmo quando lerem o nosso D. Quixote ou Robin dos Bosques.


Para fechar, deixo uma lista das histórias que me mereceram maior interesse. Como disse, li uma versão mais resumida, já que existem versões bastante maiores, mas nem todas as histórias são tão interessantes, muitas delas são bastante inconsequentes, outras até incoerentes, por isso aqui fica uma seleção daquilo que dá conta do espírito da obra e das suas maiores conquistas:



1 - Xarir e Xerazade
A história-moldura, responsável pelo lançar de todas as restantes histórias.

2 - História das Três Maçãs
Uma história de tipo policial, em que a trama é muito bem urdida, fazendo-nos sentir a dor dos dilemas.

3 - O Vizir e o Sábio Duban
A história que deu a ideia de colocar veneno no virar de páginas a Umberto Eco para o "O Nome da Rosa".

4 - O Pescador e o Génio
A fantasia dos reinos invisíveis e dos peixes multicolores.

5 - O Sonhador
A provável génese da parábola de troca de papéis entre o rico e o pobre.

6 – Os Três Príncipes e a Princesa Nouronnihar
A história em que surgiu o tapete voador e o telescópio que permite ver o que se desejar mentalmente.

7 - Ali Baba e os Quarenta Ladrões
Ainda que se possa dizer que não é pertença do livro, que contenha inovações literárias fora de época, é uma das histórias mais emblemáticas do lote, a ponto de as suas palavras mágicas “Abre-te Sésamo” se ter tornado sinónimo de todo o livro.

8 – As Sete Viagens de Sinbad
Ciclos de histórias sobre as aventuras de um marinheiro destemido, a fazer lembrar, embora sem a mesma profundidade, as aventuras de Gulliver.

9 – A Maravilhosa Lâmpada de Aladino
A história em que o génio e sua lâmpada são os verdadeiros personagens principais.

10 – O Terceiro Dervixe
Os lugares mágicos e as portas que nunca devemos abrir.

agosto 12, 2018

"As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" de Michael Chabon

Pode definir-se como romance histórico, ou melhor, pretensamente histórico já que apenas o pano de fundo dos eventos e geografia são reais, a trama é fruto da invenção de Michael Chabon. Não segue a linha dos atuais documentários ficcionados (mockumentaries) já que o objetivo não é satírico, mas continua a ser histórico, mais como obra criativa de homenagem, seguindo explicitamente o exemplo de Orson Welles com "Citizen Kane" (1941). Enquanto Welles usa a vida real de William Randolph Hearst para dar corpo ao seu protagonista Charles Foster Kane, Chabon usa a vida de Jack Kirby para criar Joe Kavalier. Kirby foi um dos principais mentores da banda desenhada de super-heróis do século passado, um dos maiores expoentes da Era Dourada, entre 1930 e 1950, criador de vários super-heróis que ainda hoje pululam o imaginário global — Quarteto Fantástico, Homem de Ferro, Thor, Hulk, X-Men, Os Vingadores, Doutor Estranho, Pantera Negra, Feiticeira Escarlate, Homem-Formiga, Nick Fury.  Chabon não se ficaria pela primeira camada, a da pessoa do criador, optando por oferecer-lhe a criação de um super-herói que nomeia de Escapista, sendo também este decalcado da realidade e criação de Kirby, o Capitão América. Para quem conhece as origens do Capitão América facilmente depreenderá o que move o Escapista e acaba assim a suportar a introdução dos efeitos e tragédias da Segunda Guerra Mundial nesta obra.

A cena amplamente descrita como o nº1 da revista "O Escapista", não é mais do que a cena do nº1 da revista "Capitão América" de 1941.

A partir deste primeiro parágrafo pode-se compreender desde já, não só o modelo utilizado, mas também a complexidade de inter-relações existentes na obra de Chabon que obriga a uma leitura informada, ou seja com um bom lastro de contexto presente para se poder fruir completamente a obra. Desengane-se aquele que atraído pelos super-heróis espera encontrar aqui uma leitura fácil, rápida ou superficial. Ao longo das quase 700 páginas somos continuamente atirados para um mundo de referências reais: à BD, à sua linguagem expressiva, aos seus temas e seus problemas de afirmação enquanto arte; aos super-heróis e seus criadores, as suas editoras e editores; assim como ao tecido social americano dos anos 30-50 do século XX feito de discriminação da mulher, do desprezo pelo trabalho criativo, ou da enorme violência moral e física contra a homossexualidade; e ainda aos efeitos devastadores da Segunda Guerra Mundial sobre a comunidade judaica na Europa, centrado em Praga, com Portugal a servir de porta de saída para muitos refugiados, e os EUA a declinarem a aceitação desses refugiados. A tudo isto podemos ainda acrescentar personagens reais que vão passeando ao fundo e por vezes dialogando com os nossos personagens tais como Salvador Dali, Orson Welles, Eleanor Roosevelt, Stan Lee, Will Eisner, ou Fredric Wertham (autor do livro, "Seduction of the Innocent" (1954), responsável pela polémica social à volta da violência na BD).

O Empire State Building em Nova Iorque é o principal cenário da história, e motivo da capa da edição americana.

A capa portuguesa, assim como o título usado, são muito maus, não ajudando em nada à promoção do mesmo. Aliás não admira que o livro, com o número considerável de páginas que tem, esteja à venda por um valor tão baixo.

Na contra-capa do livro fala-se em Nabokov, o que me parece completamente despropositado, Chabon enreda-se muito, usa metáforas nem sempre muito conseguidas, nomeadamente no campo do olfacto, e apesar de alguma crítica catalogar a estrutura como pós-moderna, considero-a antes frágil e pouco suportada pelas intenções do autor. Mas se faço estes reparos é mais pelos prémios e elogios recebidos que poderiam passar a ideia de perfeição, já que na verdade a escrita apresenta um nível bastante elevado de elaboração e maturação. Quanto a rotularem o livro no género Épico não me choca. A história atravessa várias décadas, permitindo-nos acompanhar a vida de dois grandes criadores de banda desenhada, focando-se na arte mas também nas suas vidas, e no modo como as suas próprias tragédias alimentaram a sua arte. O romance atravessa uma parte importante da história da 9ª arte, assim como da história da América e da Europa, é impossível ficar-lhe indiferente, e não sentir que uma parte do que aqui se relata é História de que todos somos feitos. Claro que aqueles que, como eu, iniciaram a sua paixão pela leitura com muitos dos personagens imaginários aqui referenciados sentirão mais de perto, mas como disse antes o livro é muito mais do que BD, é uma resenha histórica de um período da nossa história que teve um lado destrutivo e mau, situado na Europa, que acabou por contribuir para um outro lado bom e construtivo na América.

Este, como muitos outros livros vêm colocar o dedo numa ferida que queremos esquecer mas que não podemos. A Segunda Guerra não foi apenas estúpida por todas as pessoas que matou e violentou, mas também porque acabou demonstrando aos seus promotores o quão errados estavam, já que a fuga dos judeus para os EUA contribuiu fortemente para estes se tornarem na super-potência que hoje ainda são. Foi a massa cinzenta de excelência de judeus que habitavam a Europa e daqui conseguiram escapar que fez com que os EUA se tornassem grandes criadores de banda-desenhada (Jerry Siegel e Joe Shuster, Jack Kirby e Joe Simon, Will Eisner, Stan Lee) assim como de cinema, de ciência e tecnologia. Aliás, isto mesmo seria reconhecido por Churchill quando depois de receber Einstein como refugiado em Inglaterra acedeu ao seu pedido de trazer mais cientistas judeus da Alemanha para Inglaterra. Ironicamente, Churchill não conseguiria aprovar a naturalização de Einstein no parlamento inglês, tendo este acabado por rumar aos EUA, país em que finalmente se naturalizaria após ter renunciado a cidadania alemã.

Na senda ainda do reconhecimento destas capacidades empreendedoras das comunidades, a leitura desta obra permite-nos aceder a um dos momentos de puro empreendimento tão tipicamente impulsionado pelas lógicas mercantis americanas. Repare-se como ao contrário da Europa, a sociedade não se moveria pela qualidade da BD, mas pelo seu lado comercial, pelo interesse e popularidade das obras criadas. Já antes, no início do século XX, tinha sido assim com a indústria do cinema, e a diferença entre a criação americana e europeia que se denota até aos dias de hoje. E repare-se como este cenário se volta a repetir nos anos 1970 com a indústria dos videojogos. Aliás, se Chabon estabelece várias relações entre o Cinema e a BD, eu não deixei de estabelecer imensas com os Videojogos ao longo de toda a leitura. Sobre isto deixo uma discussão imensamente pertinente sobre a linguagem e aceitação social da BD que hoje se aplicaria de igual modo aos videojogos:
“It was that Citizen Kane represented, more than any other movie Joe had ever seen, the total blending of narration and image that was—didn't Sammy see it?—the fundamental principle of comic book storytelling, and the irreducible nut of their partnership. Without the witty, potent dialogue and the puzzling shape of the story, the movie would have been merely an American version of the kind of brooding, shadow-filled Ufa-style expressionist stuff that Joe had grown up watching in Prague. Without the brooding shadows and bold adventurings of the camera, without the theatrical lighting and queasy angles, it would have been merely a clever movie about a rich bastard. It was more, much more, than any movie really needed to be. In this one crucial regard—its inextricable braiding of image and narrative— Citizen Kane was like a comic book. 
"I don't know, Joe," Sammy said. "I'd like to think we could do something like that. But come on. This is just, I mean, we're talking about comic books." 
"Why do you look at it that way, Sammy?" Rosa said. "No medium is inherently better than any other." Belief in this dictum was almost a requirement for residence in her father's house. “It's all in what you do with it.” 
[Não tendo acesso ao texto português em formato digital deixo o excerto em inglês]
Para fechar, uma leitura mais abstraída e focada no conteúdo. Chabon opta por enlaçar o universo da BD com o do ilusionismo, nomeadamente com Houdini e as suas artes do escapismo. São ainda hoje memoráveis as proezas de Houdini a escapar-se de correntes e caixas debaixo de água. O protagonista aqui é aficionado da arte, e o super-herói criado por ele faz homenagem ao escapismo. Ora a BD, especialmente de super-heróis, assim como toda a fantasia e ficção-científica, são comumente conotadas com o escapismo, neste caso o mental e não físico. Ler certos géneros de histórias podem conduzir a um certo escapismo da realidade, o que pode ser visto como crítico e o livro fala dessa preocupação por parte da sociedade, por poder representar uma tentativa de fugir ao seu quotidiano, de se furtar às suas responsabilidades sociais. Do meu ponto de vista parece-me que a relação com Houdini e o seu lado do espetáculo é um tanto forçada, no entanto considero que o modo como Chabon utiliza o escapismo ilusionista com os seus personagens funciona muito bem. Kavalier & Clay vivem toda uma vida em fuga, tanto física como mental, e desse modo acabam sendo ambos personagens muito mais ricas do que Houdini.

Em 2004 Brian K. Vaughan acabaria por criar uma série de BD para a Dark Horse, baseada no livro de Chabon, dando assim pela primeira vez"vida" ao super-herói Escapista.

agosto 11, 2018

Scott McCloud, professor ou criador

"The Sculptor" (2015) é a primeira grande obra de ficção de Scott McCloud, que apesar de ter tido uma breve passagem pela ficção nos anos 1980 se tornou, ao longo das últimas três décadas, no mais respeitado teórico do meio de banda desenhada (BD). Autor de três obras obrigatórias para quem quer que pretenda estudar o meio — "Understanding Comics" (1993), "Reinventing Comics" (2000), e "Making Comics" (2006) —, palestrante nas mais reputadas empresas internacionais, desde a TED Global à Google e Pixar, assim como universidades, do MIT a Stanford, ganhador de imensos prémios por todo o seu trabalho de desconstrução da BD. McCloud é não apenas reconhecido pelo seu trabalho, mas também por tudo o que deu à banda desenhada no modo como tem contribuído para a afirmação da mesma fora do seu próprio nicho. Por tudo isto, uma obra sua de ficção não poderia deixar de ser recebida com gigantescas expectativas. O que é que o maior teórico do meio teria para nos oferecer? Demorei a lê-lo, apesar de o ter comprado quando saiu, muito porque percebi que as expectativas estavam demasiado altas, e as primeiras resenhas davam conta do gorar das mesmas. Li-o agora, passados três anos e já sem expectativas, posso dizer que cumpre, mas talvez porque me tenha interessado mais em compreender a diferença entre o professor e o criador.

Os três livros de não-ficção de Scott McCloud

Sobre o livro em si, apenas breves notas. No aspeto formal, McCloud nada arrisca, cumpre com o que de mais conservador podemos ter no meio, o que é em parte uma das grandes decepções da obra, tendo em conta tudo o que sempre defendeu quanto à renovação da BD. No campo das ideias McCloud não surpreende, mas leva-nos consigo, dá-nos a mão e deixa-nos ver o seu mundo, colocando no papel muito de si, do seu íntimo e do seu mundo. Os seus desaires, ânsias, desejos, medos e vertigens estão ali bem plasmados. Será fácil aos criadores, de qualquer arte, reverem-se no personagem principal, e o mais interessante é que apesar de nos apresentar o drama do criador artístico, McCloud foge totalmente ao cânone dos seus objetivos, algo que se liga claramente à sua concepção do mundo, e se podendo parecer vazio em certos momentos, acaba sendo o mais brilhante e relevante de todo o livro pela sua originalidade. E no entanto, apesar de conseguir criar algo particularmente interessante, não deixa de apresentar um trabalho com imensas fragilidades, nomeadamente no campo do storytelling, mesmo seguindo uma fórmula conservadora para o fazer, o que acaba sendo uma decepção.

Capa de "The Sculptor" (2015)

George Bernard Shaw cunhou uma das frases mais célebres da história sobre os teóricos e professores, "Quem pode, faz. Quem não pode, ensina." (1903), e que acabou passando a provérbio sob a forma ligeiramente adulterada: "Quem sabe, faz. Quem não sabe, ensina.". Esta visão da realidade poderia ser aqui facilmente evocada, já que McCloud apesar de reconhecido como um grande professor de BD, parece não conseguir depois na prática dar asas àquilo que define e defende quando passa ao ato de criar. Será então McCloud, e a grande maioria dos professores, como eu, meros frustrados das profissões de que falam? Mas como é que alguém que se torna respeitado mundialmente pela forma como desconstrói uma arte pode "não poder" ou "não saber" dessa arte? 

A resposta encontrei-a num outro provérbio, de autor anónimo, apesar de erradamente surgir na net associado a Aristóteles: "Quem sabe, faz. Quem compreende, ensina.". E é exatamente isto, é absolutamente isto que temos em McCloud, alguém que compreende o meio como nenhum outro, não faz, antes ensina a fazer. Claro que isto não resolve a questão, porque se compreende como pode não saber?

Para responder a isto tenho de ir um outro conceito, o do "conhecimento tácito", definido por Michael Polanyi em 1958, que nos diz que "podemos saber mais do que aquilo que podemos dizer", e desse modo defende que existe muito conhecimento que não pode ser descrito, ou ensinado de forma alternativa à mímica, experiência e tentativa e erro. Os exemplos clássicos são o andar de bicicleta, tocar piano ou simplesmente martelar um prego. Estes casos envolvem competências que não podem ser aprendidas através da escrita ou qualquer meio que não seja a experiência concreta das suas ações. O processo de aprendizagem decorre por meio da incorporação somática, e uma vez apreendido não se torna por isso mais fácil de explicar.

Painel de Scott McCloud de "Understanding Comics" sobre a abstração da realidade.

E é isto que aqui temos. Na verdade não é possível explicar ou ensinar, de forma explícita, o processo criativo por detrás de qualquer arte. O que se pode fazer é abrir janelas para esse processo, nomeadamente desconstruir o processo, as suas perspectivas, os conceitos e objetivos, o resto advém pelo fazer, imitando e experimentando. Não estou a dizer que não se podem treinar pessoas, claro que podem, é isso que fazem os professores de instrumento musical, os treinadores de qualquer desporto, ou aquilo que os antigos mestres faziam nas guildas de cada profissão. Mas estes não fazem discursos sobre as qualidades do desporto ou instrumento, estes mostram como fazer, e atuam modelando o fazer com indicações diretas sobre a ação, em busca do que consideram o caminho a seguir. Tudo isto é limitado à ação, mas no mundo complexo de hoje não chega agir, a não ser que se seja uma estrela incontestável, é preciso compreender a ação e a razão da mesma, é preciso elaborar sobre a mesma, é preciso competências reflexivas sobre o meio em que se trabalha. Um artista não vive do que faz, vive do que consegue vender. Por isso precisa de aprender mais do que a simplesmente fazer, precisa de se compreender a si e aos outros, e para isso precisa de compreender aquilo que faz.

Página de "Understanding Comics" em que McCloud explica a economia do storytelling.

Ora para compreender aquilo que se faz não chega ter treinadores, são precisos professores, pessoas capazes de desconstruir a ação em blocos de informação e de exprimi-los num modo que seja entendida pelos outros. Não é alguém excelente a fazer, para o ser teria de dedicar todo o tempo a fazer em vez de passar todo o tempo a tentar compreender. No fundo, o professor tem de ser alguém excelente a desconstruir a realidade e a transformá-la em algo a que todos os outros possam mais facilmente aceder. O professor abre novas janelas sobre o trabalho dos outros ajudando todos os envolvidos a compreenderem melhor o que fazem e porque o fazem. É este o papel do professor, é isto que McCloud faz de modo brilhante nos seus livros de não-ficção.

Para terminar, e porque me envolvi pessoalmente acima no texto, tenho de deixar a minha visão particular do tema. Cresci a amar cinema, via muitas horas, entre os 12 e os 15 anos, passei fins-de-semana completos encerrado em salas de vídeo a ver filmes, em cada fim-de-semana conseguia ver entre 5 a 10 novos filmes, ao que se acrescentavam os 2 filmes semanais em sala de cinema. Antes de ter condições para começar a fazer cinema, comecei a ler sobre cinema, não só as revistas da altura — Premiere e Cahiers du Cinema, etc. — mas também obras de teóricos da arte — Mitry, Bazin, Sadoul, Metz, Henri Agel, Eduardo Geada, etc. Quando finalmente tive a minha primeira câmara pelos 17/18 anos fiz muitas experiências, mais tarde cheguei a fazer alguns filmes com colegas, mas quando olhava para trás, nada do que tinha feito me satisfazia (algumas obras ainda estão online). Preferia as obras dos meus colegas, sentia que eles eram melhores que eu.  Eu sabia o que queria, tinha a noção teórica do que queria criar, mas não chegava lá. Hoje sei que não chegava lá porque precisava de ter experimentado mais, fazer, fazer, fazer, mas também sei que aquilo que falhou foi precisamente a motivação para continuar a fazer. O que eu gostava verdadeiramente era de desconstruir as obras, de as desagregar em elementos, de as autopsiar em busca de respostas e razões para o que de novo e original cada autor conseguia apresentar. Apreciar o modo como conseguiam reinventar-se a cada nova obra, como conseguiam superar os limites estabelecidos e surpreender-nos, tentar compreender como isso contribuía para a criação de novas formas de fazer, novas formas de compreender a realidade, novas formas de dar significado ao que somos. Porque a criação artística não é mero ato criativo, no meu modo pessoal de encarar a arte, a criação objetiva sempre à expressão humana, e fazê-lo de um modo diferente implica abrir novas potencialidades expressivas ao ser humano. Por isso sempre me movi pela compreensão do processo criativo e seus aspetos de inovação e originalidade, e talvez por isto tenha acabado por me tornar professor e não cineasta!

julho 29, 2018

Leitura armadilhada

"Catch-22" avança com uma premissa de excelência que é um conjunto de regras que se definem como paradoxo lógico. Neste paradoxo temos uma lógica para a ação que é definida por regras que se opõem e que por isso impedem a ação de decorrer. Exemplificando, o protagonista, Yossarian, quer deixar de fazer missões aéreas enquanto em guerra, para o que precisa de ser declarado insano pelo médico da companhia, contudo esta declaração só pode acontecer a pedido do próprio, ora se o soldado está em condições de fazer um pedido de avaliação de insanidade, não pode estar insano, logo não pode deixar de fazer as missões como pretende. Esta armadilha de regras está presente naquilo que no livro é conhecido por artigo nº22 do código militar, e que define a lógica subjacente à vivência em tempo de guerra que Joseph Heller procura trabalhar ao longo de todo o livro, e no fundo conduzir à sua conclusão maior, de que as guerras são em si mesmo paradoxos de lógica.


Não discordando em nada, admirando a premissa e a sua aplicação ao cenário de guerra, assim como estimando a enorme qualidade da escrita e estrutura apresentadas pela obra de Heller, é com muita pena que chego ao final apenas com a racionalização do que li. Ou seja, não senti o universo nem os seus personagens, os seus problemas não me tocaram, nem me demoveram. Li o livro até ao final porque me obriguei, porque é um livro extremamente citado, referenciado em dezenas e dezenas de listas, e por imensas pessoas que respeito, e por isso senti que poderia acontecer alguma espécie de revelação mais perto do seu desfecho. Na verdade pouco mais acontece, sim há um pouco mais de comoção, mas o livro é isto, e no meu caso nunca senti qualquer vontade de virar páginas, nunca senti que queria saber mais sobre Yossarian.

Sim, a guerra é algo sem sentido, obtusa, não existe qualquer lógica que se lhe aplique, está errada do início ao fim. E até podia dizer que por isso julgo que é algo contra o qual devemos lutar com maior sensibilização dos leitores, mas estaria a incorrer em erro. Não foi por isso que não me liguei, não senti qualquer menosprezo de Heller por quem teve ou tem de combater em guerras, antes senti uma elevação acima do quotidiano daquilo que as guerras criam, e uma tentativa de compreender algo que não é compreensível, tornando mesmo a premissa de "Artigo 22" extremamente significante. Contudo, e apesar de reconhecer tal, reconheço-o apenas no seu racional.

Dito isto, poderia ter lido um livro não-ficcional sobre o tema, filosofando sobre a problemática, e talvez me tivesse aproximado mais. A opção de seguir pelo humor, a sátira, não funcionou comigo. Senti-me a olhar para algo vazio. Teria preferido um conto sobre o assunto, que me pudesse dar a compreender o ardil, e não tivesse exigido tantas horas para oferecer o mesmo que tinha oferecido ao fim de 100 páginas. Dito isto, e porque não quero que esta análise sirva para demover alguém de ler uma obra que continua sendo tão amada, passado mais de meio-século, recomendo que leiam o primeiro terço do livro, se não sentirem qualquer ligação, então podem encostar, não vai acontecer nada de muito diferente depois disso.

Monumentos feitos de Livros

Não faltam monumentos, nem tão pouco monumentos dedicados ao Livro, contudo de entre esses trago aqui dois que quando os conheci (ainda que apenas por meio de fotografia), guardei para mais tarde voltar a apreciar e admirar. Não está em causa a forma, o seu impacto estético, belos ou feios, nem tão pouco a mensagem abstrata que muitos dos monumentos normalmente carregam. O que me fez guardar estes registos e trazê-los para esta conversa foi apenas e só os objetos escolhidos — livros e autores em concreto — para figurar em cada um desses monumentos. Ou seja, tendo em conta o número finito de obras que podem figurar em cada monumento, maior ou menor, o que me atrai neles é compreender as razões por detrás das escolhas e das ausências.

"Impressão Moderna de Livros" (2006), na Bebelplatz, em frente à Universidade de Humboldt de Berlim. São 17 livros sobrepostos numa torre de 12 metros, pesando cerca de 35 toneladas.

Começando pelo "Impressão Moderna de Livros", criado em 2006 aquando do Mundial de Futebol na Alemanha, parte de uma campanha de boas-vindas constituída por seis esculturas dedicadas a diferentes áreas da cultura germânica — a imprensa de Gutenberg; os marcos na medicina; a indústria automóvel; os mestres da música (Bach, Beethoven, Brahms ou Wagner), a teoria da relatividade (Enstein); e a bota de futebol (Adolf Dassler, fundador da Adidas). No caso de Gutenberg acabou-se a homenagear não apenas o criador mas também os grandes criadores alemães que a partir da criação de Gutenberg puderam dar a conhecer os seus universos literários e filosóficos. Funcionando como torre, a escultura assume a base como o mais relevante das letras alemãs, começando com Goethe, o nome mais consensual dentro da cultura das letras alemãs.


Depois de Goethe segue-se: Bertolt Brecht, Thomas Mann, Theodor Fontane, Hermann Hesse, Gotthold Ephraim Lessing, Friedrich Schiller, Heinrich Böll, Karl Marx, Irmãos Grimm, Friedrich Hegel, Anna Seghers, Immanuel Kant, Martin Luther, Heinrich Heine, Hannah Arendt e Günter Grass. Terminados os nomes, começa desde logo a surgir nas nossas mentes os nomes que nos faltam, e a tentativa de responder a, "porquê estes?" Porque não temos ali Nietzsche, Heidegger, Schopenhauer, Husserl, Erich Maria Remarque, Hölderlin, Leibniz, Horkheimer, W. G. Sebald, Novalis, Ernst Jünger etc.? Respostas não existem, pelo menos não consegui encontrar informação sobre o método usado para a decisão por estes e não outros.

Este acaba sendo o grande problema dos cânones, porque inevitavelmente têm de deixar obras e autores de fora. Mas é isso mau? Não creio, pela simples razão de que não existe um único cânone, sim já vivemos tempos em que se pretendia existir apenas um. Hoje compreendemos a diversidade de que somos feitos e que sustenta aquilo que constitui a nossa sociedade. As listas e os cânones comportam problemas, mas acredito que são mais benéficos do que problemáticos. É através destes que mantemos a nossa cultura viva. O que precisamos é de vários cânones, de quem lute e defenda as obras. Em certa medida, os autores só permanecem se forem lidos, para o que precisam de ser conhecidos, para o que precisam de ser relembrados e discutidos. E diga-se ainda que estas listas têm ainda outra vantagem, pelo que já vimos acima, de nos recordar os que ficaram de fora.

O segundo monumento é algo menos majestático, em termos de construção, por outro lado é algo com um escopo completamente distinto, optando pela diversidade e universalidade das obras. Falo das "Escadas do Conhecimento" pintadas junto à Biblioteca da Universidade de Balamand no Líbano, e que foram dadas a conhecer por meio de uma foto no Instagram que se tornou viral. Os livros foram escolhidos, segundo a responsável pelo projeto, pelo seu impacto em quatro diferentes áreas — Literatura, Filosofia, Política e Ciência — e estão organizados de baixo para cima em ordem cronológica, começando com a mais antiga obra escrita, "Épico de Gilgamesh" e terminando com o livro de Bill Gates de 1997. Como nos diz Olga Ayoub, o objetivo do projeto assentou na vontade de introduzir, os alunos e a comunidade, a clássicos que ao longo da nossa civilização transformaram a nossa maneira de pensar.

"Escadas do Conhecimento" (2017) na Universidade de Balamand, Líbano

Nas escadas, e por ordem ascendente temos: Épico de Gilgamesh; A República de Platão; Diwan de Al-Mutanbbī; A Epístola do Perdão de Abul ʿAla Al-Maʿarri; A Divina Comédia de Dante;  Muqaddimah de Ibn Khaldūn; O Príncipe de Nicolau Maquiavel; Discurso do Método de René Descartes; A Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant; Fausto de Goethe; A Origem das Espécies de Charles Darwin; Os Irmãos Karamazov de Dostoiévski; Assim Falava Zaratustra de Nietzsche; O Significado da Relatividade de Albert Einstein; O Profeta de Khalil Gebran; Al-Ayyam de Ṭāhā Ḥusayn; Um Estudo da História de Arnold Toynbee; Cosmos de Carl Sagan; Uma Breve História do Tempo de Stephen Hawking; Os Desorientados de Amin Maalouf; e Rumo ao Futuro de Bill Gates.

Estas escadas, em termos das suas escolhas são ainda mais interessantes do que a escultura de Berlim, porque sendo mais diversa, obrigatoriamente deixa muito mais de fora. Repare-se que estamos a falar de toda a cultura escrita, em todo o globo ao longo de quase cinco mil anos, é impossível não deixar tanto e tanto de fora. E no entanto não deixa de ser gratificante encontrar ali obras em que todos de algum modo nos revemos. Mais, o facto de ser uma obra construída numa região exterior ao que comummente definimos de ocidente, oferece-nos um reflexo daquilo que consideramos relevante, abrindo-nos ainda as portas para autores que são praticamente desconhecidos entre nós. Obras como "Diwan", uma coleção de poemas de Al-Mutanabbi (915-965), considerado um dos maiores poeta da língua árabe, e o mais influente no mundo árabe; "A Epístola do Perdão" de Abul ʿAla Al-Maʿarri (973-1057), considerado um dos grandes filósofos e poetas do mundo clássico árabe, sendo esta obra considerada uma espécie de percursora da Divina Comédia; O "Muqaddimah" foi escrito por Ibn Khaldun em 1377, e é um livro de não-ficção centrado na história universal apresentando primeiras ideias sobre os domínios das ciências sociais, sociologia, economia, etc. "Al-Ayyam" (Os Dias) são uma espécie de diário de Taha Hussein (1889-1973), considerado o mais influente escritor do Egipto do século XX. (Existe uma grande discussão no Reddit sobre estas escadas, onde é possível escavar muita outra informação).

E no entanto, apesar da diversidade não existe ali nada proveniente de África, América do Sul ou Ásia. Podemos ler isto de muitas formas, eu opto por ler como um sinal daquilo que somos, ou seja, as escadas representam aquilo que continuamos a prezar e que conhecemos. Sabemos que o conhecimento é mais vasto, mas como dizia acima, se não falarmos dele, se não o discutirmos, se não tornarmos presentes as suas obras, autores e ideias dificilmente elas poderão fazer parte das culturas locais. Ou seja, não é apenas um problema de esquecimento pelo tempo, mas é essencialmente um problema de conhecimento prático, de uso real dos autores pelas comunidades. Por isso é que estes monumentos, as listas e os cânones são tão importantes. E por isso é que não podemos ter listas únicas, mas precisamos de listas diversas, discutidas, amadas e odiadas, para podermos também compreender melhor não apenas a nossa própria cultura mas a dos outros, tornando-as cada vez mais culturas de todos.


Nota: as imagens foram retiradas da rede, não sendo possível identificar os autores originais, no caso de qualquer infração de direitos serão imediatamente retiradas.

julho 23, 2018

5 anos depois

Voltei a "The Last of Us" (2013), rejoguei o jogo completo, algo que há anos e anos não acontecia, e tenho de dizer que a experiência foi tão, ou mais, intensa que a de há 5 anos. Reli agora o que escrevi na altura e nada se alterou, nem tão pouco o jogo foi ultrapassado por qualquer outro. Entre as duas experiências li "A Estrada" (2007) de Cormac McCarthy, uma das principais influências de "The Last of Us" (TLOUS) e tenho de dizer que Neil Druckmann ombreia com McCarthy, bastante mais do que a adaptação cinematográfica homónima de John Hillcoat, mesmo não lhe sendo tão fiel.


Não vou realizar qualquer análise ao jogo porque como já disse, o que escrevi há 5 anos mantém-se tudo, mas quero aproveitar estas linhas para enfatizar algo que nessa altura louvei mas julgo não ter sentido tanto como desta vez, falo dos personagens. Os personagens são a essência da literatura, ela melhor do que qualquer outra arte consegue dar-nos a conhecer quem se nos apresenta, porque nos permite entrar nas suas mentes e escrutinar o que pensam em cada momento. Contudo, como sabemos do cinema, é possível chegar a muito disso pelo que estes decidem fazer em cada momento, e os videojogos não são exceção. Sendo o videojogo muito mais extenso que o filme, passamos muito mais tempo na sua companhia, temos mais oportunidades para ir conhecendo aqueles com quem seguimos na narrativa. E TLOUS aproveita bem as mais de 20 horas que o jogo requer da nossa atenção, criando situações, atividades e escolhas que se vão desenrolando num modo imensamente rico no que toca a expressividade dos personagens. Quando disse acima que Druckmann ombreia com McCarthy era especialmente por esta riqueza narrativa, de situações que nos permitem entrar de forma tão profunda no sentir dos seus personagens.

O personagem principal Joel não é nenhum santo, apesar de começar como um simples pai de classe média americana, com um conjunto de valores iguais a tantos outros, o confronto com o apocalipse transforma-o completamente, algo a que assistimos logo ao abrir do jogo, e o resto do jogo acaba sendo toda uma travessia em busca do Eu perdido de Joel, o que abre espaço constante para a luta moral interior, entre os resquícios da bondade de outro tempo e a violência própria do novo tempo. Diga-se que TLOUS é bastante violento, não sendo mais que "A Estrada", mas por ser mais longo, faz-nos sentir mais vezes essa violência. Por várias vezes questionei-me que não era precisa, e que estaria a ser gratuita, mas saindo da redoma da minha segurança sei que não, tal com McCarthy também sabia.

Este desfiar moral sobre a identidade de Joel está presente até ao fim e é mesmo a chave para explicar o final narrativo mais surpreendente de sempre dos videojogos. As opções apresentadas são: salvar a humanidade ou salvar uma adolescente com quem se desenvolveu uma relação de pai e filha. A decisão é um dilema filosófico sobre o sentido utilitarista da vida, em que nós como jogadores não participamos, mas que define por completo a jornada encetada com Joel, servindo de chave para compreender de onde se parte e onde se chega. Nós não somos Joel, mas Joel pode ser todos nós. Druckmann obriga-nos a refletir sobre algo que McCarthy acaba, em parte, descartando, as relações humanas. No fundo, só investimos tanto na nossa sobrevivência por causa dos outros como nós.



Veremos o que "The Last of Us II" tem para nos oferecer.

julho 21, 2018

Primeiro Eça, depois os Maias

Vejo tanta discussão em redor da importância de "Os Maias" na escola portuguesa porque o Ministério decidiu terminar a sua obrigatoriedade, presenteando os docentes com a missão de serem eles agora a selecionar a obra de Eça de Queiroz que se estuda em cada ano, mas muita desta discussão vem bastante enviesada. Não vejo uma real preocupação com o que está em questão na leitura desta obra, mas mais uma discussão sob os velhos rótulos de alta e baixa cultura. Temos o típico coro de críticas de ataque ao que se muda, como se a mudança fosse sempre para pior. Mas temos também justificações para a mudança baseadas em preceitos de modernidade que não têm qualquer sustentação. Quando é, ou deveria ser, simples aquilo que motiva a escolha de obras de leitura geral e obrigatória nas escolas: a criação de um cânone que una todos os cidadãos num discurso comum, que não pode ser dissociado da idade dos alunos, e do seu desenvolvimento cognitivo.

Eça de Queiroz

Quero deixar algumas linhas sobre assunto, não apenas baseadas em leituras científicas, mas também na minha experiência pessoal de leitura, já que li "Os Maias" quando andava no liceu, com 16 anos, e voltei a lê-lo recentemente, com 42 anos (notas desta última leitura). Posso dizer desde já que foram experiências completamente diferentes, ao ponto de não conseguir ligar qualquer memória afetiva da primeira leitura com a mais recente. Pergunto-me porquê, e a razão não é muito difícil de descortinar, não terá havido ligação afetiva na primeira leitura. A leitura por obrigatoriedade tem destes problemas. Não acontece só com os livros, acontece com tudo, com o cinema, com os jogos, com a maioria dos prazeres da nossa vida. Não é por acaso que passámos os últimos 44 anos a prezar a Liberdade, porque a liberdade é a base da criação da experiência humana individual. Se, experienciamos porque alguém nos obriga a tal, a emoção troca de lugar com a razão, e a experiência que nos deveria tocar o coração passa a tocar a racionalização. Queremos compreender porque somos obrigados a experienciar, e no meio disso perdemos a oportunidade de chegar a sentir.

É claro que este discurso nos coloca face a um dilema insustentável. Se a escola deve ter como missão, além da promoção do conhecimento, a criação de sociedade, para o que dota os indivíduos de conhecimento comum que permite a emergência da comunidade, como é que tal pode acontecer se aquilo que se estuda é feito por obrigação, perdendo-se a fruição. Na verdade, isto não deve ser dilema porque quando estudamos Biologia ou Matemática, também não o fazemos para fruir, fazem-lo por necessidade de elevar o conhecimento dessa sociedade, para sermos capazes de operar a outros níveis de abstração da realidade. Então porque não pensar a literatura da mesma forma? E se em vez de obrigar à leitura de obras completas, livros com mais de meio milhar de páginas, a literatura não é apenas feita de romances, e não existe autor que não tenha escrito contos, porque não optar por trabalhar com contos?

Se pensarmos em concreto no que estamos a exigir cognitivamente a um miúdo de 16 anos para que leia "Os Maias", perceberemos o quão desprovido de senso é. E não estou a falar de sociedade digital, de internet ou videojogos e o famigerado discurso do défice de atenção das novas gerações. Podemos pensar em 1980, com um canal de televisão único, televisão a preto e branco, sem consolas, nem telemóveis. Estamos a falar de entreter a mente ao longo de centenas e centenas de páginas com uma escrita elaborada e detalhada, altamente estilizada com base em técnicas descritivas herdadas ainda do romantismo. Eça foi o nosso primeiro grande realista, mas foi-o mais no conteúdo do que na forma. Ler Eça não é propriamente simples, não porque use palavras caras, mas porque usa toda uma lógica descritiva da realidade que se enreda. O discurso está longe do modo direto que o realismo desenvolveu nos anos que sucederam a Eça, temos um discurso que se cobre de insinuações sobre aquilo que quer dizer, em vez de simplesmente o dizer. Nada disto é problemático quando estamos preparados para tal, quando já lemos muitas outras obras e aceitamos o contrato daquele tipo de escrita porque desejamos entrar na obra. Quando somos obrigados a ler e temos de realizar um esforço enorme para compreender o que estamos a ler, e na nossa frente esperam-nos ainda 800 páginas, é fácil entrar em desespero, chamar raios e coriscos à escola, aos professores, e desistir.

Mas o problema não é só estético. O problema agrava-se quando começamos a desconstruir o que Eça nos quer dizer com a sua obra. Temos de pensar que somos um leitor com 16 anos, que no século XIX poderíamos ser já um adulto casado com filhos, mas hoje somos quase uma criança ainda. Este leitor não compreende o que significa lidar com filhos, menos ainda adultos, perdê-los, seja por que motivo for. Está longe de compreender as nuances das relações adultas. Podemos até dizer, 'mas é bom que sejam confrontados com tal', sim, talvez se fosse apenas este o problema, mas como vimos assim não é, e adensa-se. A realidade de Eça é de um Portugal do século XIX, o que acaba distanciando ainda mais todos os problemas que aqueles personagens sofrem. Se os miúdos não têm muito contexto sobre as mensagens subtis entre adultos, menos ainda têm sobre o contexto político desse tempo. Não podemos esquecer que Eça escreve para os seus pares, do alto de uma vida carregada de experiência diplomática, o livro está pejado de detalhes que nos adoçam a leitura mas é preciso contexto para chegar a eles. E não se iludam, muito desse contexto não se dá nas aulas, constrói-se ao longo da vida, com experiências, com o cruzamento de leituras com experiências reais, que nos permitem ir criando associações de ideias a experiências, e fazer de nós pessoas mais adultas e sensíveis.

E continua, porque a componente mais intrincada de romance, de desenvolvimento e progressão de ação só surge na terceira parte do livro. Durante mais de metade do livro, somos arrastados por entre contextualizações e descrições, ou seja, muita exposição e pouco drama, o que vem complicar a manutenção do interesse dos leitores menos preparados para a leitura. Ser exposto a algo pode ser interessante, mas é um processo por natureza desprovido de emoção, e por isso dificilmente sustenta o interesse se o leitor não conseguir ligar essa exposição a contexto próprio, edificando-o com as suas próprias emoções. Mas o drama não é só emoção, é acima de tudo transformação. Daí que a progressão seja o maior garante de interesse dos leitores, porque estes focam-se no que muda, querendo saber porque muda e como muda. Os leitores menos preparados conseguem facilmente ler Dan Brown ou J.K. Rowling exatamente por causa disto, porque a mudança desperta a curiosidade para saber o que vai acontecer a seguir, fazendo com que a atenção se mantenha alerta e o interesse estável. "Os Maias" são uma grande obra, elogiada pela crítica internacional, exatamente por não se deixar levar por esse facilitador narrativo, por delinear uma estilística própria que obriga o leitor a trabalhar para mais tarde ser recompensado. Mas um aluno de 16 anos não é um crítico literário.

Podemos simplesmente obrigar, assim como obrigamos a decorar os rios de Portugal ou a tabela periódica, ou podemos pensar de forma diferente. Podemos pensar que aquilo que queremos criar é o conhecimento comum sobre Eça de Queiroz, prolongar o seu legado, criar um esteiro em que a sua obra sirva o cânone de que devemos, enquanto país, partir. (Aproveito para questionar aqui a nossa sociedade, se é verdadeiramente isto que queremos, porque não está Eça no nosso Panteão?). E para isso podemos usar obras mais curtas, contos, que darão muito mais espaço ao professor para nas aulas falar do autor, do tempo em que viveu, do país que conheceu e da sua relação com o país de hoje. A partir desses contos pode-se aprender sobre o estilo e estética de Eça, pode-se iniciar o conhecimento, e aos poucos aprender a amar Eça, a amar a língua portuguesa, e pode ser que no verão seguinte o aluno, por sua própria iniciativa, passe as férias junto de "Os Maias".

julho 16, 2018

A diferença, sempre a diferença

Foi há mais de uma semana que terminei esta primeira obra de Morrison — “The Bluest Eye” (1970)— mas ainda não tinha encontrado o mote para escrever sobre a mesma. Hoje, ao reler algumas passagens, confrontei-as com o espetáculo “Nanette” (2018) de Hannah Gadsby, sobre o que aqui tinha ontem dado conta, e senti um arrepio. O livro é de 1970, mas está tudo ali, não que não hajam obras anteriores, mas com esta força literária, capaz de colocar o dedo na ferida da discriminação, não existem muitas. As razões não são apontadas por Morrison, mas por Gadsby, porque quanto mais vamos interiorizando e compreendendo a sociedade que criámos, mais nos vamos dando conta dos papéis dominantes do homem, do hetero, e do branco. As maiorias dotadas de força, física ou política, nunca se coibiram de a usar, e esse é o mal que nos assola, o da incapacidade empática.


O cerne da história de Morrison assenta numa menina negra, de um bairro americano pobre, que tinha um desejo: ter olhos azuis. Morrison diz-nos no prefácio que este desejo lhe foi relatado por uma amiga de infância, e que foi algo que a perseguiu durante anos. Assim aquilo que é colocado a jogo não é mais do que a vergonha do ser. A vergonha da cor dos olhos, da cor da pele, de Pecola que se junta à vergonha da homossexualidade de Hannah Gadsby. Porque quando crianças, cresceram ambas envolvidas num ambiente de ódio e raiva contra aquilo que eram, e como diz Gadsby isso deixa marcas, podemos reconstruir-nos mas não podemos apagar-nos. Como é possível tanta violência, nem falando de adultos, contra crianças, apenas porque são diferentes?

De Morrison conhecia “Beloved” (1987) que entrou diretamente para as minhas melhores dez leituras de sempre. Não posso dizer que “The Bluest Eye” vá para além, é uma primeira obra e o tema repete-se, a pobreza e a sexualidade das mulheres negras, mas e porque haveria de mudar? Quantos escritores temos a falar da realidade destas mulheres negras? Para não falar da realidade das mulheres. O tempo vai passando, fala-se muito, surgem movimentos feministas, mas continuamos a viver num mundo completamente feito de produção cultural masculina, branca e hetero. Precisamos de muitas mais Morrison e mais Gadsby, porque precisamos de compreender que o mundo não é feito de uma massa única, somos todos tão diferentes sendo tão iguais. De que adianta proclamar o humanismo se ele parece condicionado à partida por um modelo único de humano?

Sobre a escrita de Morrison, tenho pena de não vos poder oferecer uma análise mais sentida. Li “Beloved” em português e aí pude experienciar a beleza da sua poética, dos seus ritmos e fluxos sintáticos que envolvem o significado daquilo que se vai dizendo. “The Bluest Eye”, incompreensivelmente não está traduzido para português, como não estão outras obras desta autora, que ganhou um Nobel em 1993. E eu questiono-me, como é possível que uma autora ganhadora de um Nobel não tenha toda a sua obra, ou pelo menos as suas grandes obras traduzidas para português? Só isto devia ser suficiente para acender os nossos alertas para tudo o que disse nos parágrafos anteriores.

No entanto, como diz Gadsby, também não quero terminar numa nota negativa, nem fazer de tudo no mundo uma inevitabilidade da nossa irracionalidade. Não creio em mandamentos que nos vendem alguns arautos de que tudo é mesmo assim, pegando por exemplo em Jordan Peterson que para nos convencer do status quo usa a armadilha da vida como um caminho de sofrimento, tão cara às religiões seculares. Prefiro evocar Fred Rogers, e o seu discurso em defesa do seu programa educativo na televisão pública americana, em que disse:
"Isto é o que eu faço. Eu ofereço uma expressão de atenção todos os dias a cada criança, para a ajudar a perceber que ela é única. Eu termino o programa dizendo: 'Tu fizeste deste dia um dia especial, apenas por seres quem és. Não há ninguém em todo o mundo como tu e eu gosto de ti tal como és.' E eu sinto que se nós, na televisão pública, pudermos deixar claro que os sentimentos são mencionáveis e geríveis, que teremos contribuído para uma melhor saúde mental.” Testemunho de Fred Rogers perante o Senado dos EUA, 1 de maio 1969 [vídeo].